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História do Pensamento

Filosófico Antigo e
Medieval
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto

Indaial – 2023
2a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2023

Elaboração:
Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser
Prof. Gesiel Anacleto

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

L685h

Leyser, Kevin Daniel dos Santos

História do Pensamento Filosófico Antigo e Medieval. / Kevin Daniel dos


Santos Leyser; Gesiel Anacleto. – Indaial: UNIASSELVI, 2023.

232 p.; il.


ISBN

1. Filosofia - História. – Brasil. I. Anacleto, Gesiel. II. Centro Universitário


Leonardo Da Vinci.

CDD 109

Impresso por:
Apresentação
Caro acadêmico, antes de apresentarmos o conteúdo deste livro
gostaríamos de nos apresentar a vocês.

O autor Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser possui graduação em


Psicologia com Licenciatura Plena, Bacharelado e formação pela Universidade
Comunitária Regional de Chapecó (2005), em Filosofia com Licenciatura Plena
pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó (2004), em Teologia
com Bacharelado pela Faculdade de Educação Teológica Logos (2002). É
especialista em Psicopedagogia e Práticas Pedagógicas, e Gestão Escolar pela
Faculdade de Administração, Ciências, Educação, Letras (2007) e especialista
em Educação a Distância: Gestão e Tutoria pelo Centro Universitário
Leonardo da Vinci (2018). Mestre em Educação pela Universidade Regional
de Blumenau – FURB (2011). É doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Educação na FURB. Trabalha como docente no Ensino Superior desde
2006, é professor no Centro Universitário Leonardo da Vinci/UNIASSELVI
em Indaial (SC). Faz parte do grupo de pesquisa em Filosofia da Educação
(EDUCOGITANS). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em
Epistemologia, Pragmatismo e Educação; na área de Psicologia, com ênfase
em Psicoterapias Fenomenológico-existenciais, Processos Cognitivos,
Aprendizagem Socioemocional e Educação; na área e Teologia, com ênfase
em Filosofia, Psicologia e Epistemologia da Religião. Produziu materiais
didáticos e instrucionais em EAD, para os cursos de Filosofia, Teologia,
Pedagogia e Educação Especial. Atualmente vem desenvolvendo pesquisas
em nível de doutorado no campo da Epistemologia da Educação, voltado
para questões do pós-humanismo e educação ambiental.

O autor Prof. Gesiel Anacleto possui graduação de Licenciatura em


História pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2009) e Bacharelado
em Teologia pela Faculdade de Teologia de Boa Vista (2006). Especialização
em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia – UNIASSELVI (2011).
Especialização em Educação a Distância: Gestão e Tutoria – UNIASSELVI
(2013). Mestrado em Teologia pelo Seminário Teológico Bíblico Evangélico
(2015). Mestrado em Filosofia – UFSC (2019). Doutorando do Programa de
Pós-graduação em Filosofia da UFSC. Lecionou no Ensino Fundamental
e Médio por sete anos. Atua no Ensino Superior em curso de graduação e
pós-graduação desde 2011. Produziu materiais didáticos e instrucionais
em EAD, para os cursos de Filosofia, Sociologia e Teologia. Atualmente
vem desenvolvendo pesquisas em nível de doutorado no campo da Ética e
Bioética, voltada para as questões éticas de eugenia e melhoramento humano.

O presente livro didático tem como objetivo sistematizar os


elementos básicos da disciplina de História do Pensamento Filosófico Antigo
e Medieval, para introduzir de forma contextualizada, crítica e sistemática,
III
as origens gregas do pensamento filosófico e o pensamento latino, sua
constituição e principais posturas representativas, além de ocupar-se de seu
desenvolvimento e afirmação como saber na cultura ocidental.

Na Unidade 1, Introdução Geral à História da Filosofia, introduzimos


a Filosofia Grega Antiga, focando especialmente nos pré-socráticos.
Avançamos com a filosofia de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, ressaltando
aspectos centrais de suas obras, situando-as em seus contextos históricos e
biográficos.

Na Unidade 2, A Filosofia no Mundo Helenístico e Romano,


introduzimos a filosofia helenística e romana, perpassando diversas escolas
filosóficas como o Estoicismo, o Epicurismo, o Ceticismo, o Pitagorismo e
o Neoplatonismo. Prosseguimos para a filosofia judaica e a filosofia cristã,
primeiramente focando na vida, pensamento e obra de Fílon e Santo Ambrósio
e, posteriormente, na vida, pensamento e obra de Santo Agostinho e Boécio.

A terceira unidade deste livro didático concentra-se na Filosofia


Escolástica. Aqui são introduzidas e contextualizadas as contribuições de
pensadores como Anselmo, Abelardo, Avicena, Averróis, Maimônides,
Tomás de Aquino, Boaventura, Guilherme de Ockham, Nicolau de Cusa e
Eckhart.

Desejamos uma boa jornada a todos, rumo à edificação da educação


e sucesso frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados
pelo estudo da História do Pensamento Filosófico Antigo e Medieval.

Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser e Prof. Gesiel Anacleto

IV
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA.................................... 1

TÓPICO 1 – FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS........................................ 3


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 3
2 PANORAMA GERAL DA FILOSOFIA ANTIGA......................................................................... 3
3 COSMOLOGIA, METAFÍSICA E EPISTEMOLOGIA................................................................. 9
4 SER E TORNAR-SE (VIR A SER)..................................................................................................... 12
5 APARÊNCIA E REALIDADE............................................................................................................ 13
6 PITÁGORAS E PITAGORISMO...................................................................................................... 14
7 CETICISMO E RELATIVISMO: OS SOFISTAS........................................................................... 15
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 18
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 20

TÓPICO 2 – A FILOSOFIA DE SÓCRATES..................................................................................... 21


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 21
2 A VIDA E A PERSONALIDADE DE SÓCRATES ....................................................................... 21
3 POR QUE SÓCRATES ERA ODIADO?.......................................................................................... 25
3.1 A IMPRESSÃO CRIADA POR ARISTÓFANES......................................................................... 25
3.2 A RESISTÊNCIA HUMANA À AUTORREFLEXÃO................................................................ 27
3.3 CRÍTICA DE SÓCRATES SOBRE A DEMOCRACIA................................................................ 31
4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE SÓCRATES........................ 32
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 36
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 42
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 44

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA DE PLATÃO........................................................................................... 45


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 45
2 A VIDA DE PLATÃO.......................................................................................................................... 45
3 A FORMA DE DIÁLOGO ................................................................................................................. 47
4 FELICIDADE E VIRTUDE................................................................................................................. 48
5 A TEORIA DAS FORMAS................................................................................................................. 51
5.1 CONTEXTO LINGUÍSTICO E FILOSÓFICO............................................................................. 51
5.2 FORMAS COMO EXEMPLARES PERFEITOS........................................................................... 53
5.3 FORMAS COMO GÊNEROS E ESPÉCIES.................................................................................. 54
6 OS DIÁLOGOS DE PLATÃO........................................................................................................... 55
6.1 DIÁLOGOS SOCRÁTICOS........................................................................................................... 56
6.2 DIÁLOGOS INTERMEDIÁRIOS.................................................................................................. 58
6.3 DIÁLOGOS TARDIOS................................................................................................................... 60
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 63
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 65

TÓPICO 4 – A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES............................................................................... 67


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 67
2 A VIDA DE ARISTÓTELES.............................................................................................................. 67

VII
3 AS VIAGENS DE ARISTÓTELES.................................................................................................... 68
4 ARISTÓTELES E O LICEU................................................................................................................ 70
5 A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES................................................................................................... 71
5.1 A LÓGICA E A SILOGÍSTICA...................................................................................................... 71
5.2 AS PROPOSIÇÕES E AS CATEGORIAS..................................................................................... 73
5.3 A FÍSICA E A METAFÍSICA.......................................................................................................... 75
5.4 O ESPAÇO....................................................................................................................................... 76
5.5 O CONTINUUM............................................................................................................................. 76
5.6 O MOVIMENTO............................................................................................................................. 77
5.7 O TEMPO......................................................................................................................................... 77
5.8 A MATÉRIA..................................................................................................................................... 78
5.9 A FORMA........................................................................................................................................ 79
5.10 A CAUSALIDADE........................................................................................................................ 80
5.11 O SER.............................................................................................................................................. 80
5.12 O MOTOR IMÓVEL..................................................................................................................... 81
5.13 FILOSOFIA DA MENTE.............................................................................................................. 82
5.14 ÉTICA............................................................................................................................................. 84
5.15 FELICIDADE................................................................................................................................. 85
5.16 VIRTUDE....................................................................................................................................... 86
5.17 AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO...................................................................................................... 87
5.18 TEORIA POLÍTICA...................................................................................................................... 88
5.19 A RETÓRICA E A POÉTICA....................................................................................................... 89
RESUMO DO TÓPICO 4...................................................................................................................... 91
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 94

UNIDADE 2 – A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO................................ 95

TÓPICO 1 – A FILOSOFIA HELENÍSITICA E ROMANA............................................................ 97


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 97
2 ESTOICISMO....................................................................................................................................... 97
2.1 A NATUREZA E O ALCANCE DO ESTOICISMO................................................................... 97
2.2 O ESTOICISMO GREGO ANTIGO.............................................................................................. 98
2.3 ESTOICISMO ROMANO POSTERIOR....................................................................................... 101
3 EPICURISMO....................................................................................................................................... 103
3.1 A NATUREZA DO EPICURISMO............................................................................................... 104
3.2 AS OBRAS E A DOUTRINA DE EPICURO................................................................................ 104
4 CETICISMO.......................................................................................................................................... 108
5 PITAGORISMO E NEOPITAGORISMO....................................................................................... 110
6 NEOPLATONISMO ........................................................................................................................... 112
6.1 PLOTINO E SUA FILOSOFIA...................................................................................................... 113
6.2 OS NEOPLATÔNICOS POSTERIORES...................................................................................... 117
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 121
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 125

TÓPICO 2 – FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ:


FÍLON E SANTO AMBRÓSIO..................................................................................... 127
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 127
2 FÍLON DE ALEXANDRIA................................................................................................................. 129
2.1 VIDA E ANTECEDENTES............................................................................................................ 129
2.2 OBRAS.............................................................................................................................................. 131
2.3 A ORIGINALIDADE DE SEU PENSAMENTO......................................................................... 132
3 SANTO AMBRÓSIO.......................................................................................................................... 134

VIII
3.1 INÍCIO DE CARREIRA DE SANTO AMBRÓSIO..................................................................... 135
3.2 REALIZAÇÕES ADMINISTRATIVAS ECLESIÁSTICAS......................................................... 135
3.3 REALIZAÇÕES LITERÁRIAS E MUSICAIS.............................................................................. 136
3.4 AVALIAÇÕES E INTERPRETAÇÕES.......................................................................................... 137
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 138
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 140

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO............................................. 141


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 141
2 SANTO AGOSTINHO....................................................................................................................... 141
2.1 A VIDA DE SANTO AGOSTINHO............................................................................................. 142
2.2 PRINCIPAIS OBRAS DE AGOSTINHO...................................................................................... 145
2.2.1 As Confissões.......................................................................................................................... 145
2.2.2 A Cidade de Deus.................................................................................................................. 147
2.2.3 As Retratações........................................................................................................................ 148
2.3 ESPÍRITO E REALIZAÇÃO DE AGOSTINHO.......................................................................... 149
3 ANÍCIO MÂNLIO TORQUATO SEVERINO BOÉCIO.............................................................. 150
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 154
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 161
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 164

UNIDADE 3 – A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA................................................................................. 165

TÓPICO 1 – PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS,


MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA.................................... 167
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 167
2 ANSELMO: O PAI DA ESCOLÁSTICA.......................................................................................... 167
2.1 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO.................................................................... 169
3 ABELARDO: O LÓGICO................................................................................................................... 171
4 AVICENA E O ARISTOTELISMO................................................................................................... 173
5 AVERRÓIS............................................................................................................................................ 175
6 MAIMÔNIDES.................................................................................................................................... 176
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO............................................................................................................... 178
7.1 TOMÁS DE AQUINO E A TEORIA DO CONHECIMENTO.................................................. 180
7.2 AS CINCO VIAS QUE LEVAM A DEUS..................................................................................... 181
8 BOAVENTURA.................................................................................................................................... 184
LEITURA COMPLEMENTAR.............................................................................................................. 187
RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 191
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 193

TÓPICO 2 – DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM


E NICOLAU DE CUSA................................................................................................... 195
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 195
2 DUNS ESCOTO................................................................................................................................... 195
3 MESTRE ECKHART: O MÍSTICO................................................................................................... 198
4 GUILHERME DE OCKHAM............................................................................................................. 202
RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 207
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 208

IX
TÓPICO 3 – PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA
DE NICOLAU DE CUSA................................................................................................ 211
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 211
2 O PENSAMENTO MEDIEVAL......................................................................................................... 212
3 O HUMANISMO E O RENASCIMENTO...................................................................................... 213
4 NICOLAU DE CUSA ......................................................................................................................... 215
RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 220
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................ 221

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 223

X
UNIDADE 1

INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA


FILOSOFIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir dos estudos desta unidade, você deverá ser capaz de:

• apresentar um panorama geral da Filosofia Antiga, os pré-socráticos e os


sofistas;

• introduzir a vida e a filosofia de Sócrates;

• compreender a filosofia de Patão, suas obras, conceitos e teorias;

• compreender a filosofia de Aristóteles, suas obras, conceitos e teorias.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

TÓPICO 2 – A FILOSOFIA DE SÓCRATES

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA DE PLATÃO

TÓPICO 4 – A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-


SOCRÁTICOS

1 INTRODUÇÃO
A filosofia ocidental surgiu na Grécia Antiga (que incluía Mileto e outras
partes da atual Turquia) aproximadamente no século VI a.E.C. (antes da Era
Comum). Durante esse tempo, o temor religioso entre os gregos foi ofuscado
pela maravilha sobre a origem e a natureza do mundo físico. À medida que as
populações gregas deixavam cada vez mais a terra para se concentrarem nas
cidades-estados, o interesse passou da natureza para a vida social.

As questões de lei e convenção e valores cívicos tornaram-se primordiais


e a especulação cosmológica deu lugar a teorizações morais e políticas, melhor
exemplificadas nas filosofias éticas um tanto fragmentárias de Sócrates (470-399
a.E.C.) e os sofistas (professores itinerantes) e nos grandes sistemas filosóficos
positivos de Platão (c. 428-348 a.E.C.) e Aristóteles (384-322 a.E.C.). Por não terem
sido influenciados por Sócrates, os cosmólogos dos séculos VI e V junto aos
sofistas são frequentemente chamados de filósofos "pré-socráticos", embora nem
todos vivessem antes de Sócrates.

Neste tópico, primeiro faremos um panorama geral da Filosofia Antiga.


Depois, vamos explorar o pensamento e o contexto histórico da filosofia grega
antiga a partir dos chamados pré-socráticos.

2 PANORAMA GERAL DA FILOSOFIA ANTIGA


Há mais de 2.500 anos, no início do século VI a.E.C, alguns habitantes
da cidade grega de Mileto (na costa oeste do que hoje é a Turquia) começaram a
pensar sobre o mundo de uma nova maneira. Como muitas pessoas antes deles,
eles se perguntaram como o mundo foi criado, de que ele é feito e por que ele
muda (ou parece mudar) da forma como o faz. Ao contrário de seus antecessores,
no entanto, os milésios tentaram responder a essas perguntas em termos
naturais e não religiosos. Eles apelaram para o que achavam que eram causas e
princípios no mundo em si, e não para os atos de deuses ou outros seres divinos.
É importante enfatizar que eles acreditavam que a maneira correta de entender
o mundo era através da razão e da observação. Por especularem sobre questões
profundamente importantes de maneira racional e sistemática, os milésios são
reconhecidos como os primeiros filósofos ocidentais.

3
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

NOTA

Milésios eram chamadas as pessoas em Mileto. “A filosofia teve por berço a


cidade-Estado de Mileto, situada na região sul da Jônia. Embora integrasse a Grécia, Mileto
não possuía vínculo político com Atenas” (SILVA, 2008, p. 33).

Durante o século VI a.E.C, os gregos também se tornaram os primeiros a


praticar ciência e matemática no sentido moderno desses termos. Em meados do
século III a.E.C., os gregos haviam produzido um sistema acabado de raciocínio
geométrico (o de Euclides) que não seria alterado significativamente por mais
de 2.000 anos. No final do século IV, eles formularam quase todos os problemas
básicos, conceitos, métodos e vocabulário da filosofia ocidental subsequente.

Até o final do século III E.C., outros filósofos do mundo grego produziam
teorias sofisticadas e originais em ética, epistemologia (o estudo do conhecimento),
metafísica (o estudo da natureza última da realidade) e lógica. A partir do primeiro
século E.C., pensadores judeus e, depois, cristãos, adotaram aspectos do sistema
metafísico do filósofo grego Platão (428-348 a.E.C) para ajudá-los a defender e
esclarecer as doutrinas de suas crenças.

O que é chamado de período antigo na história da filosofia ocidental é


tradicionalmente dividido em quatro períodos ou fases: o pré-socrático, que se
estende desde o início do século VI até meados do século IV a.E.C.; o clássico,
até o final do século II a.E.C.; o helenístico, até o final do primeiro século a.E.C.;
e o romano ou imperial, que foi até o início do século VI E.C., terminando com a
queda do Império Romano do Ocidente.

O termo "pré-socrático" refere-se a filósofos que não foram influenciados


por Sócrates (470-399 a.E.C.), na maioria dos casos porque eles viviam antes
dele. Infelizmente, nenhum trabalho de qualquer filósofo pré-socrático
sobreviveu; o que se conhece de seus ensinamentos consiste em várias referências
(principalmente críticas) em obras de filósofos posteriores, especialmente Platão
e Aristóteles.

4
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

FIGURA 1 – LOCALIZAÇÃO DOS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS NA GRÉCIA ANTIGA

Parmênides
(530-460 a.C.)
Mar Negro

Zenão
(490-430 a.C.) Pitágoras
(571-496 a.C.)

Heráclito
(625-556 a.C.)

Tales
(625-556 a.C.)

Demócrito
(460-370 a.C.)
Anaximandro
(610-547 a.C.)
Empédocles
(571-496 a.C.) Anaxímenes
Mar Mediterrâneo (588-524 a.C.)

FONTE: <https://www.coladaweb.com/filosofia/filosofos-pre-socraticos>.
Acesso em: 17 maio 2019.

Os milésios, como vimos, foram os primeiros a especular racionalmente


sobre a origem e a natureza do mundo; por essa razão, eles e outros como eles
são chamados de “cosmólogos”. O primeiro dos milésios, Tales, sustentava que
tudo é água, com o que ele quis dizer que as diferentes substâncias das quais o
mundo parece ser composto são derivadas da água. Os outros dois membros da
“Escola de Mileto”, Anaximandro (610-547 a.E.C.) e Anaxímenes (nascimento, c.
588 a.E.C.), junto a cosmólogos posteriores de outras cidades gregas, propuseram
vários números e variedades de substâncias primordiais e vários processos pelos
quais elas eram transformadas umas nas outras.

Anaximandro também foi notável por promover uma teoria da evolução


dos seres vivos, os humanos e todos os outros animais, ele afirmava que evoluíram
dos peixes. Heráclito de Éfeso afirmou que a substância básica é o fogo e o processo
básico era o “conflito”. A aparente unidade e permanência das coisas no mundo
são o resultado do constante conflito de opostos. Assim, tudo está em um estado de
fluxo ou mudança constante, uma visão que ele expressou famosamente dizendo:
“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. Não é possível
entrar duas vezes no mesmo rio” (HERÁCLITO, 2002, p. 205).

Parmênides, que nasceu na cidade grega de Eléia, no sul da Itália, entre 515
e 530 a.E.C., argumentou ao contrário, que nada muda e a aparente multiplicidade
de coisas no mundo é uma ilusão, pois o ser é uno, uma totalidade absoluta. Seu
discípulo Zenão de Eléia (490-430 a.E.C.) é famoso por inventar uma série de
paradoxos bastante sofisticados (aparentemente argumentos válidos que levam
a conclusões absurdas) destinados a mostrar que toda multiplicidade e mudança
são impossíveis; alguns desses argumentos não foram definitivamente refutados
até o século XX.

5
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

O filósofo e místico Pitágoras (571-496 a.E.C.), tradicionalmente


considerado o primeiro grande matemático da história, propôs que todas as
coisas são números ou que “todas as coisas que são conhecidas têm número”
(KAHN, 2007, p. 46). Parece que ele queria significar que a estrutura de cada
coisa e da natureza como um todo consiste em certas razões numéricas, assim
como uma harmonia musical específica é uma razão entre os comprimentos dos
instrumentos físicos (por exemplo, cordas ou tubos) usados ​​para produzi-la.
Pitágoras é conhecido por todos os estudantes de geometria como o descobridor
do teorema de Pitágoras, que afirma que em qualquer triângulo retângulo, o
quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos
comprimentos dos catetos (a2 + b2 = c2). Ele também fez uma série de afirmações
filosóficas e religiosas (ou místicas) que seriam influentes entre os filósofos
dos períodos Clássico e Helenístico. Por exemplo, ele sustentou que a alma
humana é imortal e reencarna em diferentes seres vivos, às vezes humanos e às
vezes animais (foi por essa razão que Pitágoras e seus seguidores praticaram o
vegetarianismo). O termo pitagorismo refere-se tanto às doutrinas do próprio
Pitágoras quanto à escola de pensamento que ele fundou. A escola pitagórica, na
forma do neopitagorismo, foi influente no período Helenístico da filosofia antiga.

Os filósofos pré-socráticos também incluíam um grupo de pensadores cujas


principais preocupações não eram cosmológicas, mas éticas e políticas. Os sofistas,
que estavam ativos no século V a.E.C., eram eruditos itinerantes que ensinavam
retórica (a arte do argumento/falar bem), especialmente a retórica forense, por
dinheiro. Como o ponto comum de sua instrução não era o conhecimento ou
a verdade, mas a vitória no tribunal, eles tendiam a desconsiderar as noções
de certeza, verdade objetiva e certo ou errado absolutos. Eles foram totalmente
desprezados por Platão, que fez grandes esforços em alguns de seus diálogos
para refutar seu ceticismo e relativismo.

O período Clássico da filosofia antiga é dominado por três figuras dos


séculos V e IV a.E.C., todas cidadãs de Atenas: Sócrates, Platão e Aristóteles.
Sócrates se preocupou inteiramente com a ética, o que ele chamou de “cuidado da
alma”. Em parte, porque ele estava associado a alguns homens que conspiraram
para derrubar a democracia em Atenas em 404 a.E.C., ele foi levado a julgamento
sob acusações de impiedade e de corromper os jovens, sendo executado em 399
a.E.C. Sua recusa em salvar-se ao concordar em cessar seu filosofar fez dele um
modelo de integridade intelectual e moral para eras posteriores.

Sócrates é uma figura enigmática porque o que se conhece de seus


ensinamentos vem quase inteiramente dos diálogos de seu aluno Platão (o próprio
Sócrates nada escreveu). Em alguns desses trabalhos, um personagem chamado
Sócrates refuta aqueles que fingem ter conhecimento das virtudes éticas (por
exemplo, coragem), e em outros ele faz isso enquanto apresenta certas doutrinas
éticas, políticas e metafísicas próprias – doutrinas que o verdadeiro e histórico
Sócrates pode ou não ter sustentado. É agora geralmente aceito, no entanto, que
Platão, e não Sócrates, é o responsável pela teoria das propriedades ideais ou teoria
das ideias ou "formas" (como o Belo), em que essas ideias existem separadamente

6
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

das coisas, do mundo material, que é derivado ou explicado pelas ideias. Platão
também é responsável pela teoria da justiça como uma harmonia entre as
diferentes partes da alma e pelo projeto apresentado no diálogo A República, para
uma cidade-estado utópica governada por “filósofos-reis” (PLATÃO, 2001).

O melhor aluno de Platão, Aristóteles, fez contribuições fundamentais


para todos os ramos da filosofia, bem como para o que agora seria chamado de
anatomia, biologia, fisiologia, psicologia, ciência política e poética. A disciplina
da lógica foi sua criação. Ele fez modificações importantes na teoria das formas
de Platão, sustentando que as formas não existem separadas das coisas que as
possuem. Sua noção da “causa final” de uma coisa como o propósito a que ela
serve ou a meta para a qual ela busca, se tornou a base do chamado argumento
“teleológico” (do grego telos: “fim”) para a existência de Deus, que apareceu
em várias formas, desde a antiguidade tardia até os dias atuais (a teoria
contemporânea do Design Inteligente é um argumento teleológico). Na ética,
Aristóteles é conhecido por suas análises sutis e perspicazes das virtudes e vícios
e por sua teoria do florescimento humano "felicidade" como a prática da virtude
intelectual e moral.

Após a morte de Alexandre, o Grande, que como rei da Macedônia


(336-323 a.E.C.) conquistou todo o Mediterrâneo Oriental e o Oriente Médio,
seus territórios foram divididos por seus ex-generais em reinos hereditários. A
cidade-estado grega estava morta há muito tempo e, com ela, a possibilidade de
participação significativa nos assuntos públicos pelos cidadãos comuns. A filosofia
se voltou para dentro, enfatizando a conquista da tranquilidade individual, do
contentamento ou da salvação em um mundo caótico.

A Escola Filosófica do Estoicismo, fundada por Zenão de Cítio (335-263


a.E.C.), levou a sério a convicção de Sócrates de que a única coisa que vale a pena
ter é a virtude; todos os outros supostos bens (por exemplo, saúde e riqueza) não
têm sentido. Os estoicos também seguiram Sócrates ao sustentar que a virtude
é uma forma de conhecimento, no sentido de que uma pessoa que entende as
virtudes automaticamente agirá de maneira virtuosa (ação moralmente errada,
em outras palavras, é o resultado de um mal-entendido sobre o que é realmente
bom ou certo). O bem maior para o indivíduo é cultivar a sabedoria ética e agir de
acordo com a razão divina, ou Logos (grego: “palavra”), que governa o universo.
A filosofia estoica, assim, permitiu que seus praticantes conseguissem repouso
e tranquilidade diante dos inevitáveis ​​infortúnios e tragédias da vida. Formas
posteriores de estoicismo, que enfatizavam o dever ético do serviço público,
exerciam uma profunda influência sobre muitos eminentes eruditos e estadistas
romanos, incluindo Cícero (106-43 a.E.C.), Sêneca (4 a.E.C.-65 E.C.) e o imperador
Marco Aurélio (121-180 E.C.).

Em contraste com o estoicismo, a Escola de Filosofia Epicurista, fundada


por Epicuro de Samos (341-270 E.C.), ensinava que o único bem para os seres
humanos é o prazer e o único mal a dor. No entanto, não foi um simples hedonismo
(a busca do prazer por si mesmo), porque defendia a ação virtuosa e a evitação

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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

de desejos inatingíveis, que só trazem frustração. O epicurismo promoveu uma


vida de retiro tranquilo e prazer simples, mas sublime, cuja forma mais elevada
é a amizade.

