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Filosófico Antigo e
Medieval
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto
Indaial – 2023
2a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2023
Elaboração:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto
L685h
CDD 109
Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico, antes de apresentarmos o conteúdo deste livro
gostaríamos de nos apresentar a vocês.
IV
NOTA
O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.
Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.
UNI
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA.................................... 1
VII
3 AS VIAGENS DE ARISTÓTELES.................................................................................................... 68
4 ARISTÓTELES E O LICEU................................................................................................................ 70
5 A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES................................................................................................... 71
5.1 A LÓGICA E A SILOGÍSTICA...................................................................................................... 71
5.2 AS PROPOSIÇÕES E AS CATEGORIAS..................................................................................... 73
5.3 A FÍSICA E A METAFÍSICA.......................................................................................................... 75
5.4 O ESPAÇO....................................................................................................................................... 76
5.5 O CONTINUUM............................................................................................................................. 76
5.6 O MOVIMENTO............................................................................................................................. 77
5.7 O TEMPO......................................................................................................................................... 77
5.8 A MATÉRIA..................................................................................................................................... 78
5.9 A FORMA........................................................................................................................................ 79
5.10 A CAUSALIDADE........................................................................................................................ 80
5.11 O SER.............................................................................................................................................. 80
5.12 O MOTOR IMÓVEL..................................................................................................................... 81
5.13 FILOSOFIA DA MENTE.............................................................................................................. 82
5.14 ÉTICA............................................................................................................................................. 84
5.15 FELICIDADE................................................................................................................................. 85
5.16 VIRTUDE....................................................................................................................................... 86
5.17 AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO...................................................................................................... 87
5.18 TEORIA POLÍTICA...................................................................................................................... 88
5.19 A RETÓRICA E A POÉTICA....................................................................................................... 89
RESUMO DO TÓPICO 4...................................................................................................................... 91
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 94
VIII
3.1 INÍCIO DE CARREIRA DE SANTO AMBRÓSIO..................................................................... 135
3.2 REALIZAÇÕES ADMINISTRATIVAS ECLESIÁSTICAS......................................................... 135
3.3 REALIZAÇÕES LITERÁRIAS E MUSICAIS.............................................................................. 136
3.4 AVALIAÇÕES E INTERPRETAÇÕES.......................................................................................... 137
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 138
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 140
IX
TÓPICO 3 – PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA
DE NICOLAU DE CUSA................................................................................................ 211
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 211
2 O PENSAMENTO MEDIEVAL......................................................................................................... 212
3 O HUMANISMO E O RENASCIMENTO...................................................................................... 213
4 NICOLAU DE CUSA ......................................................................................................................... 215
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 220
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 221
REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 223
X
UNIDADE 1
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir dos estudos desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.
1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
A filosofia ocidental surgiu na Grécia Antiga (que incluía Mileto e outras
partes da atual Turquia) aproximadamente no século VI a.E.C. (antes da Era
Comum). Durante esse tempo, o temor religioso entre os gregos foi ofuscado
pela maravilha sobre a origem e a natureza do mundo físico. À medida que as
populações gregas deixavam cada vez mais a terra para se concentrarem nas
cidades-estados, o interesse passou da natureza para a vida social.
3
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
NOTA
Até o final do século III E.C., outros filósofos do mundo grego produziam
teorias sofisticadas e originais em ética, epistemologia (o estudo do conhecimento),
metafísica (o estudo da natureza última da realidade) e lógica. A partir do primeiro
século E.C., pensadores judeus e, depois, cristãos, adotaram aspectos do sistema
metafísico do filósofo grego Platão (428-348 a.E.C) para ajudá-los a defender e
esclarecer as doutrinas de suas crenças.
4
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
Parmênides
(530-460 a.C.)
Mar Negro
Zenão
(490-430 a.C.) Pitágoras
(571-496 a.C.)
Heráclito
(625-556 a.C.)
Tales
(625-556 a.C.)
Demócrito
(460-370 a.C.)
Anaximandro
(610-547 a.C.)
Empédocles
(571-496 a.C.) Anaxímenes
Mar Mediterrâneo (588-524 a.C.)
FONTE: <https://www.coladaweb.com/filosofia/filosofos-pre-socraticos>.
Acesso em: 17 maio 2019.
Parmênides, que nasceu na cidade grega de Eléia, no sul da Itália, entre 515
e 530 a.E.C., argumentou ao contrário, que nada muda e a aparente multiplicidade
de coisas no mundo é uma ilusão, pois o ser é uno, uma totalidade absoluta. Seu
discípulo Zenão de Eléia (490-430 a.E.C.) é famoso por inventar uma série de
paradoxos bastante sofisticados (aparentemente argumentos válidos que levam
a conclusões absurdas) destinados a mostrar que toda multiplicidade e mudança
são impossíveis; alguns desses argumentos não foram definitivamente refutados
até o século XX.
5
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
6
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
das coisas, do mundo material, que é derivado ou explicado pelas ideias. Platão
também é responsável pela teoria da justiça como uma harmonia entre as
diferentes partes da alma e pelo projeto apresentado no diálogo A República, para
uma cidade-estado utópica governada por “filósofos-reis” (PLATÃO, 2001).
7
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Por ter sido inventada pelos antigos gregos e por ainda refletir antigas
influências gregas, é impossível entender a filosofia ocidental sem uma apreciação
de sua história antiga. Os personagens que você encontrará neste livro, alguns
dos maiores gênios que já viveram, merecem atenção especial, não apenas de
estudantes de filosofia, mas também de qualquer um que deseja entender a
cosmovisão intelectual do Ocidente – como todas as pessoas no Ocidente veem o
universo, o divino e eles mesmos.
8
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
Anaximandro foi o primeiro a perceber que para cima e para baixo não
são absolutos, mas que para baixo significa em direção ao meio da Terra e para
cima significa o distanciamento do meio dela, assim a Terra não tem necessidade
de ser apoiada (como Tales acreditava) por nada. A partir das observações de
Tales, Anaximandro tentou reconstruir o desenvolvimento da vida com mais
detalhes. A vida, intimamente ligada à umidade, originou-se no mar. Todos os
animais terrestres, ele afirmou, são descendentes de animais marinhos. Porque os
primeiros seres humanos, como recém-nascidos, não poderiam ter sobrevivido
sem os pais, Anaximandro acreditava que eles nasceram dentro de um animal de
outro tipo – especificamente, um animal marinho – e que foram alimentados até que
pudessem se virar sozinhos. Gradualmente, porém, a umidade será parcialmente
evaporada, até que no final todas as coisas retornarão ao indiferenciado apeiron,
para pagar a penalidade por sua injustiça – o fato de terem lutado uma contra a
outra.
10
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
NOTA
Hilozoísmo: vem do grego hyle, matéria, e zoe, vida. Esse rótulo é uma das
formas mais simples e ao mesmo tempo mais antigas de materialismo e monismo. Foi
a doutrina da escola jônica na Grécia (séculos VII-VI a.E.C.), razão pela qual os filósofos
jônicos são chamados de hilozoístas. Mais tarde, os estoicos consideraram o universo como
uma realidade viva. Consiste no hilozoísmo, em afirmar que a matéria inerte é capaz de
sensibilidade tal como os seres vivos, sendo dotados, como estes, de um princípio ativo.
É significativo que Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.E.C.), cuja filosofia foi
mais tarde considerada o oposto da filosofia do ser imóvel de Parmênides, veio,
em alguns fragmentos de sua obra, perto do que Parmênides tentou mostrar.
Afirmando que o positivo e o negativo são apenas visões diferentes da mesma
coisa; morte e vida, dia e noite, e luz e escuridão são realmente um só.
11
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Vendo o fogo como o material essencial que une todas as coisas, Heráclito
escreveu que o princípio da ordem do mundo, o cosmos, “sempre foi, é e sempre
será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas
apagando-se” (HERÁCLITO, 2002, p. 201). Ele estendeu as manifestações do fogo
para incluir não apenas combustível, chama e fumaça, mas também o éter na alta
atmosfera. Parte desse ar, ou fogo puro, “torna-se” o oceano, presumivelmente
como chuva, e parte do oceano se transforma em terra. Simultaneamente,
massas iguais de terra e mar em todos os lugares estão retornando aos aspectos
respectivos do mar e do fogo. O equilíbrio dinâmico resultante mantém um
equilíbrio ordenado no mundo. Essa persistência de unidade apesar da mudança
é ilustrada pela famosa analogia da vida de Heráclito a um rio, em que “nos
mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. Não é possível
entrar duas vezes no mesmo rio” (HERÁCLITO, 2002, p. 205). Platão mais tarde
adotou essa doutrina para significar que todas as coisas estão em constante fluxo,
independentemente de como elas aparecem para os sentidos.
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TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
5 APARÊNCIA E REALIDADE
Todos os filósofos pós-parmenidianos, como o próprio Parmênides,
pressupunham que o mundo real é diferente daquele que os seres humanos
percebem. Assim surgiram os problemas da epistemologia ou teoria do
conhecimento. Segundo Anaxágoras, tudo está contido em tudo. Mas isso não é o
que as pessoas percebem. Ele resolveu esse problema postulando que, se há uma
quantidade muito maior de um tipo de partícula em uma coisa do que todos os
outros tipos, as últimas não são percebidas de forma alguma. A observação foi
então feita que, por vezes, diferentes pessoas ou tipos de animais têm diferentes
percepções das mesmas coisas. Ele explicou esse fenômeno assumindo que o
semelhante é percebido pelo mesmo. Se, portanto, no órgão sensorial de uma
13
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
6 PITÁGORAS E PITAGORISMO
Todas as filosofias mencionadas até agora são de várias maneiras
historicamente semelhantes umas às outras. Por volta do final do século VI
a.E.C., no entanto, surgiu outro tipo de filosofia, que só mais tarde entrou em
inter-relação com os desenvolvimentos mencionados: a filosofia de Pitágoras de
Samos (c. 580-500 a.E.C.). Pitágoras viajou extensivamente no Oriente Médio e
no Egito e, após seu retorno a Samos (uma ilha na costa da Anatólia), emigrou
para o sul da Itália por não gostar da tirania de Polícrates (574-522 a.E.C.). Em
Croton e Metaponto, ele fundou uma sociedade filosófica com regras rígidas e
logo ganhou considerável influência política.
14
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
outra coisa. Protágoras ilustrou em seu argumento dizendo que não faz sentido
dizer a uma pessoa que está realmente quente quando ela está tremendo de frio
porque para ela está frio – para ela, o frio existe, está lá.
Os sofistas não eram apenas céticos quanto àquilo que, até então, se
tornara uma tradição filosófica, mas também de outras tradições. Com base na
observação de que diferentes nações têm regras de conduta diferentes, mesmo
em relação a coisas consideradas mais sagradas – como as relações entre os sexos,
casamento e sepultamento –, concluíram que a maioria das regras de conduta
são convenções. O que é realmente importante é ter sucesso na vida e ganhar
influência sobre os outros. Isso eles prometeram ensinar.
DICAS
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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:
• A filosofia ocidental surgiu na Grécia Antiga (que incluía Mileto e outras partes
da atual Turquia) aproximadamente no século VI a.E.C.
• Até o final do século III E.C., outros filósofos do mundo grego produziam teorias
sofisticadas e originais em ética, epistemologia (o estudo do conhecimento),
metafísica (o estudo da natureza última da realidade) e lógica.
• O primeiro dos milésios, Tales, sustentava que tudo é água, com o que ele quis
dizer que as diferentes substâncias das quais o mundo parece ser composto são
derivadas da água.
• Anaximandro também foi notável por promover uma teoria da evolução dos
seres vivos, os humanos e todos os outros animais, ele afirmava que evoluíram
dos peixes.
• O período Clássico da Filosofia Antiga é dominado por três figuras dos séculos
V e IV a.E.C., todas cidadãs de Atenas: Sócrates, Platão e Aristóteles.
18
• O sucessor de Anaximandro, Anaxímenes (nasceu em meados do século VI
a.E.C.), ensinou que o ar era a origem de todas as coisas.
• Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.E.C.) afirmava que o positivo e o negativo são
apenas visões diferentes da mesma coisa; morte e vida, dia e noite, e luz e
escuridão são realmente um só.
• Por volta do final do século VI a.E.C. surgiu outro tipo de filosofia, que só
mais tarde entrou em inter-relação com os desenvolvimentos mencionados: a
filosofia de Pitágoras de Samos.
• Os sofistas não eram apenas céticos quanto àquilo que até então se tornara uma
tradição filosófica, mas também de outras tradições.
19
AUTOATIVIDADE
20
UNIDADE 1
TÓPICO 2
A FILOSOFIA DE SÓCRATES
1 INTRODUÇÃO
A vida, o caráter e o pensamento de Sócrates (c. 470-399 a.E.C.) exerceram
profunda influência sobre a filosofia ocidental desde os tempos antigos até os
dias atuais.
O impacto de sua vida foi ainda maior por causa da maneira como
terminou. Aos 70 anos, ele foi levado a julgamento sob acusação de impiedade e
condenado à morte por envenenamento (o veneno provavelmente sendo cicuta)
por um júri de seus cidadãos. A Apologia de Sócrates, de Platão (2008), pretende
ser o discurso que Sócrates fez em seu julgamento em resposta às acusações
feitas contra ele (o termo grego apologia significa "defesa"). Na Apologia vemos
a sua poderosa defesa da vida examinada e a sua condenação da democracia
ateniense, o que faz este ser um dos documentos centrais do pensamento e da
cultura ocidental.
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
sua mãe, Phaenarete, e sua esposa, Xântipe, e sabemos que ele teve três filhos.
Com o nariz arrebitado e os olhos esbugalhados, o que o fazia parecer sempre
estar observando, ele não era atraente para os padrões convencionais. Ele serviu
como um hoplita (um soldado fortemente armado) no exército ateniense e lutou
bravamente em várias batalhas importantes. Ao contrário de muitos pensadores
de seu tempo, ele não viajou para outras cidades para buscar seus interesses
intelectuais. Embora não tenha procurado um alto cargo e não tenha participado
regularmente das reuniões da Assembleia Ateniense (Ecclesia) – o principal órgão
governamental da cidade (como era seu privilégio como cidadão adulto do sexo
masculino) – assim como não atuava em nenhuma facção política, ele cumpriu
seus deveres como cidadão, que incluía não apenas o serviço militar, mas a
participação ocasional no Conselho dos Quinhentos, que preparava a agenda da
Assembleia.
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TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
Mas se a virtude é uma forma de conhecimento, será que isso significa que
cada uma das virtudes – coragem, piedade, justiça – constitui um ramo separado
do conhecimento? Deveríamos inferir que é possível adquirir conhecimento de
um desses ramos, mas não de outros? Essa é uma questão que surge em vários
diálogos de Platão; é mais amplamente discutido em Protágoras (PLATÃO, 2007).
Era uma suposição da sabedoria grega convencional, e ainda é amplamente
assumido, que se pode ter algumas qualidades admiráveis, mas carecer de outras.
