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Foi Leonardo da Vinci ( 1 452- 1 5 1 9 ) , o maior dos " homens uni­


versais" da Renascença, quem primeiro concebeu a plena possibilida­
de de aplicação da ciência à vida . "Necessidade " , diz, "é ( . . . ) a eterna
lei da natureza " , e ao se submeter a tal lei pelo trabalho e pela expe­
rimentação, " intérprete entre o homem e a natureza '' , tudo se torna
possível ao homem.
Estava interessado, sobretudo, na aplicação da matemática a fi­
nalidades práticas na ciência da mecânica . "Ó alunos " , diz, " estudem
matemática e não erij am edifícios sem fundamentos " ; e prenunciou
inúmeras invenções modernas nos seus modelos e planos, em especial
a máquina voadora e o helicóptero. Não foi menos original no estudo
da Terra e do homem. Foi o primeiro geólogo e anatomista moderno,
bem como botânico e astrônomo. Na visão ampla das possibilidades
da ciência e nos feitos comparativamente modestos e fragmentários,
Da Vinci foi um modelo da própria época, falha em resultados po­
sitivos, apesar de muito prolífica em gênio - as palavras de Giorgio
Vasari ( 1 5 1 1 - 1 574 ) se aplicam a Leonardo: o amor ao conhecimento
era tão grande que a própria obra foi obstruída pelo desejo.

2 A RENASCENÇA DO NORTE: ERASMO DE ROTERDÃ


-

Entrementes, no Norte da Europa, não havia progresso compa­


rável na vida social nem na intelectual. É verdade que a vida urbana
progrediu no Norte, assim como na Itália, em especial nos Países
Baixos, no Sul da Alemanha e ao longo do Rio Reno. Nas artes in­
dustriais e na nova arte da tipografia, essas cidades, muitas vezes,
estavam mais adiantadas que os italianos. Nos assuntos intelectuais
e sociais, no entanto, esse não era o caso. As cidades italianas domi­
navam a totalidade da cultura italiana. As cidades do Norte ainda
eram ilhas numa sociedade predominantemente rural comandada
por nobres e clérigos.
A Divisão da C ristandade 1 Capítulo 3

A liderança cultural da Europa Setentrional nesse período estava


nas mãos do governo da Borgonha, comparável ao ducado de Milão
em riqueza e prosperidade das cidades e no brilhantismo do desenvolvi­
mento artístico. No entanto, essa cultura burgúndia, que foi muito bem
descrita pelo dr. Johan Huizinga ( 1 872-1 945 ) na obra, de 1 9 1 9, Herfst­
tij der Middeleeuwen [O Outono da Idade Média]7 estava muito longe
da nova cultura da Renascença italiana. Era uma cultura de corte, de
príncipes e nobres feudais, que ainda cultivava os ideais medievais de
cavalaria, muitas vezes de maneira exagerada, como na inauguração da
Ordem do Tosão de Ouro ( 1 429) e o famoso banquete de 1454, quan­
do Filipe III ( 1 396- 1467), o Bom, e os cavalheiros da Ordem repetiram,
pela última vez, a cerimônia do solene j uramento cruzado. Assim tam­
bém, a Inglaterra de sir Thomas Mallory e a Guerra das Duas Rosas
( 1455- 1485) ainda se reportava a um mundo medieval romantizado
que já estava morto. A tradição viva da arquitetura gótica, contudo,
continuou a florescer até o século XVI, e algum dos mais admiráveis
exemplos da grande tradição inglesa da arquitetura eclesiástica per­
tencem ao período imediatamente precedente à Reforma Protestante,
tais como as igrejas paroquiais da Ânglia Oriental, a magnificência da
capela do King's College em Cambridge e a capela de St. George em
Windsor. E a mesma persistência e vitalidade da tradição medieval é
vista na extravagante arquitetura tardia da França e da Borgonha.
Dessa maneira, o Norte gótico não tinha necessidade de reviver
as artes se voltando para a Itália. A pintura flamenga não era menos
avançada que a italiana, e a arquitetura gótica tardia do Norte era
uma tradição popular mais viva que a nova arquitetura clássica da
Itália. Em contrapartida, no campo da educação, o Norte tomava ci­
ência do atraso cultural e estava pronto a aceitar certo grau de orien­
tação dos mestres humanistas italianos.