Durante o período Helenístico, o ceticismo filosófico dos sofistas e outros


pré-socráticos foi desenvolvido de maneira sofisticada por Pirro de Élis (360-272
E.C.) e seus seguidores. Embora houvesse muitas variações, a doutrina básica
do ceticismo pirrônico era que nada pode ser conhecido com certeza, porque há
sempre, igualmente, boas razões para acreditar ou negar qualquer afirmação
positiva. O ceticismo pirrônico foi uma corrente importante na filosofia durante
o Iluminismo do século XVIII, e de uma forma ou de outra ainda é uma posição
viável na epistemologia contemporânea.

Durante o período Romano, que começou com a queda da República


Romana em 31 a.E.C., a filosofia continuou sendo em grande parte um
empreendimento grego – os romanos não fizeram contribuições originais para
a filosofia. O estoicismo, por causa de sua adoção por membros da elite romana,
foi a escola mais influente do período, embora outras escolas helenísticas
continuassem a atrair seguidores. No segundo e especialmente no terceiro séculos
E.C., a filosofia de Platão foi revivida e transformada através da introdução de
vários elementos religiosos e místicos, principalmente no Neoplatonismo de
Plotino (205-270).

O desenvolvimento mais significativo do período Romano, no entanto, foi


a integração da teologia cristã com a filosofia neoplatônica, realizada por vários
bispos cristãos e outros professores a partir do final do século II. O mais original
e sofisticado desses esforços foi o do bispo Santo Agostinho, do século V. Sua
distinção entre o sensível e o inteligível (entre o que pode ser conhecido através dos
sentidos e o que pode ser conhecido apenas pela mente), sua concepção de Deus
e o reino inteligível como existindo fora do espaço e do tempo, sua compreensão
da natureza da alma, sua análise do conhecimento e seu tratamento do problema
do livre-arbítrio guiaram a discussão filosófica desses tópicos durante a Idade
Média até o século XIII, quando a filosofia de Aristóteles eclipsou a de Platão nas
universidades medievais.

Por ter sido inventada pelos antigos gregos e por ainda refletir antigas
influências gregas, é impossível entender a filosofia ocidental sem uma apreciação
de sua história antiga. Os personagens que você encontrará neste livro, alguns
dos maiores gênios que já viveram, merecem atenção especial, não apenas de
estudantes de filosofia, mas também de qualquer um que deseja entender a
cosmovisão intelectual do Ocidente – como todas as pessoas no Ocidente veem o
universo, o divino e eles mesmos.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

3 COSMOLOGIA, METAFÍSICA E EPISTEMOLOGIA


Os primeiros cosmólogos gregos eram monistas, sustentando que o
universo é derivado de, ou composto de apenas uma única substância. Pensadores
posteriores adotaram teorias pluralistas, segundo as quais várias substâncias
últimas estão envolvidas.

Há um consenso que remonta, pelo menos a Aristóteles, e continua até


o presente, de que o primeiro filósofo grego foi Tales de Mileto, que nasceu no
século VI a.E.C. No tempo de Tales, a palavra “filósofo” (amante da sabedoria)
ainda não havia sido inventada. Tales foi contado, no entanto, entre os lendários
Sete Homens Sábios (Sophoi), cujo nome deriva de um termo que designava
inventividade e sabedoria prática, em vez de insight especulativo.

Tales demonstrou essas qualidades tentando dar ao conhecimento


matemático que ele derivou dos babilônios uma base mais exata e usando-o para
a solução de problemas práticos – como a determinação da distância de um navio
como visto da costa ou da altura das pirâmides egípcias. Embora ele também fosse
creditado com a previsão de um eclipse do Sol, é provável que ele simplesmente
forneceu uma explicação natural de um com base no conhecimento astronômico
babilônico.

Tales é considerado o primeiro filósofo grego, porque foi o primeiro a dar


uma explicação puramente natural da origem do mundo, livre de ingredientes
mitológicos. Ele sustentava que tudo veio da água – uma explicação baseada na
descoberta de fósseis de animais marinhos no interior do país. Sua tendência (e
de seus sucessores imediatos) de dar explicações não mitológicas foi, sem dúvida,
motivada pelo fato de que todos viviam na costa da Anatólia (na atual Turquia),
cercados por um número de nações cujas civilizações estavam muito mais
avançadas que a dos gregos e cujas próprias explicações mitológicas variavam
grandemente. Parecia necessário, portanto, fazer um novo começo com base no
que uma pessoa poderia observar e inferir, olhando para o mundo tal como se
apresentava. Esse procedimento naturalmente resultou em uma tendência a fazer
generalizações abrangentes com base em observações bastante restritas, embora
cuidadosamente verificadas.

O discípulo e sucessor de Tales, Anaximandro (610-546 a.E.C.), tentou
dar uma explicação mais elaborada da origem e do desenvolvimento do mundo
ordenado (o cosmos). Segundo ele, desenvolveu-se a partir do apeiron (“ilimitado”),
algo infinito e indefinido (sem qualidades distinguíveis). Dentro desse apeiron,
algo surgiu para produzir os opostos de quente e frio. Estes imediatamente
começaram a lutar uns com os outros e produziram o cosmos. O frio (e molhado)
secou parcialmente para se tornar terra sólida, em parte permaneceu como água e
– por meio do quente – parcialmente evaporado, tornando-se ar e névoa, sua parte
evaporadora (por expansão) dividindo o calor em anéis de fogo que cercam todo
o cosmos. Entretanto, como esses anéis estão envoltos em neblina, restam apenas
certos orifícios respiratórios que são visíveis aos seres humanos, aparecendo para
eles como o Sol, a Lua e as Estrelas.
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UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Anaximandro foi o primeiro a perceber que para cima e para baixo não
são absolutos, mas que para baixo significa em direção ao meio da Terra e para
cima significa o distanciamento do meio dela, assim a Terra não tem necessidade
de ser apoiada (como Tales acreditava) por nada. A partir das observações de
Tales, Anaximandro tentou reconstruir o desenvolvimento da vida com mais
detalhes. A vida, intimamente ligada à umidade, originou-se no mar. Todos os
animais terrestres, ele afirmou, são descendentes de animais marinhos. Porque os
primeiros seres humanos, como recém-nascidos, não poderiam ter sobrevivido
sem os pais, Anaximandro acreditava que eles nasceram dentro de um animal de
outro tipo – especificamente, um animal marinho – e que foram alimentados até que
pudessem se virar sozinhos. Gradualmente, porém, a umidade será parcialmente
evaporada, até que no final todas as coisas retornarão ao indiferenciado apeiron,
para pagar a penalidade por sua injustiça – o fato de terem lutado uma contra a
outra.

O sucessor de Anaximandro, Anaxímenes (nasceu em meados do século


VI a.E.C.), ensinou que o ar era a origem de todas as coisas. Sua posição foi por
muito tempo considerada um retrocesso, porque, como Tales, ele colocou um
tipo especial de matéria no começo do desenvolvimento do mundo. Mas essa
crítica errou o alvo. Nem Tales nem Anaximandro parecem ter especificado o
modo pelo qual as outras coisas surgiram da água ou do apeiron. Anaxímenes, no
entanto, declarou que os outros tipos de matéria surgiram do ar por condensação
e rarefação. Dessa forma, o que para Tales havia sido apenas um começo tornou-
se um princípio fundamental que permaneceu essencialmente o mesmo em
todas as suas transmutações. Assim, o termo arche, que originalmente significava
simplesmente "começo", adquiriu o novo significado de "princípio", um termo
que desde então desempenhou um enorme papel na filosofia até o presente.
Este conceito de um princípio que permanece o mesmo através de muitas
transmutações é, além disso, a pressuposição da ideia de que nada pode surgir
do nada e que todas as idas e vindas que os seres humanos observam não são
nada além de transmutações de algo que essencialmente permanece o mesmo
eternamente. Desta forma, também está no fundo de todas as leis de conservação
– as leis da conservação da matéria, força e energia – que têm sido fundamentais
no desenvolvimento da física. Embora Anaxímenes não tenha percebido todas as
implicações de sua ideia, sua importância dificilmente pode ser exagerada.

Os três primeiros filósofos gregos foram chamados de “hilozoístas”,


porque pareciam acreditar em uma espécie de matéria viva. Mas isso está longe
de ser uma caracterização adequada. É, ao contrário, característico deles não
distinguir claramente entre tipos de matéria, forças e qualidades, nem entre
qualidades físicas e emocionais. A mesma entidade é às vezes chamada de "fogo"
e às vezes "quente". O calor aparece às vezes como uma força e às vezes como
uma qualidade e, novamente, não há distinção clara entre quente e frio como
qualidades físicas e o calor do amor e do frio de ódio. Essas ambiguidades são
importantes para a compreensão de certos desenvolvimentos posteriores da
filosofia grega.

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TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

NOTA

Hilozoísmo: vem do grego hyle, matéria, e zoe, vida. Esse rótulo é uma das
formas mais simples e ao mesmo tempo mais antigas de materialismo e monismo. Foi
a doutrina da escola jônica na Grécia (séculos VII-VI a.E.C.), razão pela qual os filósofos
jônicos são chamados de hilozoístas. Mais tarde, os estoicos consideraram o universo como
uma realidade viva. Consiste no hilozoísmo, em afirmar que a matéria inerte é capaz de
sensibilidade tal como os seres vivos, sendo dotados, como estes, de um princípio ativo.

Xenófanes de Cólofon (560-478 a.E.C.), um pensador filosófico e rapsodo


(recitador da poesia) que emigrou da Anatólia para a cidade grega de Eléia, no
sul da Itália, foi o primeiro a articular mais claramente o que estava implícito na
filosofia de Anaxímenes. Ele criticava as noções populares dos deuses, dizendo
que as pessoas faziam os deuses a sua própria imagem. Mas, mais importante
que isso, ele argumentava que poderia haver apenas um Deus, o governante do
universo, que deve ser eterno. Pois sendo o mais forte de todos os seres, ele não
poderia ter saído de algo menos forte, nem poderia ser superado ou substituído
por alguma outra coisa, porque nada poderia surgir que fosse mais forte que o
mais forte. O argumento repousava claramente nos axiomas de que nada pode
surgir do nada e que nada que exista pode desaparecer.

Esses axiomas foram tornados mais explícitos e levados as suas conclusões


lógicas (e extremas) por Parmênides de Eléia (nascido c. 515 a.E.C.), o fundador
da chamada Escola Eleática, de quem Xenófanes tem sido considerado o mestre e
precursor. Em um poema filosófico, Parmênides insistiu que “o que é” não pode
ter surgido e não pode morrer porque teria que sair do nada ou se tornar nada,
enquanto nada por sua própria natureza não existe. Também não pode haver
movimento, pois teria que ser uma moção para algo que é – o que não é possível,
uma vez que seria bloqueado – ou uma moção para algo que não é – o que é
igualmente impossível, pois o que não é não existe. Portanto, tudo é um ser sólido
e imóvel.

O mundo familiar, no qual as coisas se movem, passam a existir e passam,


é um mundo de mera crença (doxa). Em uma segunda parte do poema, no entanto,
Parmênides tentou dar uma explicação analítica sobre esse mundo da crença,
mostrando que ele se baseava em constantes distinções entre o que se acredita ser
positivo – isto é, ter seres reais, como luz e calor – e o que se acredita ser negativo
– isto é, a ausência de um ser positivo, como a escuridão e o frio.

É significativo que Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.E.C.), cuja filosofia foi
mais tarde considerada o oposto da filosofia do ser imóvel de Parmênides, veio,
em alguns fragmentos de sua obra, perto do que Parmênides tentou mostrar.
Afirmando que o positivo e o negativo são apenas visões diferentes da mesma
coisa; morte e vida, dia e noite, e luz e escuridão são realmente um só.

11
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Vendo o fogo como o material essencial que une todas as coisas, Heráclito
escreveu que o princípio da ordem do mundo, o cosmos, “sempre foi, é e sempre
será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas
apagando-se” (HERÁCLITO, 2002, p. 201). Ele estendeu as manifestações do fogo
para incluir não apenas combustível, chama e fumaça, mas também o éter na alta
atmosfera. Parte desse ar, ou fogo puro, “torna-se” o oceano, presumivelmente
como chuva, e parte do oceano se transforma em terra. Simultaneamente,
massas iguais de terra e mar em todos os lugares estão retornando aos aspectos
respectivos do mar e do fogo. O equilíbrio dinâmico resultante mantém um
equilíbrio ordenado no mundo. Essa persistência de unidade apesar da mudança
é ilustrada pela famosa analogia da vida de Heráclito a um rio, em que “nos
mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. Não é possível
entrar duas vezes no mesmo rio” (HERÁCLITO, 2002, p. 205). Platão mais tarde
adotou essa doutrina para significar que todas as coisas estão em constante fluxo,
independentemente de como elas aparecem para os sentidos.

4 SER E TORNAR-SE (VIR A SER)


Parmênides teve uma enorme influência no desenvolvimento da filosofia.
A maioria dos filósofos das duas gerações seguintes tentou encontrar uma
maneira de reconciliar sua tese de que nada vem à existência nem desaparece
com a evidência apresentada aos sentidos. Empédocles de Agrigento (c. 490-430
a.E.C.) declarou que há quatro elementos materiais (ele os chamou de raízes
de tudo) e duas forças, amor e ódio, que não surgiram e nunca passariam,
aumentariam ou diminuiriam. Mas os elementos são constantemente misturados
entre si pelo amor e novamente separados pelo ódio. Assim, através da mistura
e decomposição, as coisas compostas passam a existir e desaparecem. Como
Empédocles concebeu o amor e o ódio como forças cegas, ele teve que explicar
como, através de movimentos aleatórios, os seres vivos poderiam emergir.
Isso ele fez por meio de uma antecipação bruta da teoria da sobrevivência do
mais forte. No processo de mistura e decomposição, os membros e partes de
vários animais seriam formados por acaso. Mas eles não poderiam sobreviver
sozinhos; só sobreviveriam quando, por acaso, eles se unissem de tal maneira
que pudessem se apoiar e se reproduzir. Foi assim que as várias espécies foram
produzidas e continuaram a existir.

Anaxágoras de Clazómenas (c. 500-428 a.E.C.), um pluralista, acreditava


que como nada poderia realmente vir a ser, tudo deveria estar contido em
tudo, mas na forma de partes infinitamente pequenas. No começo, todas essas
partículas haviam existido em uma mistura homogênea, na qual nada podia
ser distinguido, muito parecido com o apeiron indefinido de Anaximandro. Mas
então o nous, ou inteligência, começou em um ponto a colocar essas partículas em
um movimento giratório, prevendo que, desse modo, elas se separariam umas
das outras e então se recombinariam das mais variadas maneiras, de modo a
produzir, gradualmente, o mundo no qual os seres humanos vivem. Em contraste
com as forças assumidas por Empédocles, o nous de Anaxágoras não é cego, mas

12
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

prevê e pretende a produção do cosmos, incluindo seres vivos e inteligentes;


no entanto, isso não interfere no processo depois de ter iniciado o movimento
giratório. Esta é uma estranha combinação de uma explicação mecânica e não
mecânica do mundo.

De longe, a maior importância para o desenvolvimento posterior da


filosofia e da ciência física foi uma tentativa de Leucipo de Abdera (nascido
no século V a.E.C.) e Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.E.C.) para resolver o
problema parmenidiano. Leucipo encontrou a solução na suposição de que, ao
contrário do argumento de Parmênides, o nada de fato existe – como espaço
vazio. Há, então, dois princípios fundamentais do mundo físico, espaço vazio e
espaço preenchido – o último consistindo de átomos que, em contraste com os da
física moderna, são átomos reais – isto é, são absolutamente indivisíveis porque
nada pode penetrar para dividi-los.

Sobre esses fundamentos, estabelecidos por Leucipo, Demócrito parece


ter construído todo um sistema, visando a uma explicação completa dos diversos
fenômenos do mundo visível por meio de uma análise de sua estrutura atômica.
Esse sistema começa com problemas físicos elementares, como: Por que um
corpo rígido pode ser mais leve que um corpo mais macio? A explicação é que
o corpo mais pesado contém mais átomos, que são igualmente distribuídos e
de forma redonda; o corpo mais leve, no entanto, tem menos átomos, a maioria
dos quais tem ganchos que formam grades rígidas. O sistema termina com
questões educacionais e éticas. Uma pessoa sensata e alegre, útil para seus
companheiros, é literalmente bem composta. Embora as paixões destrutivas
envolvam movimentos atômicos violentos e de longa distância, a educação
pode ajudar a contê-las, criando uma compostura melhor. Demócrito também
desenvolveu uma teoria da evolução da cultura, que influenciou os pensadores
posteriores. A civilização, pensou ele, é produzida pelas necessidades da vida,
que compelem os seres humanos a trabalhar e fazer invenções. Quando a vida
se torna muito fácil porque todas as necessidades são satisfeitas, existe o perigo
de que a civilização decaia à medida que as pessoas se tornem indisciplinadas
e negligentes.

5 APARÊNCIA E REALIDADE
Todos os filósofos pós-parmenidianos, como o próprio Parmênides,
pressupunham que o mundo real é diferente daquele que os seres humanos
percebem. Assim surgiram os problemas da epistemologia ou teoria do
conhecimento. Segundo Anaxágoras, tudo está contido em tudo. Mas isso não é o
que as pessoas percebem. Ele resolveu esse problema postulando que, se há uma
quantidade muito maior de um tipo de partícula em uma coisa do que todos os
outros tipos, as últimas não são percebidas de forma alguma. A observação foi
então feita que, por vezes, diferentes pessoas ou tipos de animais têm diferentes
percepções das mesmas coisas. Ele explicou esse fenômeno assumindo que o
semelhante é percebido pelo mesmo. Se, portanto, no órgão sensorial de uma

13
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

pessoa há menos de um tipo de material do que de outro, essa pessoa perceberá o


primeiro menos intensamente que o segundo. Esse raciocínio também foi usado
para explicar por que alguns animais veem melhor à noite e outros durante o dia.

De acordo com Demócrito, os átomos não têm qualidades sensíveis,


como gosto, cheiro ou cor. Assim, ele tentou reduzir todos eles a qualidades
táteis (explicando uma cor branca brilhante, por exemplo, como átomos afiados
atingindo o olho como agulhas). Ele fez uma tentativa muito elaborada de
reconstruir a estrutura atômica das coisas, com base em suas qualidades sensíveis
aparentes.

Também de grande importância na história da epistemologia estava Zenão


de Eléia (c. 495-c. 430 a.E.C.), um jovem amigo de Parmênides. Parmênides, é
claro, tinha sido severamente criticado por causa das estranhas consequências
de sua doutrina: que na realidade não há movimento nem pluralidade, porque
há apenas um ser sólido. Para apoiá-lo, no entanto, Zenão tentou mostrar que
a suposição de que há movimento e pluralidade leva a consequências que não
são menos estranhas. Isso ele fez por meio de seus famosos paradoxos, dizendo
que a flecha voadora repousa, uma vez que não pode se mover no lugar em que
está nem em um lugar onde não está, e que Aquiles não pode ultrapassar uma
tartaruga em uma corrida porque, quando chegou ao seu ponto de partida, a
tartaruga terá se movido para um outro ponto, e assim por diante, ad infinitum –
que, de fato, ele não pode nem começar a correr, pois antes de atravessar o trecho
até o ponto inicial da tartaruga, ele terá que atravessar metade disso, e novamente
metade disso, e assim por diante, ad infinitum.

Todos esses paradoxos são derivados do que é conhecido como o problema


do continuum. Embora muitas vezes tenham sido descartados como absurdos
lógicos, muitas tentativas também foram feitas para descartá-los por meio de
teoremas matemáticos, como a teoria das séries convergentes ou a teoria dos
conjuntos. No final, porém, as dificuldades lógicas levantadas nos argumentos de
Zenão sempre voltaram com uma vingança, pois a mente humana é construída
de tal forma que pode olhar para um continuum de duas maneiras que não são
completamente reconciliáveis.

6 PITÁGORAS E PITAGORISMO
Todas as filosofias mencionadas até agora são de várias maneiras
historicamente semelhantes umas às outras. Por volta do final do século VI
a.E.C., no entanto, surgiu outro tipo de filosofia, que só mais tarde entrou em
inter-relação com os desenvolvimentos mencionados: a filosofia de Pitágoras de
Samos (c. 580-500 a.E.C.). Pitágoras viajou extensivamente no Oriente Médio e
no Egito e, após seu retorno a Samos (uma ilha na costa da Anatólia), emigrou
para o sul da Itália por não gostar da tirania de Polícrates (574-522 a.E.C.). Em
Croton e Metaponto, ele fundou uma sociedade filosófica com regras rígidas e
logo ganhou considerável influência política.
14
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

Ele parece ter trazido sua doutrina da transmigração (reencarnação) de


almas do Oriente Médio. Muito mais importante para a história da filosofia e da
ciência, no entanto, foi sua doutrina de que "todas as coisas são números", o que
significa que a essência e a estrutura de todas as coisas podem ser determinadas
encontrando as relações numéricas que expressam. Originalmente foi uma
generalização muito ampla feita com base em poucas observações: por exemplo,
que as mesmas harmonias podem ser produzidas com diferentes instrumentos –
cordas, canos, discos etc. – por meio das mesmas proporções numéricas – 1/2, 2/3,
3/4 – em extensões unidimensionais; a observação de que certas regularidades
existem nos movimentos dos corpos celestes; e a descoberta de que a forma de um
triângulo é determinada pela proporção dos comprimentos de seus lados. Mas
como os seguidores de Pitágoras tentaram aplicar seu princípio em toda parte com
a maior precisão, um deles – Hipaso de Metaponto (nascido no século V a.E.C.)
– fez uma das descobertas mais fundamentais em toda a história da ciência: que
o lado e a diagonal de figuras simples, como o quadrado e o pentágono regular,
são incomensuráveis – isto é, sua relação quantitativa não pode ser expressa
como uma razão de inteiros. À primeira vista, essa descoberta pareceu destruir a
própria base da filosofia pitagórica, e a escola se dividiu em duas seitas, uma das
quais se envolveu em especulações numéricas um tanto abstrusas, enquanto a
outra conseguiu superar a dificuldade por engenhosas invenções matemáticas. A
filosofia pitagórica também exerceu uma grande influência no desenvolvimento
posterior do pensamento de Platão.

As especulações descritas até agora constituem, em muitos aspectos, a


parte mais importante da história da filosofia grega, porque todos os problemas
mais fundamentais da filosofia ocidental surgiram aqui pela primeira vez.
Também encontra-se aqui a formação de muitos conceitos que continuaram a
dominar a filosofia e a ciência ocidentais até os dias atuais.

7 CETICISMO E RELATIVISMO: OS SOFISTAS


Em meados do século V a.E.C., o pensamento grego tomou um rumo
um pouco diferente com o advento dos sofistas. O nome é derivado do verbo
sophizesthai, que denota fazer uma profissão do ser inventivo e inteligente ou
agir com astúcia, o que descreve apropriadamente os sofistas, que, em contraste
com os filósofos mencionados até agora, cobravam honorários por sua instrução
(HEGENBERG, 2008, p. 325).

Filosoficamente, os sofistas foram, de certa forma, os líderes de uma


rebelião contra o desenvolvimento precedente da filosofia, que cada vez mais
resultou na crença de que o mundo real é bem diferente do mundo fenomenal.
"Qual é o sentido de tais especulações?", perguntaram, já que ninguém mora
nesses supostos mundos reais. Este é o significado do pronunciamento de
Protágoras de Abdera (c. 485-410 a.E.C.), que "o homem é a medida de todas as
coisas, daquelas que são, que são, daquelas que não são, que não são" (CHAUI,
2002, p. 8-9). Para os seres humanos, o mundo é o que parece para eles ser, não

15
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

outra coisa. Protágoras ilustrou em seu argumento dizendo que não faz sentido
dizer a uma pessoa que está realmente quente quando ela está tremendo de frio
porque para ela está frio – para ela, o frio existe, está lá.

Seu contemporâneo mais jovem, Górgias de Leontini (que nasceu no


século V a.E.C.), famoso por seu tratado sobre a arte da oratória, zombou dos
filósofos em seu livro Sobre o Não-Ser ou Sobre a Natureza (Peri tou mē ontos ē peri
physeōs). Nesta obra, referiu-se ao mundo verdadeiramente existente, também
chamado de a natureza das coisas – ele tentou provar (1) que nada existe, (2) que
se algo existisse, não se poderia ter conhecimento disso, e (3) que, se, no entanto,
alguém soubesse que algo existia, ele não poderia comunicar seu conhecimento a
outros (GÓRGIAS, 1999).

Os sofistas não eram apenas céticos quanto àquilo que, até então, se
tornara uma tradição filosófica, mas também de outras tradições. Com base na
observação de que diferentes nações têm regras de conduta diferentes, mesmo
em relação a coisas consideradas mais sagradas – como as relações entre os sexos,
casamento e sepultamento –, concluíram que a maioria das regras de conduta
são convenções. O que é realmente importante é ter sucesso na vida e ganhar
influência sobre os outros. Isso eles prometeram ensinar.

Górgias se orgulhava do fato de que, sem ter conhecimento de medicina,


tinha mais sucesso em persuadir um paciente a realizar uma operação necessária
do que seu irmão, um médico, que sabia quando uma operação era necessária.
Os sofistas mais antigos, no entanto, estavam longe de pregar abertamente o
imoralismo. Eles, no entanto, gradualmente abandonaram a suspeita por causa de
suas maneiras astutas de argumentar. Um dos sofistas posteriores, Trasímaco de
Calcedônia (que nasceu no século V a.E.C.), era ousado o suficiente para declarar
abertamente que certo é o que é benéfico para o mais forte ou melhor – isto é, para
aquele capaz de vencer o poder de curvar outros a sua vontade (PLATÃO, 2001).

DICAS

Uma excelente obra que aprofunda os estudos sobre os Pré-Socráticos é Os


Filósofos Pré-Socráticos, de Gerd Bornheim (2005).
Consulte: BORNHEIM, G. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2005.

Para finalizar, neste tópico pudemos introduzir um panorama geral


da Filosofia Antiga, percorrendo as principais contribuições do primeiros
cosmólogos gregos como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes,
Parmênides, Heráclito, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Zenão e Pitágoras.
Também exploramos a contribuição do Ceticismo e do Relativismo proposta
pelos Sofistas.
16
TÓPICO 1 | FILOSOFIA GREGA ANTIGA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS

No próximo tópico, exploraremos a filosofia de Sócrates e suas profundas


contribuições para a Filosofia Antiga. É importante que você, caro acadêmico,
tenha compreendido os temas discutidos neste tópico para que possa prosseguir
e entender o diálogo proposto por Sócrates.

17
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A filosofia ocidental surgiu na Grécia Antiga (que incluía Mileto e outras partes
da atual Turquia) aproximadamente no século VI a.E.C.