Alguém poderia, por exemplo, ser corajoso, mas injusto. Sócrates desafia essa
suposição. Ele acredita que as muitas virtudes formam uma espécie de unidade
– todavia, não sendo capaz de definir nenhuma das virtudes, ele não estava
em posição de dizer se todas eram a mesma coisa ou, ao contrário, constituíam
algum tipo de unificação mais frouxa. Mas ele rejeitava, inequivocamente, a ideia
convencional de que alguém poderia possuir uma virtude sem possuir todas.
Esta é a acusação feita contra Sócrates várias vezes nas obras de Platão,
embora nunca feita nas obras de Xenofonte (1987, 2008). Na obra de Platão (2008),
Apologia, Sócrates é descrito afirmar que os jurados, ao ouvirem seu caso, não
aceitariam a razão por ele oferecida ao fato de ser incapaz de parar de filosofar
nos lugares públicos – que fazer isso seria desobedecer ao Deus que preside em
Delfos. A audiência de Sócrates entendeu que ele estava se referindo a Apolo,
embora ele próprio não use esse nome. Em seu discurso, o filósofo afirma sua
obediência ao Deus ou aos deuses, mas não especificamente a um ou a mais entre
os deuses ou deusas do panteão grego. A causa da incredulidade dos jurados,
Sócrates acrescenta, será a suposição de que ele está comprometido com a
eirôneia. De fato, Sócrates admite que adquiriu uma reputação de insinceridade
– por dar às pessoas a entender que suas palavras significavam aquilo a que elas
normalmente se referem quando, de fato, não o faziam. Similarmente, no Livro
I da República (PLATÃO, 2001), Sócrates é acusado por um interlocutor hostil,
Trasímaco, de " habitual eirôneia". Embora Sócrates diga que não tem uma boa
resposta para a pergunta "O que é justiça?", Trasímaco pensa que isso é apenas
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Mesmo quando Sócrates vai ao tribunal para se defender das mais sérias
acusações, ele parece estar comprometido com a eirôneia. Depois de ouvir os
discursos proferidos por seus acusadores, ele diz, na sentença inicial da Apologia, de
Platão (2008, 2017a, p. 137): “Quanto a mim, por pouco não perdi a noção da minha
própria identidade tal a persuasão com que discursaram”. Essa é a habitual eirôneia
de Sócrates? Ou os discursos de seus acusadores realmente tiveram esse efeito
sobre ele? É difícil ter certeza. Mas, pela própria admissão de Sócrates, a suspeita
de que qualquer coisa que ele dissesse poderia ser uma dissimulação minou sua
capacidade de persuadir os jurados de suas boas intenções. Sua eirôneia pode até
ter apoiado uma das acusações feitas contra ele, de que ele corrompeu os jovens.
Pois, se Sócrates realmente se engajava na eirôneia e se seus seguidores jovens se
deliciavam e imitavam esse aspecto de seu caráter, então, nessa medida, ele os
encorajava a se tornarem dissimulados e indignos de confiança, assim como ele.
FONTE: <https://i0.wp.com/www.acervofilosofico.com/wp-content/uploads/2017/11/Defesa-
de-S%C3%B3crates-Plat%C3%A3o.png?resize=768%2C436>. Acesso em: 22 maio 2019.
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TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
Vamos apenas dizer algo sobre As Nuvens, esta peça cômica, esta sátira sobre
Sócrates, porque ela é parte da acusação inicial da qual Sócrates afirma ter sido
levantada contra ele. Na peça, Aristófanes apresenta Sócrates como um investigador,
e isso também faz parte da primeira acusação, como podemos ver na exposição
do filósofo na Apologia: “declarando que há um certo Sócrates, homem sábio, um
pensador que se ocupa das coisas do alto e que sondou as coisas abaixo da terra, e que
faz do argumento mais fraco o mais forte” (2008, 2018b-c, p. 138). Esse é, portanto, o
25
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
argumento, de acordo com Sócrates, que Aristófanes traz contra ele. Em As Nuvens
(ARISTÓFANES, 1987), Sócrates é apresentado como o chefe, o líder, o diretor do
Phrontisterion, que pode ser traduzido como “Pensatório”, um lugar onde os pais
atenienses levam seus filhos para serem doutrinados nos mistérios da sabedoria
socrática. Na peça, Sócrates é mostrado pairando, voando sobre o palco em uma cesta,
a fim de ser capaz de melhor observar as nuvens, as coisas no ar. Mas também em
muitos aspectos, simbolizando Sócrates, pelo menos no relato de Aristófanes, em seu
desprendimento das coisas aqui embaixo, na Terra, as coisas que dizem respeito aos
seus concidadãos. Sócrates, neste relato, seria alguém que o povo alemão chamaria
de Luftmensch. Ele é um homem no ar, que caminha nas nuvens, ele está tão distante
que não tem os pés no chão (LEYSER; ANACLETO, 2015).
Sócrates é mostrado não só zombando dos deuses ao fazer isso, mas ele
é mostrado por Aristófanes ensinando as coisas que violam toda a decência,
todos os tabus humanos – o incesto, o espancamento de um dos pais, entre outras
coisas tidas como abomináveis. Sócrates é apresentado exibindo uma espécie de
ceticismo corrosivo, o que está no centro da acusação de Aristófanes contra ele
(LEYSER; ANACLETO, 2015).
Essa peça, segundo Sócrates, criou a impressão geral de que ele estuda
fenômenos celestes e geográficos e, como os sofistas que viajam de cidade em
cidade, cobra uma taxa pelo ensino das várias habilidades dos jovens. Não é
assim, argumenta Sócrates. Ele até acha que seria uma coisa boa possuir os tipos
de conhecimento que os sofistas alegam ensinar, mas ele nunca discutiu esses
assuntos com ninguém – como seus juízes deveriam ser capazes de confirmar por
si mesmos, porque, segundo ele, muitos deles ouviram os seus diálogos.
26
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
27
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Sócrates acredita que esse ódio, cuja fonte real é tão dolorosa para as
pessoas reconhecerem, desempenhou um papel crucial ao levar Ânito, Meleto e
Licon a se apresentarem no tribunal contra ele; também torna muito difícil para
muitos membros do júri reconhecer que ele tem os mais nobres motivos e prestou
a sua cidade um ótimo serviço.
Apenas três anos depois, Ânito, Meleto e Lícon, os quais fizeram parte
do movimento de resistência democrática contra a oligarquia espartana, fizeram
acusações contra Sócrates. As acusações contra ele foram: corromper a juventude
28
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
29
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
declara: "e, assim sendo, homens de Atenas, realizo agora, minha defesa, não
no meu próprio interesse, como se poderia supor”, diz ele, “mas no vosso, para
impedir que ao condenar-me, erradamente, façais uso indevido do dom que o
deus vos conferiu”, referindo a si mesmo. Ele continua, “se me executardes, não
encontrareis facilmente outra pessoa como eu, que estava ligada a esta cidade
por ação do deus – ainda que a expressão seja um tanto risível”, Sócrates declara,
“como a um grande e nobre cavalo, que se revelasse um pouco lerdo devido ao
seu tamanho,” alude à cidade de Atenas, aqui,” e precisasse ser estimulado por
um moscardo. Penso que foi para desempenhar uma função assim que o Deus me
vinculou à cidade, e assim, ponho-me a circular por aí estimulando e persuadindo
e censurando cada um de vós, e em toda a parte, o dia todo” (PLATÃO, 2008, p.
154). Portanto, temos aqui o exemplo de Sócrates, não só se declarando o dom de
Deus, mas que ele é um grande benfeitor da cidade, que o seu exemplo de homem,
de consciência moral individual traz consigo grandes benefícios públicos. Não é
em seu benefício próprio, ele diz ao público, mas para os seus concidadãos que
ele faz o que faz (LEYSER; ANACLETO, 2015).
Em outras palavras, o que ele parece estar dizendo nessa passagem é que
ele percebe que está sobre a linha tênue de um dilema.
Por um lado, Sócrates diz explicitamente que a sua referência a uma missão
divina será tomada pelo seu público, como sendo apenas mais um exemplo de
ironia socrática e de insinceridade. Mas afirma, se ele tentar convencer as pessoas
da bondade e da justiça de seu modo de vida fundamentando-se simplesmente
em argumentos racionais, para persuadi-los de que a vida examinada por si só
vale a pena ser vivida, ele admite que não seja acreditado. Então, o que podemos
dizer que um cidadão socrático deve fazer. Ele será acusado de ser irônico e não
será acreditado, ou ele vai ser simplesmente desacreditado se tentar defender-se
por justificativas racionais ou filosóficas.
Isso levanta a questão com a qual começamos esta parte do Livro Didático
Sócrates deve ser tolerado. Uma boa sociedade deveria tolerar Sócrates? Esta
é a questão levantada no diálogo de Críton (PLATÃO, 2008b). Até que ponto a
30
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
liberdade de expressão, o discurso que beira a impiedade cívica, até que grau
tal discurso deve ser tolerado? Tem sido uma suposição de leitores de Platão
ao longo dos anos, que o julgamento de Sócrates, que a execução de Sócrates,
apresenta o caso a favor da liberdade ou da mais plena liberdade de pensamento
contra os perigos de uma sociedade de tentar perseguir ou suprimir a liberdade
de expressão. Mas será esta leitura correta, em outras palavras, é este realmente
os ensinamentos de Platão? (LEYSER; ANACLETO, 2015).
Depois que o júri votou a favor da pena de morte, Sócrates lhes diz que
seu motivo foi o desejo de evitar ter de oferecer uma defensa das suas vidas.
Algo nas pessoas resiste ao autoexame, elas não querem responder a questões
profundas sobre si mesmas. No fundo, Sócrates pensa que a maioria das
pessoas irá atacar aqueles que tentam estimular sérias reflexões morais neles.
É por isso que ele pensa que seu julgamento não é meramente o resultado de
eventos incômodos – um mero desentendimento causado pelo trabalho de um
dramaturgo popular – mas o resultado de forças psicológicas profundas dentro
da natureza humana.
31
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Mas esta não é a única acusação que Sócrates apresenta contra sua cidade
e sua política. Ele diz a seu público democrático que estava certo em se retirar da
vida política, porque uma boa pessoa que luta pela justiça, em uma democracia,
será morta. Em seu interrogatório sobre Meleto, ele insiste que apenas algumas
pessoas podem adquirir o conhecimento necessário para melhorar os jovens de
qualquer espécie, e que muitos inevitavelmente farão um trabalho ruim.
DICAS
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
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TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
LEITURA COMPLEMENTAR
René Grasset
37
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Como já foi afirmado por Reale (v. I, 1994, p. 11, 13), não temos acesso a
nenhuma evidência histórica ou arqueológica que deem guarida à Tese Oriental.
Acrescente-se a isso o fato razoável de que os conceitos filosóficos demandam
o uso de expressões linguísticas refinadas (REALE, v. I, 1993, p. 15), e não a
linguagem utilizada nas relações comerciais. Sem o domínio da língua sofisticada
manejada pela Filosofia, onde subjaz sua terminologia, não haveria possibilidade
da existência da mesma. Não devemos esquecer que sem a língua grega não
teríamos o que conhecemos por Filosofia, na medida em que toda a terminologia
filosófica se origina grega, bem como os conceitos têm origem na filosofia
grega. Poderia ser objetado que o alfabeto grego tem origem no alfabeto fenício,
composto por vinte e dois signos que eram idênticos a vinte e duas consoantes. A
resposta parece clara; até no âmbito do alfabeto os gregos atuaram, introduzindo
no alfabeto herdado da Fenícia, progressivamente, as vogais, o que certamente
influenciou a linguagem filosófica (CONCHE, 1991, p. 6).
Afirmamos que não houve uma origem oriental da Filosofia, mas existem,
segundo Reale (1993, p. 17-27), “formas de vida espiritual” que serviram de
preparação para o surgimento da Filosofia na Grécia. São elas:
39
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
2. os deuses da religião pública e sua relação com a Filosofia: nesse quesito, há
concepção de que tudo é divino, seja no sentido de que todas as coisas que
acontecem são decorrentes dos deuses, inclusive os fenômenos da natureza
e da vida humana. Os deuses seriam “forças naturais diluídas em formas
humanas idealizadas” (p. 21-22), o que faria da religião grega uma “religião
naturalista”: então teríamos uma religião pública naturalista, do mesmo modo
que a primeira filosofia foi naturalista;
3. a religião dos mistérios: sobretudo o Orfismo, especialmente a sua doutrina
da transmigração das almas e sua concepção dualista de alma e corpo, sendo
o último considerado o corpo da alma, concepções que encontramos em
Pitágoras e Platão dentre outros (p. 24);
4. as condições sócio-político-econômicas: com a criação da polis, o indivíduo
passa a se reconhecer na cidade-estado, sendo que o fim de ambos coincide,
bem como a liberdade de ambos (p. 26), liberdade expressa nas constituições
de cada cidade-estado (p. 27). Outro fator que contribui foi a expansão das
colônias gregas para a Ásia Menor e para a Magna Grécia (Itália). É interessante
salientar que nesse período a Jônia, e por consequência Mileto, cresceram
notavelmente, seja economicamente, devido ao comércio, seja culturalmente,
em função do desenvolvimento político, incisivamente na arte (pintura), na
literatura e na arquitetura (BARNES, 1997, p. 11).
40
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES
i. Platão e Sofistas.
ii. Aristóteles (sobretudo no livro primeiro da Metafísica onde ele faz uma
história, ou revisão, das doutrinas dos primeiros filósofos, normalmente
crítica, buscando mostrar a insuficiência argumentativa dos mesmos).
iii. Teofrasto (A opinião dos Físicos).
iv. Estoicos.
v. Céticos (Sexto Empírico, que tem por método salientar as variadas
contradições encontradas em determinadas doutrinas).
vi. Neoplatonismo (Plotino).
vii. Biografias e Doxografias (doxógrafos são os que relatam as doutrinas dos
filósofos gregos). O exemplo mais conhecido é a Vida e doutrinas dos
Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio.
viii. As sucessões dos filósofos: uma sucessão pode possuir dois aspectos: (a)
funciona como uma prática institucional (Academia, Liceu), na qual um
sucessor é apontado ou escolhido; ou (b) a postulação de um suposto vínculo
doutrinal, real ou aparente, entre filósofos e escolas.
ix. Outras fontes: Clemente de Alexandria, Estobeu.
x. Comentadores: Alexandre de Afrodísia, Simplício, Proclo.
FONTE: HOBUSS, João Francisco Nascimento. Introdução à história da filosofia antiga. Pelotas:
NEPFIL online, 2014. p. 15-24.
41
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:
• Sócrates não era de linhagem nobre ou rica, mas muitos de seus admiradores
eram, incluindo vários cidadãos atenienses mais proeminentes na política.
• Sócrates diz aos jurados que, como resultado de suas investigações, ele
aprendeu uma amarga lição sobre seus concidadãos: não apenas eles não
possuem o conhecimento que afirmam ter, mas se ressentem de ter esse fato
apontado para eles.
• Um dos componentes mais sutis da explicação de Sócrates para o ódio que ele
suscitou é o argumento de que as pessoas escondem a vergonha que sentem
quando são incapazes de resistir a seus argumentos destrutivos.
42
• Sócrates apenas afirma não ter conhecimento e considera certas teses muito
mais dignas de nossa credibilidade do que suas negações.