7Johan Huizinga, O Outono da Idade Média. Trad. Francis Petra Janssen.


São Paulo, Cosac Naify, 2010. (N. T. )
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A necessidade era maior n a educação d o laicato, como escreveu


Enéas Sílvio Piccolomini, futuro papa Pio II, após as experiências na
Alemanha, por volta de 1 444:

A literatura viceja na Itália e os príncipes não temem ouvir e, eles


mesmos, conhecer poesia. Os príncipes germanos, entretanto, prestam
mais atenção a cavalos e cães que a poetas, negligenciam as artes e
morrem esquecidos como os próprios animais. 8

Não há dúvida que havia casos excepcionais de aristocratas cul­


tos, como Humphrey de Lancaster ( 1 3 90 - 1 447), duque de Gloucester
e o conde palatino Frederico I ( 1 3 70- 1 42 8 ) de Wettin, que foram su­
ficientemente educados para interessarem-se pela cultura italiana. No
geral, contudo, a educação no Norte da Europa ainda permanecia,
como na Idade Média, quase um monopólio do clero - como demons­
tra, na língua inglesa, o uso da palavra " clerk " 9 para quem quer que
escreva. As universidades, embora estivessem aumentando, de modo
constante, em número e tamanho, ainda permaneciam totalmente
medievais na organização e no currículo. Eram a grande fortaleza do
saber antigo e se tornaram o alvo favorito dos ataques humanistas
por conta do latim incorreto, pela lógica estéril de minúcias insignifi­
cantes e por negligenciar a literatura clássica.
Em que pese a crescente atração exercida pela nova cultura ita­
liana nos homens de erudição e nos homens de letras do Norte da
Europa, a força motriz da cultura e da educação nortistas não era
puramente literária. Ainda se inspirava nas ideias religiosas que domi­
naram a cultura medieval desde o século XI, mesmo que não encon­
trassem mais expressão típica na reforma do movimento monástico
que fora tão potente na época de São Bernardo de Claraval e São
Francisco de Assis ( 1 1 82- 1 226 ) .

8 Citado em: Denys Hays, The Italian Renaissance. New York, Cambridge
University Press, 1 96 1 , p. 1 9 1 .
9 A palavra clerk e m inglês, além de clérigo, significa escriturário, escrevente,
copista ou qualquer ofício que lide com papéis e escrita. (N. T. )
A Divisão da C ristandade 1 Capítu lo 3