• Os milésios tentaram responder a essas perguntas em termos naturais e não


religiosos.

• Por especularem sobre questões profundamente importantes, de maneira


racional e sistemática, os milésios são reconhecidos como os primeiros filósofos
ocidentais.

• Até o final do século III E.C., outros filósofos do mundo grego produziam teorias
sofisticadas e originais em ética, epistemologia (o estudo do conhecimento),
metafísica (o estudo da natureza última da realidade) e lógica.

• O termo "pré-socrático" refere-se a filósofos que não foram influenciados por


Sócrates (470-399 a.E.C.), na maioria dos casos porque eles viviam antes dele.

• O primeiro dos milésios, Tales, sustentava que tudo é água, com o que ele quis
dizer que as diferentes substâncias das quais o mundo parece ser composto são
derivadas da água.

• Anaximandro também foi notável por promover uma teoria da evolução dos
seres vivos, os humanos e todos os outros animais, ele afirmava que evoluíram
dos peixes.

• Os filósofos pré-socráticos também incluíam um grupo de pensadores cujas


principais preocupações não eram cosmológicas, mas éticas e políticas.

• O período Clássico da Filosofia Antiga é dominado por três figuras dos séculos
V e IV a.E.C., todas cidadãs de Atenas: Sócrates, Platão e Aristóteles.

• Os primeiros cosmólogos gregos eram monistas, sustentando que o Universo é


derivado de, ou composto de apenas uma única substância.

• Tales é considerado o primeiro filósofo grego, porque foi o primeiro a dar


uma explicação puramente natural da origem do mundo, livre de ingredientes
mitológicos.

• O discípulo e sucessor de Tales, Anaximandro (610-546 a.E.C.), tentou dar


uma explicação mais elaborada da origem e do desenvolvimento do mundo
ordenado (o cosmos).

18
• O sucessor de Anaximandro, Anaxímenes (nasceu em meados do século VI
a.E.C.), ensinou que o ar era a origem de todas as coisas.

• Os três primeiros filósofos gregos foram chamados de “hilozoístas” porque


pareciam acreditar em uma espécie de matéria viva.

• Xenófanes de Cólofon (560-478 a.E.C.) foi o primeiro a articular mais claramente


o que estava implícito na filosofia de Anaxímenes.

• Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.E.C.) afirmava que o positivo e o negativo são
apenas visões diferentes da mesma coisa; morte e vida, dia e noite, e luz e
escuridão são realmente um só.

• Empédocles de Agrigento (c. 490-430 a.E.C.) declarou que há quatro elementos


materiais (ele os chamou de raízes de tudo) e duas forças, amor e ódio, que não
surgiram e nunca passariam, aumentariam ou diminuiriam.

• Anaxágoras de Clazómenas (c. 500-428 a.E.C.), um pluralista, acreditava que


como nada poderia realmente vir a ser, tudo deveria estar contido em tudo,
mas na forma de partes infinitamente pequenas.

• Todos os filósofos pós-parmenidianos, como o próprio Parmênides,


pressupunham que o mundo real é diferente daquele que os seres humanos
percebem.

• Por volta do final do século VI a.E.C. surgiu outro tipo de filosofia, que só
mais tarde entrou em inter-relação com os desenvolvimentos mencionados: a
filosofia de Pitágoras de Samos.

• Filosoficamente, os sofistas foram, de certa forma, os líderes de uma rebelião


contra o desenvolvimento precedente da filosofia, que cada vez mais resultou
na crença de que o mundo real é bem diferente do mundo fenomenal.

• Os sofistas não eram apenas céticos quanto àquilo que até então se tornara uma
tradição filosófica, mas também de outras tradições.

19
AUTOATIVIDADE

1 Qual é a razão pela qual os milésios foram reconhecidos como os primeiros


filósofos ocidentais?

2 Quais são os quatro períodos ou fases em que a história da filosofia ocidental


antiga é tradicionalmente dividida?

3 O discípulo e sucessor de Tales, Anaximandro (610-546 a.E.C.), tentou dar


uma explicação mais elaborada da origem e do desenvolvimento do mundo
ordenado (o cosmos). Qual foi a sua explicação?

4 O termo arche, que originalmente significava apenas "começo", adquiriu o


novo significado. Qual é este novo significado e qual a sua importância para
a filosofia?

20
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A FILOSOFIA DE SÓCRATES

1 INTRODUÇÃO
A vida, o caráter e o pensamento de Sócrates (c. 470-399 a.E.C.) exerceram
profunda influência sobre a filosofia ocidental desde os tempos antigos até os
dias atuais.

Sócrates era uma figura amplamente reconhecida e controversa em sua


terra natal, Atenas, tanto que era frequentemente ridicularizado nas peças de
dramaturgos cômicos. As Nuvens, de Aristófanes (1987), escrita em 423 a.E.C.,
é o exemplo mais conhecido. Embora o próprio Sócrates não tenha escrito
nada, ele é descrito em conversas e em composições por um pequeno círculo de
admiradores – Platão (2007, 2008, 2009, 2015, 2016a, 2016b) e Xenofonte (1987,
2008), primeiro entre eles. Ele é retratado nesses trabalhos como um homem de
grande discernimento, integridade, autocontrole e habilidade argumentativa.

O impacto de sua vida foi ainda maior por causa da maneira como
terminou. Aos 70 anos, ele foi levado a julgamento sob acusação de impiedade e
condenado à morte por envenenamento (o veneno provavelmente sendo cicuta)
por um júri de seus cidadãos. A Apologia de Sócrates, de Platão (2008), pretende
ser o discurso que Sócrates fez em seu julgamento em resposta às acusações
feitas contra ele (o termo grego apologia significa "defesa"). Na Apologia vemos
a sua poderosa defesa da vida examinada e a sua condenação da democracia
ateniense, o que faz este ser um dos documentos centrais do pensamento e da
cultura ocidental.

A seguir, vamos explorar aspectos da vida e da personalidade de


Sócrates. Veremos também as razões pelas quais ele passou a ser odiado por
muitos, detalhando os seus principais pontos argumentativos e provocadores.
Finalizaremos este tópico enfatizando o legado deixado por Sócrates no
pensamento filosófico ocidental.

2 A VIDA E A PERSONALIDADE DE SÓCRATES


Embora fontes literárias e filosóficas forneçam apenas uma pequena
quantidade de informações sobre a vida e personalidade de Sócrates, uma
imagem singular e vívida está disponível para nós nos trabalhos de Platão.
Sabemos os nomes de seu pai, Sophroniscus (provavelmente um pedreiro),

21
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

sua mãe, Phaenarete, e sua esposa, Xântipe, e sabemos que ele teve três filhos.
Com o nariz arrebitado e os olhos esbugalhados, o que o fazia parecer sempre
estar observando, ele não era atraente para os padrões convencionais. Ele serviu
como um hoplita (um soldado fortemente armado) no exército ateniense e lutou
bravamente em várias batalhas importantes. Ao contrário de muitos pensadores
de seu tempo, ele não viajou para outras cidades para buscar seus interesses
intelectuais. Embora não tenha procurado um alto cargo e não tenha participado
regularmente das reuniões da Assembleia Ateniense (Ecclesia) – o principal órgão
governamental da cidade (como era seu privilégio como cidadão adulto do sexo
masculino) – assim como não atuava em nenhuma facção política, ele cumpriu
seus deveres como cidadão, que incluía não apenas o serviço militar, mas a
participação ocasional no Conselho dos Quinhentos, que preparava a agenda da
Assembleia.

Sócrates não era de linhagem nobre ou rica, mas muitos de seus


admiradores eram, e incluíam vários cidadãos atenienses mais proeminentes
politicamente. Quando a constituição democrática de Atenas foi derrubada por
um breve período em 403, quatro anos antes de seu julgamento, ele não deixou
a cidade, assim como muitos apoiadores dedicados do governo democrático,
incluindo seu amigo Chaerephon, que havia ido a Delfos muitos anos antes
perguntar ao oráculo se alguém era mais sábio que Sócrates (a resposta foi não).
Os longos períodos de êxtase intelectual de Sócrates, sua coragem na batalha, sua
resistência à fome e ao frio, sua capacidade de consumir vinho sem embriaguez
aparente e seu extraordinário autocontrole na presença de atrações sensuais são
todos descritos com arte consumada nas páginas de abertura e fechamento de O
Banquete (ou Simpósio) (PLATÃO, 2009).

A personalidade de Sócrates estava de alguma forma intimamente ligada
a sua visão filosófica. Ele era notável pelo comando absoluto que mantinha sobre
suas emoções e sua aparente indiferença às dificuldades físicas. Correspondendo
a essas qualidades pessoais estava seu compromisso com a doutrina de que a
razão, devidamente cultivada, pode e deve ser o fator que tudo controla na vida
humana. Assim, ele não tinha medo da morte, como ele diz na Apologia, de Platão
(2008), porque ele não tinha conhecimento do que viria depois dela, e ele sustenta
que se alguém tem medo da morte, seu medo pode estar baseado apenas em uma
pretensão de conhecimento. A pressuposição subjacente a essa alegação é que, uma
vez que se tenha pensado o suficiente sobre algum assunto, as emoções seguirão o
mesmo caminho. O medo será dissipado pela clareza intelectual. Da mesma forma,
de acordo com Sócrates, se alguém acredita, após a reflexão, que deve agir de uma
maneira particular, então necessariamente os sentimentos sobre o ato em questão
se acomodarão à crença deste alguém – ele desejará agir dessa maneira. Assim,
Sócrates nega a possibilidade do que tem sido chamado de "fraqueza da vontade"
– agir conscientemente (tendo conhecimento) de uma maneira que se acredita
estar errado. Segue que, uma vez que se sabe o que é a virtude, é impossível não
agir virtuosamente. Qualquer um que não atua virtuosamente faz isso porque ele
identifica incorretamente a virtude com algo que não é. É isso que significa a tese,
atribuída a Sócrates por Aristóteles, de que a virtude é uma forma de conhecimento.

22
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

A concepção de virtude de Sócrates como uma forma de conhecimento


explica por que ele considera ser da maior importância buscar respostas para
perguntas como: “O que é coragem?” e “O que é piedade?”. Se pudéssemos
descobrir as respostas para essas perguntas, teríamos tudo o que precisamos para
viver bem nossas vidas. O fato de que Sócrates alcançou um controle racional
completo de suas emoções, sem dúvida, encorajou-o a supor que seu próprio caso
era indicativo do que os seres humanos, no seu melhor, podem alcançar.

Mas se a virtude é uma forma de conhecimento, será que isso significa que
cada uma das virtudes – coragem, piedade, justiça – constitui um ramo separado
do conhecimento? Deveríamos inferir que é possível adquirir conhecimento de
um desses ramos, mas não de outros? Essa é uma questão que surge em vários
diálogos de Platão; é mais amplamente discutido em Protágoras (PLATÃO, 2007).
Era uma suposição da sabedoria grega convencional, e ainda é amplamente
assumido, que se pode ter algumas qualidades admiráveis, mas carecer de outras.
Alguém poderia, por exemplo, ser corajoso, mas injusto. Sócrates desafia essa
suposição. Ele acredita que as muitas virtudes formam uma espécie de unidade
– todavia, não sendo capaz de definir nenhuma das virtudes, ele não estava
em posição de dizer se todas eram a mesma coisa ou, ao contrário, constituíam
algum tipo de unificação mais frouxa. Mas ele rejeitava, inequivocamente, a ideia
convencional de que alguém poderia possuir uma virtude sem possuir todas.

Outra característica proeminente da personalidade de Sócrates, que


frequentemente levanta problemas sobre como melhor interpretá-lo, é (para usar
o antigo termo grego) sua eirôneia. Embora este seja o termo a partir do qual a
palavra portuguesa “ironia” é derivada, há uma diferença entre os dois. Falar
ironicamente é usar palavras para significar o oposto do que elas normalmente
transmitem, mas isso não é necessariamente o objetivo de dissimular, pois o
falante pode esperar e até querer que o público reconheça essa reversão. Em
contraste, para os antigos gregos, eirôneia significava “dissimulação” – um usuário
da eirôneia está tentando esconder alguma coisa.

Esta é a acusação feita contra Sócrates várias vezes nas obras de Platão,
embora nunca feita nas obras de Xenofonte (1987, 2008). Na obra de Platão (2008),
Apologia, Sócrates é descrito afirmar que os jurados, ao ouvirem seu caso, não
aceitariam a razão por ele oferecida ao fato de ser incapaz de parar de filosofar
nos lugares públicos – que fazer isso seria desobedecer ao Deus que preside em
Delfos. A audiência de Sócrates entendeu que ele estava se referindo a Apolo,
embora ele próprio não use esse nome. Em seu discurso, o filósofo afirma sua
obediência ao Deus ou aos deuses, mas não especificamente a um ou a mais entre
os deuses ou deusas do panteão grego. A causa da incredulidade dos jurados,
Sócrates acrescenta, será a suposição de que ele está comprometido com a
eirôneia. De fato, Sócrates admite que adquiriu uma reputação de insinceridade
– por dar às pessoas a entender que suas palavras significavam aquilo a que elas
normalmente se referem quando, de fato, não o faziam. Similarmente, no Livro
I da República (PLATÃO, 2001), Sócrates é acusado por um interlocutor hostil,
Trasímaco, de " habitual eirôneia". Embora Sócrates diga que não tem uma boa
resposta para a pergunta "O que é justiça?", Trasímaco pensa que isso é apenas
23
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

um disfarce. Sócrates, ele alega, está ocultando sua resposta estabelecida. E no


Banquete (PLATÃO, 2009), Alcibíades acusa Sócrates de passar toda a sua vida
comprometida com a eirôneia e brincando com as pessoas e o compara a uma
figura esculpida cuja concha externa oculta seu conteúdo interno. O coração da
acusação de Alcibíades é que Sócrates finge se importar com as pessoas e oferecer-
lhes vantagens, mas retém o que sabe porque está cheio de desdém.

O retrato de Platão, por Sócrates, como um "ironista", mostra como a


conversa com ele poderia facilmente levar a um frustrante impasse e como a
possibilidade de ressentimento estava sempre presente. Sócrates era, nesse
sentido, um interlocutor mascarado – um aspecto de sua autoapresentação que o
tornava mais fascinante e atraente para seu público, mas que também os tornava
mais desconfiados e mais suspeitosos. Os leitores que vêm a conhecer Sócrates
através da intervenção de Platão, estão praticamente na mesma situação. Nossos
esforços para interpretá-lo, às vezes, não são tão sólidos quanto gostaríamos,
porque precisamos confiar em juízos, muitas vezes difíceis de justificar, sobre
quando ele quer dizer o que diz e quando não quer.

Mesmo quando Sócrates vai ao tribunal para se defender das mais sérias
acusações, ele parece estar comprometido com a eirôneia. Depois de ouvir os
discursos proferidos por seus acusadores, ele diz, na sentença inicial da Apologia, de
Platão (2008, 2017a, p. 137): “Quanto a mim, por pouco não perdi a noção da minha
própria identidade tal a persuasão com que discursaram”. Essa é a habitual eirôneia
de Sócrates? Ou os discursos de seus acusadores realmente tiveram esse efeito
sobre ele? É difícil ter certeza. Mas, pela própria admissão de Sócrates, a suspeita
de que qualquer coisa que ele dissesse poderia ser uma dissimulação minou sua
capacidade de persuadir os jurados de suas boas intenções. Sua eirôneia pode até
ter apoiado uma das acusações feitas contra ele, de que ele corrompeu os jovens.
Pois, se Sócrates realmente se engajava na eirôneia e se seus seguidores jovens se
deliciavam e imitavam esse aspecto de seu caráter, então, nessa medida, ele os
encorajava a se tornarem dissimulados e indignos de confiança, assim como ele.

FIGURA 2 – A MORTE DE SÓCRATES

FONTE: <https://i0.wp.com/www.acervofilosofico.com/wp-content/uploads/2017/11/Defesa-
de-S%C3%B3crates-Plat%C3%A3o.png?resize=768%2C436>. Acesso em: 22 maio 2019.

24
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

3 POR QUE SÓCRATES ERA ODIADO?


Parte do fascínio da Apologia, de Platão (2008), consiste no fato de
apresentar um homem que dá passos extraordinários ao longo de sua vida para
ser do maior valor possível para sua comunidade, mas cujos esforços, longe de
lhe render a gratidão e honra que ele pensa merecer, os levam a sua condenação
e morte nas mãos das próprias pessoas que ele procurou servir. Sócrates está
dolorosamente ciente de que ele é uma figura odiada e que isso é o que levou às
acusações contra ele. Ele tem pouco dinheiro e pouco conhecimento político ou
influências, e dedicou pouca atenção a sua família e familiares – tudo para servir
ao público que agora o injuria. Afinal, o que deu errado?

3.1 A IMPRESSÃO CRIADA POR ARISTÓFANES


Sócrates toma o seu tempo para responder a essa pergunta. Grande parte
de sua defesa consiste não apenas em refutar as acusações, mas em oferecer uma
explicação complexa de por que tais falsas acusações deveriam ter sido feitas
contra ele em primeiro lugar. Parte da explicação, Sócrates acredita, é que ele
tem sido mal compreendido pelo público em geral. O público, diz ele, projetou
a sua desconfiança em certos tipos de pessoas sobre ele, alegando que as falsas
impressões de seus "primeiros acusadores" (como os chama) derivam de uma
peça de Aristófanes (1987) – ele está se referindo à peça As Nuvens.

É como um desafiante dos poetas e de tudo o que eles representam – a


tradição da educação poética de séculos – que Sócrates se apresenta. A Apologia
(PLATÃO, 2008) mostra Sócrates oferecendo um novo modelo de cidadania, um
novo tipo de cidadão. Seu desafio aos poetas é, de certa forma, a base para o
ressentimento que é construído contra ele, presente nas acusações de Aristófanes
e dos acusadores anteriores. Na verdade, Sócrates foi tomado tão a sério por
Aristófanes e os poetas, que Aristófanes dedicou uma peça inteira a Sócrates e a
chamou de As Nuvens (1987), dedicada a desbancar e ridicularizar a profissão de
aprendizagem de Sócrates.

A existência dessa peça mostra a todos nós o quão seriamente Sócrates


foi considerado pelo maior de seus contemporâneos. Pois Aristófanes foi, junto a
Sófocles, Eurípides e outros, um dos maiores dramaturgos gregos. A zombaria, a
paródia de Sócrates continua sendo uma das mais sinceras formas de bajulação,
uma declaração de que eles o levaram muito a sério (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Vamos apenas dizer algo sobre As Nuvens, esta peça cômica, esta sátira sobre
Sócrates, porque ela é parte da acusação inicial da qual Sócrates afirma ter sido
levantada contra ele. Na peça, Aristófanes apresenta Sócrates como um investigador,
e isso também faz parte da primeira acusação, como podemos ver na exposição
do filósofo na Apologia: “declarando que há um certo Sócrates, homem sábio, um
pensador que se ocupa das coisas do alto e que sondou as coisas abaixo da terra, e que
faz do argumento mais fraco o mais forte” (2008, 2018b-c, p. 138). Esse é, portanto, o

25
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

argumento, de acordo com Sócrates, que Aristófanes traz contra ele. Em As Nuvens
(ARISTÓFANES, 1987), Sócrates é apresentado como o chefe, o líder, o diretor do
Phrontisterion, que pode ser traduzido como “Pensatório”, um lugar onde os pais
atenienses levam seus filhos para serem doutrinados nos mistérios da sabedoria
socrática. Na peça, Sócrates é mostrado pairando, voando sobre o palco em uma cesta,
a fim de ser capaz de melhor observar as nuvens, as coisas no ar. Mas também em
muitos aspectos, simbolizando Sócrates, pelo menos no relato de Aristófanes, em seu
desprendimento das coisas aqui embaixo, na Terra, as coisas que dizem respeito aos
seus concidadãos. Sócrates, neste relato, seria alguém que o povo alemão chamaria
de Luftmensch. Ele é um homem no ar, que caminha nas nuvens, ele está tão distante
que não tem os pés no chão (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Sócrates é mostrado não só zombando dos deuses ao fazer isso, mas ele
é mostrado por Aristófanes ensinando as coisas que violam toda a decência,
todos os tabus humanos – o incesto, o espancamento de um dos pais, entre outras
coisas tidas como abomináveis. Sócrates é apresentado exibindo uma espécie de
ceticismo corrosivo, o que está no centro da acusação de Aristófanes contra ele
(LEYSER; ANACLETO, 2015).

Resumido a história, na comédia de Aristófanes (1987), Sócrates é o líder


de uma escola que investiga todo tipo de fenômeno empírico, considera as nuvens
e o ar como substâncias divinas, nega a existência de quaisquer outros deuses,
estuda a linguagem e a arte do argumento e usa seu conhecimento de dispositivos
retóricos para fazer do pior argumento o mais forte. A corrupção de Sócrates entre
os jovens também é um tema importante na peça: apresenta um pai (Strepsiades)
que frequenta a escola de Sócrates com seu filho (Pheidippides) para aprender
a evitar o pagamento das dívidas que ele adquiriu por causa da extravagância
de seu filho. No final, Pheidippides aprende muito bem como usar habilidades
argumentativas a seu favor; na verdade, ele se orgulha de sua capacidade de
provar que é certo um filho bater em seus pais. No final, Strepsiades denuncia
Sócrates e incendeia o prédio que abriga sua escola.

Então, a peça termina com o “Pensatório” de Sócrates sendo queimado até


o chão por um discípulo descontente. Quão precisa é essa imagem de Sócrates, o
homem que investiga as coisas do alto e as coisas abaixo da Terra? As Nuvens foi
escrita em 423 a.E.C. quando Sócrates estava em seus quarenta e poucos anos. O
Sócrates aristofânico é, essencialmente, o que chamamos de um filósofo natural.
Ele é o que chamaríamos, hoje, de um cientista natural. Mas isso parece bastante
distante do Sócrates que é trazido sob a acusação de corromper os jovens e de
impiedade na Apologia (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Essa peça, segundo Sócrates, criou a impressão geral de que ele estuda
fenômenos celestes e geográficos e, como os sofistas que viajam de cidade em
cidade, cobra uma taxa pelo ensino das várias habilidades dos jovens. Não é
assim, argumenta Sócrates. Ele até acha que seria uma coisa boa possuir os tipos
de conhecimento que os sofistas alegam ensinar, mas ele nunca discutiu esses
assuntos com ninguém – como seus juízes deveriam ser capazes de confirmar por
si mesmos, porque, segundo ele, muitos deles ouviram os seus diálogos.
26
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

3.2 A RESISTÊNCIA HUMANA À AUTORREFLEXÃO


Mas isso só pode ser o começo da explicação de Sócrates, pois leva a
outras questões. Por que Aristófanes teria escrito dessa maneira sobre Sócrates?
Ele deve ter sido uma figura bem conhecida em 423 a.E.C. quando As Nuvens
foi produzida, pois Aristófanes tipicamente escrevia e ridicularizava figuras que
já eram familiares a seu público. Além disso, se é como Sócrates afirma, muitos
de seus jurados o ouviram em discussão e puderam, portanto, confirmar por
si mesmos que ele não estudou ou ensinou a outros sobre nuvens, ar e outros
assuntos e não cobrava uma taxa como os sofistas faziam, então, por que eles não
votaram para absolvê-lo das acusações em uma maioria esmagadora?

Sócrates fornece respostas para essas perguntas. Muito antes de Aristófanes


escrever sobre ele, ele adquirira uma reputação entre seus concidadãos, porque
passava os dias tentando cumprir sua missão divina de interrogá-los e minar suas
crenças confiantes de que possuíam conhecimento dos assuntos mais importantes.
Sócrates diz aos jurados que, como resultado de suas investigações, ele aprendeu
uma amarga lição sobre seus concidadãos: não apenas eles não possuem o
conhecimento que afirmam ter, mas se ressentem de ter esse fato apontado para
eles. Deste modo, eles o odeiam por sua insistência de que seu modo de vida
reflexivo e sua recusa de conhecimento o tornam superior a eles.

As únicas pessoas que se deleitavam em sua conversa eram os jovens e


ricos, que tinham o tempo livre para passar seus dias com ele. Essas pessoas o
imitam, realizando suas próprias análises cruzadas dos mais velhos. Sócrates
admite, então, que em algum grau estabeleceu uma geração contra outra – e ao
fazer essa confissão ele deixa claro por que alguns membros do júri podem ter sido
convencidos, com base em seus próprios encontros com ele, que ele corrompeu os
jovens da cidade.

Um dos componentes mais sutis da explicação de Sócrates para o ódio que


ele suscitou é o argumento de que as pessoas escondem a vergonha que sentem
quando são incapazes de resistir a seus argumentos destrutivos. Sua reputação
como um corruptor dos jovens e como um sofista e um ateu é sustentada porque
fornece às pessoas uma explicação ostensivamente razoável de seu ódio por ele.
Ninguém dirá: "Eu odeio Sócrates porque não posso responder as suas perguntas,
e ele me faz parecer tolo na frente dos jovens". Em vez disso, as pessoas escondem
sua vergonha e a verdadeira fonte de sua raiva, aproveitando a impressão geral de
que ele é o tipo de filósofo que lança dúvidas sobre a religião tradicional e ensina
truques retóricos que podem ser usados ​​para fazer com que os maus argumentos
pareçam bons. Essas maneiras de esconder a fonte de seu ódio são ainda mais
potentes, porque contêm pelo menos um grão de verdade. Tanto Sócrates como
Platão e quanto Xenofonte confirmam, é um homem que adora argumentar: nesse
aspecto, ele é como um sofista. E sua concepção de piedade, como revelada por
sua devoção ao oráculo de Delfos, é altamente não ortodoxa: nesse aspecto ele é
como aqueles que negam a existência dos deuses.

27
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Sócrates acredita que esse ódio, cuja fonte real é tão dolorosa para as
pessoas reconhecerem, desempenhou um papel crucial ao levar Ânito, Meleto e
Licon a se apresentarem no tribunal contra ele; também torna muito difícil para
muitos membros do júri reconhecer que ele tem os mais nobres motivos e prestou
a sua cidade um ótimo serviço.

Vamos discorrer brevemente sobre o contexto para tornar ainda mais


claras as acusações. O julgamento de Sócrates tem lugar no ano de 399 antes da
era comum (a.E.C.). Talvez você, acadêmico, saiba que esse julgamento segue
muito rapidamente após a famosa Guerra do Peloponeso. Esta foi a guerra
narrada por um contemporâneo de Sócrates, um homem chamado Tucídides,
que escreveu a história da Guerra do Peloponeso, uma guerra que ocorreu entre
as duas grandes potências do mundo grego, entre os espartanos e seus aliados e
Atenas e seus aliados. A Atenas que lutou nesta guerra contra Esparta era uma
Atenas no auge de seu poder político e prestígio sob a liderança de seu primeiro
cidadão, Péricles. Foi sob a sua liderança que Atenas construiu a famosa Acrópole.
Ele tinha estabelecido Atenas como uma potência naval, poderosa e temível, e
criou um nível sem precedentes de vida artística e cultural, ainda hoje conhecido
simplesmente como o Século de Péricles ou a Atenas de Péricles (LEYSER;
ANACLETO, 2015).