43
AUTOATIVIDADE
1 Sócrates afirma que não tinha medo da morte. Quais são os motivos que ele
apresenta para justificar este posicionamento?
44
UNIDADE 1
TÓPICO 3
A FILOSOFIA DE PLATÃO
1 INTRODUÇÃO
Platão, com seu professor Sócrates e seu aluno Aristóteles, lançaram as
bases filosóficas da cultura ocidental.
2 A VIDA DE PLATÃO
Platão, filho de Ariston e Perictione, nasceu em 428 a.E.C., o ano após a
morte do grande estadista ateniense Péricles, e morreu em 348 a.E.C. Seus irmãos
Glauco e Adimanto são retratados como interlocutores na obra-prima de Platão
(2001), A República, e seu meio-irmão, Antifonte, na obra Parmênides (PLATÃO,
2015). A família de Platão era aristocrática e distinta: o lado de seu pai alegava
descendência do Deus Poseidon e o lado de sua mãe estava relacionado ao
45
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
legislador Sólon (c. 630-560 a.E.C.). Menos dignos de crédito, os parentes próximos
de sua mãe, Crítias e Cármides, estavam entre os Trinta Tiranos que tomaram o
poder em Atenas e governaram brevemente até a restauração da democracia em
403 a.E.C.
46
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
FONTE: <http://lounge.obviousmag.org/espaco_cosmico/RAFFAELLO-La-scuola-di-Atene.jpg>.
Acesso em: 17 maio 2019.
3 A FORMA DE DIÁLOGO
Vislumbrado sombriamente, mesmo através do vidro da tradução, Platão
aparenta ser um grande artista literário. No entanto, ele também fez observações,
notoriamente, negativas sobre o valor da escrita. Da mesma forma, embora ele
acreditasse que pelo menos um dos propósitos – se não o propósito principal –
da filosofia era permitir que alguém vivesse uma vida boa, compondo diálogos
em vez de tratados, ele omitiu dizer aos seus leitores, diretamente, quaisquer
verdades úteis para as quais viver.
47
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
4 FELICIDADE E VIRTUDE
A questão característica da ética antiga é “Como posso ser feliz”? E a
resposta mais comum a ela é “Por meio da virtude”. Mas no sentido relevante,
a felicidade – a tradução da antiga eudaimonia grega – não é um humor ou
sentimento, mas uma condição na qual ocorre o florescimento e a excelência.
Ser feliz significa viver uma vida de florescimento humano. Por isso, a pergunta
"Como posso ser feliz?” é equivalente à "Como posso viver uma vida boa"?
48
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
portanto, é o que permite que os seres humanos tenham uma vida boa. Mas está
longe de ser óbvio em que consiste uma vida boa e, por isso, é difícil dizer o que
virtude poderia ser.
49
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
50
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
51
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Para Anaxágoras (2007), ter uma parte de algo é bem direto: um composto
particular possui como ingrediente físico uma porção material da matéria
fundamental em questão. Por exemplo, uma coisa é observada como sendo
quente porque possui uma porção, suficientemente grande de “o quente”, que
é vista como a totalidade do calor no mundo. O calor é quente em si mesmo, e é
por isso que porções dele são responsáveis pelo calor dos compostos. Em geral, as
matérias fundamentais postuladas por Anaxágoras possuíam as qualidades que
explicariam em particularidades sensíveis. Essas porções são, qualitativamente
idênticas umas às outras, e às porções do quente, que são perdidas por qualquer
coisa, se torna menos quente. Elas podem se mover pelo cosmos, sendo transferidas
de um composto para outro, pois o calor pode mover-se da água quente para
Aquiles, à medida que a água o aquece.
52
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
sensíveis, portanto, exibem o fenômeno que Platão chama de mover-se entre o ser
e o não ser. Essas coisas são e não são “x” para valores de “x” nos quais ele está
interessado (belo, justo, igualdade e assim por diante). Para entender a beleza
de forma adequada é preciso capturar algo que é simplesmente belo, mas isso
deve ser interpretado. Os diálogos médios (intermediários) não se comprometem
a ajudar o leitor nessa tarefa.
53
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
54
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
6 OS DIÁLOGOS DE PLATÃO
Estudos do conteúdo e estilo resultaram na divisão das obras de Platão em
três grupos. Assim, (1) os diálogos iniciais, da juventude ou socráticos, representam
conversas em que Sócrates testa os outros sobre questões de importância humana
sem discutir a metafísica; (2) os diálogos médios ou intermediários, também
chamados de obras-primas literárias, tipicamente contêm visões originadas com
Platão sobre questões humanas, junto a um esboço de uma posição metafísica
apresentada como fundacional; e (3) os diálogos tardios, da maturidade ou
estudos técnicos tratam essa posição metafísica de maneira mais completa e
direta. Há também algumas obras diversas, incluindo cartas, versos atribuídos a
Platão e diálogos de autenticidade contestada.
55
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
56
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
prisão, discutindo por que ele escolhe não escapar antes que a sentença de morte
seja cumprida. O diálogo considera a fonte e a natureza da obrigação política.
O Eutidemo (PLATÃO, 2016a) mostra Sócrates entre os erísticos (aqueles que se
envolvem em disputas lógicas vistosas). O Eutífron (PLATÃO, 2008) pergunta:
“O que é piedade?”, Eutífron falha em manter as posições sucessivas de que a
piedade é “o que os deuses amam”, “o que todos os deuses amam” ou algum tipo
de serviço aos deuses. Sócrates e Eutífron concordam que o que eles procuram
é uma forma única, presente em todas as coisas que são piedosas, que as torna
assim. Sócrates sugere que se Eutífron pudesse especificar que parte da justiça é
a piedade, ele teria alcançado o que buscava.
57
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
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TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
DICAS
60
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO
62
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:
• A Academia de Platão, fundada nos anos 380 a.E.C. e localizada nos arredores
de Atenas, foi o ancestral supremo da universidade moderna (daí o termo
acadêmico).
63
• Os termos que Platão usa para se referir às formas, ideia e eidos, derivam do
verbo eidô, “olhar”.
• Para Anaxágoras (2007), ter uma parte de algo é bem direto: um composto
particular possui como ingrediente físico uma porção material da matéria
fundamental em questão.
• De acordo com uma visão que alguns estudiosos atribuíram aos diálogos
médios (intermediários) de Platão, a participação é imitação ou semelhança.
64
AUTOATIVIDADE
1 Nos anos 380 a.E.C., Platão fundou a famosa Academia. O que era a
Academia de Platão?
2 A ideia de que o conhecimento é tudo o que alguém precisa para uma vida
boa, e de que não há um aspecto de caráter que não seja redutível à cognição,
é a posição caracteristicamente socrática. Platão desenvolve uma visão de
felicidade e virtude que se afasta da de Sócrates na República. Descreva essa
visão de Platão.
3 Em qual sentido a teoria de Platão pode ser vista como sucessora da teoria
de Anaxágoras?
65
66
UNIDADE 1
TÓPICO 4
A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
1 INTRODUÇÃO
O pensamento de Aristóteles determinou o curso da história intelectual
ocidental por mais de dois milênios. Ele geralmente é considerado um dos dois
maiores filósofos que já viveram, o outro sendo seu professor, Platão.
2 A VIDA DE ARISTÓTELES
Aristóteles nasceu em Estagira, na península de Calcídica da Macedônia,
no norte da Grécia, em 384 a.E.C. Ele morreu em 322, em Cálcis, na ilha de Eubéia.
Seu pai, Nicômaco, era o médico de Amintas III (reinou c. 393-370 a.E.C.), rei da
Macedônia e avô de Alexandre, o Grande (reinou de 336-323 a.E.C.). Após a morte
de seu pai em 367, Aristóteles migrou para Atenas, onde ingressou na Academia
de Platão. Ele permaneceu lá por 20 anos como aluno e colega de Platão.
67
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
3 AS VIAGENS DE ARISTÓTELES
Quando Platão morreu, por volta de 348 a.E.C., seu sobrinho, Espeusipo,
tornou-se chefe da Academia e Aristóteles deixou Atenas. Ele migrou para Asso, na
Eólida, uma cidade na costa noroeste da Anatólia (atual Turquia), onde Hermias,
um graduado da Academia era o governante. Aristóteles tornou-se amigo
íntimo dele e acabou se casando com Pítia (textos confiáveis afirmam que ela era
68
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
concubina de Hermias, outros textos afirmam que era irmã (irmã por adoção ou
sobrinha). Aristóteles o ajudou a negociar uma aliança com a Macedônia, o que
enfureceu o rei persa, que fez com que Hermias fosse traiçoeiramente preso e
condenado à morte. Aristóteles saudou a memória dele em Hino à Virtude, seu
único poema sobrevivente (BARNES, 2009).
4 ARISTÓTELES E O LICEU
Enquanto Alexandre conquistava a Ásia, Aristóteles, agora com 50 anos,
estava em Atenas. Fora do limite da cidade, em um bosque sagrado para Apolo
Lycius (assim chamado porque ele protegia os rebanhos dos lobos [do termo
grego lykoi]), ele estabeleceu sua própria escola, conhecida como o Liceu. Ele
construiu uma biblioteca muito substancial, e reuniu em torno de si um grupo
de brilhantes estudantes de pesquisa, chamados “peripatéticos” do nome do
claustro (peripatos), no qual eles andavam e mantinham suas discussões. O Liceu
não era um clube privado como a Academia, muitas palestras foram abertas ao
público em geral e oferecidas gratuitamente.
70
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
5 A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
As contribuições de Aristóteles ao desenvolvimento da filosofia foram
substanciais. As questões investigadas por ele perpassam a lógica, a física, a
metafísica, a filosofia da mente, a ética, a política, a retórica, a poética, entre tantas
outras questões centrais à inquirição filosófica. A seguir vamos apresentar uma
síntese da produção deste filósofo nestas áreas e temas específicos.
Todo grego é humano. Todo humano é mortal. Portanto, todo grego é mortal.
71
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
72
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
73
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
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TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
75
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
5.4 O ESPAÇO
Todo corpo parece estar em algum lugar e todo corpo (pelo menos em
princípio) pode mover-se de um lugar para outro. O mesmo espaço pode ser
ocupado em diferentes momentos por diferentes corpos, pois um frasco pode
conter primeiro vinho e depois ar. Assim, um espaço não pode ser idêntico ao
corpo que o ocupa. O que, então, é o espaço? Segundo Aristóteles, o espaço de
uma coisa é o primeiro limite imóvel de qualquer corpo que o contenha. Assim, o
espaço de um litro de vinho é a superfície interna do frasco que o contém – desde
que o frasco esteja estacionário. Mas suponha que o frasco esteja em movimento,
talvez em um barco boiando no rio, então o vinho também estará se movendo,
de espaço para espaço, e seu espaço deve ser dado especificando sua posição em
relação às margens do rio imóvel (ARISTÓTELES, 2009).
Como fica claro neste exemplo, para Aristóteles, uma coisa não está apenas
no espaço definido por seu recipiente imediato, mas também em qualquer coisa
que contenha esse recipiente. Assim, todos os seres humanos não estão apenas
na Terra, mas também no universo; o universo é o espaço comum a tudo. Mas o
universo em si não está em nenhum espaço, já que não tem recipiente fora dele.
Assim, é claro que o espaço descrito por Aristóteles é bem diferente do espaço
concebido por Isaac Newton (1643-1727) – como uma extensão infinita ou grade
cósmica. O espaço newtoniano existiria se o universo material tivesse ou não
sido criado. Para Aristóteles (2009), se não houvesse corpos não haveria espaço.
Aristóteles, no entanto, permite a existência de um vácuo ou "vazio", mas apenas
se for contido por corpos realmente existentes.
5.5 O CONTINUUM
A extensão espacial, o movimento e o tempo são geralmente considerados
contínuos – como um todo formado por uma série de partes menores. Aristóteles
desenvolve uma análise sutil da natureza de tais quantidades contínuas. Duas
entidades são contínuas, segundo ele, quando existe apenas um único limite
comum entre elas. Com base nessa definição, ele procura mostrar que um
continuum não pode ser composto de átomos indivisíveis. Uma linha, por exemplo,
não pode ser composta de pontos que não possuem magnitude. Como um ponto
não tem partes, ele não pode ter um limite distinto de si mesmo; dois pontos,
portanto, não podem ser adjacentes ou contínuos. Entre dois pontos em uma
linha contínua, sempre haverá outros pontos na mesma linha (ARISTÓTELES,
2009).
76
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
5.6 O MOVIMENTO
O movimento (kinesis) foi para Aristóteles um termo amplo, abrangendo
mudanças em várias categorias diferentes. Um paradigma de sua teoria do
movimento, que apela para as noções-chave de realidade e potencialidade,
é o movimento local ou o movimento de um lugar para outro. Se um corpo X
mover-se-á do ponto A para o ponto B, ele deve ser capaz de fazê-lo: quando
está em A, está apenas potencialmente em B. Quando essa potencialidade foi
realizada, então X está em B, mas está em repouso e não em movimento. Assim, o
movimento de A para B não é simplesmente a atualização de um potencial em A
por estar em B. Será uma atualização parcial dessa potencialidade? Isso tampouco
funcionará, porque pode-se dizer que um corpo estacionário, no ponto médio
entre A e B, tenha atualizado parcialmente essa potencialidade. Deve-se dizer
que o movimento é uma atualização de uma potencialidade que ainda está sendo
atualizada. Na Física, Aristóteles (2009) define o movimento como a atualidade
do ente potencial, quando em atualidade está em atividade não enquanto ele
mesmo, mas sim enquanto móvel.
5.7 O TEMPO
Para Aristóteles (2009), extensão, movimento e tempo são três contínuos
fundamentais em uma relação íntima e ordenada entre si. O movimento local deriva
sua continuidade da continuidade da extensão e o tempo deriva sua continuidade
da continuidade do movimento. O tempo, para Aristóteles, é o número de
movimentos em relação a antes e depois. Onde não há movimento, não há tempo.
Isso não implica que o tempo seja idêntico ao movimento. Os movimentos são
77
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
A parte de uma jornada que está mais perto de seu ponto de partida vem
antes da parte que está mais perto do fim. A relação espacial de mais e mais
próxima sustenta a relação de antes e depois em movimento, e a relação de antes
e depois em movimento sustenta a relação de antes e depois no tempo. Assim, na
visão de Aristóteles (2009), a ordem temporal é, em última análise, derivada do
ordenamento espacial de trechos de movimento.
5.8 A MATÉRIA
Mudança, para Aristóteles (2009), pode ocorrer em muitas categorias
diferentes. Movimento local, como mencionado anteriormente, é uma mudança
na categoria de espaço. Mudança na categoria de quantidade é crescimento (ou
encolhimento), e mudança na categoria de qualidade (por exemplo, de cor) é o
que Aristóteles chama de “alteração”. Mudança na categoria de substância, no
entanto – uma mudança de um tipo de coisa em outro tipo – é muito especial.