Durante a Baixa Idade Média, esse movimento de reforma re­


ligiosa na Europa Setentrional fundou um novo centro nos Países
Baixos, no qual Geert Groote ( 1 340- 1 3 84 ) , um discípulo do grande
místico, o beato Jan van Ruysbroeck de Groenendaal ( 1 239- 1 3 8 1 ),
em 1 3 8 1 , fundou uma comunidade de leigos chamada Irmandade da
Vida Comum. Esse instituto se dedicava a ensinar e criar escolas li­
vres. Alguns " irmãos " também adotaram a vida religiosa no sentido
tradicional e fundaram um monastério agostiniano em Windesheim,
perto de Zwolle, que se tornou o centro de um movimento ativo de
reforma monástica . Esses dois movimentos relacionados se uniram
para promover o que ficou conhecido como a Devotio Moderna, uma
forma de espiritualidade que encontra sua expressão clássica na fa­
mosa Imitação de Cristo, obra de um membro dos monastérios do
grupo de Windesheim, Tomás à Kempis. O autor era contemporâneo
de Poggio Bracciolini ( 1 3 80- 1 4 5 9 ) e dos grandes humanistas italia­
nos, mas não demonstrava simpatia pelos ideais do novo saber; ainda
aderia à tradição de São Bernardo e de Guillaume de Fécamp ( 962-
1 03 1 ) , que encontraram inspiração no pietismo evangélico e não no
misticismo especulativo. Opunha-se igualmente, contudo, ao espírito
do antigo saber - ao intelectualismo dos filósofos escolásticos e às
disputas infrutíferas das antigas universidades medievais.
Assim, a nova devoção da Irmandade da Vida Comum tinha
algo em comum com o novo saber, e o fato da obra estar tão preo­
cupada com educação, os levou, por fim, a se relacionarem com os
humanistas. O grande precursor da Renascença no Norte da Euro­
pa, o cardeal Nicolau de Cusa ( 1 40 1 - 1 464), foi pupilo dos irmãos
"da Vida Comum " , embora fosse um espírito muito original e mul­
tifacetado para ser classificado como discípulo de qualquer escola.
Tanto foi um grande reformador eclesiástico como um profundo
metafísico, que combinou o misticismo teológico com o estudo da
Matemática e da Física, algo na tradição de Roberto Grossetes­
te ( 1 1 75 - 1 25 3 ) e dos neoplatonistas do século XIII. Também foi
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estudioso dos clássicos, colecionador de manuscritos antigos, exer­


cendo enorme influência nos líderes do humanismo e na reforma
cristã na Europa Setentrional, como em Reuchlin na Alemanha, Le­
fevre d'Etaples na França e no círculo dos humanistas cristãos ho­
landeses que se reuniam no priorato de Adwerth perto de Gronigen,
sob a liderança do prior Henry de Rys ( 1 449- 1 4 8 5 ) . Dentre os
membros do grupo estava Wessel Gansfort ( 1 4 1 9- 1 4 8 9 ) , Rodolphus
Agricola ( 1 444- 1 4 8 5 ) , Rudolf von Langen ( 1 4 3 8 - 1 5 1 9 ) e Alexander
Hegius ( 1 4 3 3 - 1 49 8 ) . Foi por intermédio desses homens que o novo
saber entrou em relação com o trabalho educacional da Irmandade
da Vida Comum, pois Alexander Hegius foi diretor de uma grande
escola da Irmandade em Deventer de 1 4 8 3 a 1 4 9 8 , aprendera o gre­
go com Rodolphus Agricola e tornou-se, por sua vez, o professor de
Konrad Mutianus Rufus ( 1 470- 1 52 6 ) e de muitos outros estudiosos
famosos, sobretudo, do grande Erasmo de Roterdã ( 1 466- 1 5 3 6 ) .
Erasmo, que provavelmente nasceu e m 1 466, passou o s primeiros
trinta anos de vida nas escolas da Irmandade da Vida Comum e no
monastério de Steyn, que era parte da congregação de Windesheim,
de modo que deve ser visto como o produto mais significativo dessa
tradição. É verdade que nunca admitiu isso e demonstrou pouca gra­
tidão aos seus primeiros professores. Não tinha vocação para a vida
monástica e nenhuma simpatia pelos elementos medievais que ainda
predominavam nas escolas da Irmandade. Era, em essência, um ho­
mem de letras e um individualista que valorizava, acima de qualquer
coisa, a liberdade e o ócio. Primeiramente, encontrou uma atmosfera
apropriada durante as visitas a Inglaterra em 1 499, 1 505 e de 1 5 09 a
1 5 14, onde se tornou membro íntimo do grupo de estudiosos e eclesi­
ásticos, a saber, John Colet ( 1 467- 1 5 1 9 ) , Thomas More ( 1 478 - 1 5 3 5 ) ,
o bispo John Fisher ( 1 469- 1 5 3 5 ) e o arcebispo William Warham
( 1 450- 1 532), patronos e pioneiros do novo saber na Inglaterra.
Foi nesses círculos que o espírito da Renascença italiana mais se
aproximou do movimento de reforma religiosa no Norte da Europa.
A Divisão da C ristandade 1 Capítulo 3