Mas Atenas também foi algo completamente sem precedentes no mundo,


era uma democracia. Ainda hoje a expressão "democracia ateniense" conota um
ideal da forma mais completa de governo democrático que já existiu. “Nossa
cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade” (TUCÍDIDES, 2001, Livro
II, 41, p. 111), isto é, Péricles se vangloria aos seus ouvintes na famosa oração
fúnebre contada por Tucídides. "Mantemos nossa cidade aberta a todo o mundo e
nunca, por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer
coisa que, não estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil”
(TUCÍDIDES, 2001, Livro II, 39, p. 110), Péricles se vangloria mais uma vez. A
pergunta que talvez você queira fazer sobre isso é: Como poderia, a primeira
sociedade mais livre e mais aberta do mundo, sentenciar à morte um homem
que falou abertamente sobre sua própria ignorância e professou cuidar de nada
mais do que da virtude e da excelência humana? Vejamos, pois, na eclosão da
Guerra do Peloponeso, Sócrates tinha um pouco menos de 40 anos de idade. E
nós aprendemos com o discurso que o próprio Sócrates serviu no exército e na
defesa de seu país. A Guerra do Peloponeso foi travada ao longo de um período
de tempo considerável, um período de quase 30 anos e foi concluída no ano 404
a.E.C. com a derrota de Atenas, a instalação de uma oligarquia pró-espartana,
um regime pró-espartano conhecido simplesmente como os Trinta Tiranos, ou
a Tirania dos Trinta, que governou Atenas por um ano. No ano seguinte, 403
a.E.C., os tiranos, os Trinta, como eram chamados, foram expulsos e um governo
democrático foi restabelecido em Atenas (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Apenas três anos depois, Ânito, Meleto e Lícon, os quais fizeram parte
do movimento de resistência democrática contra a oligarquia espartana, fizeram
acusações contra Sócrates. As acusações contra ele foram: corromper a juventude

28
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

e de descrença nos deuses que a cidade acredita. Os nomes de Ânito e Meleto,


como você pôde ler na Apologia (PLATÃO, 2008), aparecem no próprio discurso.
Assim, as acusações contra Sócrates não brotaram do nada. Talvez devêssemos
reformular a pergunta. Não perguntaríamos meramente “por que os atenienses
levaram Sócrates a julgamento?” e sim, por que lhe permitiram exercer a sua
prática de desafiar a lei e a autoridade da lei durante o tempo que ele assim o
fez? Adicione a isso o fato de que quando Sócrates foi levado a julgamento, a
democracia só recentemente tinha sido restabelecida, mas que muitos amigos
e ex-alunos de Sócrates tinham eles próprios sido implicados no governo dos
Trinta Tiranos (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Entre os membros dos Trinta havia um homem chamado Crítias, e há,


na verdade, um diálogo platônico nomeado após ele (PLATÃO, 2009). Era um
parente de Platão e de outro homem chamado Cármides, tio de Platão, cujo nome
é também o título de um diálogo platônico. O próprio Platão nos diz muito sobre
eles, mais tarde em sua vida, em sua famosa Carta VII. Platão foi convidado por
seus parentes para ajudar a formar uma parte do governo dos Trinta e relata:
“imaginei que iriam governar o Estado, tirando-o da vida injusta para colocá-lo
na senda da justiça, de modo que passei a observá-los muito diligentemente, a fim
de ver quais seriam as suas ações”. Prossegue Platão: “realmente vi que aqueles
homens, em pouco tempo, levaram as pessoas a relembrar o governo anterior
como uma idade de ouro” (PLATÃO, 2011a, 324d, p. 61). Então, o ponto que
estamos sugerindo é que muitos estudantes e associados de Sócrates, incluindo o
próprio Platão, tinham alguma ligação com aquele governo oligárquico que tinha
governado Atenas, por um breve tempo. Portanto, Sócrates não era ele mesmo
acima de qualquer suspeita. Muitas vezes, ainda hoje, julgamos os professores
por seus alunos, pela companhia que mantêm, não é? Ninguém está acima da
suspeita. O próprio Sócrates tinha sido um colaborador próximo de um homem
chamado Alcibíades, provavelmente o ateniense mais proeminente da geração,
após Péricles. Alcibíades foi o homem que projetou a desastrosa expedição
contra Siracusa, na Sicília, o que o levou a desertar e refugiar-se em Esparta. Sua
complexa relação com Sócrates é, aliás, narrada em um discurso de Alcibíades,
que estando bêbado aparece em um diálogo de Platão, O Banquete (2009).

Você pode, portanto, perceber que o julgamento de Sócrates, o pequeno


discurso Apologia, tem lugar à sombra da derrota militar, da resistência, da
conspiração e da traição. Sócrates tinha 70 anos na época do julgamento. Era um
ambiente político, altamente carregado. Muito mais volátil do que, por exemplo,
o tipo de querelas partidárias que vemos hoje em nossa república (LEYSER;
ANACLETO, 2015).

Contudo, o escárnio de Sócrates, por parte de Aristófanes, e a acusação


legal contra ele, não poderiam ter levado ao seu julgamento ou condenação
se não fosse por algo, em grande parte, de seus companheiros atenienses que
queriam livrar-se dele. Este é um tema para o qual Sócrates retorna várias vezes.
Ele define a si mesmo como um moscardo, uma mutuca. Mas como o moscardo
que melhora a qualidade de vida na cidade. Na seção 30d-e, da Apologia, Sócrates

29
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

declara: "e, assim sendo, homens de Atenas, realizo agora, minha defesa, não
no meu próprio interesse, como se poderia supor”, diz ele, “mas no vosso, para
impedir que ao condenar-me, erradamente, façais uso indevido do dom que o
deus vos conferiu”, referindo a si mesmo. Ele continua, “se me executardes, não
encontrareis facilmente outra pessoa como eu, que estava ligada a esta cidade
por ação do deus – ainda que a expressão seja um tanto risível”, Sócrates declara,
“como a um grande e nobre cavalo, que se revelasse um pouco lerdo devido ao
seu tamanho,” alude à cidade de Atenas, aqui,” e precisasse ser estimulado por
um moscardo. Penso que foi para desempenhar uma função assim que o Deus me
vinculou à cidade, e assim, ponho-me a circular por aí estimulando e persuadindo
e censurando cada um de vós, e em toda a parte, o dia todo” (PLATÃO, 2008, p.
154). Portanto, temos aqui o exemplo de Sócrates, não só se declarando o dom de
Deus, mas que ele é um grande benfeitor da cidade, que o seu exemplo de homem,
de consciência moral individual traz consigo grandes benefícios públicos. Não é
em seu benefício próprio, ele diz ao público, mas para os seus concidadãos que
ele faz o que faz (LEYSER; ANACLETO, 2015).

De muitas maneiras, ao responder o veredito do júri, no pedido de que


ele deixe de filosofar, Sócrates explica-se nos seguintes termos. Deixe-me, apenas
citar, brevemente, outra passagem a partir do segundo discurso que ele dá ao júri
depois de sua condenação. "Convencer alguns de vós sobre esse ponto é a tarefa
mais difícil.” Ele diz sobre o seu modo de vida, e continua:

Isso porque se afirmo que tal procedimento corresponderia a


desobedecer ao deus e que, por conta disso, não posso ficar em
silêncio, pensareis que estou ironizando e não me acreditareis. Se,
por outro lado, afirmo que dialogar todos os dias acerca da virtude
e sobre as outras coisas em relação às quais me ouvis discursando e
examinando a mim mesmo e aos outros constitui o maior benefício
para o ser humano, e que a vida sem esse exame não é digna de ser
vivida, menos crédito ainda me dareis (PLATÃO, 2008, 37e-38a, p.
163).

Em outras palavras, o que ele parece estar dizendo nessa passagem é que
ele percebe que está sobre a linha tênue de um dilema.

Por um lado, Sócrates diz explicitamente que a sua referência a uma missão
divina será tomada pelo seu público, como sendo apenas mais um exemplo de
ironia socrática e de insinceridade. Mas afirma, se ele tentar convencer as pessoas
da bondade e da justiça de seu modo de vida fundamentando-se simplesmente
em argumentos racionais, para persuadi-los de que a vida examinada por si só
vale a pena ser vivida, ele admite que não seja acreditado. Então, o que podemos
dizer que um cidadão socrático deve fazer. Ele será acusado de ser irônico e não
será acreditado, ou ele vai ser simplesmente desacreditado se tentar defender-se
por justificativas racionais ou filosóficas.

Isso levanta a questão com a qual começamos esta parte do Livro Didático
Sócrates deve ser tolerado. Uma boa sociedade deveria tolerar Sócrates? Esta
é a questão levantada no diálogo de Críton (PLATÃO, 2008b). Até que ponto a

30
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

liberdade de expressão, o discurso que beira a impiedade cívica, até que grau
tal discurso deve ser tolerado? Tem sido uma suposição de leitores de Platão
ao longo dos anos, que o julgamento de Sócrates, que a execução de Sócrates,
apresenta o caso a favor da liberdade ou da mais plena liberdade de pensamento
contra os perigos de uma sociedade de tentar perseguir ou suprimir a liberdade
de expressão. Mas será esta leitura correta, em outras palavras, é este realmente
os ensinamentos de Platão? (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Dentre as coisas que Sócrates diz que se preocupa profundamente,


está a sua vocação para não fazer nada além de persuadir os mais jovens e
os mais velhos a não se preocupar com seus corpos e seu dinheiro, mas sim
com o fato de como a sua alma vai estar na melhor condição possível. Como
devemos entender isso no que consta o caso sobre a tolerância e a liberdade de
expressão? A Apologia mostra Sócrates apresentando o caso mais intransigente
a favor do filósofo, como um crítico radical ou questionador da sociedade.
Sócrates exige que os atenienses não mudem simplesmente este ou aquele
aspecto de sua política, mas ele exige nada menos que uma drástica, diria até
mesmo revolucionária, mudança na vida cívica, na cultura cívica ateniense.
Ele diz a seus companheiros cidadãos que suas vidas não valem a pena, só a
vida examinada vale a pena ser vivida e que eles não estão vivendo uma vida
examinada, portanto, suas vidas não podem ter qualquer valor. Mesmo quando
confrontado com a opção de deixar de filosofar, ele se recusa a fazê-lo, pelo fato
de estar agindo sob um comando, uma ordem divina e de não poder fazer ao
contrário (LEYSER; ANACLETO, 2015).

Depois que o júri votou a favor da pena de morte, Sócrates lhes diz que
seu motivo foi o desejo de evitar ter de oferecer uma defensa das suas vidas.
Algo nas pessoas resiste ao autoexame, elas não querem responder a questões
profundas sobre si mesmas. No fundo, Sócrates pensa que a maioria das
pessoas irá atacar aqueles que tentam estimular sérias reflexões morais neles.
É por isso que ele pensa que seu julgamento não é meramente o resultado de
eventos incômodos – um mero desentendimento causado pelo trabalho de um
dramaturgo popular – mas o resultado de forças psicológicas profundas dentro
da natureza humana.

3.3 CRÍTICA DE SÓCRATES SOBRE A DEMOCRACIA


A análise de Sócrates, do ódio que ele incorreu, é uma parte de um tema
maior que ele perpassa em todo o seu discurso. Atenas é uma democracia, uma
cidade na qual a maioria está no poder dominante na política, e pode-se esperar
que tenha todos os vícios desta dita maioria. Como a maioria das pessoas odeia
ser testada em discussões, elas sempre agem de alguma forma contra aqueles que
as provocam com perguntas.

31
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Mas esta não é a única acusação que Sócrates apresenta contra sua cidade
e sua política. Ele diz a seu público democrático que estava certo em se retirar da
vida política, porque uma boa pessoa que luta pela justiça, em uma democracia,
será morta. Em seu interrogatório sobre Meleto, ele insiste que apenas algumas
pessoas podem adquirir o conhecimento necessário para melhorar os jovens de
qualquer espécie, e que muitos inevitavelmente farão um trabalho ruim.

Ele critica a Assembleia por suas ações ilegais e os tribunais atenienses


pela facilidade com que os assuntos de justiça são distorcidos por alegações
emocionais. Sócrates implica que a própria natureza da democracia torna um
sistema político corrupto. A amarga experiência ensinou-lhe que a maioria das
pessoas se contenta com uma compreensão superficial das questões humanas mais
urgentes. Quando recebem grande poder, sua superficialidade inevitavelmente
leva à injustiça.

DICAS

Assista ao filme Sócrates, com direção do mestre italiano Roberto Rossellini,


esta superprodução europeia é a cinebiografia de Sócrates, um dos maiores filósofos da
humanidade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SlJSF-V6yBA.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO


DE SÓCRATES
Em síntese, o pensamento de Sócrates estava tão cheio de possibilidades que
seu modo de vida, tão provocativo, inspirou uma variedade notável de respostas.
Por exemplo, um de seus associados, Aristipo de Cirene – cujo seguidores eram
chamados de "cirenaicos" e sua escola floresceu por um século e meio – afirmou
que o prazer é o bem maior. Sócrates parece endossar essa tese no Protágoras,
de Platão (2007), mas ele a ataca em Górgias e em outros diálogos (PLATÃO,
2016a, 2016b). Outro destacado seguidor de Sócrates no início do século IV a.E.C.,
Antístenes, enfatizou a doutrina socrática de que um homem bom não pode ser
prejudicado; a virtude, em outras palavras, é por si só suficiente para a felicidade.
Essa doutrina desempenhou um papel central em uma escola de pensamento,
fundada por Diógenes de Sinope, que teve uma influência duradoura sobre a
filosofia grega e romana: o cinismo (GOULET-CAZÉ; BRANHAM, 2007).

Como Sócrates, Diógenes preocupava-se apenas com a ética, praticava


sua filosofia na praça pública e defendia um ideal de indiferença quanto a posses
materiais, poder político e honras convencionais. Mas os cínicos, ao contrário
de Sócrates, tratavam todas as distinções convencionais e tradições culturais
como impedimentos à vida da virtude. Eles defendiam uma vida de acordo
com a natureza e consideravam animais e seres humanos, que não viviam em
32
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

sociedades, como estando mais próximos da natureza do que os seres humanos


contemporâneos. O termo cínico é derivado da palavra grega kyniko,s que
significa “igual a um cão”. Os cínicos, portanto, viviam como animais. Partindo
da premissa socrática de que a virtude é suficiente para a felicidade, eles
lançaram ataques ao casamento, à família, às distinções nacionais, à autoridade
e às realizações culturais.

As duas mais importantes escolas antigas de pensamento que foram


influenciadas por Sócrates foram o Estoicismo, fundado por Zenão de Cítio, e
o Ceticismo, que se tornou por muitos séculos a posição filosófica dominante
da Academia de Platão, depois que Arcesilau se tornou seu líder, em 273 a.E.C.
A influência de Sócrates em Zenão foi mediada pelos cínicos, mas os estoicos
romanos – particularmente Epiteto – consideravam Sócrates como o paradigma
da força interior e sagaz, desse modo inventaram novos argumentos para a
tese socrática de que a virtude é suficiente para a felicidade. A doutrina estoica
de que a inteligência divina permeia o mundo e governa para o melhor, pega
emprestado em abundância as ideias atribuídas a Sócrates por Xenofonte (1987),
na Memorabilia ou Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates.

Como Sócrates, Arcesilau não escreveu nada. Ele filosofou convidando


outros a declarar uma tese; ele então provaria, pelo questionamento socrático,
que sua tese levava a uma contradição. Seu uso do método socrático permitiu
que Arcesilau e seus sucessores na Academia sustentassem que permaneciam
fiéis ao tema central dos escritos de Platão. Mas assim como o cinismo tomou
os temas socráticos numa direção em que o próprio Sócrates não havia
desenvolvido e, de fato, teria rejeitado, também Arcesilaus e seus seguidores
céticos na Academia de Platão usaram o método socrático para defender uma
suspensão geral de todas as convicções e não meramente uma negação do
conhecimento. O pensamento subjacente da Academia durante sua fase cética é
que como não há como distinguir a verdade da falsidade, devemos abster-nos
de acreditar em qualquer coisa. Sócrates, em contraste, apenas afirma não ter
conhecimento e considera certas teses muito mais dignas de nossa credibilidade
do que suas negações.

Embora Sócrates exercesse profunda influência sobre o pensamento


grego e romano, nem todo grande filósofo da Antiguidade o considerava um
exemplo moral ou um grande pensador. Aristóteles aprova a busca socrática
de definições, mas critica Sócrates por uma concepção superintelectualizada da
psique humana. Os seguidores de Epicuro de Samos, que eram rivais filosóficos
dos estoicos e acadêmicos, desprezavam-no.

Com a ascendência do Cristianismo no Período Medieval, a influência


de Sócrates estava em seu ponto mais baixo: ele foi, por muitos séculos, pouco
mais do que um ateniense condenado à morte. Mas quando os textos gregos e,
portanto, os trabalhos de Platão, dos estoicos e dos céticos tornaram-se cada vez
mais disponíveis na Renascença, o pensamento e a personalidade de Sócrates
começaram a desempenhar um papel importante na filosofia europeia.

33
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Do século XVI ao XIX, a instabilidade e os excessos da democracia ateniense


tornaram-se temas centrais e comuns dos escritores políticos; a hostilidade de
Xenofonte e Platão, alimentada pela morte de Sócrates, desempenhou um papel
importante aqui. As comparações entre Sócrates e Cristo se tornaram comuns
e elas permaneceram assim até o século XX – embora os contrastes desenhados
entre eles e os usos aos quais suas semelhanças foram colocadas variassem
muito de um autor e período para outro. O sinal divino de Sócrates tornou-se
uma questão de controvérsia: ele foi verdadeiramente inspirado pela voz de
Deus ou o sinal era apenas uma compreensão intuitiva e natural da virtude? –
assim pensava Michel de Montaigne (1972). Será que Sócrates tencionava minar
os aspectos irracionais e meramente convencionais da prática religiosa e, assim,
colocar a religião numa base científica? – assim pensaram os deístas do século
XVIII (ROVIGHI, 2002).

No século XIX, Sócrates era considerado uma figura seminal na


evolução do pensamento europeu ou como um arauto semelhante a Cristo de
uma existência superior. G. W. F. Hegel viu em Sócrates uma mudança decisiva
de hábitos morais pré-reflexivos para uma autoconsciência que, tragicamente,
ainda não aprendera como se reconciliar com os padrões cívicos universais.
Søren Kierkegaard, cuja dissertação examinou a ironia socrática, encontrou
em Sócrates uma antecipação pagã de sua crença de que o Cristianismo é uma
doutrina vivida de exigências quase impossíveis; mas ele também considerava
a ironia socrática como uma profunda indiferença à moralidade (STEWART,
2015). Friedrich Nietzsche lutou ao longo de seus escritos contra o racionalismo
unilateral e a destruição de formas culturais que encontrou em Sócrates
(NIETZSCHE, 1992).

Em contraste, na Inglaterra vitoriana, Sócrates foi idealizado por


pensadores utilitaristas como um mártir parecido com Cristo, que lançou as
bases de uma cosmovisão moderna, racional e científica. John Stuart Mill (2006)
menciona as execuções jurídicas de Sócrates e de Cristo ao mesmo tempo, a fim
de chamar a atenção para as terríveis consequências de permitir que a opinião
comum persiga os pensadores pouco ortodoxos. Benjamin Jowett, o principal
tradutor de Platão no final do século XIX, disse a seus alunos em Oxford: “As
duas biografias sobre as quais estamos mais profundamente interessados​​
(embora não no mesmo grau) são aquelas de Cristo e Sócrates” (TURNER, 1981,
p. 265). Tais comparações continuaram no século XX: Sócrates é tratado como
um "indivíduo paradigmático" (junto a Buda, Confúcio e Cristo) pelo filósofo
existencialista alemão, Karl Jaspers (2003).

O conflito entre Sócrates e a democracia ateniense moldou o pensamento


dos filósofos políticos do século XX, como Leo Strauss, Hannah Arendt e Karl
Popper. A tradição de autorreflexão e cuidado de si em Sócrates fascinou
o filósofo francês, Michel Foucault, em seus escritos posteriores. A filosofia
analítica, uma tradição intelectual que tem suas origens nos trabalhos de Gottlob
Frege, G. E. Moore e Bertrand Russell, no final do século XIX e início do século

34
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

XX, usam como uma de suas ferramentas fundamentais um processo chamado


"análise conceitual", uma forma de investigação não empírica que se assemelha
à busca de definições de Sócrates.

Todavia, a influência de Sócrates é sentida não apenas entre os filósofos


e outros dentro da Academia. Ele permanece, para todos nós, um desafio à
complacência e um modelo de integridade.

35
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

INTRODUÇÃO DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA

“O gênio grego representa, em todos os domínios, e pela primeira vez, a


libertação do espírito humano”.

René Grasset

1 O NASCIMENTO DA FILOSOFIA: CRIAÇÃO GREGA OU ORIGEM


ORIENTAL?

Normalmente, a Filosofia é reconhecida como uma criação do gênio


grego, ou seja, ela teria nascido em Mileto, cidade localizada em uma colônia
grega (Jônia) da Ásia Menor, atual Turquia, no século VI antes de Cristo, com
Tales de Mileto.

A esse respeito, porém, existem divergências, contestações, que podemos


encontrar mesmo entre os antigos, entre historiadores do século XVIII, e entre
orientalistas em geral, que não creem ser a Filosofia uma criação original da
Grécia, mas que elementos anteriores, oriundos de outras civilizações já conteriam
elementos que desdobrar-se-iam no que hoje conhecemos como Filosofia.

Esses últimos apresentaram provas aparentes de que sua posição deveria


vigorar, retirando do pensamento grego a originalidade no que concerne a tão
disputado saber. Várias foram as vozes que questionaram a origem grega da
Filosofia, tais como os sacerdotes egípcios, que não duvidaram em fundar a
Filosofia na sabedoria egípcia; os hebreus alexandrinos, que sustentaram ser a
Filosofia devedora de Moisés; os gregos do último período da filosofia grega, como
Numênio, um neopitagórico, que sustentava ser Platão um Moisés que falava
ático (REALE, v. I, 1993, p. 15; Burnet, 1994, p. 26); e até mesmo os apologistas
cristãos, como Clemente de Alexandria, que julgava ser Platão um filósofo
judaizante (CONCHE, 1991, p. 6), mesmo que historiadores como Momigliano
negassem fortemente tal afirmação, sustentando que antes de Alexandre Magno,
os gregos não conheciam a existência dos judeus, e que Platão mesmo ignorava a
existência de Moisés (1991, cap. 4).

O problema é que tal posição, contrária à ideia do milagre grego, recebeu


sérios questionamentos já no século XIX. Isso não significa afirmar que não tenha
havido sobre a Grécia influências de outras culturas, e influências importantes.

Podemos encontrar essas influências em variados âmbitos, como na


cerâmica, na escultura, na matemática, na astronomia. Mas podemos reconhecer
que transmitir uma arte não pressupõe uma língua comum, ou abstrata, tão
somente imitação (BURNET, 1994, p. 27) e que, mesmo na matemática e na
astronomia, o universo referencial entre os que transmitiram e os que receberam
36
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

a influência não é necessariamente o mesmo, pois facilmente podemos observar


que o emprego da matemática no Egito possuía um caráter prático, regras de
medição das cheias do Nilo, por exemplo, enquanto na astronomia os babilônios
tinham como interesse básico a adivinhação, ou seja, o que surge desse tipo de
preocupação é o caráter prático dessas disciplinas, que visavam sobretudo o útil
(BURNET, 1994, p. 27-32).

Não é o caso da Filosofia, pois esta tem, e tinha, a necessidade de uma


linguagem abstrata, uma terminologia especializada, pois não era a utilidade o que
estava em questão, mas o aspecto teórico, na medida em que buscava a verdade.
As influências recebidas pelo mundo grego, seja no campo das ciências ou da arte,
adquiriam uma nova forma. Os gregos extrapolaram as influências recebidas, a
matemática passa a ter um interesse diverso, buscando estabelecer um estudo
científico dos números, fundamentado por demonstrações teóricas. No caso da
astronomia, a preocupação babilônia não passou da fase empírica, restringindo-
se a propostos astrológicos, sem o interesse científico no qual se pautavam os
gregos, que se interessaram mais em desenvolver esforços no sentido de responder,
mesmo que erroneamente, questões sobre a terra – entendida como uma esfera que
repousava sobre o nada e que não era o centro do universo, mas que girava em
torno dele – ou apresentar uma teoria sobre a natureza dos eclipses solares lunares.

O que isso significa? Que os gregos buscaram superar e transformar as


influências recebidas (REALE, v. I, 1993, p. 16). Desse modo, pode-se afirmar
que a Filosofia é uma criação do gênio grego, pois essas influências recebidas
não caracterizam uma possível origem oriental da Filosofia, na medida em
que, o que interessa é o que os gregos fizeram com essa influência. A resposta
é simples: eles transformaram de maneira radical tais influências, retirando seu
caráter talvez ingênuo e, meramente prático, construindo uma nova forma de
pensar, fundamentada essencialmente em um tipo de pensamento destituído de
um caráter mítico ou religioso, isto é, em uma investigação baseada apenas e tão
somente na Razão.

As afirmações apresentadas acima não são arbitrárias, pois existe uma


série de argumentos que dão credibilidade às mesmas.

Se observarmos a obra de Heródoto, Platão ou Aristóteles (REALE, v.


I, 1993, p.13), veremos que não há menção alguma a uma possível influência
oriental, que passaremos a denominar a Tese Oriental. Em Heródoto, isto é ainda
mais significativo, pois ele próprio acreditava na origem egípcia da civilização e
da religião grega (BURNET, 1994, p.25). O mesmo ocorre quando lemos Diógenes
Laércio, na sua obra Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, em que em nenhum
momento temos uma dúvida acerca da origem grega (ver, especialmente, I 1-11).

Paradoxalmente, a dúvida sobre a origem grega teve início no próprio


mundo grego, embora – e retornaremos ao assunto posteriormente – ela tenha
se dado em um momento de decadência da filosofia grega, onde a investigação
racional perde sua vitalidade em detrimento de um retorno de aspectos religiosos.