Quando uma substância sofre uma mudança de quantidade ou qualidade, a
mesma substância permanece por toda parte. Mas será que alguma coisa persiste
quando um tipo de coisa se transforma em outro tipo? A resposta de Aristóteles é,
sim, a matéria. Ele argumenta que, por matéria ele quer dizer o que, em si, não é
de nenhum tipo nem de qualquer tamanho, nem pode ser descrito por nenhuma
das categorias do ser. Pois é algo de que todas essas coisas são predicadas e,
portanto, sua essência é diferente daquela de todos os predicados.
Uma entidade que não é de nenhum tipo, tamanho ou forma e da qual nada
pode ser dito, pode parecer altamente misteriosa, mas não é isso que Aristóteles
tem em mente. Sua matéria última (ele às vezes chama de "matéria-prima") não
é em si mesma de qualquer espécie. Não é em si mesma de qualquer tamanho
particular, porque pode crescer ou encolher; não é em si mesma água ou vapor,
porque é ambos, por sua vez. Mas isso não significa que haja qualquer momento
em que não seja de qualquer tamanho ou momento em que não seja nem água
nem vapor nem qualquer outra coisa (ARISTÓTELES, 2009).
5.9 A FORMA
Embora o sistema de Aristóteles abra espaço para formas, elas diferem,
significativamente, das Formas como Platão as concebeu. Para Aristóteles (2009),
a forma de uma coisa particular não é separada (chorista) da coisa em si – qualquer
forma é a forma de alguma coisa. Na física de Aristóteles, a forma é sempre
emparelhada com a matéria, e os exemplos paradigmáticos das formas são os das
substâncias materiais.
Quando uma coisa passa a existir, nem sua matéria nem sua forma são
criadas. Quando se fabrica uma esfera de bronze, por exemplo, o que passa a
existir não é o bronze ou a forma esférica, mas o bronze formatado. Da mesma
forma, no caso do Sócrates humano. Mas o fato de as formas das coisas não serem
criadas não significa que elas devam existir independentemente da matéria, fora
do espaço e do tempo, como Platão sustentou. A esfera de bronze deriva sua
forma não de uma Esfera ideal, mas de seu criador, que introduz a forma na
matéria apropriada no processo de seu trabalho. Do mesmo modo, a humanidade
de Sócrates deriva não de um Humano ideal, mas de seus pais, que introduzem a
forma na matéria apropriada quando o concebem.
79
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
5.10 A CAUSALIDADE
Em vários lugares, Aristóteles distingue quatro tipos de causa ou
explicação. Primeiro, ele diz, há aquilo do que uma coisa é feita e de onde uma
coisa é feita, como o bronze de uma estátua. Isso é chamado de causa material.
Em segundo lugar, há a forma ou padrão de uma coisa, que pode ser expressa
em sua definição. O exemplo de Aristóteles é a proporção do comprimento de
duas cordas em uma lira, que é a causa formal de uma nota ser a oitava de outra.
O terceiro tipo de causa é a origem de uma mudança ou estado de repouso em
alguma coisa; isso é muitas vezes chamado de "causa eficiente". Aristóteles dá
como exemplos, uma pessoa chegando a uma decisão, um pai gerando uma
criança, um escultor esculpindo uma estátua e um médico curando um paciente.
O quarto e último tipo de causa é o fim ou o objetivo de uma coisa – que pelo qual
uma coisa é feita. Isso é conhecido como a "causa final" (ARISTÓTELES, 2009).
5.11 O SER
Sempre que Aristóteles explica o significado de ser, ele faz isso explicando
o sentido do verbo grego ser. Ser contém todos os itens que podem ser os sujeitos
de proposições verdadeiras contendo a palavra É, seja ou não o É seguido por um
predicado. Assim, tanto a proposição Sócrates é e Sócrates é sábio dizem algo sobre
o ser. Todo ser em qualquer categoria que não seja substância é uma propriedade
ou uma modificação de substância. Por essa razão, Aristóteles diz que o estudo
da substância é o caminho para entender a natureza do ser. Os livros da Metafísica
(ARISTÓTELES, 1969), em que ele realiza esta investigação, do VII ao IX livro,
estão entre os mais difíceis de seus escritos.
80
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
É importante notar que esses relatos não são simplesmente duas descrições
diferentes de “ser qua ser”. Na verdade, não existe ser qua ser; existem apenas
maneiras diferentes de estudar o ser. Quando se estuda a fisiologia humana, por
exemplo, se estuda humanos como animais – isto é, estudam-se as estruturas e
funções que os humanos têm em comum com os animais. Mas é claro que não
existe tal entidade como um “humano qua animal”. Da mesma forma, estudar
algo como um ser é estudá-lo em virtude do que ele tem em comum com todas
as outras coisas. Estudar o universo como ser é estudá-lo como um sistema único
e abrangente, abrangendo todas as causas das coisas que surgem e permanecem
na existência.
Como o movimento que causa é eterno, este X deve ser uma substância
eterna. Deve carecer de matéria, pois não pode vir à existência ou sair da existência
transformando-se em qualquer outra coisa. Deve também carecer de potencialidade,
pois o mero poder de causar movimento não garantiria a sempiternidade do
movimento. Deve, portanto, ser pura atualidade (energeia). Embora os céus rotativos,
para Aristóteles (1969), não possuam a possibilidade de mudança substancial, eles
possuem potencialidade, porque cada corpo celeste tem o poder de mover-se para
outro lugar em sua rodada diurna. Uma vez que esses corpos estão em movimento,
eles precisam de um motor, e este é um motor imóvel. Tal motor não poderia agir
como uma causa eficiente, porque isso envolveria uma mudança em si mesmo,
mas pode atuar como uma causa final – um objeto de amor – porque ser amado
não envolve qualquer mudança no amado. As estrelas e os planetas procuram
imitar a perfeição do motor imóvel movendo-se sobre a Terra em um círculo, a
mais perfeita das formas. Para que este seja o caso, é claro, os corpos celestes devem
ter almas capazes de sentir amor pelo motor imóvel. Com base em tal princípio, diz
Aristóteles, dependem os céus e o mundo da natureza.
81
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Deus, um estado perpétuo. O que, pergunta Aristóteles, Deus pensa? Ele deve
pensar em algo – caso contrário, Ele não é melhor que um humano adormecido
– e seja lá o que Ele estiver pensando, deve pensar eternamente. Ou Ele pensa
em si mesmo ou pensa em outra coisa, mas o valor de um pensamento depende
do valor do que é por Ele pensado, então, se Deus estivesse pensando em algo
diferente de si mesmo, Ele seria de alguma forma degradado. Portanto Deus deve
estar pensando em si mesmo, o ser supremo, e sua vida é um pensamento de
pensamento (noesis noeseos) (ARISTÓTELES, 1969).
82
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
As almas dos seres vivos são ordenadas por Aristóteles em uma hierarquia.
As plantas têm uma alma vegetativa ou nutritiva, que consiste nos poderes de
crescimento, nutrição e reprodução. Os animais têm, além disso, os poderes de
percepção e locomoção – eles possuem uma alma sensitiva, e todo animal tem pelo
menos uma faculdade sensorial, sendo o tato o mais universal. O que quer que
possa sentir, pode sentir prazer; portanto, os animais, que têm sentidos, também
têm desejos. Os humanos, além disso, têm o poder da razão e do pensamento
(logismos kai dianoia), que pode ser chamado de alma racional. A maneira pela
qual Aristóteles estruturou a alma e suas faculdades influenciou não apenas a
filosofia, mas também a ciência por quase dois milênios (ARISTÓTELES, 2011a).
83
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
5.14 ÉTICA
As obras sobreviventes de Aristóteles incluem três tratados sobre filosofia
moral: a Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984), em 10 livros; a Ética a Eudemo
(ARISTÓTELES, 2015a), em 7 livros; e a Magna Moralia (ARISTÓTELES, 2016c),
em latim “Grande Ética”. A Ética a Nicômaco é geralmente considerada a mais
importante das três. Consiste de uma série de pequenos tratados, possivelmente
reunidos pelo filho de Aristóteles, Nicômaco. No século XIX, a Ética a Eudemo era
frequentemente suspeita de ser obra do aluno de Aristóteles, Eudemo de Rodes,
mas não há boas razões para duvidar de sua autenticidade. Curiosamente, estas
duas obras têm três livros em comum: os livros V, VI e VII do primeiro são os
mesmos que os livros IV, V e VI do último. Embora a questão tenha sido contestada
há séculos, é mais provável que o lar original dos livros comuns tenha sido a Ética
a Eudemo. Também é provável que Aristóteles tenha usado esse trabalho para um
curso de ética, que ele ensinou no Liceu durante seu período maduro. A Magna
Moralia provavelmente consiste em anotações feitas por um aluno desconhecido
de tal curso.
84
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
5.15 FELICIDADE
A abordagem de Aristóteles à ética é teleológica. Se a vida vale a pena ser
vivida, argumenta ele, certamente deve ser em benefício de algo que é um fim
em si mesmo – isto é, desejável por si só. Se existe uma única coisa que é o maior
bem humano, portanto, ela deve ser desejável por si mesma, e todos os outros
bens devem ser desejáveis por causa dela. As concepções gregas tradicionais da
boa vida incluíam a vida de prosperidade e a vida de posição social, caso em que
a virtude seria a posse de riqueza ou nobreza (e talvez beleza física). A tendência
esmagadora da filosofia antiga, entretanto, era conceber a boa vida como algo
que é a realização de um indivíduo – algo que um indivíduo faz ou não faz por
si mesmo.
85
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
alma racional de acordo com a virtude. Existem dois tipos de virtude: moral e
intelectual. As virtudes morais são exemplificadas pela coragem, temperança e
liberalidade. As principais virtudes intelectuais são a sabedoria, que governa o
comportamento ético e o entendimento, que é expressa no esforço científico e na
contemplação.
5.16 VIRTUDE
As virtudes das pessoas são um subconjunto de suas boas qualidades. Elas
não são inatas, como a visão, mas são adquiridas pela prática e perdidas pelo desuso.
Elas são estados permanentes e, portanto, diferem de paixões momentâneas, como
raiva e piedade. Virtudes são estados de caráter que encontram expressão tanto
em propósito quanto em ação. A virtude moral é expressa em um propósito bom –
isto é, em prescrições para ação de acordo com um bom plano de vida. É expresso
também em ações que evitam tanto o excesso quanto o defeito. Uma pessoa
moderada, por exemplo, evitará comer ou beber demais, mas também evitará
comer ou beber muito pouco. A virtude escolhe a média ou o meio termo entre o
excesso e o defeito. Além do propósito e da ação, a virtude também se preocupa
com o sentimento. Pode-se, por exemplo, estar excessivamente preocupado com
sexo ou pouco interessado nele. A pessoa temperada tomará o grau apropriado de
interesse e não será nem lasciva nem frígida (ARISTÓTELES, 1984).
86
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
87
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
desfrute com moderação dos prazeres humanos naturais do corpo, bem como da
alma. Mas, mesmo na Ética a Eudemo, é o serviço e a contemplação de Deus que
estabelece o padrão para o exercício apropriado das virtudes morais, e na Ética
a Nicômaco, essa contemplação é descrita como uma atividade sobre-humana
de uma parte divina da natureza humana. A palavra final de Aristóteles sobre
ética é que, apesar de serem mortais, os seres humanos devem se esforçar para se
tornarem imortais o máximo que puderem.
O governo ou regime, diz Aristóteles (1997), deve estar nas mãos de um,
de poucos ou de muitos; e os governos podem governar para o bem geral ou
para o bem dos governantes. O governo de uma única pessoa para o bem geral é
chamado de "monarquia"; para benefício privado, “tirania”. O governo por uma
minoria é “aristocracia”; se visa ao melhor interesse do estado é a “oligarquia”;
se beneficiar apenas a minoria dominante. Governo popular no interesse comum
Aristóteles chama de “politeia” ou república; ele reserva a palavra “democracia”
para o governo da massa anárquica.
88
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
89
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
• Após a morte de seu pai, em 367, Aristóteles migrou para Atenas onde ingressou
na Academia de Platão. Ele permaneceu lá por 20 anos como aluno e colega de
Platão.
• Aristóteles tomou uma grande parte de sua agenda filosófica, aquela de Platão,
e seu ensino é mais uma modificação do que um repúdio às doutrinas de Platão.
91
• Os escritos lógicos de Aristóteles contêm duas concepções diferentes da
estrutura de uma proposição e a natureza de suas partes.
• Aristóteles argumenta que, por matéria, ele quer dizer o que em si não é de
nenhum tipo nem de qualquer tamanho, nem pode ser descrito por nenhuma
das categorias do ser.
• Não existe ser qua ser; existem apenas maneiras diferentes de estudar o ser.
• Aristóteles argumenta que não pode haver uma série infinita de moventes
movidos, deve parar em algo que é uma causa do movimento, mas não se
move em si – um motor imóvel.
• As almas dos seres vivos são ordenadas por Aristóteles em uma hierarquia.
92
• As obras sobreviventes de Aristóteles incluem três tratados sobre filosofia
moral: Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo e Magna Moralia.
93
AUTOATIVIDADE
94
UNIDADE 2
A FILOSOFIA NO MUNDO
HELENÍSTICO E ROMANO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará auto atividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.
95
96
UNIDADE 2
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
O período após a morte de Aristóteles foi caracterizado pela decadência
das cidades-estados gregas, que depois se tornaram peões no jogo de poder
dos reis helenistas que sucederam Alexandre. A vida tornou-se problemática e
insegura.
2 ESTOICISMO
O Estoicismo foi uma das mais sublimes e sofisticadas filosofias no registro
da civilização ocidental. Ao insistir na participação nos assuntos humanos, os
estoicos acreditavam que o objetivo de toda investigação é fornecer ao indivíduo
um modo de conduta caracterizado pela tranquilidade da mente e pela certeza do
valor moral (BRUN, 1986).
97
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
98
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
da ordem cósmica e cívica antiga foi agora substituída pela desordem social e
política e costumes tradicionais deram lugar a valores incertos e transitórios
(REALE, 1994).
NOTA
99
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Zenão foi responsável pela divisão da filosofia em três partes: lógica, física
e ética. Ele também estabeleceu as doutrinas estoicas centrais em cada parte, para
que os estoicos posteriores expandissem, em vez de mudar radicalmente as visões
do fundador. Com algumas exceções (no campo da lógica), Zenão apresentou os
seguintes temas como a estrutura essencial da filosofia estoica: a lógica como um
instrumento e não como um fim em si mesmo; a felicidade humana como produto
da vida segundo a natureza; a teoria física como fornecendo os meios pelos quais
certas ações devem ser determinadas; percepção como base de certo conhecimento;
o sábio como modelo de excelência humana; formas platônicas como sendo irreais;
conhecimento verdadeiro sempre acompanhado de assentimento; a substância
fundamental de todas as coisas existentes como sendo um fogo divino, cujos
princípios universais são: 1) passivo (matéria) e 2) ativo (razão inerente à matéria);
crença em uma conflagração e renovação do mundo; crença na corporeidade de
todas as coisas; crença na causalidade predestinada que, necessariamente, liga
todas as coisas; cosmopolitismo, ou perspectiva cultural que transcende lealdades
mais estreitas; e a obrigação ou dever do indivíduo de escolher apenas aqueles atos
que estão de acordo com a natureza, sendo todos os outros atos uma questão de
indiferença (REALE; ANTISERI, 1990; GAZOLLA, 1999).