John Colet acabara de visitar Florença quando entrou em contato


com Marsílio Ficino ( 1 4 3 3 - 1 4 9 9 ) e a academia platônica; e a St.
Paul's School ( 1 509), que posteriormente fundou, foi um exemplo no­
tável do mesmo espírito que levou a Irmandade da Vida Comum em
Deventer a usar o novo saber a serviço do ideal da educação cristã.
Foi John Colet quem primeiro inspirou Erasmo com o ideal de
dedicar seu saber aos estudos bíblicos e patrísticos, um programa for­
talecido pela descoberta, em Louvain, de um manuscrito da impor­
tante obra ln Novum Testamentum Adnotationes 1 0 do grande huma­
nista Lorenzo Valla ( 1 407- 1 457), que daria frutos significativos na
tradução da edição grega do Novo Testamento, em 1 5 1 6 .
Assim, Erasmo, o maior humanista que a Europa Setentrional
produzira, tornou-se o exponente de uma forma de humanismo cris­
tão muito diferente do humanismo italiano da época. Esse movimento,
que fora chamado de " humanismo bíblico " , buscou reformar a reli­
gião pelo retorno às fontes, sobretudo ao Novo Testamento no origi­
nal grego e, em segundo lugar, pelo estudo das obras dos Padres da
Igrej a. Como os humanistas italianos fizeram da Antiguidade Clássica
um modelo de cultura e o único padrão de mérito artístico e literário,
do mesmo modo, nesse momento, Erasmo, amigos e discípulos estabe­
leciam o ideal da Antiguidade Cristã como a contrapartida no plano
espiritual e tornando-a o critério dos valores morais e religiosos.
Ademais, relacionavam os dois ideais ao demonstrar os elemen­
tos morais de cada um deles e ao considerar um como a preparação
para o outro, de modo que os antigos filósofos, em especial Platão,
devessem servir como guias e anunciadores do Evangelho. Igualmen­
te, na Antiguidade Cristã, Erasmo prestou pouca atenção ao estudo

1 0 A referida obra de Valia, cuja elaboração foi incentivada pelo cardeal Bessa­
rion de Niceia e por Nicolau de Cusa, somente foi publicada em 1 505. Aplica­
va os métodos de filologia humanista ao texto sagrado e, como seria esperado,
recebeu a acusação de desrespeitar a tradução latina de São Jerônimo, o que
fez com que, durante a Contrarreforma, a obra fosse posta no Index. (N. T. )
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do dogma e se concentrou na sabedoria moral do Evangelho, o que


chamou de "Philosophia Christi" . E como os humanistas italianos
tinham mostrado desprezo pelo latim incorreto e mau gosto da Idade
Média, da mesma maneira, Erasmo dirigiu críticas à Igrej a - não só
porque substituíra os sistemas metafísicos dos escolásticos pela Philo­
sophia Christi, mas porque desertara mais ainda a " simplicidade áu­
rea " do ensinamento evangélico por uma multiplicidade de práticas
devocionais, pelo culto aos santos e às relíquias, e pela proliferação de
todos os tipos de práticas religiosas especiais, algumas das quais eram
supersticiosas e todas, cria Erasmo, distraíam a razão dos cristãos
para o que não era essencial.
Os ensinamentos de Erasmo a respeito desses assuntos tiveram
ampla difusão nas décadas anteriores ao início da reforma luterana,
e tiveram impacto em círculos muito influentes, tanto em Roma e,
mais ainda, na corte de Carlos V ( 1 500- 1 5 5 8 ) , imperador do Sacro
Império Romano, onde podiam ser encontrados alguns dos discípulos
mais fiéis de Erasmo entre os borgonheses e espanhóis.
A situação, porém, repentinamente mudou com a vinda da Refor­
ma Protestante. Tanto no interesse pelas Escrituras como no menospre­
zo pelas devoções, práticas piedosas e pelo monaquismo, Erasmo pare­
cia ter preparado o caminho para Martinho Lutero; e muitos católicos,
sobretudo na Sorbonne e na Inquisição espanhola, começaram a tratá­
-lo como "o homem que pôs o ovo chocado por Lutero" , ou como um
herege recôndito, muito mais perigoso por ser razoável e moderado.
Logo ficou evidente que havia um enorme fosso que separava Eras­
mo dos reformadores, especialmente de Lutero. É verdade que tanto
Erasmo quanto Lutero falavam contra a concepção católica da épo­
ca a respeito das boas obras, mas tal concordância é ilusória. O pon­
to de vista de Erasmo era, em essência, o do moralista, ao passo que
o de Lutero representava somente a fé em oposição a qualquer tipo
de moralismo. É verdade, sem dúvida, que existem muitas correntes
na Reforma Protestante que derivam de Erasmo, em especial, talvez,
A Divisão da C ristandade 1 Capítu lo 3