37
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Mas como demonstram historiadores da Filosofia, há normalmente


uma inversão sobre o que influenciou quem, pois os já mencionados sacerdotes
egípcios defenderam a chamada Tese Oriental somente após terem elaborado
uma interpretação do mito de Isis e Osíris (Burnet, 1994, p. 26). Os judeus de
Alexandria e os próprios egípcios encontraram possíveis “coincidências” entre
seu tipo particular de sabedoria e a filosofia grega a partir de uma “interpretação
alegórica bastante arbitrária dos mitos egípcios ou das narrações bíblicas” (REALE,
v. I, 1993, p.14). Na realidade, concepções e categorias gregas são utilizadas para
desvelá-los (os mitos e narrações), invertendo o caminho que foi feito, passando,
então, a surgir a afirmação de parte dos egípcios e judeus alexandrinos de que
eles teriam sido a fonte de tais concepções e categorias. Isso serve não somente
no caso do mito de Isis e Osíris, mas também no caso do Antigo Testamento,
especialmente o Deuteronômio e o Gênesis (como nota Conche, somente na
antiguidade tardia a mencionada Tese Oriental surgiu).

Obviamente, outras paternidades foram requeridas, como a possível


relação do pensamento indiano com a filosofia grega. Podemos considerar que
a Índia, na antiguidade, foi a única que possuiu algo similar à filosofia grega,
embora existam indícios de influência dessa última sobre o primeiro. O problema
é que, como afirmam alguns estudiosos, a cronologia do sânscrito indica que os
grandes sistemas indianos são posteriores à filosofia grega (BURNET, 1994, p. 27).
Independentemente disso, não há explicações consistentes de como teorias hindus
teriam chegado ao mundo grego.

O mesmo ocorre com o Enuma Elish, o Poema da Criação na Mesopotâmia. No


Poema, há a afirmação de que o princípio de todas as coisas seria a água, a mesma tese
que sustentaria Tales em VI a.C. Vejamos um trecho do Poema da Criação (Tabua 1):

Quando no alto não se nomeava o céu,


e embaixo a terra não tinha nome,
do oceano primordial (Apsu), seu pai;
e da tumultuosa Tiamat, a mãe de todos,
as águas se fundiam numa,
e os campos não estavam unidos uns com os outros, nem se viam os canaviais;
quando nenhum dos deuses tinha aparecido, nem eram chamados pelo seu nome,
bem tinham qualquer destino fixo, foram criados os deuses nos seios das águas.

A aproximação entre o Poema da Criação e os primórdios da Filosofia na


Grécia poderia ser relevante se não houvesse uma radical distinção de propósitos.
No Enuma Elish há uma clara descrição mítico-religiosa, em que, em nenhum
momento, há um questionamento a respeito do porquê, das razões, com base em
que argumentos poder-se-ia afirmar que tudo teria origem nos “seios das águas”.
O motivo era simples: não era o motivo do estabelecimento do Poema, e isso
o diferencia de modo evidente do pressuposto básico da Filosofia, qual seja, o
“dar razões”, explicar racionalmente o que justifica determinada proposição. Por
conseguinte, parece manifesto que as preocupações eram radicalmente distintas:
de um lado a construção mítico-religiosa, de outro, a investigação especificamente
racional.
38
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

Como já foi afirmado por Reale (v. I, 1994, p. 11, 13), não temos acesso a
nenhuma evidência histórica ou arqueológica que deem guarida à Tese Oriental.
Acrescente-se a isso o fato razoável de que os conceitos filosóficos demandam
o uso de expressões linguísticas refinadas (REALE, v. I, 1993, p. 15), e não a
linguagem utilizada nas relações comerciais. Sem o domínio da língua sofisticada
manejada pela Filosofia, onde subjaz sua terminologia, não haveria possibilidade
da existência da mesma. Não devemos esquecer que sem a língua grega não
teríamos o que conhecemos por Filosofia, na medida em que toda a terminologia
filosófica se origina grega, bem como os conceitos têm origem na filosofia
grega. Poderia ser objetado que o alfabeto grego tem origem no alfabeto fenício,
composto por vinte e dois signos que eram idênticos a vinte e duas consoantes. A
resposta parece clara; até no âmbito do alfabeto os gregos atuaram, introduzindo
no alfabeto herdado da Fenícia, progressivamente, as vogais, o que certamente
influenciou a linguagem filosófica (CONCHE, 1991, p. 6).

Tais circunstâncias mostram claramente a distinção entre a filosofia grega e


toda forma de pensamento anterior a ela: os gregos preocuparam-se em justificar,
fundamentar racionalmente suas argumentações. Muitas das coisas que defenderam
provaram-se falsas, e mesmo inconsistentes, mas o método subjacente era claro, a
tentativa de compreensão da realidade baseada apenas e tão somente na razão, o
que os diferenciava dos orientais, a quem certamente não faltava racionalidade,
mas uma racionalidade perpassada pelo aspecto mítico-religioso.

Essa mudança estrutural especifica a distinção entre o pensamento oriental


e a filosofia grega. As palavras de Nietzsche são extremamente apropriadas para
este tipo de afirmação: “Outros povos possuem santos, enquanto os gregos, por
sua vez, têm sábios” (NIETZSCHE, 2008, p. 36). As intenções entre os dois campos
eram distintas, já que a Filosofia não poderia ter vindo do Egito ou da Fenícia
pelo simples motivo de que ela não se encontrava lá, o que antes poderia ser
denominado Filosofia, não era Filosofia, mas pensamento religioso, mito, ou seja,
não era Filosofia em qualquer acepção: “Buscar a verdade sem outra preocupação
que a verdade ela mesma, isto pertence aos gregos” (CONCHE, 1991, p. 6).

2 ORIGENS GREGAS DA FILOSOFIA

Afirmamos que não houve uma origem oriental da Filosofia, mas existem,
segundo Reale (1993, p. 17-27), “formas de vida espiritual” que serviram de
preparação para o surgimento da Filosofia na Grécia. São elas:

1. os poemas homéricos (Ilíada e Odisseia): eles teriam como característica o


sentido de harmonia, proporção, limite e medida, que serão temas caros à
filosofia grega. Além disso, a narrativa dos poemas busca, de algum modo,
estabelecer razões, o que resultaria, como na investigação propriamente
filosófica posterior, uma antecipação das ideias de “causa” e “princípio”
(p. 20), por exemplo;

39
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

2. os deuses da religião pública e sua relação com a Filosofia: nesse quesito, há
concepção de que tudo é divino, seja no sentido de que todas as coisas que
acontecem são decorrentes dos deuses, inclusive os fenômenos da natureza
e da vida humana. Os deuses seriam “forças naturais diluídas em formas
humanas idealizadas” (p. 21-22), o que faria da religião grega uma “religião
naturalista”: então teríamos uma religião pública naturalista, do mesmo modo
que a primeira filosofia foi naturalista;
3. a religião dos mistérios: sobretudo o Orfismo, especialmente a sua doutrina
da transmigração das almas e sua concepção dualista de alma e corpo, sendo
o último considerado o corpo da alma, concepções que encontramos em
Pitágoras e Platão dentre outros (p. 24);
4. as condições sócio-político-econômicas: com a criação da polis, o indivíduo
passa a se reconhecer na cidade-estado, sendo que o fim de ambos coincide,
bem como a liberdade de ambos (p. 26), liberdade expressa nas constituições
de cada cidade-estado (p. 27). Outro fator que contribui foi a expansão das
colônias gregas para a Ásia Menor e para a Magna Grécia (Itália). É interessante
salientar que nesse período a Jônia, e por consequência Mileto, cresceram
notavelmente, seja economicamente, devido ao comércio, seja culturalmente,
em função do desenvolvimento político, incisivamente na arte (pintura), na
literatura e na arquitetura (BARNES, 1997, p. 11).

3 PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA

A filosofia grega compreende o período de 585 a.C., com Tales de Mileto,


a 529 d.C., quando do édito e Justiniano proibindo o ensino da filosofia pagã nas
escolas cristãs.

O estabelecimento de períodos no que concerne à filosofia grega é


necessariamente arbitrário em função de que nem sempre tais períodos obedecem
rigidamente à cronologia. Cientes deste caráter arbitrário, proporemos a seguinte
divisão:

a) Período cosmológico ou naturalista: esse período tem como característica


básica a pergunta pela origem e natureza das coisas e do Cosmos, e é onde nós
temos os chamados pré-socráticos.
b) Período antropológico ou humanista: esse período representa o esquecimento
da preocupação e investigação acerca da origem das coisas e do Cosmos, e
passa a preocupar-se com as questões referentes ao homem. É o período
relativo aos Sofistas e a Sócrates.
c) Período das grandes sínteses: é o período mais rico da filosofia grega, onde há a
preocupação essencial com os fundamentos do conhecimento e da moralidade,
e de vários outros problemas filosóficos.
d) Período ético/epistemológico: é o período referente ao epicurismo, estoicismo
e ceticismo, onde afloram uma plêiade de preocupações éticas, como, por
exemplo, o ideal de sábio, e questões relativas à possibilidade do conhecimento
e o estabelecimento de critérios de verdade.

40
TÓPICO 2 | A FILOSOFIA DE SÓCRATES

e) Período transcendente ou religioso: é o período em que temos a retomada de


Platão e Pitágoras, onde é deixada de lado a investigação sobre a realidade
sensível, passando-se a tratar do suprassensível. É o momento no qual a razão
perde vitalidade, deixando de ser o critério único para explicar a realidade.

4 FONTES DA FILOSOFIA GREGA

i. Platão e Sofistas.
ii. Aristóteles (sobretudo no livro primeiro da Metafísica onde ele faz uma
história, ou revisão, das doutrinas dos primeiros filósofos, normalmente
crítica, buscando mostrar a insuficiência argumentativa dos mesmos).
iii. Teofrasto (A opinião dos Físicos).
iv. Estoicos.
v. Céticos (Sexto Empírico, que tem por método salientar as variadas
contradições encontradas em determinadas doutrinas).
vi. Neoplatonismo (Plotino).
vii. Biografias e Doxografias (doxógrafos são os que relatam as doutrinas dos
filósofos gregos). O exemplo mais conhecido é a Vida e doutrinas dos
Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio.
viii. As sucessões dos filósofos: uma sucessão pode possuir dois aspectos: (a)
funciona como uma prática institucional (Academia, Liceu), na qual um
sucessor é apontado ou escolhido; ou (b) a postulação de um suposto vínculo
doutrinal, real ou aparente, entre filósofos e escolas.
ix. Outras fontes: Clemente de Alexandria, Estobeu.
x. Comentadores: Alexandre de Afrodísia, Simplício, Proclo.

FONTE: HOBUSS, João Francisco Nascimento. Introdução à história da filosofia antiga. Pelotas:
NEPFIL online, 2014. p. 15-24.

41
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Sócrates não era de linhagem nobre ou rica, mas muitos de seus admiradores
eram, incluindo vários cidadãos atenienses mais proeminentes na política.

• A concepção de virtude de Sócrates como uma forma de conhecimento explica


por que ele considera ser da maior importância buscar respostas para perguntas
como: “O que é coragem?” e “O que é piedade?”.

• Para os antigos gregos, eirôneia significava “dissimulação” – um usuário da


eirôneia está tentando esconder alguma coisa.

• O retrato de Platão, por Sócrates, como um "ironista", mostra como a conversa


com ele poderia facilmente levar a um frustrante impasse e como a possibilidade
de ressentimento estava sempre presente.

• Aristófanes dedicou uma peça inteira a Sócrates e a chamou de As Nuvens


(1987), dedicada a desbancar e ridicularizar a profissão de aprendizagem de
Sócrates.

• Sócrates diz aos jurados que, como resultado de suas investigações, ele
aprendeu uma amarga lição sobre seus concidadãos: não apenas eles não
possuem o conhecimento que afirmam ter, mas se ressentem de ter esse fato
apontado para eles.

• Um dos componentes mais sutis da explicação de Sócrates para o ódio que ele
suscitou é o argumento de que as pessoas escondem a vergonha que sentem
quando são incapazes de resistir a seus argumentos destrutivos.

• O julgamento de Sócrates, o pequeno discurso Apologia, tem lugar à sombra da


derrota militar, da resistência, da conspiração e da traição.

• O pensamento de Sócrates estava tão cheio de possibilidades que seu modo de


vida, tão provocativo, inspirou uma variedade notável de respostas.

• Os cínicos, ao contrário de Sócrates, tratavam todas as distinções convencionais


e tradições culturais como impedimentos à vida da virtude.

• A influência de Sócrates em Zenão foi mediada pelos cínicos, mas os estoicos


romanos – particularmente Epiteto – consideravam Sócrates como o paradigma
da força interior sagaz e inventaram novos argumentos para a tese socrática de
que a virtude é suficiente para a felicidade.

42
• Sócrates apenas afirma não ter conhecimento e considera certas teses muito
mais dignas de nossa credibilidade do que suas negações.

• No século XIX, Sócrates era considerado uma figura seminal na evolução do


pensamento europeu ou um arauto semelhante a Cristo de uma existência
superior.

• O conflito entre Sócrates e a democracia ateniense moldou o pensamento dos


filósofos políticos do século XX, como Leo Strauss, Hannah Arendt e Karl
Popper.

43
AUTOATIVIDADE

1 Sócrates afirma que não tinha medo da morte. Quais são os motivos que ele
apresenta para justificar este posicionamento?

2 Sócrates alega que as falsas impressões de seus "primeiros acusadores


derivam de uma peça de Aristófanes. Sócrates está se referindo à qual peça?

3 Em suas argumentações, Sócrates critica a democracia ateniense. Quais são


as críticas apresentadas pelo filósofo?

44
UNIDADE 1
TÓPICO 3

A FILOSOFIA DE PLATÃO

1 INTRODUÇÃO
Platão, com seu professor Sócrates e seu aluno Aristóteles, lançaram as
bases filosóficas da cultura ocidental.

Com base na demonstração de Sócrates, de que aqueles considerados


experts em questões éticas não tinham o entendimento necessário para uma boa
vida humana (o bem-viver), Platão introduziu a ideia de que seus erros se deviam
ao fato de não se envolverem adequadamente com uma classe de entidades
que ele denominou de formas, exemplos dos quais eram a Justiça, a Beleza e a
Igualdade. Enquanto outros pensadores – e o próprio Platão em certas passagens
– usavam o termo sem qualquer força técnica precisa, Platão, no decorrer de sua
carreira, passou a dedicar atenção especializada a essas entidades. Como ele as
concebeu, elas eram acessíveis, não aos sentidos, mas apenas à mente, e eram as
constituintes mais importantes da realidade, subjacentes à existência do mundo
sensível e dando-lhe a inteligibilidade que possui.

Na metafísica, Platão imaginou um tratamento sistemático e racional das


formas e suas inter-relações, começando pelas mais fundamentais, entre elas: o
Bem ou o Uno. Na ética e na psicologia moral, ele desenvolveu a visão de que a boa
vida requer não apenas um certo tipo de conhecimento (como sugerira Sócrates),
mas também habituação a respostas emocionais saudáveis ​​e, portanto, harmonia
entre as três partes da alma. Segundo Platão, estas seriam a alma racional, a alma
irascível e a alma apetitiva. Seus trabalhos também contêm discussões em estética,
filosofia política, teologia, cosmologia, epistemologia e filosofia da linguagem.
Sua escola fomentou a pesquisa, não apenas na filosofia, concebida de maneira
restrita, mas em uma ampla gama de atividades que hoje seriam chamadas de
matemáticas ou científicas.

2 A VIDA DE PLATÃO
Platão, filho de Ariston e Perictione, nasceu em 428 a.E.C., o ano após a
morte do grande estadista ateniense Péricles, e morreu em 348 a.E.C. Seus irmãos
Glauco e Adimanto são retratados como interlocutores na obra-prima de Platão
(2001), A República, e seu meio-irmão, Antifonte, na obra Parmênides (PLATÃO,
2015). A família de Platão era aristocrática e distinta: o lado de seu pai alegava
descendência do Deus Poseidon e o lado de sua mãe estava relacionado ao

45
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

legislador Sólon (c. 630-560 a.E.C.). Menos dignos de crédito, os parentes próximos
de sua mãe, Crítias e Cármides, estavam entre os Trinta Tiranos que tomaram o
poder em Atenas e governaram brevemente até a restauração da democracia em
403 a.E.C.

Platão, quando jovem, era membro do círculo em torno de Sócrates. Como


este último não escreveu nada, o que se sabe de sua atividade característica de
engajar seus concidadãos (e a ocasional celebridade itinerante) em diálogos
deriva inteiramente dos escritos de outros, mais notavelmente do próprio Platão.
As obras de Platão, comumente referidas como "socráticas", representam o tipo
de coisa que o Sócrates histórico estava fazendo. Ele desafiaria homens que
supostamente possuíssem expertise sobre alguma faceta da excelência humana
para dar justificativas desses assuntos – às vezes da coragem, da piedade e assim
por diante, ou às vezes de toda a “virtude” – e eles normalmente não conseguiam
manter sua posição. Platão foi profundamente afetado tanto pela vida quanto pela
morte de Sócrates. A atividade do homem mais velho forneceu o ponto de partida
do filosofar de Platão. Além disso, se acreditarmos na Carta VII de Platão (2011a)
– a sua autoria é contestada –, o tratamento de Sócrates, tanto pela oligarquia
quanto pela democracia fez com que Platão se tornasse cauteloso de entrar na
vida pública, como alguém de seu background normalmente faria.

Após a morte de Sócrates, Platão pode ter viajado extensivamente pela


Grécia, Itália e Egito, embora em tais detalhes as evidências sejam incertas.
Os seguidores de Pitágoras (c. 580-500 a.E.C.) parecem ter influenciado seu
programa filosófico. Eles são criticados no Fédon (PLATÃO, 2008) e na República
(PLATÃO, 2001), mas recebem menção respeitosa no Filebo (PLATÃO, 2015).
Acredita-se que suas três viagens a Siracusa, na Sicília – muitas das Cartas e
Epigramas (PLATÃO, 2011b) dizem respeito delas, embora sua autenticidade seja
controversa –, levaram a um profundo apego pessoal a Dion (408-354 a.E.C.),
cunhado de Dionísio I, o Antigo (430-367 a.E.C.), tirano de Siracusa. Platão, a
pedido de Dion, aparentemente se comprometeu a colocar em prática o ideal do
"Rei-Filósofo" (descrito na República), educando Dionísio II, o Jovem. O projeto
não foi um sucesso e, na instabilidade que se seguiu, Dion foi assassinado.

A Academia de Platão, fundada nos anos 380 a.E.C. e localizada nos


arredores de Atenas, foi o ancestral supremo da universidade moderna, daí o
termo “acadêmico”. Era um centro influente de pesquisa e aprendizagem,
atraiu muitos homens de excelente capacidade. Os grandes matemáticos Teeteto
(417-369 a.E.C.) e Eudoxo de Cnidus (c. 395-342 a.E.C.) estavam associados a
ela. Embora Platão não fosse um matemático de pesquisa, ele estava ciente dos
resultados daqueles que eram, e ele os utilizou em seu próprio trabalho. Por 20
anos, Aristóteles também foi membro da Academia. Ele começou sua própria
escola, o Liceu, somente após a morte de Platão, quando ele foi preterido como
sucessor de Platão na Academia, provavelmente por causa de suas conexões com
a corte da Macedônia, onde ele ensinou Alexandre, o Grande, quando o futuro
imperador era um menino.

46
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

Como Aristóteles frequentemente discute questões contrastando seus


pontos de vista com os de seu professor, é fácil ficar impressionado com as
maneiras pelas quais eles divergem. Assim, enquanto para Platão a coroa da
ética é o bem em geral, ou a Bondade em si mesma (o Bem), para Aristóteles é o
bem para os seres humanos. Para Platão, o gênero ao qual pertence alguma coisa
possui uma realidade maior do que a própria coisa; para Aristóteles, o oposto é
verdadeiro. A ênfase de Platão no ideal e de Aristóteles no mundano, informa
a representação de Rafael dos dois filósofos na Escola de Atenas (1508-111). Mas,
se considerarmos os dois filósofos, não apenas em relação um ao outro, mas no
contexto de toda a filosofia ocidental, fica claro o quanto o programa de Aristóteles
é contínuo com o de seu professor. De fato, pode-se dizer que a pintura representa
essa continuidade ao mostrar os dois homens conversando amigavelmente (ver
Figura 3). Em todo caso, a Academia não impôs uma ortodoxia dogmática e, de
fato, parece ter fomentado um espírito de investigação independente; mais tarde,
assumiu uma orientação cética.

FIGURA 3 – ESCOLA DE ATENAS (1508-111) DE RAFAEL

FONTE: <http://lounge.obviousmag.org/espaco_cosmico/RAFFAELLO-La-scuola-di-Atene.jpg>.
Acesso em: 17 maio 2019.

3 A FORMA DE DIÁLOGO
Vislumbrado sombriamente, mesmo através do vidro da tradução, Platão
aparenta ser um grande artista literário. No entanto, ele também fez observações,
notoriamente, negativas sobre o valor da escrita. Da mesma forma, embora ele
acreditasse que pelo menos um dos propósitos – se não o propósito principal –
da filosofia era permitir que alguém vivesse uma vida boa, compondo diálogos
em vez de tratados, ele omitiu dizer aos seus leitores, diretamente, quaisquer
verdades úteis para as quais viver.

47
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Um modo de resolver essas aparentes tensões é refletir sobre a concepção


de filosofia de Platão. Um aspecto importante dessa concepção, compartilhada
por muitos filósofos desde o tempo de Platão é que a filosofia visa não tanto
à descoberta de fatos ou ao estabelecimento de dogmas, quanto a alcançar a
sabedoria ou a compreensão. Essa sabedoria ou compreensão é uma posse
extremamente difícil de ser obtida. Não é exagero dizer que é o resultado de um
esforço vitalício, se é que é conseguido. Além disso, é uma posse que cada pessoa
deve conquistar por si mesma.

A escrita ou conversação de outros pode ajudar no progresso filosófico,


mas não pode garantir isso. O contato com uma pessoa viva, no entanto, tem
certas vantagens em relação ao encontro com um texto. Como assinalou Platão,
a escrita é limitada por sua fixidez: ela não pode se modificar para se adequar
ao leitor individual ou acrescentar algo novo em resposta a consultas. Portanto,
é natural que Platão tivesse expectativas limitadas sobre o que as obras escritas
poderiam alcançar. Por outro lado, ele claramente não acreditava que a escrita
não tivesse valor filosófico. As obras escritas ainda servem a um propósito, como
formas de interagir com os habitantes de tempos e lugares, além do próprio autor
e como um meio no qual as ideias podem ser exploradas e testadas.

A forma de diálogo é adequada para um filósofo do tipo de Platão. Seu uso


de elementos dramáticos, incluindo humor, atrai o leitor. Platão é incomparável
em sua capacidade de recriar a experiência de conversação. Os diálogos
contêm, além de Sócrates e outras figuras de autoridade, números imensos de
personagens adicionais, alguns dos quais atuam como representantes de certas
classes de leitores (como Glauco pode ser um representante de jovens talentosos
e politicamente ambiciosos). Esses personagens funcionam não apenas para levar
adiante linhas de pensamento específicas, mas também para inspirar os leitores a
fazerem o mesmo – para se juntarem imaginativamente à discussão, construindo
argumentos próprios e objeções. Levar os leitores à atividade filosófica é o objetivo
principal dos diálogos.

4 FELICIDADE E VIRTUDE
A questão característica da ética antiga é “Como posso ser feliz”? E a
resposta mais comum a ela é “Por meio da virtude”. Mas no sentido relevante,
a felicidade – a tradução da antiga eudaimonia grega – não é um humor ou
sentimento, mas uma condição na qual ocorre o florescimento e a excelência.
Ser feliz significa viver uma vida de florescimento humano. Por isso, a pergunta
"Como posso ser feliz?” é equivalente à "Como posso viver uma vida boa"?

Enquanto a noção de felicidade na filosofia grega se aplica, no máximo,


às coisas vivas, a de arete – "virtude" ou "excelência" – aplica-se muito
mais amplamente. Qualquer coisa que tenha um uso, função ou atividade
característicos, tem uma virtude ou excelência, que é qualquer disposição que
permita que coisas desse tipo tenham um bom desempenho. A virtude humana,

48
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

portanto, é o que permite que os seres humanos tenham uma vida boa. Mas está
longe de ser óbvio em que consiste uma vida boa e, por isso, é difícil dizer o que
virtude poderia ser.

Já na época de Platão, um conjunto convencional de virtudes passou a


ser reconhecido pela cultura maior. Estas incluíam coragem, justiça, piedade,
modéstia ou temperança e sabedoria. Sócrates e Platão se comprometeram a
descobrir o que essas virtudes realmente equivalem. Um relato verdadeiramente
satisfatório, de qualquer virtude, identificaria o que é, mostraria como possuí-la,
permitiria que se viva bem e indicaria como ela é melhor adquirida.

Na representação de Platão, da atividade do Sócrates, histórico, os
interlocutores são examinados em uma busca por definições das virtudes.
É importante entender, no entanto, que a definição procurada não é lexical,
é meramente especificando o que um falante da língua entenderia sobre o
significado do termo, como uma questão de competência linguística. Em vez
disso, a definição é aquela que dá conta da natureza real da coisa nomeada pelo
termo; portanto, às vezes é chamada de definição “real”. A definição real de água,
por exemplo, é H2O, embora os falantes na maioria das épocas históricas não
soubessem disso.

Nos encontros que Platão retrata, os interlocutores tipicamente oferecem


um exemplo da virtude que eles são solicitados a definir (não o tipo certo de
resposta) ou dão uma explicação geral (o tipo certo de resposta) que falha em
concordar com suas intuições em assuntos relacionados. Sócrates tende a sugerir
que a virtude não é uma questão de comportamento externo, mas é ou envolve um
tipo especial de conhecimento (conhecimento do bem e do mal ou conhecimento
do uso de outras coisas).

O Protágoras (PLATÃO, 2007) trata da questão de saber se as várias virtudes


comumente reconhecidas são de fato virtudes diferentes ou se são realmente
apenas uma virtude. Partindo da afirmação do interlocutor de que muitos não
têm nada a oferecer como sua noção do bem além do prazer, Sócrates desenvolve
uma imagem do agente de acordo com a qual a grande arte necessária para uma
boa vida humana é o mensurar e o calcular. O conhecimento das magnitudes dos
prazeres e dores futuras é tudo o que é necessário. Se o prazer é o único objeto de
desejo, parece ininteligível o que, além do simples erro de cálculo, poderia fazer
com que alguém se comportasse mal. O homem de virtudes absolutas deveria
consistir de certo tipo de sabedoria. A ideia de que o conhecimento é tudo o que
alguém precisa para uma vida boa, e de que não há um aspecto de caráter que
não seja redutível à cognição (e, portanto, nenhum fracasso moral ou emocional
que não seja um fracasso cognitivo) é a posição caracteristicamente socrática.