101
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
FONTE: <https://www.ancient.eu/uploads/images/5998.jpg?v=1485682660>.
Acesso em: 10 jun. 2019.
NOTA
Legenda da Figura 2
Busto de mármore do imperador romano Marco Aurélio em um manto de franjas. Um de
uma série de bustos imperiais da residência de Jason Magnus, um cidadão proeminente de
Cirene. Romano, cerca de 160-170 E.C. de Cirene, norte da África. Encontrado pelo Tenente
R. M. Smith, RE, e pelo Comandante E. A. Porcher, RN. Localizado atualmente no museu
britânico, Londres.
102
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
tão populares que muitos termos especificamente estoicos (isto é, razão correta,
compreensão, consentimento, indiferença, logos, lei natural e a noção do sábio)
eram comumente usados em debates e disputas intelectuais.
3 EPICURISMO
O pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.E.C.), contemporâneo de
Zenão, também constituía uma filosofia de defesa em um mundo conturbado. Em
um sentido estrito, o Epicurismo é simplesmente a filosofia ensinada por Epicuro;
em um sentido amplo, é um sistema de ética que abrange toda concepção ou
forma de vida que pode ser rastreada até os princípios de sua filosofia.
FONTE: <https://museum.classics.cam.ac.uk/sites/museum.classics.cam.ac.uk/files/casts/505.JPG>.
Acesso em: 10 jun. 2019.
NOTA
Legenda da Figura 3
Esta cópia é uma das várias réplicas romanas de um original helenístico perdido. Mostra
Epicuro como um homem magro e maduro; escritores contemporâneos, por vezes,
descreveram-no como estando de má saúde. Material – Mármore de Carrara. Localização –
Roma, Museu Capitolino, Stanza dei Filosofia 64.
103
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
104
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
a assistência contínua foi prestada pelo próprio Epicuro, que, mesmo quando
velho e doente, estava ocupado escrevendo cartas de admoestação, orientação e
consolo – anunciando em toda parte seu evangelho da paz e, em nome do prazer,
convidando ao amor (FARRINGTON, 1968).
105
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
106
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
A morte é temida não apenas pelo que pode estar aguardando o homem
no além, mas também por si mesma. O cômico grego, Epicarmo de Cós, diria: "eu
não quero morrer, mas eu não tenho medo de estar morto" (GILDENHARD, 2007,
p. 220). A própria ideia de não existir instila o medo que Epicuro considerava
ser a causa de todas as paixões que causam dor à alma e desordem à vida das
pessoas. Contra isso, Epicuro argumentava que, se o prazer é perfeito em cada
instante e o tempo infinito não contém prazer maior que o tempo limitado, se
medimos por razão os limites do prazer, então todo desejo de imortalidade é
vão. Assim, o aluno mais ilustre de Epicuro, Metrodoro de Lâmpsaco, poderia
exclamar “bebiōtai” (“eu vivi”), e isso seria o bastante (REALE, 2011). A pessoa
que conquistou o medo da morte também pode desprezar a dor, que se durar
é a luz, e se for intensa é curta e aproxima a morte. O sábio tem apenas que
substituir a imagem da dor presente na carne pela das bênçãos desfrutadas, e
ele pode ser feliz mesmo “dentro do touro de Faláris”. O exemplo mais belo foi
estabelecido por Epicuro no momento de sua morte, em que escreve: “Enquanto
vivo o dia mais feliz da minha vida, que agora termino, escrevo-te esta carta:
dores na bexiga e nos intestinos se sucedem. Sua intensidade não pode ser maior.
Não obstante isto, em minha alma surge alegria (felicidade), devido à lembrança
de todos os conhecimentos que adquiri [...]” (ULLMANN, 1996b, p. 27-28).
107
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Por causa de seu caráter dogmático e seu fim prático, a filosofia de Epicuro
não estava sujeita ao desenvolvimento, exceto na polêmica e em sua aplicação a
temas que Epicuro havia tratado brevemente ou nunca havia tratado. A filosofia de
Epicuro permaneceu essencialmente inalterada. Uma vez encontrada a verdade,
ela não requer mais discussão, em especial quando satisfaz por completo ao fim
em que a natureza humana tende. O principal é ver esse fim; todo o resto vem por
si só, e não há mais nada a fazer senão seguir Epicuro, "libertador" e "salvador", e
memorizar suas "palavras oraculares" (SPINELLI, 2009).
4 CETICISMO
O ceticismo, que foi iniciado por outro dos contemporâneos de Zenão,
Pirro de Elis (c. 360-c. 272 a.E.C.), estava destinado a ser de grande importância
para a preservação do conhecimento detalhado da filosofia helenista em geral.
A importância de Pirro para a história da filosofia está no fato de que um dos
adeptos posteriores de sua doutrina, Sexto Empírico (1983) – floresceu no século
III E.C. – escreveu um grande trabalho, Pros dogmatikous (Contra os dogmáticos),
no qual ele tentou refutar todos os filósofos que tinham opiniões positivas, e ao
fazê-lo, ele citou extensivamente de suas obras, preservando muito que de outra
forma teria sido perdido.
109
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
5 PITAGORISMO E NEOPITAGORISMO
Na primeira metade do século IV a.E.C., Tarento, no sul da Itália, adquiriu
um significado considerável. Sob a liderança política e espiritual do matemático
Arquitas, amigo de Platão, a cidade tornou-se um novo centro do pitagorismo,
do qual os chamados acusmáticos – pitagóricos que não simpatizavam com as
Arquitas – saíam viajando como ascetas mendicantes em todo o território do
mundo onde se falava grego (SPINELLI, 2012). Os acusmáticos parecem ter
preservado alguns antigos Hieroi Logoi pitagóricos (“Discursos Sagrados”) e
práticas rituais (PAUTAS, 2017). O próprio Arquitas, por outro lado, concentrava-
se em problemas científicos, e a organização de sua fraternidade pitagórica era,
evidentemente, menos rigorosa do que a da primeira escola. Depois dos anos 380
houve uma troca entre a escola de Arquitas e a Academia de Platão, uma relação
que torna quase impossível desvincular as realizações originais de Arquitas dos
envolvimentos conjuntos (KAHN, 2007).
FONTE: <https://www.alamy.com/stock-image-pythagoras-of-samos-570-495bc-ionian-greek-
philosopher-mathematician-168766724.html>. Acesso em: 10 jun. 2019.
110
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
NOTA
Legenda da Figura 4
Pitágoras de Samos (570-495 a.E.C.), Filósofo grego, matemático e fundador do movimento
religioso chamado pitagorismo. Gravura de “retratos e vidas verdadeiras de homens ilustres”,
de André Thévet (1516-1590), publicada em 1584.
111
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
6 NEOPLATONISMO
O neoplatonismo é o nome moderno dado à forma de platonismo
desenvolvido por Plotino, no século III E.C., e modificado por seus sucessores.
Veio dominar as escolas filosóficas gregas e permaneceu predominante até que o
ensino da filosofia pelos pagãos terminasse na segunda metade do século VI E.C.
Representa a forma final da filosofia grega pagã. Não era um mero sincretismo
(ou combinação de diversas crenças), mas um genuíno, se não unilateral,
desenvolvimento de ideias encontradas em Platão e no platonismo anterior –
embora também incorporasse importantes elementos aristotélicos e estoicos
(MERLAN, 2013; BRUN, 1991).
no impulso criativo original de sair que ele recebe de seu superior. Assim,
o universo neoplatônico é caracterizado por um duplo movimento de sair e
retornar.
4. Cada nível de ser é uma imagem ou expressão em um nível inferior daquele
acima dele. A relação do arquétipo e da imagem perpassa todos os esquemas
neoplatônicos.
5. Os graus de ser são também graus de unidade; à medida que se desce a escala
do ser, há maior multiplicidade, mais separação e crescente limitação – até que
a individualização atômica do mundo espaço-temporal seja alcançada.
6. O nível mais elevado do ser, e através dele tudo o que existe em qualquer
sentido, deriva do princípio último, que é absolutamente livre de determinações
e limitações e transcende completamente qualquer realidade concebível, de
modo que possa ser dito “além do ser”. Porque não tem limitações, não tem
divisão, atributos ou qualificações; ele não pode ser realmente nomeado, ou
mesmo descrito apropriadamente como sendo, mas pode ser chamada de "o
Uno" para designar sua completa simplicidade. Pode também ser chamado de
“o Bem” como a fonte de todas as perfeições e o objetivo final do retorno, pois
o impulso de sair e retornar que constitui a hierarquia da realidade derivada
vem e leva de volta ao Bem.
7. Como esse princípio supremo é absolutamente simples e indeterminado (ou
desprovido de traços específicos), o conhecimento humano dele deve ser
radicalmente diferente de qualquer outro tipo de conhecimento. Não é um
objeto (uma coisa separada, determinada e limitada) e nenhum predicado
pode ser aplicado a ele; portanto, ele só pode ser conhecido se elevar a mente a
uma união imediata consigo mesma, que não pode ser imaginada ou descrita.
113
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
FIGURA 5 – PLOTINO
FONTE: <https://davidarioch.com/wp-content/uploads/2017/07/plotinus_17_-768x769.jpg>.
Acesso em: 10 jun. 2019.
114
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
115
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
116
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
Jâmblico (c. 250 a 330 E.C.) parece ter sido o originador do tipo de
neoplatonismo que passou a dominar as escolas platônicas nos séculos V e VI E.C.
Esse tipo de neoplatonismo aguçou e multiplicou as distinções entre os níveis de
ser. A posição básica subjacente as suas elaborações são de um realismo filosófico
extremo: presume-se que a estrutura da realidade corresponde exatamente
à maneira pela qual a mente funciona, que existe uma entidade real separada,
correspondente a toda distinção que ela possa fazer (JÂMBLICO, 1989, 1997).
117
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
118
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA
NOTA
Teurgia é uma palavra de origem grega que pode ser traduzida como obra divina
(theoi–Deus e ergein-obra) e faz referência a uma modalidade de magia cerimonial que
busca através de práticas como orações e rituais incorporar uma manifestação divina no
praticante; além de uma aproximação pura e profunda com a divindade em questão.
119
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
120
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:
• A teoria moral estoica também é baseada na visão de que o mundo, como uma
grande cidade, é uma unidade. O indivíduo humano, como cidadão do mundo,
tem uma obrigação e lealdade a todas as coisas naquela cidade.
• O estoicismo leva o nome do lugar onde seu fundador, Zenão de Cítio (Chipre),
habitualmente lecionava – o Stoa Poikile – o Pórtico Pintado da ágora.
• Zenão foi responsável pela divisão da filosofia em três partes: lógica, física e
ética. Ele também estabeleceu as doutrinas estoicas centrais em cada parte,
para que os estoicos posteriores expandissem em vez de mudar radicalmente
as visões do fundador.
• Cleantes de Assos, que sucedeu Zenão como chefe da escola, é mais conhecido
por seu Hino a Zeus, que descreve com vigor a reverência estoica pela ordem
cósmica e o poder da razão e da lei universais.
• O terceiro líder da escola, Crísipo de Solos, que viveu até o final do século III,
foi talvez o maior e certamente o mais produtivo dos primeiros estoicos.
121
• Crísipo cobriu quase todos os aspectos da doutrina estoica e tratou cada um
deles tão detalhadamente que as características essenciais da escola mudaram
relativamente pouco depois de seu tempo.
• A Stoa Média, que floresceu no século II e no início do primeiro século a.E.C., foi
dominada principalmente por dois homens de Rodes: Panécio, seu fundador, e
seu discípulo Posidônio.
• A filosofia era, para Epicuro, a arte de viver, e visava ao mesmo tempo assegurar
a felicidade e fornecer meios para alcançá-la.
122
• Epicuro distinguiu três formas de movimento nos átomos: um natural, de
cair em linha reta devido ao seu peso; um forçado, devido a impactos; e um
movimento livre, de declinação ou desviar de uma linha reta.
• Como parte de sua física, a psicologia de Epicuro sustentava que a alma deveria
ser um corpo.
• A própria ideia de não existir instila o medo que Epicuro considerava ser
a causa de todas as paixões que causam dor à alma e desordem à vida das
pessoas.
• O ceticismo foi iniciado por outro dos contemporâneos de Zenão, Pirro de Elis.
123
• Com o sábio ascético Apolônio de Tiana, em meados do século I E.C., surgiu
uma distinta tendência neopitagórica.
• Jâmblico de Cálcis (c. 250-c. 330), um aluno de Porfírio (que por sua vez tinha
sido aluno de Plotino), escreveu a última grande síntese do pitagorismo, na
qual se reflete a maioria das diferentes tradições pós-clássicas.
• Plotino sempre insistiu que o Uno, ou Bem, está além do alcance do pensamento
ou da linguagem.
• A Alma para Plotino é basicamente o que era para Platão, a intermediária entre
os mundos do Intelecto e do Sentido e a representante do primeiro no segundo.
• Jâmblico (c. 250 a 330 E.C.) parece ter sido o originador do tipo de neoplatonismo
que passou a dominar as escolas platônicas nos séculos V e VI E.C.
• Proclo parece ter codificado o platonismo posterior, este aspirava a ser não
apenas um sistema metafísico completo e coerente, mas também uma teologia
pagã completa.
124
AUTOATIVIDADE
125
126
UNIDADE 2 TÓPICO 2
1 INTRODUÇÃO
Bem antes do início da Era Comum, os judeus, com alguma educação
grega, começaram a fazer uso ocasional da filosofia grega popular para expor
sua religião revelada: há traços disso na literatura sapiencial da Bíblia Hebraica
(Antigo Testamento). No discurso de Paulo no Areópago em Atos 17 (BÍBLIA,
1966), os lugares-comuns da filosofia estoica foram empregados para fins
apologéticos, mas até onde se sabe, o primeiro judeu que foi realmente bem
versado na filosofia grega e a usou extensivamente na exposição e defesa de sua
religião tradicional foi Fílon Judeu (Fílon de Alexandria [c. 15 E.C. – depois de 45
E.C.]), um contemporâneo mais velho de São Paulo.
127
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
2 FÍLON DE ALEXANDRIA
Fílon de Alexandria, um filósofo judeu de língua grega e o mais importante
representante do judaísmo helenístico, nasceu em Alexandria, Egito, entre 15 e 10
a.E.C. e morreu entre 45 e 50 E.C. Seus escritos fornecem a visão mais clara desse
desenvolvimento do judaísmo na diáspora. Como o primeiro a tentar sintetizar
a fé revelada e a razão filosófica, ele ocupa uma posição única na história da
filosofia. Ele também é considerado pelos cristãos como um precursor da teologia
cristã.
FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/6c/PhiloThevet.jpg/800px-
PhiloThevet.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.
129
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Fílon não diz nada de sua própria educação judaica. A única menção
da educação judaica em sua obra indica quão relativamente fraca deve ter sido,
porque ele fala apenas de escolas judaicas que se reuniram no sábado para
palestras sobre ética. O fato de ele estar longe dos helenizadores palestinos e
de se considerar um judeu praticante é claro, a partir de sua declaração de que
não se deve omitir a observância de nenhum dos costumes judaicos que foram
divinamente ordenados.