aquelas mais afastadas da ortodoxia dogmática, como os anabatistas


e os socinianos. Ao mesmo tempo, ficou evidente que as simpatias de
Erasmo estavam com os católicos, e não com os oponentes, não só
porque era um homem moderado que abominava a violência (espe­
cialmente a violência dos teólogos), mas, sobretudo, porque era um
humanista, ainda que um humanista cristão e lhe causara aversão o ele­
mento anti-humanista do protestantismo, especialmente, a condenação
do livre arbítrio e a negação da possibilidade de uma virtude natural.
Não obstante, a influência de Erasmo é encontrada em todos os
lugares, em ambos os lados, assim como fora deles. Como observou o
professor Denys Hay ( 1 9 1 5- 1 994 ) :

Devemos recordar que Philipp Melanchthon ( 1 497- 1 560), João Calvi­


no ( 1 509- 1 564) e Inácio de Loyola ( 14 9 1 - 1 556), todos prescreveram
em suas escolas as obras educacionais de Erasmo, a quem repugnavam,
e que a comunidade de eruditos por toda a Europa nunca fora tão forte
quanto entre os anos de 1 500 e 1 700. 1 1

Não que Erasmo fosse um pensador profundo ou um grande te­


ólogo. Seu intelecto era como um rio raso e largo que alimenta mui­
tos afluentes e fertiliza largas extensões de campos de ambos os lados.
Preocupava-se com um problema, ou com uma série de problemas que
eram de central importância para a cultura ocidental, e os resolveu
em termos que mostraram ser aceitáveis para homens de boa vontade
dos dois lados da fronteira teológica. O problema era a reconciliação
do novo saber com a antiga religião, e a solução de Erasmo era desen­
volver uma nova cultura cristã que aplicaria novos métodos filológi­
cos, históricos e críticos ao estudo da Antiguidade Cristã. Sem dúvida,
tal solução não era exclusiva de Erasmo. A mesma coisa fora feita,
simultaneamente ou um pouco antes, pelo cardeal Francisco Jiménez
de Cisneros O.EM. ( 1 436- 1 5 1 7) na nova universidade humanista de

11
Denys Hay, The Renaissance in lts Historical Background. Cambridge,
Cambridge University Press, 1961, p. 20 1 .
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Alcalá. 1 2 No entanto, o grande representante e publicista do humanis­