Na República, no entanto, Platão (2001) desenvolve uma visão de felicidade


e virtude que se afasta da de Sócrates. Segundo Platão, existem três partes da
alma, cada uma com seu próprio objeto de desejo. A razão deseja a verdade e o
bem de todo o indivíduo, o espírito (parte irascível) está preocupado com a honra

49
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

e os valores competitivos, e o apetite tem os gostos inferiores e tradicionais de


comida, bebida e sexo. Como a alma é complexa, o cálculo errôneo não é a única
maneira de errar. As três partes podem puxar em direções diferentes, e o elemento
inferior, em uma alma que é superdesenvolvida, pode vencer. Correspondendo a
isso, o bom estado da alma envolve mais do que apenas excelência cognitiva. Nos
termos da República, a alma sadia ou justa tem harmonia psíquica – a condição na
qual cada uma das três partes faz seu trabalho adequadamente. Assim, a razão
compreende o bem em geral e deseja o bem real do indivíduo e as outras duas
partes da alma desejam o que é bom que elas desejem, de modo que o espírito e o
apetite sejam ativados por coisas que são saudáveis e​​ adequadas.

Embora o diálogo, na República (PLATÃO, 2001), comece com a pergunta


“Por que eu deveria ser justo?”, Sócrates propõe que essa investigação possa ser
avançada examinando a justiça “em grande escala” em uma cidade ideal. Assim,
a discussão política é realizada para auxiliar a discussão ética. Um indício inicial
da existência das três partes da alma no indivíduo é a existência de três classes
no Estado em bom funcionamento: governantes, guardiões e artesãos. O Estado
sábio é aquele em que os governantes entendem o bem; o Estado corajoso é aquele
em que os guardiões podem reter no calor da batalha os julgamentos proferidos
pelos governantes sobre o que deve ser temido; o Estado com temperança é aquele
em que todos os cidadãos concordam sobre quem deve governar. Deste modo um
Estado justo é aquele em que cada uma das três classes faz seu próprio trabalho
corretamente. Assim, para que a cidade seja totalmente virtuosa, cada cidadão
deve contribuir apropriadamente.

A justiça, tal como concebida na República, é tão abrangente que uma


pessoa que a possuísse também possuiria todas as outras virtudes, alcançando
assim a saúde daquilo em que vivemos, a alma. Contudo, para que não se pense
que apenas a habituação e a instrução correta nos assuntos humanos podem levar
a esta condição, deve-se manter em vista que a República também desenvolve a
famosa doutrina, segundo a qual, a razão não pode compreender, adequadamente,
o bem humano ou qualquer outra coisa sem compreender a forma do Bem em si
mesmo. Assim, a investigação original, cujo ponto de partida foi uma motivação
que cada indivíduo presumivelmente tem (aprender a viver bem), leva a um
programa educacional altamente ambicioso. Começando com a exposição apenas
a histórias salutares, poesia e música desde a infância e, continuando com a
habituação supervisionada a uma boa ação e anos de treinamento em uma série
de disciplinas matemáticas, este programa – e assim a virtude – estaria completo
apenas na pessoa que fosse capaz de compreender o primeiro princípio, o Bem,
e proceder nessa base para assegurar o entendimento das outras realidades. Há
sugestões na República, assim como em vários diálogos mais técnicos, que esse
primeiro princípio é idêntico à Unidade, ou o Uno.

50
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

5 A TEORIA DAS FORMAS


Platão é tanto famoso quanto infame por sua teoria das formas. O que a
teoria é de fato e se alguma vez ela foi viável são assuntos de extrema controvérsia.
Para os leitores que abordam Platão em português ou inglês, por exemplo, a
relação entre as formas e os particulares sensíveis é chamada de “participação”,
todavia essa tradução parece propositalmente misteriosa. Além disso, a alegação
de que o domínio sensível não é totalmente real e que, nesse aspecto, ele contrasta
com o “ser puro” das formas, é desconcertante. Uma interpretação satisfatória
da teoria deve confiar tanto no conhecimento histórico quanto na imaginação
filosófica.

5.1 CONTEXTO LINGUÍSTICO E FILOSÓFICO


Os termos que Platão usa para se referir às formas, “ideia” e “eidos”,
derivam do verbo eidô, “olhar”. Assim, uma “ideia” ou “eidos” seria a aparência
que alguma coisa apresenta, quando se fala de um vaso como tendo uma forma
adorável. Pelo motivo de que a conotação mentalista da ideia em português é
enganosa – Platão (2015), em Parmênides, mostra que as formas não podem
ser ideias em uma mente – essa tradução caiu em desuso. Ambos os termos
também podem ser usados ​​em um sentido mais geral para se referir a qualquer
característica que duas ou mais coisas têm em comum, ou a um tipo de coisa
baseada nessa característica. A palavra em português “forma” é semelhante. A
frase “a cerâmica vem em duas formas” pode ser dita significando que a cerâmica
é feita em duas formas (formatos) ou que existem dois tipos de cerâmica. Quando
Platão quer contrastar gênero com espécie, ele tende a usar os termos genos e eidos,
traduzidos como “gênero” e “espécie”, respectivamente. Embora seja apropriado
no contexto traduzi-los como “gênero” e “espécie”, respectivamente, é importante
não perder de vista a continuidade fornecida pela palavra eidos: mesmo nestas
passagens, Platão está se referindo ao mesmo tipo de entidades, as formas.

Outra consideração linguística que deve ser levada em conta é a


ambiguidade dos termos do grego antigo, do tipo que seria traduzido em português
não idiomático como “o escuro” ou “o belo”. Tais termos podem se referir a um
indivíduo em particular, que exibe a característica em questão, quando "o belo"
é usado para se referir à pessoa de Aquiles. Mas os termos também podem se
referir às características em si, quando "o belo" é usado para se referir a algo
que Aquiles tem. “O belo”, no último uso, pode então ser pensado como algo
geral que todos os belos particulares têm em comum. No tempo de Platão, termos
abstratos não ambíguos – correspondendo às palavras portuguesas “escuridão”
e “beleza” – vieram a ser usados ​​como uma maneira de evitar a ambiguidade
inerente à terminologia original. Platão usa os dois tipos de termos.

Na época de Platão, havia também precedentes filosóficos importantes


para o uso de termos como “o escuro” e “o belo” para se referir a entidades
metafisicamente fundamentais. Anaxágoras (c. 500-428 a.E.C.), o grande cientista

51
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

natural pré-socrático, propôs uma longa lista de materiais fundamentais,


sustentando que o que é comumente entendido como indivíduos são, na verdade,
compostos feitos de partes ou porções desses materiais. As propriedades dos
compostos sensíveis dependem de quais de seus ingredientes são predominantes.
Mudança, geração e destruição em particularidades sensíveis são concebidas em
termos de combinações mutáveis ​​de porções de materiais fundamentais, que são
eternos, imutáveis ​​e acessíveis à mente, mas não aos sentidos.

Para Anaxágoras (2007), ter uma parte de algo é bem direto: um composto
particular possui como ingrediente físico uma porção material da matéria
fundamental em questão. Por exemplo, uma coisa é observada como sendo
quente porque possui uma porção, suficientemente grande de “o quente”, que
é vista como a totalidade do calor no mundo. O calor é quente em si mesmo, e é
por isso que porções dele são responsáveis ​​pelo calor dos compostos. Em geral, as
matérias fundamentais postuladas por Anaxágoras possuíam as qualidades que
explicariam em particularidades sensíveis. Essas porções são, qualitativamente
idênticas umas às outras, e às porções do quente, que são perdidas por qualquer
coisa, se torna menos quente. Elas podem se mover pelo cosmos, sendo transferidas
de um composto para outro, pois o calor pode mover-se da água quente para
Aquiles, à medida que a água o aquece.

A teoria de Platão pode ser vista como sucessora da teoria de Anaxágoras.


Como Anaxágoras, Platão postula entidades fundamentais que são eternas
e imutáveis ​​e acessíveis à mente, mas não aos sentidos. Assim como na teoria
de Anaxágoras, na teoria de Platão as particularidades sensíveis exibem uma
característica dada, porque elas têm uma porção da coisa subjacente em si
mesma. O termo grego usado por ambos os autores, metechei, é tradicionalmente
traduzido como “participa em”, nas traduções de Platão, mas também como “tem
uma porção de”, nas traduções de Anaxágoras. Essa divergência teve o infeliz
efeito de esconder dos leitores de língua portuguesa que Platão está assumindo
uma noção direta de seu antecessor.

Também é possível entender com simpatia a afirmação de que as formas


têm uma realidade maior do que os particulares sensíveis. A alegação não é
certamente que o reino sensível falhe em existir, ou que exista apenas parcial
ou incompletamente. Em vez disso, as coisas sensíveis simplesmente não são
ontológicas ou explicativamente básicas: elas são constituídas e explicadas por
entidades mais fundamentais, em Platão e em Anaxágoras (e, na verdade, na
maioria das teorias científicas).

É fácil multiplicar exemplos no espírito de Platão para ilustrar que os


relatos adequados de muitas entidades fundamentais, em que ele está interessado,
não podem ser dados em termos de particularidades sensíveis ou propriedades
sensíveis. Se alguém que deseja definir beleza aponta para Helena de Troia, ele
aponta para uma coisa bela (fisicamente) e não bela (talvez moralmente). Da
mesma forma, se ele especificar uma propriedade sensível como “dourado”, ele
capta coisas que são bonitas e coisas que não são. Propriedades e particularidades

52
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

sensíveis, portanto, exibem o fenômeno que Platão chama de mover-se entre o ser
e o não ser. Essas coisas são e não são “x” para valores de “x” nos quais ele está
interessado (belo, justo, igualdade e assim por diante). Para entender a beleza
de forma adequada é preciso capturar algo que é simplesmente belo, mas isso
deve ser interpretado. Os diálogos médios (intermediários) não se comprometem
a ajudar o leitor nessa tarefa.

Observe, finalmente, que como Platão estava preocupado com propriedades


morais e estéticas, como justiça, beleza e bondade, a interpretação anaxagoriana
de participação – a ideia de que os compostos sensíveis são compostos de porções
físicas das entidades fundamentais – não estava disponível para ele. Não há
constituinte material, qualitativamente idêntico, que uma lira ganha à medida
que seu som se torna mais belo e que Aquiles perde à medida que envelhece. A
teoria das formas de Platão precisaria de uma nova interpretação da participação
se ela fosse levada adiante.

5.2 FORMAS COMO EXEMPLARES PERFEITOS


De acordo com uma visão que alguns estudiosos atribuíram aos diálogos
médios (intermediários) de Platão, a participação é imitação ou semelhança.
Cada forma é aproximada pelos detalhes sensíveis que exibem a propriedade em
questão. Assim, Aquiles e Helena são imitações imperfeitas do Belo, que em si é,
maximamente, belo. Nessa interpretação, o “ser puro” das formas consiste em ser
exemplares, perfeitos de si mesmos, e não exemplares de qualquer outra coisa.
Ao contrário de Helena, não se pode dizer que a forma do Belo seja bela e não
bela – da mesma forma para Justiça, Igualdade e todas as outras formas.

Essa interpretação de superexemplificação, da participação, fornece uma


maneira natural de entender a noção do ser puro das formas e de tais sentenças
de autopredicação, como "o Belo é belo". No entanto, é um absurdo. Na teoria
de Platão, as formas desempenham o papel funcional dos universais, e a maioria
dos universais, como a verdidão (qualidade de ser verde), a generosidade
e a grandeza, não são exemplares de si mesmos. A verdidão não exibe matiz;
a generosidade não tem ninguém a quem dar; a grandeza não é um objeto
gigantesco. Além disso, é problemático exigir formas para exemplificar apenas
a si mesmas, porque há propriedades, como o ser e a unidade, que todas coisas,
incluindo todas as formas, devem exibir. Assim, a grandeza deve ter uma parte
do Ser para ser qualquer coisa e deve ter uma parte da Unidade para ser uma
única forma. Platão não estava inconsciente das graves dificuldades inerentes à
visão de superexemplificação; de fato, no Parmênides (PLATÃO, 2015) e no Sofista
(PLATÃO, 2007) ele se tornou o primeiro filósofo a demonstrar esses problemas.

A primeira parte do Parmênides (PLATÃO, 2015) retrata o fracasso do jovem


Sócrates em manter a visão de superexemplificação das formas contra o exame
crítico do filósofo Parmênides. Uma vez que o que Sócrates diz sobre as formas é
uma reminiscência das suas afirmações nos diálogos intermediários do Simpósio,

53
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Fédon e República, o diálogo do Parmênides é usualmente interpretado como


uma avaliação negativa, por parte de Platão, da adequação de sua apresentação
anterior. Aqueles que consideram a primeira parte do Parmênides isoladamente,
tendem a supor que Platão tinha heroicamente enfrentado a inviabilidade de sua
teoria, de modo que, em seu período final, ele ficou apenas com exercícios secos e
sem inspiração, divorciado do programa emocionante das grandes obras-primas.
Aqueles que consideram o diálogo como um todo, no entanto, são encorajados
pelo elogio de Parmênides, do jovem Sócrates e por sua afirmação de que o
exercício que constitui a segunda parte do diálogo ajudará Sócrates a acertar
as coisas no futuro. Isso sugere que Platão acreditava que a teoria das formas
poderia ser desenvolvida de modo a torná-la imune às objeções levantadas contra
a visão da superexemplificação.

5.3 FORMAS COMO GÊNEROS E ESPÉCIES


O desenvolvimento bem-sucedido da teoria das formas dependeu
do desenvolvimento de uma distinção entre dois tipos de predicação. Platão
sustentava que uma sentença, fazendo uma predicação de particular sensível, A
é B, deve ser entendida como afirmando que o particular em questão, A, exibe
uma certa propriedade, B. Existem predicações comuns sobre as formas que
também indicam que as formas em questão exibem propriedades. Crucialmente,
no entanto, há também um tipo especial de predicação que pode ser usado para
expressar a natureza de uma forma. Como Platão previa que essas naturezas
poderiam ser dadas em termos de árvores de gêneros-espécies, uma predicação
especial sobre uma forma A é B é verdadeira se B aparecer acima de A, em sua
árvore correta, como diferenciação ou gênero. Em equivalência, A é B tem a força
de que ser B é (parte de) o que é ser um A. Esta predicação especial é muito próxima
nas classificações modernas de animais e plantas de acordo com uma taxonomia
biológica. "O lobo é um canis", por exemplo, afirma que "lobo" aparece abaixo de
"canis" em uma classificação de gênero-espécie dos animais, ou equivalentemente
que ser um canis é parte do que é ser um lobo (Canis lupus).

A distinção de Platão pode ser ilustrada pelos seguintes exemplos: a


predicação comum "Sócrates é justo" é verdadeira, porque o indivíduo em questão
exibe a propriedade de ser justo. Entendida como uma predicação especial,
entretanto, a afirmação é falsa, porque é falso que ser justo faz parte do que é
ser Sócrates (não existe tal coisa como o que é ser Sócrates); “o ser humano é um
vertebrado”, entendido como uma predicação comum, é falsa, já que a forma ser
humano não tem uma espinha dorsal. Mas quando tratada como uma predicação
especial, é verdadeira, já que parte do que é ser humano é ser um vertebrado.
Frases autopredicativas são agora reveladas como triviais, mas verdadeiras: “o
Belo é belo” afirma apenas que ser belo é parte do que é ser belo. Em geral, é
preciso ter cuidado para não presumir que as sentenças autopredicativas de
Platão envolvem predicação comum, o que envolveria, em muitos casos, questões
problemáticas de autoexemplificação.

54
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

Platão estava interessado na predicação especial como um veículo para


fornecer as definições reais que ele procurava em diálogos anteriores. Quando se
conhece dessa maneira, o que a Justiça em si mesma realmente é, pode-se apreciar
sua relação com outras entidades do mesmo tipo, incluindo como ela difere das
outras virtudes, como Bravura, e se é realmente a Virtude como um todo ou
apenas uma parte dela.

Por meio da predicação especial é possível fornecer uma explicação de


cada natureza fundamental. Tais relatos, além disso, fornecem uma maneira de
entender o “ser puro” das formas: consiste no fato de que não pode haver uma
verdadeira predicação especial da forma A é tanto B quanto não B. Em outras
palavras, sentenças especiais de predicação não exibem o fenômeno de mover-se
entre ser e não ser. Isso ocorre porque deve ser o caso de que ou B aparece acima
de A em uma classificação correta de gênero-espécie ou não. Além disso, como
as formas não funcionam apenas como exemplos delas mesmas, não há nada
que impeça que elas tenham outras propriedades, como o ser e a unidade. Como
Platão expressa, todas as formas devem participar do Ser e da Unidade.

Como as predicações especiais servem para dar (no todo ou em parte) as


definições reais que Sócrates procurava, essa interpretação das formas conecta
os diálogos mais técnicos de Platão às obras-primas literárias e aos diálogos
socráticos anteriores. Os trabalhos técnicos enfatizam e desenvolvem a ideia que
é sugerida no início de Eutifrom (PLATÃO, 2008), de que as formas devem ser
entendidas em termos de uma classificação de gênero-espécie. Eles desenvolvem
um esquema que, com modificações, naturalmente foi produtivo no trabalho de
Aristóteles e muitos pesquisadores posteriores. Desta forma, a teoria tardia das
formas de Platão cresce a partir do programa de seu professor, Sócrates, e conduz
posteriormente a pesquisa de seus alunos e muito além.

6 OS DIÁLOGOS DE PLATÃO
Estudos do conteúdo e estilo resultaram na divisão das obras de Platão em
três grupos. Assim, (1) os diálogos iniciais, da juventude ou socráticos, representam
conversas em que Sócrates testa os outros sobre questões de importância humana
sem discutir a metafísica; (2) os diálogos médios ou intermediários, também
chamados de obras-primas literárias, tipicamente contêm visões originadas com
Platão sobre questões humanas, junto a um esboço de uma posição metafísica
apresentada como fundacional; e (3) os diálogos tardios, da maturidade ou
estudos técnicos tratam essa posição metafísica de maneira mais completa e
direta. Há também algumas obras diversas, incluindo cartas, versos atribuídos a
Platão e diálogos de autenticidade contestada.

55
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

6.1 DIÁLOGOS SOCRÁTICOS


As obras desse grupo (a serem discutidas em ordem alfabética a seguir),
representam a recepção de Platão do legado do Sócrates histórico; muitas
apresentam sua atividade característica, elenchos, ou testes de experts putativos.
Os diálogos socráticos servem bem como uma introdução ao corpus. Eles são
curtos, divertidos e bastante acessíveis, mesmo para leitores sem experiência em
filosofia. De fato, eles provavelmente foram planejados por Platão para atrair tais
leitores para o assunto. Neles, Sócrates tipicamente engaja-se com um proeminente
contemporâneo sobre alguma faceta da excelência humana (virtude), que ele
presume entender, mas ao final da conversa, os participantes são reduzidos à
aporia. A discussão geralmente inclui uma busca pela definição real de um termo
chave como um componente central.

Uma maneira de ler os diálogos socráticos é ter o principal propósito


negativo de mostrar que as figuras de autoridade, na sociedade, não têm o
entendimento necessário para uma boa vida humana (a leitura dos céticos na
Era Helenística). No entanto, existem outras leituras de acordo com as quais
o objetivo principal é recomendar certas visões. Nos tempos helenísticos, os
estoicos consideravam a ênfase na importância suprema da virtude, entendida
como um certo tipo de conhecimento, como a verdadeira herança de Sócrates e
tornou-se fundamental para sua escola. Quer se prefira a interpretação cética ou
mais dogmática desses diálogos, eles funcionam para introduzir outras obras de
Platão, limpando o terreno. De fato, por esse motivo os trabalhos mais longos
de Platão às vezes incluem episódios elênticos como partes de si mesmos. Tais
episódios destinam-se a desiludir o leitor ingênuo, imaturo ou complacente
da confortável convicção de que ele – ou alguma figura de autoridade em sua
comunidade – já compreende os assuntos profundos em questão e o convence da
necessidade de uma reflexão filosófica sobre esses assuntos.

A Apologia de Sócrates (PLATÃO, 2008) representa o discurso que Sócrates


fez em sua defesa em seu julgamento e oferece uma interpretação da carreira
de Sócrates: ele tem sido um “moscardo”, tentando despertar o cavalo nobre de
Atenas para uma consciência da virtude, e ele é mais sábio no sentido de que
está ciente de que ele não sabe nada. Cada um dos outros trabalhos nesse grupo
representa um encontro socrático específico.

No Cármides (PLATÃO, 2016b), Sócrates discute a temperança e o


autoconhecimento com Crítias e Cármides. Na data inicial fictícia do diálogo,
Cármides ainda é um jovem promissor. O diálogo se move de uma explicação
em termos de comportamento, “temperança é um tipo de quietude”, para uma
tentativa de especificar o estado subjacente que explica isso. Esse último esforço
se rompe em enigmas sobre a aplicação reflexiva do conhecimento.

O Crátilo (PLATÃO, 2016b) – alguns comentadores não colocam neste


grupo de trabalhos – discute a questão de saber se os nomes estão corretos em
virtude de convenção ou natureza. O Crítias (PLATÃO, 2009) mostra Sócrates na

56
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

prisão, discutindo por que ele escolhe não escapar antes que a sentença de morte
seja cumprida. O diálogo considera a fonte e a natureza da obrigação política.
O Eutidemo (PLATÃO, 2016a) mostra Sócrates entre os erísticos (aqueles que se
envolvem em disputas lógicas vistosas). O Eutífron (PLATÃO, 2008) pergunta:
“O que é piedade?”, Eutífron falha em manter as posições sucessivas de que a
piedade é “o que os deuses amam”, “o que todos os deuses amam” ou algum tipo
de serviço aos deuses. Sócrates e Eutífron concordam que o que eles procuram
é uma forma única, presente em todas as coisas que são piedosas, que as torna
assim. Sócrates sugere que se Eutífron pudesse especificar que parte da justiça é
a piedade, ele teria alcançado o que buscava.

O diálogo mais elaborado, Górgias (PLATÃO, 2016a), considera enquanto


seu homônimo sofista está em Atenas, se os oradores comandam uma arte genuína
ou simplesmente têm um talento bajulador. Sócrates sustenta que as artes do
legislador e do juiz tratam da saúde da alma, que os oradores falsificam tomando
o agradável em vez do bom como seu padrão. A discussão sobre se alguém deve
invejar o homem que pode produzir qualquer resultado que ele deseje, leva a um
paradoxo socrático: é melhor sofrer o mal do que fazê-lo. Cálicles elogia o homem
de habilidade natural que ignora a justiça convencional. A verdadeira justiça, de
acordo com Cálicles, é o triunfo dessa pessoa. No Hípias Menor (PLATÃO, 2016a),
a discussão sobre Homero, levantada por um sofista visitante, permite Sócrates
fazer um exame da questão de se uma pessoa justa que faz algo errado de
propósito é melhor do que outros malfeitores. O Ion (PLATÃO, 2016b) considera
os recitadores profissionais de poesia e desenvolve a sugestão de que nem artistas
nem poetas têm qualquer conhecimento.

Os interlocutores no Laques (PLATÃO, 2016b) são generais. Um deles,


o Laques histórico, mostrou menos coragem na retirada de Delium (durante a
Guerra do Peloponeso) do que o humilde soldado Sócrates. Da mesma forma,
após a data fictícia do diálogo, outro dos generais, Nícias, foi responsável pela
derrota desastrosa da expedição siciliana por causa de sua dependência de
videntes. Aqui, a observação de que os filhos dos grandes homens geralmente
não dão certo, leva a um exame do que é coragem. A tendência novamente é
de uma explicação em termos de comportamento, “resistir na batalha” para
uma tentativa de especificar o estado interno que o sustenta, “conhecimento dos
fundamentos da esperança e do medo”, mas nenhum dos participantes mostra
compreensão dessas sugestões.

O Lísis (PLATÃO, 2015) é um exame da natureza da amizade; o trabalho


introduz a noção de um objeto primário do amor, pelo qual amamos outras coisas.
O Menexeno (PLATÃO, 2016b) pretende ser uma oração fúnebre que Sócrates
aprendeu com Aspásia, a amante de Péricles. Este trabalho pode ser uma sátira
sobre a distorção patriótica da história.

O Menon (PLATÃO, 2009) aborda a questão familiar de saber se a virtude


pode ser ensinada e, em caso afirmativo, por que homens eminentes não foram
capazes de criar seus filhos para serem virtuosos. Preocupado com o método, o

57
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

diálogo desenvolve o problema de Menon: Como é possível pesquisar o que se


sabe (para quem já sabe) ou o que não se sabe (e por isso não se pode procurar)?
Isso é respondido pela teoria da reminiscência da aprendizagem. O que é chamado
de aprendizagem é realmente a recuperação de lembranças. Os indivíduos
possuem todo conhecimento teórico latente ao nascimento, como demonstrado
pela capacidade do menino escravo de resolver problemas de geometria, quando
solicitado corretamente. Essa teoria reaparecerá no Fédon e no Fedro (PLATÃO,
2008). O diálogo também é famoso como uma discussão inicial da distinção entre
conhecimento e crença verdadeira.

O Protágoras (PLATÃO, 2007), outra discussão com um sofista visitante,


diz respeito a saber se a virtude pode ser ensinada e se as diferentes virtudes são
realmente uma só. O diálogo contém, ainda, outra discussão sobre o fenômeno
de que os filhos dos grandes homens são frequentemente sem distinção. Este
trabalho elaborado mostra as abordagens concorrentes dos sofistas (realização
de discursos, análise de palavras, discussão de grandes poesias) e Sócrates. Sob
o disfarce de uma interpretação de um poema de Simônides de Ceos (c. 556-
468 a.E.C.), uma distinção (que se tornará temática para Platão) é feita entre ser
e tornar-se ou devir. Mais notoriamente, esse diálogo desenvolve a sugestão
socrática característica de que a virtude é idêntica à sabedoria e discute a posição
socrática de que a akrasia (fraqueza moral) é impossível. Sócrates sugere que,
em casos de aparente akrasia, o que realmente está acontecendo é um erro de
cálculo: perseguindo o prazer como o bem, o indivíduo calcula incorretamente a
magnitude da quantidade total de prazer que resultará de sua ação.

6.2 DIÁLOGOS INTERMEDIÁRIOS


Essas obras mais longas e elaboradas são agrupadas por causa da
similaridade em suas agendas: embora estejam primariamente preocupadas
com questões humanas, elas também proclamam a importância da investigação
metafísica e esboçam as visões proprietárias de Platão sobre as formas. Este
grupo representa o ponto alto da arte literária de Platão. É claro que cada uma das
obras acabadas de Platão é um sucesso artístico no sentido de ser efetivamente
composta de uma maneira apropriada ao seu tópico e sua audiência; contudo, este
grupo possui também as virtudes literárias mais patentes. Normalmente, muito
mais do que os diálogos socráticos, esses trabalhos contêm retratos sensíveis de
personagens e suas interações, exibições deslumbrantes de retórica e sugestões
atentas sobre suas limitações, metáforas e mitos impressionantes e memoráveis,
todos projetados para desencadear suas explorações não apressadas da filosofia.