130
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO
2.2 OBRAS
As obras genuínas de Fílon podem ser classificadas em três grupos,
segundo Calabi (2014):
131
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
132
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO
Fílon viu o cosmos como uma grande corrente de ser presidida pelo Logos,
um termo da filosofia pré-socrática, que é o mediador entre Deus e o mundo,
embora em um ponto ele identifica o Logos como um segundo Deus. Fílon partiu
de Platão principalmente no uso do termo Logos para a forma das formas e para
as formas como um todo e em sua declaração de que o Logos é o lugar do mundo
inteligível. Em antecipação à doutrina cristã, ele chamou o Logos de o Filho
primogênito de Deus, o homem de Deus e a imagem de Deus (MORAES, 2017).
133
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Em sua teoria ética, Fílon descreveu duas virtudes, sob o título de justiça,
que são desconhecidas na literatura filosófica grega – fé religiosa e humanidade.
Novamente, para ele, o arrependimento era uma virtude, enquanto para outros
filósofos gregos era uma fraqueza. A felicidade perfeita vem, no entanto, não
através dos esforços dos próprios humanos para alcançar a virtude, mas somente
através da graça de Deus (CALABI, 2014).
3 SANTO AMBRÓSIO
Santo Ambrósio nasceu em 339 E.C., em Augusta Treverorum, na Gália
(atual Trier, no sudoeste da Alemanha) e morreu em 397 em Milão. Ele era
um bispo de Milão, um teólogo e crítico bíblico que incorporou as doutrinas
neoplatônicas em sua exegese da Escritura, e um iniciador de ideias que forneceu
um modelo para concepções medievais das relações entre a Igreja e o Estado.
Suas obras literárias foram aclamadas como obras-primas da eloquência latina, e
suas realizações musicais são lembradas em seus hinos (COSTA, 2018).
134
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO
FONTE: <https://i2.wp.com/catholicism.org/wp-content/blogs.dir/1/files/2000/12/Saint_
Ambrose_of_Milan.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.
arianos. Em 388, ele repreendeu o Imperador Teodósio por ter punido um bispo
que havia queimado uma sinagoga judaica. Em 390, ele impôs penitência pública
a Teodósio por ter punido uma rebelião em Tessalônica pelo massacre de seus
cidadãos. Essas intervenções sem precedentes foram atenuadas pela lealdade e
desenvoltura de Ambrósio como diplomata, notavelmente em 383 e 386 por suas
visitas oficiais ao usurpador Maximus em Trier. Em suas cartas e em suas orações
fúnebres sobre os imperadores Valentiniano II e Teodósio – De obitu Valentiniani
consolatio (392) e De obitu Theodosii (395) – Ambrósio estabeleceu o conceito
medieval de um imperador cristão como um filho obediente da igreja "servindo
sob ordens de Cristo”, e assim sujeitas aos conselhos e restrições do seu bispo
(AMBRÓSIO, 2017).
todas as coisas"). Ele não poupou esforços em instruir candidatos para o Batismo.
Ele denunciou os abusos sociais (notavelmente nos sermões De Nabuthe (Sobre
Nabote) e frequentemente assegurava o perdão de condenados. Ele defendia o
ascetismo mais austero: as famílias nobres relutavam em deixar que suas filhas
casadas assistissem aos sermões em que ele instava sobre elas a virtude suprema
da virgindade (AMBRÓSIO, 2017).
137
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:
• O primeiro judeu que foi realmente bem versado na filosofia grega e a usou
extensivamente na exposição e defesa de sua religião tradicional foi Fílon
Judeu.
• O primeiro cristão a usar a filosofia grega a serviço da fé cristã foi Flávio Justino
(martirizado c. 165).
• Fílon é crítico tanto para aqueles que tomaram a Bíblia literalmente e aqueles
que foram para excessos em sua interpretação alegórica das leis.
138
• As obras genuínas de Fílon podem ser classificadas em três grupos: ensaios
bíblicos e homilias; ensaios filosóficos e religiosos gerais; ensaios sobre temas
contemporâneos.
• Fílon não rejeitou a visão platônica de uma matéria preexistente, mas insistiu
que essa matéria também foi criada.
• Fílon também foi inovador em sua exposição do amor místico de Deus, que
Deus implantou em humanos e através do qual os seres humanos se tornam
divinos.
• Em sua teoria ética, Fílon descreveu duas virtudes, sob o título de justiça, que
são desconhecidas na literatura filosófica grega – fé religiosa e humanidade.
• Em sua teoria política, Fílon costumava dizer que a melhor forma de governo é
a democracia, que significava a devida ordem sob qualquer forma de governo
em que todos são iguais perante a lei.
139
AUTOATIVIDADE
140
UNIDADE 2 TÓPICO 3
1 INTRODUÇÃO
No Ocidente latino, havia mais de um tipo de platonismo cristão. Uma
impressionante e extremamente difícil teologia filosófica, empregando ideias que
se aproximam da versão de Porfírio do neoplatonismo para explicar e defender a
doutrina ortodoxa da Trindade, foi produzida na segunda metade do século IV
pelo retórico e gramático Mario Vitorino. Um forte e simples teísmo e moralidade
platônica, que teve grande influência na Idade Média, foi nobremente expresso
na obra final do último grande filósofo-estadista do Mundo Antigo: Boécio (c.
470-524). Esta foi a Consolação da Filosofia, escrito na prisão enquanto seu autor
estava sob sentença de morte (BOÉCIO, 2012). Boécio também foi influente no
Ocidente medieval através de suas traduções das obras lógicas de Aristóteles,
especialmente as Categorias juntamente a Isagoge (Introdução) de Porfírio, sobre
as quais ele produziu dois comentários (SHIEL, 1990; SPADE, 1994).
2 SANTO AGOSTINHO
Santo Agostinho, também conhecido como Agostinho de Hipona, nasceu
em 13 de novembro de 354, em Tagaste, Numídia (atual Souk Ahras, Argélia),
e morreu em 28 de agosto de 430, em Hipona ou Hippo Regius (hoje Annaba,
Argélia). Ele foi bispo de Hipona de 396 a 430, um dos padres latinos da igreja, um
dos doutores da igreja, e talvez o mais importante pensador cristão depois de São
Paulo. A adaptação de Agostinho do pensamento clássico ao ensino cristão criou
141
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
142
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
FONTE: <https://img.cancaonova.com/cnimages/canais/uploads/sites/6/2006/08/formacao_
confira-algumas-frases-marcantes-de-santo-agostinho-768x576.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.
os seus escritos daquela época em diante foram motivados por sua lealdade a
uma forma particular de cristianismo, tanto ortodoxa quanto intelectual. Seus
correligionários no norte da África aceitaram sua posição e estilo distintos com
alguma dificuldade, e Agostinho escolheu associar-se com a ramificação “oficial”
do cristianismo, aprovada pelos imperadores e injuriada pelas ramificações
mais entusiastas e numerosas da igreja africana. As habilidades literárias e
intelectuais de Agostinho, no entanto, deram a ele o poder de articular sua
visão do cristianismo de um modo que o diferenciava de seus contemporâneos
africanos. Seu dom original era a capacidade de escrever em um nível altamente
teórico para os leitores mais exigentes e ainda ser capaz de fazer sermões com
paixão e ferocidade em um idioma que um público menos culto poderia admirar
(GILSON, 2006).
No início do seu tempo em Hipona, ele escreveu, livro após livro, atacando
o maniqueísmo, uma seita cristã que ele tinha aderido no final da adolescência e a
deixou dez anos mais tarde, quando se tornou impolítico permaneceu um adepto
da mesma. Nos 20 anos seguintes, dos anos 390 a 410, ele estava preocupado
com a luta para fazer com que sua própria ideia de cristianismo prevalecesse
sobre todas as outras na África. A tradição cristã africana nativa tinha entrado em
conflito com os imperadores cristãos que sucederam Constantino (reinou de 305
a 337) e foi vilipendiada como cismática; foi marcado com o nome de donatismo
por causa de Donato, um de seus primeiros líderes. Agostinho e seu principal
colega na igreja oficial, o bispo Aurélio de Cartago, travaram uma campanha
sagaz e implacável contra ela com seus livros, com o recrutamento de apoio entre
os líderes da igreja e com apelo cuidadoso ao funcionalismo romano. Em 411, o
imperador reinante mandou um representante oficial para Cartago para resolver
a disputa. Um debate público realizado em três sessões durante o período de 1º
a 8 de junho e assistido por centenas de bispos de cada lado, terminou com uma
decisão a favor da igreja oficial. As restrições legais decorrentes do donatismo
decidiram a luta em favor do partido de Agostinho (MATTHEWS, 2007).
144
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
2.2.1 As Confissões
Embora a narrativa autobiográfica represente grande parte dos nove
primeiros dos 13 livros das Confissões de Agostinho, publicadas em 397, a
autobiografia é incidental ao objetivo principal do trabalho. Para Agostinho, as
confissões é um termo genérico para atos de discurso religiosamente autorizado:
louvor a Deus, culpa do self, confissão de fé. O livro é uma meditação ricamente
texturizada de um homem de meia-idade (Agostinho estava em seus 40 e poucos
anos quando o escreveu) sobre o rumo e o significado de sua própria vida.
145
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
146
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
2.2.3 As Retratações
De muitas maneiras, um livro não menos incomum do que suas Confissões
(AGOSTINHO, 2017), As Retratações (AGOSTINHO, 1993), publicadas entre 426-
427, escritas nos últimos anos de sua vida, oferece uma retrospectiva da releitura
da carreira de Agostinho. Na forma, o livro é um catálogo de seus escritos com
comentários sobre as circunstâncias de sua composição e com as retratações ou
retificações que ele faria em retrospectiva.
Um dos efeitos do livro foi tornar muito mais fácil para os leitores
medievais encontrar e identificar obras autênticas de Agostinho, e isso foi
certamente um fator na notável sobrevivência de tanto o que ele escreveu. Outro
efeito do livro é imprimir ainda mais profundamente nos leitores as próprias
opiniões de Agostinho sobre sua vida.
148
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
Mas Agostinho alcança uma maior pungência. Seu self isolado na presença
de Deus é negado até mesmo a satisfação do solipsismo: o self não se conhece até
que Deus se digne a revelar aos seres humanos sua identidade, e mesmo assim
nenhuma confiança, nenhum descanso é possível nesta vida. Em um ponto das
Confissões (AGOSTINHO, 2017), o bispo maduro admite com pesar que não sabe a
qual tentação se entregará a seguir – e vê nessa incerteza, o perigo de sua alma sem
fim, até que Deus o chamasse de volta para casa. A alma experimenta liberdade
de escolha e subsequente escravidão ao pecado, mas sabe que a predestinação
divina prevalecerá.
149
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
A biografia mais sucinta de Boécio, e a mais antiga, foi escrita por Flávio
Magno Aurélio Cassiodoro, seu colega senatorial, que o citou como um orador
bem-sucedido que proferiu um excelente elogio de Teodorico, rei dos ostrogodos
que se fez rei da Itália. Cassiodoro também mencionou que Boécio escreveu sobre
teologia, compôs um poema pastoral e foi muito famoso como tradutor de obras
de lógica e matemática gregas (COSTA, 2018).
150
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
FIGURA 9 – BOÉCIO
FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/-_hCzBXro0EE/TuVmcMp6GRI/AAAAAAAAAA0/
l1g551MCrZ0/s1600/Bo%25C3%25A9cio.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.
151
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Através dos cinco livros desse argumento, nos quais a poesia se alterna
com a prosa, não há um dogma especificamente cristão. É o credo de um
platonista, embora em nenhum lugar claramente incongruente com a fé cristã. O
livro mais lido nos tempos medievais, depois da Bíblia Sacra Vulgata, transmitiu as
principais doutrinas do platonismo para a Idade Média. O leitor moderno pode
não ser tão prontamente consolado por seus antigos modos de argumentação,
mas pode ficar impressionado com a ênfase de Boécio na possibilidade de outros
graus de Ser além do que é humanamente conhecido e de outras dimensões da
experiência humana do tempo.
153
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
LEITURA COMPLEMENTAR
António Amaral
Introdução
[...]
156
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
157
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
Todo o homem quer entender; não existe ninguém que não o queira.
Mas nem todos querem crer. Diz-me então alguém: “Entenda eu e
acreditarei.” Respondo-lhe: “Crê e entenderás.” (...) Aquele suposto
adversário (...) não emite palavras vazias de sentido quando diz:
“Entenda eu e acreditarei”. (...) De certo modo é verdade o que ele
diz. Mas também o é quando eu digo, com o profeta: “antes crê para
entenderes (AGOSTINHO, Sermo, 43).
158
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO
palavra de Deus (verbum Dei), que requer fé para conceder razões, o hiponense
resolve a tensão entre as duas faculdades sem a artimanha de uma circularidade
redundante, pleonástica ou tautológica. Cada um dos extremos da relação remete
para algo que, no plano da fé, não é mais um conteúdo de fé (fides quae), mas
um vislumbre inteligente da sua credibilidade (fides qua), tal como, no plano
da razão, não é mais um conteúdo racional, mas uma anuência confiante à sua
razoabilidade.
Conclusão
159
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO
FONTE: AMARAL, A. A relação protensiva entre Fé e Razão na Filosofia Medieval. In: REIMÃO, C.
(Org.). O círculo hermenêutico entre fé e a razão. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003.
p. 31-39. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/antonio_amaral_fe_razao_filosofia_
medieval.pdf>.
160
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:
• Dos anos 390 a 410, Agostinho estava preocupado com a luta para fazer com
que sua própria ideia de cristianismo prevalecesse sobre todas as outras na
África.
• Duas das obras de Agostinho destacam-se acima das outras por sua influência
duradoura, A Cidade de Deus e Confissões.
161
• De civitate dei contra paganos, escrita entre 413-426/427 é dividida em 22 livros.
• As Retratações, publicada entre 426-427, escrita nos últimos anos de sua vida,
oferece uma retrospectiva da releitura da carreira de Agostinho.
• Um dos efeitos do livro foi tornar muito mais fácil para os leitores medievais
encontrar e identificar obras autênticas de Agostinho.
• A biografia mais sucinta de Boécio, e a mais antiga, foi escrita por Flávio Magno
Aurélio Cassiodoro.
• A acusação de traição trazida contra Boécio foi agravada por mais uma acusação
da prática da magia, ou do sacrilégio, que o acusado teve grande dificuldade
em rejeitar.
162
• O argumento da Consolação é basicamente platônico, a filosofia, personificada
como mulher, converte o prisioneiro Boécio à noção platônica do Bem e assim
o leva de volta à lembrança de que, apesar da aparente injustiça de seu exílio
forçado, existe um summum bonum (bem maior), que forte e docemente controla
e ordena o universo.
• Através dos cinco livros desse argumento, nos quais a poesia se alterna com a
prosa, não há um dogma especificamente cristão, é o credo de um platonista,
embora em nenhum lugar claramente incongruente com a fé cristã.