mo cristão13 foi Erasmo. Seus livros e edições eram lidos por todos, em
todas as partes da Europa, e a grande renovação dos estudos cristãos
que ocorreu nos séculos XVI e XVII, que culminaram nos trabalhos do
cardeal Caesar Baronius ( 1 5 3 8 - 1 607) e de Dionisius Petavius ( 1 5 83-
1 652), Louis-Sébastien Le Nain de Tillemont ( 1 63 7- 1 69 8 ) , na obra
dos mauristas e bolandistas, devem o surgimento mais a Erasmo que a
qualquer outra pessoa.
A título de recapitulação, enfatizo a importância de Erasmo por­
que parece representar o encontro das duas grandes forças que mu­
daram o Ocidente no século XVI: a renovação do aprendizado e a
reforma da religião. Caso essas duas forças tivessem progredido de
maneira independente, como por um tempo tenderam a fazer, e se
um movimento fosse associado com alta cultura urbana da Itália e
o outro com a cultura agrária medieval do Norte da Europa, isso te­
ria ocasionado um efeito disruptivo na unidade da cultura ocidental.
Erasmo e sua escola amalgamaram os dois movimentos ao formular o
ideal de um humanismo cristão baseado no estudo crítico dos textos
originais - da Bíblia e dos Padres da Igrej a.
Por certo há muitos outros estudiosos além de Erasmo que con­
tribuíram para essa obra. E, em alguns aspectos, Erasmo deixa de
representar a plena extensão dos dois movimentos. Não era poeta
nem artista, de modo que não representava um dos aspectos mais
criativos da Renascença italiana, e não era santo ou místico, logo,
não representava o elemento mais profundo na Reforma religiosa.
Nesse aspecto, um homem como Giovanni Pico delta Mirandolla, na

12 Fundada em 1499. Ao longo dos séculos, assumiu diversos nomes e, atual­


mente, a instituição que reclama a continuidade institucional é a Universidade
Complutense de Madrid. (N. T. )
1 3 Esse foi o humanismo cristão dos eruditos; houve também o humanismo
cristão dos poetas que derivou, mais diretamente, da tradição da Renascen­
ça italiana que do humanismo cristão do Norte, procedeu do cardeal Pietro
Bembo ( 1 470- 1 547) e não de Erasmo.
A Divisão da C ristandade 1 Capítulo 3

Itália, o supera; no entanto, Pico ( mesmo se tivesse vivido por mais


algum tempo) não poderia ter criado a síntese erasmiana porque não
possuía o fôlego de Erasmo em erudição, nem o mesmo poder de crí­
tica que tornaram possível o encontro dos dois movimentos. Erasmo
também era incompleto, do ponto de vista dos reformadores, por ser
um moralista e não um teólogo; mas foi na moral, e não na teologia,
que os dois movimentos puderam encontrar uma base comum. Eis a
fonte da tradição humanitária e liberal que desempenhou um gran­
de papel na história da Europa moderna. Indubitavelmente, como o
mundo moderno descobriu, o humanitarismo e o liberalismo não são
substitutos da religião; mas uma cultura religiosa que não os leva em
consideração, como muitas vezes foi o caso no século XVI, também
é algo bastante imperfeito. A grande mácula na cultura ocidental nos
séculos XV e XVI foi a crueldade das leis, e, nem católicos nem pro­
testantes ( muito menos os ortodoxos na Rússia ) estavam plenamente
cônscios desse grande mal. Foram os humanistas cristãos, em especial
os do Norte e do Ocidente, como Erasmo e Juan Luís Vives ( 1 492-
1 540), os que primeiro suscitaram a consciência das classes instruídas
para tais questões.

3 A ITÁLIA E A CIÊNCIA RENASCENTISTA


-

O avanço vitorioso da cultura da Renascença foi consideravel­


mente atrasado pela revolução religiosa representada por Martinho
Lutero. O efeito da Reforma alemã foi a absorção da atenção e das
energias a respeito de questões religiosas e a criação de desconfiança
na razão humana. De fato, como disse Ernst Troeltsch ( 1 865 - 1 92 3 ) ,
foi u m retorno a modos d e pensar medievais que produziram uma
renovada preponderância do espírito medieval por dois séculos. Ao
mesmo tempo, a civilização e a prosperidade econômica na Itália
sofreram um revés devido à conquista turca da região do Levante,

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