Nos diálogos intermediários, o personagem Sócrates faz relatos positivos


– provavelmente ​​ originados com o próprio Platão – dos tipos de questões
humanas que os interlocutores, nas obras anteriores, não haviam conseguido
compreender: a natureza da Justiça e as outras virtudes, o amor platônico e a alma
(psique). As obras tipicamente sugerem que o entendimento desejado, para ser
apropriadamente fundamentado, requer investigações mais fundamentais. Desse

58
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

modo, Sócrates inclui em sua apresentação um esboço das formas. “Buscando o


universal”, assumindo as formas como objeto de definição adequado. Já era uma
marca dos primeiros diálogos, embora sem atenção ao status e caráter dessas
entidades. No entanto, até mesmo as obras intermediárias, não especificam
completamente como as formas devem ser entendidas.

Na festa representada no Banquete (PLATÃO, 2009), cada um dos


convidados, incluindo os poetas Aristófanes e Agaton, oferece um elogio ao
amor. Sócrates recorda o ensinamento de Diotima de Mantineia (uma sacerdotisa
fictícia), segundo a qual todas as criaturas mortais têm um impulso para alcançar a
imortalidade. Isso conduz a descendentes biológicos com parceiros comuns, mas
Diotima considera que tais descendentes como poesia, descobertas científicas e
filosofia são melhores. Idealmente, o eros (amor erótico) de alguém deve progredir
dos objetos de amor comuns para a própria beleza. Alcibíades conclui o diálogo
oferecendo uma declaração embriagada de elogio a Sócrates.

O Fédon (PLATÃO, 2008) culmina na morte de Sócrates, diante da qual


ele discute um tema pertinente à ocasião: a imortalidade da alma (tratada
até certo ponto seguindo os precedentes pitagóricos e órficos). O diálogo
apresenta caracteristicamente elementos platônicos: a teoria da reminiscência do
conhecimento e a afirmação de que o entendimento das formas é fundamental
para todo o resto. A extensão deste trabalho também acomoda um mito sobre o
curso da alma após a morte.

Na obra mais extensa, a República (PLATÃO, 2001), Sócrates se compromete


a mostrar o que é a Justiça e por que é de melhor interesse de cada pessoa ser
justo. A preocupação inicial pela justiça no indivíduo leva a uma busca por justiça
em maior escala, como representado em uma cidade ideal imaginária (daí o título
tradicional da obra). Na República, os governantes e guardiões são proibidos de ter
famílias ou propriedades privadas, as mulheres desempenham as mesmas tarefas
que os homens e os governantes são filósofos – aqueles que têm conhecimento
do Bem e do Justo. O diálogo contém duas discussões – uma com cada um dos
irmãos de Platão – sobre o impacto da arte no desenvolvimento moral. Sócrates
desenvolve a proposta de que a justiça, em uma cidade ou um indivíduo, é a
condição na qual cada parte executa a tarefa que é adequada a ela; tal entidade
não terá motivação para praticar atos injustos e estará livre de conflitos internos.
A alma consiste de razão, espírito e apetite, assim como a cidade consiste de
governantes, guardiões e artesãos ou produtores.

Os livros intermediários da República contêm um esboço das visões de
Platão sobre conhecimento e realidade e apresentam as famosas figuras do Sol e da
Caverna, entre outras. A posição ocupada pela forma do Bem no mundo inteligível
é a mesma ocupada pelo Sol no mundo visível: assim, o Bem é responsável pelo
ser e pela inteligibilidade dos objetos do pensamento. A condição cognitiva
habitual dos seres humanos é comparada a dos prisioneiros acorrentados em
uma caverna subterrânea, com um grande fogo atrás deles e uma parede elevada
no meio. Os prisioneiros estão acorrentados e, por isso, conseguem ver apenas

59
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

sombras projetadas na parede em frente, por estátuas movidas ao longo da


parede atrás deles. Eles tomam essas sombras como sendo a realidade. O relato
do progresso que eles alcançariam, se fossem para o solo e vissem o mundo real
à luz do Sol, apresenta a noção de conhecimento como iluminação. Platão propõe
uma sequência concreta de estudos matemáticos, terminando com harmônicos,
que preparariam futuros governantes para se engajarem na dialética, cuja tarefa é
dizer de cada coisa o que é – isto é, especificar sua natureza dando uma definição
real. Contrastando com o retrato do homem justo e da cidade justa, são os tipos
decadentes de personalidade e de regime. O diálogo conclui com um mito relativo
ao destino das almas após a morte.

A primeira metade do Fedro (PLATÃO, 2008) consiste em discursos


competitivos de sedução. Sócrates se arrepende de sua primeira tentativa e dá
um tratamento do amor como impulso à filosofia. O amor platônico, como no
Banquete, é eros, aqui descrito vividamente A alma é retratada como feita de um
cavalo branco (nobre), um cavalo preto (base) e um cocheiro. Sócrates fornece
uma descrição elaborada do curso da alma desencarnada como espectadora da
visão das formas, que podem ser lembradas nesta vida. Mais tarde, no diálogo,
Sócrates afirma que o conhecimento filosófico é necessário para um retórico
eficaz que produz imagens da verdade adaptadas ao seu público e, portanto,
deve conhecer a verdade sobre o assunto e as receptividades de diferentes
personagens a diferentes tipos de apresentação. Esta parte do diálogo, com
seu interesse desenvolvido em gêneros e espécies, antecipa o grupo de estudos
técnicos. Também é notável por sua discussão do valor limitado da escrita.

DICAS

Assista ao filme Il banchetto di Platone, de Marco Ferreri e Irene Papas (1989).


O Filme está disponível no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=IFQaAcv2-xw.

6.3 DIÁLOGOS TARDIOS


O Parmênides (PLATÃO, 2015) demonstra que os esboços das formas
apresentados nos diálogos intermediários não eram adequados. Esse diálogo e os
que se seguem estimulam os leitores a desenvolver uma compreensão mais viável
dessas entidades. Assim, a abordagem de gêneros e espécies recomendada no
Sofista (PLATÃO, 2007), no Político (PLATÃO, 2015) e no Filebo (PLATÃO, 2015)
– e já discutida no Fedro (PLATÃO, 2008) – representa a última versão da teoria
das formas de Platão. O Filebo propõe uma versão matematizada, inspirada pelo
pitagorismo e correspondente à cosmologia do Timeu (PLATÃO, 2009).

60
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE PLATÃO

Platão não negligenciou as questões humanas nesses diálogos. O Fedro


(PLATÃO, 2008) já combinava o novo aparelho com um tratamento convincente
do amor; os tópicos titulares do Sofista (PLATÃO, 2007) e do Político (PLATÃO,
2015), a serem tratados pela divisão gênero-espécie, são papéis importantes
na cidade grega; e o Filebo (PLATÃO, 2015) é uma consideração das alegações
concorrentes de prazer e conhecimento como sendo a base da boa vida. As Leis
(PLATÃO, 2010) deixadas inacabadas na morte de Platão parecem representar
uma abordagem prática para o planejamento de uma cidade. Se alguém combina
as dicas na República (PLATÃO, 2001), associando o Bem com o Uno, ou Unidade;
o tratamento no Parmênides (PLATÃO, 2015), do Uno como primeiro princípio de
tudo; e a possibilidade de que a boa proporção e harmonia apresentadas no Timeu
(PLATÃO, 2009) e no Filebo (PLATÃO, 2015) sejam aspectos do Uno, é possível
traçar os interesses estéticos e éticos dos diálogos intermediários até mesmo nos
estudos técnicos mais difíceis.

O Teeteto (PLATÃO, 2007) considera a questão do que seria o conhecimento.


Será que o conhecimento é percepção, crença verdadeira ou crença verdadeira com
uma justificativa? O diálogo contém uma famosa digressão sobre a diferença entre
as mentalidades filosóficas e mundanas. A obra termina de forma inconclusiva
e pode, de fato, ter a intenção de mostrar os limites dos métodos do Sócrates
histórico com esse assunto, o progresso adicional exigindo adições distintivas de
Platão.

O Parmênides (PLATÃO, 2015) é o episódio-chave no tratamento das


formas por Platão. Ele apresenta uma crítica da visão de superexemplificação das
formas que resulta de uma leitura natural do Banquete, do Fédon e da República e
passa para um sugestivo exercício lógico, baseado em uma distinção entre dois
tipos de predicação e um modelo das formas em termos de gêneros e espécies.
Projetado para levar o leitor a uma teoria mais sofisticada e viável, o exercício
também descreve o Uno como princípio de tudo.

O líder da discussão no Sofista (PLATÃO, 2007) é um "Estrangeiro eleata".


A sofística parece envolver o tráfico na falsidade, ilusão e não ser. No entanto,
estes são enigmáticos à luz do brilhante uso pelo Parmênides histórico (também
um eleata), do slogan de que não se pode pensar ou falar do que não é. Platão
introduz a ideia de que uma afirmação negativa da forma “A não é B” deve ser
entendida não como invocando qualquer não ser absoluto, mas como tendo a
força que A é diferente de B. O outro conteúdo crucial do diálogo é sua distinção
entre dois usos de É, que correspondem aos dois tipos de predicação introduzidos
no Parmênides (PLATÃO, 2015). Ambas estão relacionadas com o modelo de
definição gênero-espécie que é difundido nos diálogos tardios, uma vez que o uso
teoricamente central de É aparece em declarações que são verdadeiras em virtude
das relações representadas nas classificações gênero-espécie. O diálogo trata
da mescla dos cinco “maiores tipos”: Ser, Semelhança, Diferença, Movimento
e Repouso. Embora esses tipos não sejam, é claro, espécies um do outro, eles
participam uns dos outros de maneira ordinária. O Político (PLATÃO, 2015)
discute a definição de gênero-espécie em conexão com a compreensão de sua
noção de título.
61
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

O Timeu (PLATÃO, 2009) diz respeito à criação do mundo por um


Demiurgo, operando, inicialmente, em formas e espaço e auxiliado depois de tê-
los criado por deuses menores. A terra, o ar, o fogo e a água são analisados ​​como
sendo basicamente dois tipos de triângulos, que se combinam em diferentes
sólidos característicos. Platão, neste trabalho, aplica harmônicos matemáticos
para produzir uma cosmologia. O Crítias (PLATÃO, 2009) é uma sequência
iniciada para o Timeu; seu conteúdo projetado é a história da guerra da antiga
Atenas e da Atlântida.

O Filebo (PLATÃO, 2015) desenvolve grandes aparatos em metodologia


e metafísica. Recomenda-se o tratamento gênero-espécie das formas, mas agora
é fundamental para elas uma nova divisão quádrupla: o limite, o ilimitado, a
classe mista e a causa. As formas (membros da classe mista) são analisadas no
estilo pitagórico como constituídas de limite e de ilimitado. Isso ocorre quando as
relações desejáveis ​​governam o equilíbrio entre os membros de pares subjacentes
de opostos – como, por exemplo, a Saúde, resultando quando há um equilíbrio
adequado entre o Úmido e o Seco.

Acredita-se que a extensa obra As Leis (PLATÃO, 2010) seja a última


composição de Platão, já que há evidências geralmente aceitas de que não foi
revisada antes da sua morte. Desenvolve leis para governar um Estado projetado
e, aparentemente, é para ser prático de uma forma que a República não era. Assim,
as demandas feitas sobre a natureza humana são menos exigentes. Este trabalho
parece, indiretamente, ter deixado sua marca no grande sistema da jurisprudência
romana.

62
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A família de Platão era aristocrática e distinta: o lado de seu pai alegava


descendência do Deus Poseidon e o lado de sua mãe estava relacionado ao
legislador Sólon (c. 630-560 a.E.C.).

• As obras de Platão, comumente referidas como "socráticas", representam o tipo


de coisa que o Sócrates histórico estava fazendo.

• A Academia de Platão, fundada nos anos 380 a.E.C. e localizada nos arredores
de Atenas, foi o ancestral supremo da universidade moderna (daí o termo
acadêmico).

• Enquanto para Platão a coroa da ética é o bem em geral ou a Bondade em si


mesma (o Bem), para Aristóteles é o bem para os seres humanos.

• Para Platão, a filosofia visa não tanto à descoberta de fatos ou ao estabelecimento


de dogmas quanto a alcançar a sabedoria ou a compreensão.

• A escrita ou conversação de outros pode ajudar no progresso filosófico, mas


não pode garantir isso.

• Platão é incomparável em sua capacidade de recriar a experiência de


conversação.

• A questão característica da ética antiga é “Como posso ser feliz”? E a resposta


mais comum a ela é “Por meio da virtude”.

• Enquanto a noção de felicidade na filosofia grega se aplica, no máximo, às coisas


vivas, a de arete – "virtude" ou "excelência" – aplica-se muito mais amplamente.

• Já na época de Platão, um conjunto convencional de virtudes passou a ser


reconhecido pela cultura maior.

• Na representação de Platão da atividade do Sócrates histórico, os interlocutores


são examinados em uma busca por definições das virtudes.

• O Protágoras (PLATÃO, 2007) trata da questão de saber se as várias virtudes


comumente reconhecidas são diferentes ou realmente uma.

• Na República, Platão (2001) desenvolve uma visão de felicidade e virtude que se


afasta da de Sócrates.

63
• Os termos que Platão usa para se referir às formas, ideia e eidos, derivam do
verbo eidô, “olhar”.

• Para Anaxágoras (2007), ter uma parte de algo é bem direto: um composto
particular possui como ingrediente físico uma porção material da matéria
fundamental em questão.

• A teoria de Platão pode ser vista como sucessora da teoria de Anaxágoras.


Como Anaxágoras, Platão postula entidades fundamentais que são eternas e
imutáveis ​​e acessíveis à mente, mas não aos sentidos.

• De acordo com uma visão que alguns estudiosos atribuíram aos diálogos
médios (intermediários) de Platão, a participação é imitação ou semelhança.

• O desenvolvimento bem-sucedido da teoria das formas dependeu do


desenvolvimento de uma distinção entre dois tipos de predicação.

• Platão estava interessado na predicação especial como um veículo, para


fornecer as definições reais que ele procurava em diálogos anteriores.

• Estudos do conteúdo e estilo resultaram na divisão das obras de Platão em


três grupos: (1) os diálogos iniciais, da juventude ou socráticos; (2) os diálogos
médios ou intermediários; (3) os diálogos tardios, da maturidade ou estudos
técnicos.

64
AUTOATIVIDADE

1 Nos anos 380 a.E.C., Platão fundou a famosa Academia. O que era a
Academia de Platão?

2 A ideia de que o conhecimento é tudo o que alguém precisa para uma vida
boa, e de que não há um aspecto de caráter que não seja redutível à cognição,
é a posição caracteristicamente socrática. Platão desenvolve uma visão de
felicidade e virtude que se afasta da de Sócrates na República. Descreva essa
visão de Platão.

3 Em qual sentido a teoria de Platão pode ser vista como sucessora da teoria
de Anaxágoras?

4 Estudos do conteúdo e estilo resultaram na divisão das obras de Platão em


três grupos. Quais são estes grupos?

65
66
UNIDADE 1
TÓPICO 4

A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

1 INTRODUÇÃO
O pensamento de Aristóteles determinou o curso da história intelectual
ocidental por mais de dois milênios. Ele geralmente é considerado um dos dois
maiores filósofos que já viveram, o outro sendo seu professor, Platão.

Neste tópico vamos discorrer sobre a vida de Aristóteles, o Estagirita, suas


viagens e seu tempo no Liceu. Prosseguiremos em uma análise de sua vasta e
diversificada obra filosófica e seu legado, que ainda permanece vivo e pungente.

2 A VIDA DE ARISTÓTELES
Aristóteles nasceu em Estagira, na península de Calcídica da Macedônia,
no norte da Grécia, em 384 a.E.C. Ele morreu em 322, em Cálcis, na ilha de Eubéia.
Seu pai, Nicômaco, era o médico de Amintas III (reinou c. 393-370 a.E.C.), rei da
Macedônia e avô de Alexandre, o Grande (reinou de 336-323 a.E.C.). Após a morte
de seu pai em 367, Aristóteles migrou para Atenas, onde ingressou na Academia
de Platão. Ele permaneceu lá por 20 anos como aluno e colega de Platão.

Muitos diálogos posteriores de Platão datam dessas décadas e podem


refletir as contribuições de Aristóteles para o debate filosófico na Academia.
Alguns escritos de Aristóteles também pertencem a esse período, embora eles
sobrevivam apenas em fragmentos. Como seu mestre, Aristóteles escreveu
inicialmente em forma de diálogo e suas primeiras ideias mostram uma forte
influência platônica. Seu diálogo Ética a Eudemo (ARISTÓTELES, 2015a), por
exemplo, reflete a visão platônica da alma como aprisionada no corpo e como
capaz de uma vida mais feliz somente quando o corpo foi deixado para trás. De
acordo com Aristóteles, os mortos são mais abençoados e felizes do que os vivos,
e morrer é retornar ao lar de verdade.

Outro trabalho juvenil, o Protréptico – "Exortação" – (ARISTÓTELES,


2006), foi reconstruído por estudiosos modernos a partir de citações em vários
trabalhos da antiguidade tardia. Todos devem fazer filosofia, afirma Aristóteles
nestes fragmentos, porque mesmo argumentar contra a prática da filosofia, é
em si uma forma de filosofar. A melhor forma de filosofia é a contemplação do
universo da natureza. É para esse propósito que Deus criou seres humanos e deu
a eles um intelecto divino. Tudo o mais – força, beleza, poder e honra – é inútil.

67
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

É possível que duas das obras sobreviventes de Aristóteles sobre lógica e


disputa, os Tópicos e os Elencos Sofísticos – ambos parte dos seis trabalhos agrupados
na obra Órganon (ARISTÓTELES, 2016a) – pertençam a esse período inicial. O
primeiro, Tópicos, demonstra como construir argumentos para uma posição que
já se decidiu adotar; o segundo, Elencos Sofísticos, mostra como detectar fraquezas
nos argumentos dos outros. Embora nenhum trabalho represente um tratado
sistemático sobre lógica formal, Aristóteles pode justamente dizer, no final dos
Elencos Sofísticos, que inventou a disciplina da lógica – nada existia quando ele
começou.

Durante a residência de Aristóteles na Academia, o rei Filipe II da
Macedônia (reinou entre 359 e 366 a.E.C.) travou guerra contra várias cidades-
estado gregas. Os atenienses defenderam sua independência sem muito
entusiasmo, e após uma série de concessões humilhantes, permitiram que Filipe
se tornasse, por volta de 338 a.E.C., senhor do mundo grego. Não pode ter sido
uma época fácil para ser um residente macedônio em Atenas.

Dentro da Academia, no entanto, as relações parecem ter permanecido


cordiais. Aristóteles sempre reconheceu uma grande dívida em relação a Platão. Ele
tomou uma grande parte de sua agenda filosófica, aquela de Platão, e seu ensino
é mais uma modificação do que um repúdio às doutrinas de Platão. No entanto,
Aristóteles estava começando a se distanciar da teoria de Formas ou Ideias (eidos) de
Platão. Platão havia sustentado que, além das coisas particulares, existe um domínio
suprassensível das Formas, que são imutáveis ​​e eternas. Esse domínio, ele afirma,
torna as coisas particulares inteligíveis ao explicar suas naturezas comuns: uma
coisa é um cavalo, por exemplo, em virtude do fato de que ele compartilha ou imita
a Forma de “Cavalo”. Em uma obra perdida, Acerca das Ideias (MESQUITA, 2005),
Aristóteles sustenta que os argumentos dos diálogos centrais de Platão estabelecem
apenas que existem, além dos particulares, certos objetos comuns das ciências.

Em seus trabalhos sobreviventes, Aristóteles também frequentemente


discorda da teoria das Formas, às vezes educadamente e às vezes com desdém. Em
sua Metafísica (1969), ele argumenta que a teoria falha em resolver os problemas
que ela deveria resolver. Ela não confere inteligibilidade aos particulares, porque
as Formas imutáveis ​​e eternas não podem explicar como os particulares veem
a existência e passam por mudanças. Toda teoria, de acordo com Aristóteles,
introduz novas entidades iguais em número às entidades a serem explicadas –
como se alguém pudesse resolver um problema dobrando-o.

3 AS VIAGENS DE ARISTÓTELES
Quando Platão morreu, por volta de 348 a.E.C., seu sobrinho, Espeusipo,
tornou-se chefe da Academia e Aristóteles deixou Atenas. Ele migrou para Asso, na
Eólida, uma cidade na costa noroeste da Anatólia (atual Turquia), onde Hermias,
um graduado da Academia era o governante. Aristóteles tornou-se amigo
íntimo dele e acabou se casando com Pítia (textos confiáveis afirmam que ela era

68
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

concubina de Hermias, outros textos afirmam que era irmã (irmã por adoção ou
sobrinha). Aristóteles o ajudou a negociar uma aliança com a Macedônia, o que
enfureceu o rei persa, que fez com que Hermias fosse traiçoeiramente preso e
condenado à morte. Aristóteles saudou a memória dele em Hino à Virtude, seu
único poema sobrevivente (BARNES, 2009).

Enquanto esteve em Asso e durante os anos seguintes, quando ele viveu


na cidade de Mitilene, na ilha de Lesbos, Aristóteles realizou uma extensa
pesquisa científica, particularmente em zoologia e biologia marinha. Este
trabalho foi resumido em um livro, mais tarde, conhecido como História dos
Animais (ARISTÓTELES, 2014a, 2016a), ao qual Aristóteles acrescentou dois
tratados breves, Partes dos Animais (ARISTÓTELES, 2010) e Geração dos Animais
(ARISTÓTELES, 2015b). Embora Aristóteles não afirmasse ter fundado a ciência
da zoologia, suas observações detalhadas de uma ampla variedade de organismos
foram completamente sem precedentes. Ele – ou um de seus assistentes de
pesquisa – deve ter sido dotado de uma visão extraordinariamente aguda, pois
algumas das características dos insetos que ele relata com exatidão não foram
novamente observadas até a invenção do microscópio no século XVII.

O escopo da pesquisa científica de Aristóteles é surpreendente. Muito do


que está preocupado com a classificação dos animais em gênero e espécie; mais
de 500 espécies figuram em seus tratados, muitos deles descritos em detalhes. Os
inúmeros itens de informação sobre anatomia, dieta, hábitat, modos de cópula
e sistemas reprodutivos de mamíferos, répteis, peixes e insetos são uma mescla
de investigação minuciosa e vestígios de superstição. Em alguns casos, suas
histórias improváveis ​​sobre espécies raras de peixes foram comprovadas com
precisão, muitos séculos depois. Em outros lugares, ele afirma clara e justamente
um problema biológico que levou milênios para resolver, como a natureza do
desenvolvimento embrionário.

Apesar de uma mistura com o fabuloso, as obras biológicas de Aristóteles


devem ser consideradas uma conquista estupenda. Suas investigações foram
conduzidas em um genuíno espírito científico e ele estava sempre pronto a
confessar ignorância quando as evidências eram insuficientes. Sempre que há um
conflito entre a teoria e a observação é preciso confiar na observação, insistiu ele,
e as teorias são confiáveis ​​apenas se seus resultados estiverem em conformidade
com os fenômenos observados.

Cerca de oito anos após a morte de Hermias, em 343 ou 342 a.E.C.,


Aristóteles foi convocado por Filipe II para a capital da Macedônia, em Pela, para
atuar como preceptor do filho de 13 anos de Felipe, o futuro Alexandre, o Grande.
Pouco se sabe sobre o conteúdo da instrução de Aristóteles; embora a Retórica
de Alexandre (ARISTÓTELES, 2012) tenha sido incluída no corpus aristotélico
durante séculos, agora é comumente considerada uma falsificação. Cerca de 326
a.E.C., Alexandre se tornara senhor de um império que se estendia do Danúbio
até o Indo e incluía a Líbia e o Egito. Fontes antigas relatam que durante suas
campanhas, Alexandre providenciou que espécimes biológicos fossem enviados
ao seu tutor de todas as partes da Grécia e Ásia Menor.
69
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

4 ARISTÓTELES E O LICEU
Enquanto Alexandre conquistava a Ásia, Aristóteles, agora com 50 anos,
estava em Atenas. Fora do limite da cidade, em um bosque sagrado para Apolo
Lycius (assim chamado porque ele protegia os rebanhos dos lobos [do termo
grego lykoi]), ele estabeleceu sua própria escola, conhecida como o Liceu. Ele
construiu uma biblioteca muito substancial, e reuniu em torno de si um grupo
de brilhantes estudantes de pesquisa, chamados “peripatéticos” do nome do
claustro (peripatos), no qual eles andavam e mantinham suas discussões. O Liceu
não era um clube privado como a Academia, muitas palestras foram abertas ao
público em geral e oferecidas gratuitamente.

A maioria das obras remanescentes de Aristóteles, com exceção dos


tratados zoológicos, provavelmente pertence a esta segunda permanência
ateniense. Não há certeza sobre sua ordem cronológica e, de fato, é provável
que os principais tratados – sobre a física, metafísica, psicologia, ética e política
– fossem constantemente reescritos e atualizados. Toda proposição de Aristóteles
é fértil de ideias e cheia de energia, embora sua prosa não seja comumente lúcida
nem elegante.

As obras de Aristóteles, embora não tão polidas como as de Platão, são


sistemáticas de uma forma que Platão nunca foi. Os diálogos de Platão mudam
constantemente de um tópico para outro, sempre (de uma perspectiva moderna)
cruzando as fronteiras entre diferentes disciplinas filosóficas ou científicas. Na
verdade, não existia uma disciplina intelectual até que Aristóteles inventou a
noção durante o período do Liceu.

Aristóteles dividiu as ciências em três tipos: produtivas (poiéticas),


práticas e teóricas. As ciências produtivas, naturalmente, são aquelas que têm um
produto. Eles incluem não apenas engenharia e arquitetura, que têm produtos
como pontes e casas, mas também disciplinas como estratégia e retórica, em que
o produto é algo menos concreto, como a vitória no campo de batalha ou nos
tribunais. As ciências práticas, principalmente a ética e a política, são aquelas que
guiam o comportamento. As ciências teóricas são aquelas que não têm produto
nem objetivo prático, mas que a informação e a compreensão são procuradas por
si mesmas.

Durante os anos de Aristóteles no Liceu, seu relacionamento com seu ex-


aluno, Alexandre, aparentemente arrefeceu. Alexandre tornou-se cada vez mais
megalomaníaco, finalmente se proclamando divino e exigindo que os gregos se
prostrassem diante dele em adoração. A oposição a essa demanda foi liderada pelo
sobrinho de Aristóteles, Calístenes (c. 360-327 a.E.C.), que havia sido nomeado
historiador da expedição asiática de Alexandre, com base na recomendação
de Aristóteles. Por seu heroísmo, Calístenes foi falsamente implicado em uma
conspiração e executado.

70
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

Quando Alexandre morreu, em 323 a.E.C., a Atenas democrática tornou-se


desconfortável para os macedônios, mesmo aqueles que eram anti-imperialistas.
Dizendo que não desejava que a cidade que executara Sócrates "pecasse duas vezes
contra a filosofia", Aristóteles fugiu para Cálcis, onde morreu no ano seguinte. Seu
testamento deixou provisão para um grande número de amigos e dependentes
(MARCOS, 2000). Para Teofrasto (c. 372-287 a.E.C.), seu sucessor como chefe do
Liceu, ele deixou sua biblioteca, incluindo seus próprios escritos, que eram vastos.
As obras sobreviventes de Aristóteles chegam a cerca de um milhão de palavras,
embora provavelmente representem apenas um quinto de sua produção total.