163
AUTOATIVIDADE
2 Qual é o tema dos dez primeiros livros e dos últimos doze da obra A Cidade
de Deus, de Santo Agostinho?
164
UNIDADE 3
A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:
PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.
165
166
UNIDADE 3
TÓPICO 1
1 INTRODUÇÃO
Nesta unidade iremos discorrer sobre a filosofia escolástica que vai do
século IX até o final do século XVI, um período em que a Europa estava passando
por uma série de mudanças políticas, econômicas, culturais e religiosas.
167
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
Com Anselmo, a filosofia passa a tomar novos rumos, pois ele “representa
a síntese clássica da teologia e da dialética” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 254).
O que Anselmo buscava em seu labor teológico e filosófico era “esclarecer com
a razão aquilo que já se possui com a fé” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 153), pois
como ele mesmo afirmava: “Não tento, ó Senhor, penetrar na tua sublimidade,
pois de modo algum comparo o meu entendimento com ela; mas anseio para
entender até certo ponto a tua vontade, que meu coração crê e ama. Não busco,
pois, entender para crer, mas creio para compreender” (Anselmo apud OLSON,
2001, p. 235). Para isso, ele utiliza a lógica aristotélica aplicando-a em seus
argumentos teológicos, fato que levou a ser considerado o pai da escolástica.
NOTA
169
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
universal e cada agente moral é capaz de conceber juízos sobre o que é bom
ou não bom, e isso não depende necessariamente de uma simples expressão de
gosto pessoal.
170
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
3 ABELARDO: O LÓGICO
Pedro Abelardo (1079-1142) nasceu em Burg do Palais, perto de Nantes,
na França. Possuidor de uma mente inquieta e brilhante foi considerado o maior
escritor de seu tempo. Apaixonou-se por Heloísa, o grande amor de sua vida,
com quem se casou secretamente e teve um filho. Tal romance desagradou
profundamente ao tio curador de Heloísa, Fulbert, que incomodado com a
situação contratou alguns homens para invadirem a casa de Abelardo e castrá-
lo. Abelardo retirou-se de Paris e tornou-se um monge, enquanto Heloísa fez os
votos de freira e enclausurou-se em um convento.
FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3c/Abelard.jpg/800px-
Abelard.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2019.
uma coisa, mas apenas um nome, e o fato de se poder explicar os nomes às várias
coisas individuais é que os tornam universais. Por exemplo, a bondade não é uma
coisa, porém, apenas um nome aplicado a várias coisas.
Por mais que não houvesse uma reconciliação plenamente perfeita entre a
verdade teológica e a filosófica, Abelardo defende a tese de que pelo menos não
deveria haver conflito entre essas duas verdades.
172
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
DICAS
4 AVICENA E O ARISTOTELISMO
Avicena (980-1037), cujo nome é Ibn Sina, em árabe, nasceu em Bukara,
na Pérsia e morreu em Hamadan. Ele escreveu muitas obras, contudo, a mais
importante foi O livro da Cura, que abrange questões lógicas, retórica, poesia e
física.
FIGURA 3 – AVICENA
FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/Avicenna_TajikistanP17-
20Somoni-1999_%28cropped%29.png>. Acesso em: 30 abr. 2019.
173
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
NOTA
174
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
5 AVERRÓIS
Averróis (1126-1198) nasceu em Córdoba e faleceu no Marrocos. Além de
ser um dos mais importantes comentadores de Aristóteles, Averróis foi médico,
jurista e um grande metafísico. É difícil denominar qual de suas obras foi a mais
importante, contudo, sua obra Tratado decisivo sobre a concordância entre a filosofia e
religião foi amplamente combatida por teólogos e filósofos cristãos, bem como por
islamitas, pois nesta obra fica clara sua plena confiança ilimitada na razão, pois
acreditava que “a revelação, com efeito, produz símbolos imperfeitos que cabe à
razão decifrar” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 194).
FIGURA 4 – AVERRÓIS
175
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
conhecimento profundo, pois este é o melhor culto que eles podem manifestar
a Deus: conhecer profundamente a sua obra. Portanto, é tarefa da filosofia se
preocupar com investigações teóricas do fundamento das coisas, enquanto que
a tarefa da religião é preocupar-se com as ações humanas. Quanto à divisão da
inteligência, Averróis:
De acordo com Averróis, “Assim como a luz faz com que a cor em potência
passe a ser cor em ato, de modo que possa mover nossa vista, do mesmo modo
o intelecto agente faz com que os conceitos inteligíveis em potência passem a ser
conceitos em ato, de modo que o intelecto material os receba” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 196).
6 MAIMÔNIDES
Moisés Maimônides (1135-1204) nasceu em Córdoba e morreu no Cairo,
aos 69 anos. Deixou a Espanha em decorrência da intolerância dos Almoadas. Ao
se estabelecer no Egito, comercializava pedras preciosas e dava aulas públicas até
se tornar médico da corte do sultão Saladino. Daí em diante, pôde se dedicar com
maior afinco em seus estudos.
176
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
FIGURA 5 – MAIMÔNIDES
FONTE: <https://cdn.fedweb.org/fed-70/2/maimonides-1.jpg?v=1410549405>.
Acesso em: 30 abr. 2019.
177
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
DICAS
FONTE: <https://www.paulus.com.br/loja/historia-da-filosofia-volume-2-patristica-e-
escolastica_p_1336.html>. Acesso em: 15 jul. 2019.
O livro publicado no Brasil, pela editora Paulus, é uma obra importantíssima para quem deseja
conhecer um pouco mais sobre a filosofia Patrística e Escolástica. O volume dois é uma
fonte riquíssima de informações que auxiliarão o leitor a compreender o pensamento dos
vários filósofos que deixaram sua contribuição para a humanidade. É leitura indispensável
para todos os estudantes e amantes da filosofia. Boa leitura!
178
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
FONTE: <https://tuporem.org.br/wp-content/uploads/2017/08/tomas-aquino.jpg>.
Acesso em: 30 abr. 2019.
Por mais que São Tomás tenha zelo pela verdade em relação a Deus,
contudo, segundo ele, “Há algumas verdades que superam todo poder da razão
humana, como por exemplo, a verdade de que Deus é trino. Outras verdades
podem ser pensadas pela razão natural, como, por exemplo, as verdades de que
Deus existe, de que Deus é uno, e outras coisas mais (TOMÁS DE AQUINO apud
REALE; ANTISERI, 2003, p. 213).
179
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
180
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
181
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
A segunda via diz respeito à primeira causa eficiente. Todas as coisas são
efeitos de uma causa. De acordo com este raciocínio, todas as coisas necessitam de
uma causa para serem causadas. Por exemplo, uma pessoa, para nascer, necessita
de uma causa, neste caso - seus pais, pois ela é resultado da fecundação de um
espermatozoide em um óvulo, ou seja, o ser humano necessita desta causa para
vir a ser.
Essa segunda via baseia-se na ideia da necessidade para que uma potência
se transforme em ato e, assim, constatamos a obrigatoriedade de uma causa
eficiente para que as coisas existam. Nada é causa e efeito ao mesmo tempo e o
efeito sempre nos remeterá a uma causa até o infinito, mesmo sendo Deus a causa
não causada, não existe por meios racionais a concepção de que alguma coisa
tenha causado Deus.
182
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
Seu argumento demonstra que, para que alguma coisa exista, é necessário
um princípio. Esse método aponta para a necessidade da existência de algo que
antes dele nada existiu, ou seja, uma causa não causada, um princípio não criado,
um ser autoexistente. Essa via procura a essência dos seres do universo, e aquilo
que deve ser o ponto de partida para virem a existir.
A quarta via diz respeito aos graus de perfeição do ser. São Tomás (apud
OLSON, 2001, p. 346), entende que “deve haver [...] algo que seja, para todos os
seres, a causa da existência, virtude e qualquer outra perfeição; e a ela chamamos
Deus”. Essa via pode ser considerada de índole platônica, pois podemos observar
que em todas as coisas há graus hierárquicos, e consequentemente esses níveis
de hierarquia e perfeição irão culminar na necessidade de um ser que está acima
de todas as coisas e é perfeitíssimo. Se há perfeição no mundo, é porque alguém
perfeito criou todas as formas de requintes.
A quinta e última via diz respeito ao fato de que todas as coisas convergem
para um fim, pois segundo Aquino (apud OLSON, 2001, p. 346), “existe algum ser
inteligente, por quem todas as coisas naturais são dirigidas para um fim; e esse ser
chamamos Deus”. Essa via nos leva a pensar na ordem existente no cosmos, pois
o que existe no universo segue uma ordem de funcionamento e, de acordo com o
pensamento de Aquino, esta ordem converge para um fim estabelecido por Deus, e
este fim último para o qual convergem todas as coisas criadas é Deus. É necessária
uma inteligência que tenha projetado todas as coisas, pois assim como uma lança
só chega ao seu destino se alguém a lançar, logo concluímos que todas as coisas
acontecem no universo porque alguém estabeleceu um fim para o qual ela existe.
183
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
8 BOAVENTURA
Boaventura (1221-1274) nasceu em Civita, atualmente distrito de
Bagnoregio, e morreu em Lyon. Estudou filosofia na Universidade de Paris e
tornou-se um grande amigo de Tomás de Aquino. Vale ressaltar que foi graças
a Boaventura que o escolasticismo tradicional teve continuidade, pois tratou de
conservar as ideias gerais do movimento. É considerado um dos autores que mais
produziu na Idade Média, pois sua produção literária reúne 65 obras.
FONTE: <https://recursos.cultordelivros.com.br/MediaCenter/S%C3%A3o-Boaventura.png>.
Acesso em: 30 abr. 2019.
Uma vez que tudo fala de Deus, o filósofo não tem necessidade de
provar sua existência, e sim sua presença no mundo, e sobretudo em
nossa alma (o homem é imagem de Deus). Por meio deste contato
particular com o divino, a alma goza de certa autonomia em relação
ao corpo e existe por si. Por conseguinte, tanto a alma como o corpo
são compostos de matéria e forma (REALE; ANTISERI, 2003, p. 255).
Aqui nós temos uma síntese de sua ideia acerca de que todas as coisas falam
e apontam para Deus. A fé, portanto, deve conduzir a razão para a contemplação,
para que esta se dê conta da existência de Deus e, não apenas isso, mas que a alma
experimente a alegria divina que está para além dos prazeres físicos.
184
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
Para Boaventura, o saber filosófico, por mais sublime e elevado que seja,
“é fonte de erros se detém o olhar em si mesmo e não o dirige para saber mais
alto, teológico e místico” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 256). Nas palavras de
Boaventura:
185
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
DICAS
186
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA
LEITURA COMPLEMENTAR
DEUS É IMÓVEL
Tomás de Aquino
Daqui se infere ser necessário que o Deus que põe em movimento todas
as coisas é imóvel. Com efeito, por ser a primeira causa motora, se Ele mesmo
fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou por outro. Ora, Deus não pode ser
posto em movimento por outra causa motora, pois neste caso haveria uma outra
causa anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira causa motora. Se fosse
movido por si mesmo, teoricamente isto poderia ocorrer de duas maneiras: ou
sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causa e efeito ao mesmo tempo, ou sendo Ele,
sob um aspecto, causa de si mesmo, e, sob outro, efeito.
Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois tudo o que é movido
está em potência, ao passo que o que move está em ato (na qualidade de causa
motora). Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa e efeito ao mesmo tempo,
seria necessariamente potência e ato sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, o
que é impossível.
A mesma argumentação pode ser feita a partir das causas motoras e dos
defeitos existentes no universo criado. Com efeito, parece que todo o movimento
procede de uma causa imóvel, a qual não é movida segundo o mesmo tipo de
movimento. Assim, observamos que os processos de alteração, de geração e
de corrupção verificados no reino criado inferior se reduzem ao corpo celeste
(o Sol) como a sua primeira causa motora, a qual, por sua vez, não é movida
por nenhuma outra situada dentro da mesma esfera, uma vez que não pode ser
gerada, nem corrompida, nem alterada. Conclui-se, portanto, necessariamente
que Aquele que constitui o princípio primário de todo movimento é totalmente
imóvel.
FONTE: São Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1973, p. 78. In.: ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. Filosofando: Introdução à Filosofia. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 1993.
187
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
Reale e Antiseri
FONTE: REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: da patrística e escolástica. São Paulo:
Paulus, 2003, p. 261.
Roger Olson
189
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
[...]
FONTE: OLSON, R. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo:
Editora Vida, 2001. p. 318-320.
190
RESUMO DO TÓPICO 1
• Com Anselmo, a filosofia passa a tomar novos rumos, pois ele “representa a
síntese clássica da teologia e da dialética” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 254).
• Na tese de que é possível provar a existência de Deus através das cinco vias
(Quinque viis) da razão, Tomás de Aquino irá empreender um esforço sistemático
no sentido de provar a existência de Deus, partindo de uma argumentação de
que a razão humana é capaz de compreender que existe um Deus e que isso
pode ser alcançado naturalmente.
191
• No entendimento de Boaventura, a filosofia e a razão formam uma etapa no
caminho que conduz a alma a Deus. A fé, por sua vez, leva à razão, que leva à
contemplação.
• Para Boaventura o saber filosófico, por mais sublime e elevado que seja, “é
fonte de erros se detém o olhar em si mesmo e não o dirige para saber mais alto,
teológico e místico” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 256).
192
AUTOATIVIDADE
193
as exigências de caráter religioso da cultura muçulmana. Nesse sentido,
analise as sentenças a seguir sobre as principais características da filosofia
de Avicena.
194
UNIDADE 3
TÓPICO 2
1 INTRODUÇÃO
No último quarto do século XIII, a atividade intelectual continua intensa,
pois apesar de importantes nomes da escolástica terem morrido, os escritos
aristotélicos encontram-se nas mãos de outros estudiosos, que no mesmo
entusiasmo dos primeiros escolásticos estavam dispostos a dar continuidade ao
empreendimento iniciado por seus influenciadores.
Neste tópico iremos discorrer acerca de três grandes nomes deste novo
momento da filosofia escolástica, a saber: João Duns Escoto, Mestre Eckhart e
Guilherme de Ockham.
2 DUNS ESCOTO
João Duns Scotus (1266-1308) nasceu na cidade de Duns, no condado
de Rosburgh, na Escócia, e morreu em Colônia, na Alemanha. Sua capacidade
intelectual fez dele um grande teólogo e filósofo capaz de fundir a tradição da
Universidade de Oxford com a de Paris. Pela profundidade de suas obras e
capacidade lógica, ele foi chamado de Doctor Subtilis, ou seja, Doutor Sutil.
195
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/ce/JohnDunsScotus_-_
full.jpg/250px-JohnDunsScotus_-_full.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2019.
Devido ao seu curto período de vida, pois morreu com apenas 42 anos,
deixou algumas obras importantes, tais como: Opus Oxioniense (Obra de Oxford),
Quaestiones de Metaphysica (Questões de Metafísica) e De Primo Princípio (Do
Primeiro Princípio). De acordo com Gilson (2012, p. 488), “Duns Escoto se mostra
extremamente exigente em matéria de demonstração”. Seu amor à verdade faz com
que ele renuncie qualquer asserção que não pode ser logicamente demonstrável.
Duns Escoto faz clara distinção entre a teologia e filosofia, pois, para ele,
o cerne das disputas entre elas era decorrente da ausência de uma “delimitação
rigorosa dos âmbitos de pesquisa” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 278). Se por
um lado a filosofia se ocupa em refletir sobre o ente e “tudo aquilo que a ele é
redutível”, a teologia se propõe a tratar “dos objetos da fé” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 278).
196
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA
NOTA
197
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
Esta doutrina de Duns Escoto sofreu duras críticas, pois segundo seus
adversários acadêmicos, “o ser não é concebível independentemente das suas
determinações modais de finidade e infinidade, de necessidade ou contingência,
etc.” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 500). Contra isso, Escoto argumenta que
independentemente de seu saber se algo é finito ou infinito, “o que eu sei é que
este algo é um ser, ou seja, tenho um conceito mais simples que o ser finito e o ser
infinito, e anterior a eles” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 500).
DICAS
198
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA
Diante disso, nossa intenção aqui não será fazer qualquer interpretação de
seus escritos, mas apresentar resumidamente suas ideias principais. Sugerimos
ao acadêmico interessado em aprofundar seus conhecimentos sobre as temáticas
abordadas por este pensador, a buscar em literaturas especializadas, um maior
aprofundamento acerca daquilo que tenha lhe chamado a atenção.
A retidão é, portanto, uma virtude que demonstra que esta pessoa que a
possui tem Deus em si e age de acordo com a vontade divina. Segundo Eckhart
(apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 328), a pessoa que tem Deus “o tem em todos
os lugares, nas ruas e entre as pessoas, da mesma forma que na Igreja, na solidão
ou na cela. Se ele o possui verdadeiramente e o possui sempre, ninguém poderá
perturbá-lo”.
200
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA
Não devemos nos esquecer de que Eckhart era, além de teólogo, um grande
pregador. Nesse sentido, o conteúdo de suas obras reflete seu apelo constante
para que os homens se voltem a Deus e vivam de acordo com Sua vontade. O
que ele busca é apontar um caminho que os homens sejam capazes de andar por
ele livremente. Segundo ele, o homem deve ser livre de seus desejos e entregar-se
inteiramente a Deus, pois este retorno a Deus é necessário que a alma “esteja livre e
despojada de toda coisa criada” (ECKHART apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 328).
Essa referência que Eckhart faz à alma tem uma influência platônica e
agostiniana, pois a razão inferior deverá conduzir à razão superior, pois a alma
tende para aquilo que é incriado, neste caso, Deus, logo, a alma deverá abandonar
irrestritamente todas as coisas criadas.
Para Eckhart, há dois modos de a alma retornar para Deus: pela via
negativa da pobreza e pela via positiva da divinização (BOEHNER; GILSON,
2012, p. 529, grifos do original):
Observe que a via da pobreza não se refere à pobreza material, mas está se
referindo a um tipo de pobreza de alma, ou seja, diz respeito à renúncia de tudo
aquilo que possa separar a criatura do Criador, o homem da Divindade.
O que fica patente nas obras de Eckhart é seu caráter místico de união do
homem com a Divindade. Seu trabalho consistiu, essencialmente, traduzir “em
termos racionalmente compreensíveis os seus anseios místicos mais profundos,
servindo-se para isso dos recursos da dialética escolástica e do seu cabedal de
conceitos” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 530).
201
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
4 GUILHERME DE OCKHAM
Gilherme de Ockham (1285-1349) nasceu em Ockham, na Inglaterra, e
faleceu em Munique. Ainda na sua juventude entrou para a ordem franciscana.
Durante o período em que viveu em Munique, trabalhou intensamente em sua
atividade literária de caráter político-eclesiástica. Era conhecido como o príncipe
dos nominalistas.
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/70/William_of_Ockham.
png/200px-William_of_Ockham.png>. Acesso em: 30 abr. 2019.
Não será possível, neste livro, discorrer sobre uma mínima parte daquilo
que Ockham produziu. Nesse sentido, tocaremos brevemente em alguns pontos
principais da sua filosofia, para que você possa, a partir dessas colocações, avançar
em estudos mais aprofundados, se assim você desejar.
202
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA
NOTA
FONTE: LEVENE, L. Penso, logo existo: tudo o que você precisa saber sobre Filosofia. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
Isso implica dizer que a filosofia não pode se submeter à teologia, como
queriam Aquino, Boaventura e Escoto, pois a teologia não é uma ciência, mas
consiste num conjunto de afirmações e sentenças que não se relacionam lógica
e racionalmente. As afirmações da teologia estão unidas pela fé e não pela razão
num sentido lógico.
203
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
NOTA
Da ética
Em nenhum outro domínio Duns Escoto se mostra tão fiel à tradição agostiniana
como na ética. Nota-se, também, o forte influxo da doutrina de Santo Anselmo. Seu propósito
é harmonizar os direitos de Deus com os do indivíduo humano: há que salvaguardar não só a
contingência (severa contingentian!), como ainda a dignidade da pessoa humana (dignificare
naturam!).
204
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA
NOTA
Quinquagésima-nona proposição: o homem deve viver de tal maneira que ele com
(em) o Filho Unigênito, e que ele mesmo seja aquele Filho Unigênito. Entre o Filho Unigênito
e a alma não há nenhuma distinção. Explicação: Três coisas vêm expressas neste artigo:
Primeiro, que “o homem deve viver de tal maneira que ele seja um com (em) o Filho
Unigênito”. O que é verdade. Pois o homem deve viver na caridade; “ora, quem permanece na
caridade permanece em Deus”, como se lê em São João, cap. 4; e mais adiante, no capítulo
5, diz ele que “estejamos no verdadeiro filho de Deus”.
Segundo que “ele mesmo seja aquele Filho Unigênito”. Se por isto se entende que
eu mesmo seja Deus, é falso; se, porém, se entende que eu sou aquele, enquanto membro
dele, é verdade. O mesmo é afirmado frequentemente por Santo Agostinho; e com relação à
palavra da Escritura: “Eu me santifico por eles” diz Agostinho: porque eles são seus.
Tampouco se deve pensar que cada qual dentre os justos seja filho de Deus por um
filho de Deus distinto; antes, eles o são do mesmo modo em que todos os bons são bons
analogicamente por uma e mesma bondade. E como o único Deus está em todos por sua
essência, assim o único filho de Deus está em todos os filhos adotivos; por Ele e nele são
filhos analogicamente, como tantas vezes mostramos mais acima. Como exemplo, temos as
imagens da face de um só espectador, reproduzida em muitos espelhos; todas estas imagens,
enquanto imagens, provêm daquela única imagem, que é a face do contemplador. Não só
isso: nenhuma delas existia ou permanece exceto por ela e nela (a face); donde a significativa
declaração do apóstolo: “Nós somos coerdeiros de Cristo”. Com efeito, Ele é herdeiro, porque
já o era, e por permanecer eternamente na casa, segundo a palavra de São João, visto ser
filho por natureza. Assim também a imagem ou espécie colocada ante os espelhos sempre
permanece a natureza. Pois natural deriva de nascimento.
205
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
NOTA
Occam (sic) também é conhecido na história intelectual geral por ter desenvolvido
e defendido uma versão do nominalismo. Se ele era nominalista ou não é uma questão
extremamente controversa. Muitos preferem, com razão chamar de “conceitualismo” a sua
teoria dos universais. De muitas maneiras, ela reflete a teoria que Abelardo desenvolveu
contra o realismo extremado, dois séculos antes. É mais apropriado chamar nominalistas os
seguidores de Occam, já que a teoria de vários deles foi muito além do que o próprio Occam
postulou. Mesmo assim, bem ou mal, Occam é geralmente considerado um filósofo e teólogo
do nominalismo moderado do final da Idade Média. De qualquer forma, não há dúvida de
que “Occam [...] rejeitava categoricamente todas as formas do realismo e fundamentava o
conhecimento na apreensão direta dos objetos individuais”. No seu tempo, isso significou um
revolucionário passo adiante e muitos historiadores creditam o início da ciência moderna a
ele. Eles mencionam a via moderna, o “caminho moderno” do conhecimento, que começa
com Occam e continua com Copérnico, Galileu, Kepler e Newton.
206
RESUMO DO TÓPICO 2
• Duns Escoto faz clara distinção entre a teologia e a filosofia, pois, para ele, o
cerne das disputas entre elas era decorrente da ausência de uma “delimitação
rigorosa dos âmbitos de pesquisa” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 278).
207
AUTOATIVIDADE
208
c) ( ) Para Eckhart, Deus transcende todo ser criado, pois todas as coisas
dependem de Deus e Deus não depende das coisas.
d) ( ) A presença de Deus é sentida apenas pelos iniciados no misticismo
oriental.
209
210
UNIDADE 3
TÓPICO 3
PENSAMENTO MEDIEVAL E O
RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE
NICOLAU DE CUSA
1 INTRODUÇÃO
O longo período da filosofia medieval está dando seus últimos passos na
história do pensamento ocidental. Os ventos de mudanças que começaram como
uma brisa fraca no início do século XV se intensificou e tornou-se um verdadeiro
furacão, pelo menos no que se refere ao pensamento filosófico.
211
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
2 O PENSAMENTO MEDIEVAL
Não é possível negar que o pensamento medieval foi predominante
e profundamente marcado pelas doutrinas cristãs. A filosofia serviu como um
instrumento lógico necessário para a interpretação das escrituras sagradas. Não
apenas isso, mas a filosofia serviu para clarificar o sentido das escrituras, bem
como para defender a fé cristã construindo uma doutrina sistemática muito
abrangente.
Isso não significa dizer que a filosofia cristã tenha sido uma criação forçada
da Igreja Católica. Segundo Gilson (2012, p. 570-571):
212
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA
3 O HUMANISMO E O RENASCIMENTO
O final da Idade Média é marcado pelo renascimento das ideias humanistas
e antropocêntricas do universo. Se durante a escolástica o filósofo que predominou
nos debates e serviu de base para a reflexão filosófica dos grandes pensadores
medievais tenha sido Aristóteles, o que se vê no século XIV é a influência do
platonismo nas principais escolas filosóficas.
NOTA
O termo "Humanismo" foi usado pela primeira vez no início do 800 para
indicar a área cultural coberta pelos estudos clássicos e pelo espírito que Ihe é próprio,
em contraposição ao âmbito das disciplinas científicas. A palavra humanista, porém, já era
empregada pela metade do 400, e deriva de humanitas, que em Cícero e Gelio significa
educação e formação espiritual do homem, na qual tem papel essencial as disciplinas literárias
(poesia, retórica, história, filosofia). Ora, a partir, sobretudo da metade do 300, e depois de
modo representado sempre crescente nos dois séculos sucessivos, desenvolveu-se na Itália
justamente uma tendência a atribuir valor muito grande aos estudos das litterae humanae
e a considerar a antiguidade clássica, grega e latina, como um paradigma e um ponto de
referência para as atividades espirituais e a cultura em geral. "Humanismo", portanto, significa
em geral esta tendência que, surgida essencialmente no seio da cultura italiana, pelo fim do
400 se difundiu em muitos outros países europeus.
213
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
Neste novo momento da história, o homem já não aceita ser apenas mais
uma extensão do Estado ou de outras instituições. Ele está tomando consciência
da sua subjetividade, de seu poder de escrever e dirigir sua própria história sem
a necessidade da tutela das instituições e poderes que o cercam.
NOTA
4 NICOLAU DE CUSA
Nicolau (1401-1464) nasceu em Cusa e morreu em Todi. Em seus
primeiros anos de estudos, ele se interessou pelas ciências do Direito, embora
tenha estudado com grande entusiasmo as ciências naturais. Após ter perdido
seu primeiro processo na área do Direito, voltou-se inteiramente para o estudo
da teologia.
215
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4c/Nicholas_of_Cusa.jpg>.
Acesso em: 30 abr. 2019.
Este método filosófico pode funcionar para as coisas finitas que podem
ser de fácil ou difícil entendimento, pois “quando se indaga no âmbito das coisas
finitas, o juízo cognoscitivo é fácil ou difícil (quando se trata de coisas complexas),
216
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA
mas de qualquer modo é possível” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 34). Isso porque
se alguma coisa finita é de difícil compreensão, logo, é possível conhecê-la, ainda
que não no presente, mas no futuro.
Para Nicolau, a mente humana é finita. Tal finitude acaba por ignorar o
conhecimento do infinito. A douta ignorância é nada mais nada menos que o
reconhecimento dessa incapacidade humana para conhecer o infinito.
Isso implica dizer que acima dos sentidos há dois graus do saber: a razão e
o intelecto. A razão, que é discursiva, abstrai das noções particulares os conceitos
universais e forma os juízos e raciocínios, pois seu caráter discursivo consiste em
percorrer um trajeto de estudo até chegar a um objeto, juízo desejado.
217
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
Por fim, ele compreende que Deus é ratio essendi (razão de ser) e ratio
cognoscendi (razão de saber) de toda a realidade. Isso significa que qualquer
investigação filosófica tem, por horizonte, Deus. Deste modo não existe pergunta
ou ente que não suponha necessariamente a Deus como princípio.
NOTA
218
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA
NOTA
Por esta razão, o entendimento finito não pode atingir a verdade precisa das coisas
mediante a semelhança. Indivisível por natureza, a verdade exclui o mais e o menos, de tal
forma que nada senão a própria verdade pode ser a medida da verdade, assim como o círculo
não pode ser medido senão pelo próprio círculo, por serem sua natureza uno e indivisível.
Por isso o entendimento, que não é a verdade, jamais compreende a verdade com tanta
precisão, que ela não pudesse ser compreendida com uma precisão infinitamente maior. O
entendimento está para com a verdade como o polígono está para o círculo: quanto maior
for o número de ângulos inscritos no polígono, tanto mais semelhante ele será ao círculo;
nunca, porém, chegará a ser igual a ele, mesmo que se multiplicassem os ângulos ao infinito
- a não ser que coincida com o círculo.
É evidente, pois, que tudo o que sabemos sobre a verdade tomada precisamente
como tal, é que ela nos é incompreensível, visto que a verdade, que não pode ser nem mais
nem menos do que é, é a mais absoluta necessidade, ao passo que o nosso intelecto, em
contraste, é possibilidade. De forma que a quididade das coisas, que é a verdade ontológica,
é inatingível em sua pureza e, embora investigada por todos os filósofos, não foi encontrada
por nenhum deles em sua verdadeira realidade. Quanto mais profundamente nos instruirmos
nesta lição da ignorância, tanto mais nos aproximaremos da própria verdade.
FONTE: De docta ignorantia, Lib. I, cap. 3, ed. Hoffmann-Klibansky, p. 8s. In: BOEHNER, P.;
GILSON, E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. 13. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2012, p. 567-568.
219
RESUMO DO TÓPICO 3
220
AUTOATIVIDADE
221
4 O Renascimento consistiu em um importante movimento de ordem artística,
cultural e científica, que se deflagrou na passagem da Idade Média para a
Moderna. Sobre a filosofia deste período é correto afirmar que:
222
REFERÊNCIAS
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