5 A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES
As contribuições de Aristóteles ao desenvolvimento da filosofia foram
substanciais. As questões investigadas por ele perpassam a lógica, a física, a
metafísica, a filosofia da mente, a ética, a política, a retórica, a poética, entre tantas
outras questões centrais à inquirição filosófica. A seguir vamos apresentar uma
síntese da produção deste filósofo nestas áreas e temas específicos.

5.1 A LÓGICA E A SILOGÍSTICA


A afirmação de Aristóteles, de ser o fundador da lógica, repousa
principalmente nas Categorias, na Da Interpretação e na Analíticos Anteriores, que
lidam respectivamente com palavras, proposições e silogismos. Esses trabalhos,
com os Tópicos e os Elencos Sofísticos e um tratado sobre método científico,
Analíticos Posteriores, foram agrupados em uma coleção conhecida como Organon
ou “ferramenta” do pensamento (ARISTÓTELES, 2016a).

O Analíticos Anteriores é dedicado à teoria do silogismo, um método central


de inferência que pode ser ilustrado por exemplos familiares como o seguinte:

Todo grego é humano. Todo humano é mortal. Portanto, todo grego é mortal.

Aristóteles discute as várias formas que os silogismos podem assumir


e identifica quais formas constituem inferências confiáveis. O exemplo anterior
contém três proposições no modo indicativo, que Aristóteles chama de
“proposições” (grosseiramente falando, uma proposição é uma proposição
considerada somente com respeito a suas características lógicas). A terceira
proposição, a que começa com “portanto”, Aristóteles chama de conclusão
do silogismo. As outras duas proposições podem ser chamadas de premissas,
embora Aristóteles não use consistentemente qualquer termo técnico específico
para distingui-las.

As proposições no exemplo anterior começam com a palavra todo.


Aristóteles chama essas proposições de "universais". Proposições universais
podem ser afirmativas, como neste exemplo, ou negativas, como em Nenhum grego

71
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

é um cavalo. As proposições universais diferem das proposições “particulares”,


como Alguns gregos são barbudos (uma afirmativa em particular) e Alguns gregos não
são barbudos (uma negativa em particular). Na Idade Média, tornou-se costumeiro
chamar a diferença entre proposições universais e particulares de uma diferença
de “quantidade”, e a diferença entre proposições afirmativas e negativas uma
diferença de “qualidade”.

Em proposições de todos esses tipos, diz Aristóteles, algo é predicado de


outra coisa. Os itens que entram em predicações, Aristóteles chama de “termos”.
É uma característica dos termos, como concebido por Aristóteles, que eles podem
figurar como predicados ou como sujeitos de predicação. Isso significa que eles
podem desempenhar três papéis distintos em um silogismo. O termo que é o
predicado da conclusão é o termo “principal”; o termo do qual o termo principal
é predicado na conclusão é o termo “menor”; e o termo que aparece em cada uma
das premissas é o termo “intermediário”.

Além de inventar esse vocabulário técnico, Aristóteles introduziu a


prática de usar letras esquemáticas para identificar padrões particulares de
argumentação, um dispositivo que é essencial para o estudo sistemático da
inferência e que é onipresente na lógica matemática moderna. Assim, o padrão de
argumento exibido no exemplo anterior pode ser representado nesta proposição
esquemática:

Se A pertence a todo B, e B pertence a todo C, A pertence a todo C.

Como as proposições podem diferir em quantidade e qualidade, e porque


o termo médio pode ocupar vários lugares diferentes nas premissas, muitos
padrões diferentes de inferência silogística são possíveis. Exemplos adicionais
são os seguintes:

Todo grego é humano. Nenhum humano é imortal. Portanto, nenhum


grego é imortal.
Algum animal é um cão. Algum cão é branco. Portanto, todo animal é branco.

Desde a antiguidade tardia, tríades desses diferentes tipos eram chamadas


de “disposições” do silogismo. As duas disposições apresentadas apresentam
uma diferença importante: a primeira é um argumento válido e a segunda é
um argumento inválido, tendo premissas verdadeiras e uma conclusão falsa.
Um argumento é válido somente se sua forma é tal que nunca levará premissas
verdadeiras a uma conclusão falsa. Aristóteles procurou determinar quais formas
resultam em inferências válidas. Ele estabeleceu uma série de regras dando
condições necessárias para a validade de um silogismo, como o seguinte:

Pelo menos uma premissa deve ser universal.


Pelo menos uma premissa deve ser afirmativa.
Se qualquer das premissas for negativa, a conclusão deve ser negativa.

72
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

A silogística de Aristóteles é uma conquista notável. É uma formulação


sistemática de uma parte importante da lógica. De aproximadamente o
Renascimento até o início do século XIX, acreditava-se amplamente que a
silogística era toda a lógica. Mas, na verdade, é apenas um fragmento. Não se
trata, por exemplo, de inferências que dependam de palavras como e, ou, e se...
então, que, em vez de se ligarem a substantivos, ligam proposições inteiras.

5.2 AS PROPOSIÇÕES E AS CATEGORIAS


Os escritos de Aristóteles mostram que até ele percebeu que há mais
na lógica do que a silogística. O Da Interpretação, como o Analíticos Anteriores
(ARISTÓTELES, 2016a), lida principalmente com proposições gerais
começando com Todos, Nenhum ou Alguns. Mas sua principal preocupação não
é ligar essas proposições entre si nos silogismos, mas explorar as relações de
compatibilidade e incompatibilidade entre elas. Todo cisne é branco e Nenhum
cisne é branco claramente não podem ser ambas verdadeiras. Aristóteles chama
esses pares de proposições de “contrários”. Elas podem, no entanto, ser ambas
falsas, se – como é o caso – alguns cisnes são brancos e outros não. Todos os cisnes
são brancos e alguns cisnes não são brancos, como o primeiro par, não podem ser
ambos verdadeiros, mas – no pressuposto de que existem coisas como cisnes –
eles também não podem ser falsos. Se um deles é verdadeiro, o outro é falso;
e se um deles é falso, o outro é verdadeiro. Aristóteles chama esses pares de
proposições de “contraditórios”.

As proposições que entram nos silogismos são todas proposições gerais,


universais ou particulares. Isto é, nenhuma delas é uma proposição sobre um
indivíduo, contendo um nome próprio, tal como a proposição Sócrates é sábio.
Para encontrar um tratamento sistemático das proposições singulares é preciso
recorrer à obra Categorias (ARISTÓTELES, 2016a). Este tratado começa dividindo
as “coisas que são ditas” (as expressões da fala) naquelas que são simples e
aquelas que são complexas. Exemplos de ditos complexos são: Um homem corre,
Uma mulher fala e Um boi bebe; ditos simples são as palavras específicas que
entram nesses complexos: homem, mulher, fala, e assim por diante. Apenas ditos
complexos podem ser afirmações, verdadeiras ou falsas; ditos simples não são
nem verdadeiros nem falsos. Categorias identifica 10 maneiras diferentes pelas
quais expressões simples podem significar; estas são as categorias que dão o
nome ao tratado.

Para introduzir as categorias, Aristóteles emprega um conjunto


heterogêneo de expressões, incluindo substantivos (por exemplo, substância),
verbos (por exemplo, vestindo) e interrogativos (por exemplo, onde? ou quão
grande?). Na Idade Média, tornou-se costumeiro referir-se a cada categoria por
um substantivo mais ou menos abstrato: substância, quantidade, qualidade,
relação, espaço, tempo, postura, vestuário, atividade e passividade.

73
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

As categorias pretendem ser uma classificação de ambos os tipos de


expressão, que podem funcionar como um predicado em uma proposição e dos
tipos de entidade extralinguística que tais expressões podem significar. Pode-se
dizer, de Sócrates, por exemplo, que ele era humano (substância), que ele tinha
1,6 metros de altura (quantidade), que ele era sábio (qualidade), que ele era mais
velho que Platão (relação) e que ele vivia em Atenas (espaço) no século 5 a.E.C.
(tempo). Em uma ocasião particular, seus amigos poderiam ter dito dele que
estava sentado (postura), usando uma capa (vestuário), cortando um pedaço de
pano (atividade) ou sendo aquecido pelo sol (passividade).

Se alguém seguir a pista de Aristóteles será facilmente capaz de classificar


os predicados em proposições como Sócrates é barrigudo e Sócrates é mais sábio
que Meleto. Mas o que dizer do termo Sócrates em proposições como Sócrates é
humano? A qual categoria pertenceria? Aristóteles responde à pergunta fazendo
uma distinção entre “substância primeira” e “substância segunda”. Em Sócrates é
humano, Sócrates se refere a uma substância primeira – um indivíduo – e humano
a uma substância segunda – uma espécie ou tipo. Assim, a proposição predica a
espécie humana de um indivíduo, Sócrates.

Os escritos lógicos de Aristóteles contêm duas concepções diferentes da


estrutura de uma proposição e a natureza de suas partes. Uma concepção pode
traçar sua ascendência ao diálogo de Platão (2007), o Sofista. Nesse trabalho,
Platão introduz uma distinção entre substantivos e verbos, sendo um verbo o
sinal de uma ação e um substantivo sendo o sinal de um agente de uma ação.
Uma proposição, ele afirma, deve consistir em pelo menos um substantivo e pelo
menos um verbo; dois substantivos em sucessão ou dois verbos em sucessão –
como em veado leão e corridas caminhadas – nunca farão uma proposição. O tipo
mais simples de proposição é algo como Um homem aprende ou Teeteto voa, e apenas
algo com esse tipo de estrutura pode ser verdadeiro ou falso. É essa concepção de
uma proposição construída a partir de dois elementos bastante heterogêneos que
está em primeiro plano na Categorias e na Da Interpretação, e também é primordial
na lógica moderna.

Na silogística do Analíticos Anteriores (ARISTÓTELES, 2016a), em


contraste, a proposição é concebida de maneira bastante diferente. Os elementos
básicos a partir dos quais é construída são termos que não são heterogêneos como
substantivos e verbos, mas podem ocorrer indiferentemente, sem mudança de
significado, como sujeitos ou predicados. Uma falha na doutrina dos termos é que
ela promove a confusão entre signos e o que eles significam. Na proposição Todo
ser humano é mortal, por exemplo, mortal é predicado de humanos ou de humano?
É importante distinguir entre uso e menção – entre o uso de uma palavra para
falar sobre o que significa e a menção de uma palavra para falar sobre a própria
palavra. Essa distinção nem sempre foi fácil de fazer no grego antigo, porque
a linguagem não tinha o sinal de aspas. Não há dúvida de que Aristóteles, por
vezes, caiu em confusão entre uso e menção. O curioso é que, mesmo devido a sua
doutrina disfuncional de termos, ele não caiu em confusão com tanta frequência.

74
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

5.3 A FÍSICA E A METAFÍSICA


Aristóteles dividiu as ciências teóricas em três grupos: física, matemática
e teologia. A física como ele entendia era equivalente ao que agora seria chamado
de "filosofia natural", ou o estudo da natureza (physis); nesse sentido, abrange não
apenas o campo moderno da física, mas também a biologia, a química, a geologia,
a psicologia e até mesmo a meteorologia. A metafísica, ou o estudo filosófico, cujo
objeto é determinar a natureza última da realidade, está notavelmente ausente da
classificação de Aristóteles; de fato, ele nunca usa a palavra, que aparece primeiro
no catálogo póstumo de seus escritos como um nome para as obras listadas após a
física. Ele reconhece, no entanto, o ramo da filosofia agora chamado de metafísica:
ele o chama de "filosofia primeira" e o define como a disciplina que estuda "ser
como ser".

As contribuições de Aristóteles para as ciências físicas são menos


impressionantes do que suas pesquisas nas ciências da vida. Em trabalhos como
Da Geração e Corrupção (ARISTÓTELES, 2016b) e Dos Céus (ARISTÓTELES, 2014b),
ele apresentou uma imagem de mundo que incluía muitas características herdadas
de seus antecessores pré-socráticos. De Empédocles (c. 490-430 a.E.C.) ele adotou
a visão de que o universo é composto basicamente de diferentes combinações dos
quatro elementos fundamentais da terra, da água, do ar e do fogo. Cada elemento
é caracterizado pela posse de um par único de quatro qualidades elementares
de calor, frio, umidade e secura: a terra é fria e seca, a água é fria e úmida, o
ar é quente e úmido e o fogo é quente e seco. Cada elemento tem um lugar
natural em um cosmos ordenado, e cada um tem uma tendência inata de se
mover em direção a esse lugar natural. Assim, os sólidos terrosos naturalmente
caem, enquanto o fogo, a menos que seja evitado, aumenta cada vez mais. Outros
movimentos dos elementos são possíveis, mas são "violentos". (Uma relíquia da
distinção de Aristóteles é preservada no contraste moderno entre a morte natural
e a morte violenta).

A visão de Aristóteles do cosmos também deve muito ao diálogo de


Platão (2009), em Timeu. Como nesse trabalho, a Terra está no centro do universo,
e ao redor dela a Lua, o Sol e os outros planetas giram em uma sucessão de
esferas cristalinas concêntricas. Os corpos celestes não são compostos dos quatro
elementos terrestres, mas são compostos de um quinto elemento superior,
ou “quintessência”. Além disso, os corpos celestes têm almas ou intelectos
sobrenaturais, que os guiam em suas viagens pelo cosmos.

Até mesmo o melhor do trabalho científico de Aristóteles tem agora


apenas um interesse histórico. O valor duradouro de tratados como a Física
(ARISTÓTELES, 2009) não reside em suas afirmações científicas particulares, mas
em suas análises filosóficas de alguns dos conceitos que permeiam a física de
diferentes eras – conceitos como espaço, tempo, causalidade e determinismo.

75
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

5.4 O ESPAÇO
Todo corpo parece estar em algum lugar e todo corpo (pelo menos em
princípio) pode mover-se de um lugar para outro. O mesmo espaço pode ser
ocupado em diferentes momentos por diferentes corpos, pois um frasco pode
conter primeiro vinho e depois ar. Assim, um espaço não pode ser idêntico ao
corpo que o ocupa. O que, então, é o espaço? Segundo Aristóteles, o espaço de
uma coisa é o primeiro limite imóvel de qualquer corpo que o contenha. Assim, o
espaço de um litro de vinho é a superfície interna do frasco que o contém – desde
que o frasco esteja estacionário. Mas suponha que o frasco esteja em movimento,
talvez em um barco boiando no rio, então o vinho também estará se movendo,
de espaço para espaço, e seu espaço deve ser dado especificando sua posição em
relação às margens do rio imóvel (ARISTÓTELES, 2009).

Como fica claro neste exemplo, para Aristóteles, uma coisa não está apenas
no espaço definido por seu recipiente imediato, mas também em qualquer coisa
que contenha esse recipiente. Assim, todos os seres humanos não estão apenas
na Terra, mas também no universo; o universo é o espaço comum a tudo. Mas o
universo em si não está em nenhum espaço, já que não tem recipiente fora dele.
Assim, é claro que o espaço descrito por Aristóteles é bem diferente do espaço
concebido por Isaac Newton (1643-1727) – como uma extensão infinita ou grade
cósmica. O espaço newtoniano existiria se o universo material tivesse ou não
sido criado. Para Aristóteles (2009), se não houvesse corpos não haveria espaço.
Aristóteles, no entanto, permite a existência de um vácuo ou "vazio", mas apenas
se for contido por corpos realmente existentes.

5.5 O CONTINUUM
A extensão espacial, o movimento e o tempo são geralmente considerados
contínuos – como um todo formado por uma série de partes menores. Aristóteles
desenvolve uma análise sutil da natureza de tais quantidades contínuas. Duas
entidades são contínuas, segundo ele, quando existe apenas um único limite
comum entre elas. Com base nessa definição, ele procura mostrar que um
continuum não pode ser composto de átomos indivisíveis. Uma linha, por exemplo,
não pode ser composta de pontos que não possuem magnitude. Como um ponto
não tem partes, ele não pode ter um limite distinto de si mesmo; dois pontos,
portanto, não podem ser adjacentes ou contínuos. Entre dois pontos em uma
linha contínua, sempre haverá outros pontos na mesma linha (ARISTÓTELES,
2009).

Raciocínio semelhante, diz Aristóteles (2009), aplica-se ao tempo e ao


movimento. O tempo não pode ser composto de momentos indivisíveis, porque
entre dois momentos há sempre um período de tempo. Da mesma forma, um
átomo de movimento teria de fato de ser um átomo de repouso. Momentos ou
pontos que fossem indivisíveis seriam desprovidos de magnitude, e a magnitude
zero, embora muitas vezes repetida, nunca poderia ser de nenhuma magnitude.

76
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

Qualquer magnitude, então, é infinitamente divisível. Mas isso significa


“infinitamente divisível”, não “divisível em infinitas partes”. No entanto, não
importa quantas vezes uma magnitude foi dividida, ela pode sempre ser dividida
ainda mais. É infinitamente divisível no sentido de que não há fim para sua
divisibilidade. O continuum não possui um número infinito de partes; de fato,
Aristóteles (2009) considerava a ideia de um número infinito real como incoerente.
O infinito, diz ele, tem apenas uma existência "potencial".

5.6 O MOVIMENTO
O movimento (kinesis) foi para Aristóteles um termo amplo, abrangendo
mudanças em várias categorias diferentes. Um paradigma de sua teoria do
movimento, que apela para as noções-chave de realidade e potencialidade,
é o movimento local ou o movimento de um lugar para outro. Se um corpo X
mover-se-á do ponto A para o ponto B, ele deve ser capaz de fazê-lo: quando
está em A, está apenas potencialmente em B. Quando essa potencialidade foi
realizada, então X está em B, mas está em repouso e não em movimento. Assim, o
movimento de A para B não é simplesmente a atualização de um potencial em A
por estar em B. Será uma atualização parcial dessa potencialidade? Isso tampouco
funcionará, porque pode-se dizer que um corpo estacionário, no ponto médio
entre A e B, tenha atualizado parcialmente essa potencialidade. Deve-se dizer
que o movimento é uma atualização de uma potencialidade que ainda está sendo
atualizada. Na Física, Aristóteles (2009) define o movimento como a atualidade
do ente potencial, quando em atualidade está em atividade não enquanto ele
mesmo, mas sim enquanto móvel.

O movimento é um continuum: uma mera série de posições entre A e B não é


um movimento de A para B. Se X for mover de A para B, entretanto, ele deve passar
por qualquer ponto intermediário entre A e B, mas passando por um ponto não é o
mesmo que estar localizado naquele ponto. Aristóteles argumenta que tudo o que
está em movimento já está em movimento. Se X, viajando de A para B, passa pelo
ponto intermediário K, ele já deve ter passado por um ponto anterior J, intermediário
entre A e K. Mas, por menor que seja a distância entre A e J, isso também é divisível,
e assim em ad infinitum. Em qualquer ponto em que X está se movendo, portanto,
haverá um ponto anterior no qual ele já estava se movendo. Segue-se que não existe
um primeiro instante de movimento (ARISTÓTELES, 2009).

5.7 O TEMPO
Para Aristóteles (2009), extensão, movimento e tempo são três contínuos
fundamentais em uma relação íntima e ordenada entre si. O movimento local deriva
sua continuidade da continuidade da extensão e o tempo deriva sua continuidade
da continuidade do movimento. O tempo, para Aristóteles, é o número de
movimentos em relação a antes e depois. Onde não há movimento, não há tempo.
Isso não implica que o tempo seja idêntico ao movimento. Os movimentos são

77
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

movimentos de coisas particulares, e diferentes tipos de mudanças são movimentos


de diferentes tipos, mas o tempo é universal e uniforme. Os movimentos novamente
podem ser mais rápidos ou mais lentos, todavia não é assim com o tempo. De fato,
é pelo tempo que eles tomam que a velocidade dos movimentos é determinada. No
entanto, segundo Aristóteles, percebemos movimento e tempo juntos. Observa-se
quanto tempo passou observando o processo de alguma mudança. Em particular,
para Aristóteles, os dias, meses e anos são medidos observando o Sol, a Lua e as
Estrelas em suas viagens celestes.

A parte de uma jornada que está mais perto de seu ponto de partida vem
antes da parte que está mais perto do fim. A relação espacial de mais e mais
próxima sustenta a relação de antes e depois em movimento, e a relação de antes
e depois em movimento sustenta a relação de antes e depois no tempo. Assim, na
visão de Aristóteles (2009), a ordem temporal é, em última análise, derivada do
ordenamento espacial de trechos de movimento.

5.8 A MATÉRIA
Mudança, para Aristóteles (2009), pode ocorrer em muitas categorias
diferentes. Movimento local, como mencionado anteriormente, é uma mudança
na categoria de espaço. Mudança na categoria de quantidade é crescimento (ou
encolhimento), e mudança na categoria de qualidade (por exemplo, de cor) é o
que Aristóteles chama de “alteração”. Mudança na categoria de substância, no
entanto – uma mudança de um tipo de coisa em outro tipo – é muito especial.
Quando uma substância sofre uma mudança de quantidade ou qualidade, a
mesma substância permanece por toda parte. Mas será que alguma coisa persiste
quando um tipo de coisa se transforma em outro tipo? A resposta de Aristóteles é,
sim, a matéria. Ele argumenta que, por matéria ele quer dizer o que, em si, não é
de nenhum tipo nem de qualquer tamanho, nem pode ser descrito por nenhuma
das categorias do ser. Pois é algo de que todas essas coisas são predicadas e,
portanto, sua essência é diferente daquela de todos os predicados.

Uma entidade que não é de nenhum tipo, tamanho ou forma e da qual nada
pode ser dito, pode parecer altamente misteriosa, mas não é isso que Aristóteles
tem em mente. Sua matéria última (ele às vezes chama de "matéria-prima") não
é em si mesma de qualquer espécie. Não é em si mesma de qualquer tamanho
particular, porque pode crescer ou encolher; não é em si mesma água ou vapor,
porque é ambos, por sua vez. Mas isso não significa que haja qualquer momento
em que não seja de qualquer tamanho ou momento em que não seja nem água
nem vapor nem qualquer outra coisa (ARISTÓTELES, 2009).

A vida ordinária fornece muitos exemplos de partes de matéria que


mudam de um tipo para outro. Uma garrafa contendo um litro de creme pode ser
encontrada, após a agitação, não contendo creme, mas manteiga. O material que
sai da garrafa é o mesmo material que entrou nela; nada foi adicionado e nada foi
removido. Mas o que sai é diferente do que entrou. É de casos como esse que a
noção aristotélica de matéria é derivada.
78
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

5.9 A FORMA
Embora o sistema de Aristóteles abra espaço para formas, elas diferem,
significativamente, das Formas como Platão as concebeu. Para Aristóteles (2009),
a forma de uma coisa particular não é separada (chorista) da coisa em si – qualquer
forma é a forma de alguma coisa. Na física de Aristóteles, a forma é sempre
emparelhada com a matéria, e os exemplos paradigmáticos das formas são os das
substâncias materiais.

Aristóteles (2009) distingue entre formas “substanciais” e “acidentais”.


Uma forma substancial é uma substância segunda (espécie ou tipo) considerada
universal; o predicado humano, por exemplo, é tanto universal como substancial.
Assim, Sócrates é humano pode ser descrito como predicado de uma substância
segunda de uma substância primeira (Sócrates) ou como predicando de uma
forma substancial de uma substância primeira. Considerando que as formas
substanciais correspondem à categoria da substância, as formas acidentais
correspondem a outras categorias além da substância; elas são categorias não
substanciais consideradas universais. Sócrates é sábio, por exemplo, pode ser
descrito como predicado de uma qualidade (sábio) de uma substância primeira ou
como predicando de uma forma acidental de uma substância primeira. Aristóteles
chama tais formas de “acidentais”, porque elas podem sofrer mudanças ou serem
obtidas ou perdidas, sem, desse modo, mudar a substância primeira em outra
coisa ou fazendo com que ela deixe de existir. Formas substanciais, ao contrário,
não podem ser obtidas ou perdidas sem mudar a natureza da substância da qual
elas são predicadas. Nas proposições anteriores, sábio é uma forma acidental e
humano uma forma substancial. Sócrates poderia sobreviver à perda da primeira,
mas não à perda da última.

Quando uma coisa passa a existir, nem sua matéria nem sua forma são
criadas. Quando se fabrica uma esfera de bronze, por exemplo, o que passa a
existir não é o bronze ou a forma esférica, mas o bronze formatado. Da mesma
forma, no caso do Sócrates humano. Mas o fato de as formas das coisas não serem
criadas não significa que elas devam existir independentemente da matéria, fora
do espaço e do tempo, como Platão sustentou. A esfera de bronze deriva sua
forma não de uma Esfera ideal, mas de seu criador, que introduz a forma na
matéria apropriada no processo de seu trabalho. Do mesmo modo, a humanidade
de Sócrates deriva não de um Humano ideal, mas de seus pais, que introduzem a
forma na matéria apropriada quando o concebem.

Assim, Aristóteles (2009) inverte a pergunta de Platão: “O que é que


dois seres humanos têm em comum que os torna humanos?”. Em vez disso, ele
pergunta: “O que faz de dois seres humanos dois humanos em vez de um?”. O
que torna Sócrates distinto de seu amigo Cálias não é sua forma substancial, que
é a mesma, nem suas formas acidentais, que podem ser iguais ou diferentes, mas
sua matéria. A matéria, não a forma, é o princípio da individuação.

79
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

5.10 A CAUSALIDADE
Em vários lugares, Aristóteles distingue quatro tipos de causa ou
explicação. Primeiro, ele diz, há aquilo do que uma coisa é feita e de onde uma
coisa é feita, como o bronze de uma estátua. Isso é chamado de causa material.
Em segundo lugar, há a forma ou padrão de uma coisa, que pode ser expressa
em sua definição. O exemplo de Aristóteles é a proporção do comprimento de
duas cordas em uma lira, que é a causa formal de uma nota ser a oitava de outra.
O terceiro tipo de causa é a origem de uma mudança ou estado de repouso em
alguma coisa; isso é muitas vezes chamado de "causa eficiente". Aristóteles dá
como exemplos, uma pessoa chegando a uma decisão, um pai gerando uma
criança, um escultor esculpindo uma estátua e um médico curando um paciente.
O quarto e último tipo de causa é o fim ou o objetivo de uma coisa – que pelo qual
uma coisa é feita. Isso é conhecido como a "causa final" (ARISTÓTELES, 2009).

Embora Aristóteles forneça exemplos matemáticos de causas formais, as


formas cuja causalidade lhe interessa mais, são as formas substanciais dos seres
vivos. Nesses casos, a forma substancial é a estrutura ou organização do ser como
um todo, bem como de suas várias partes; é essa estrutura que explica o ciclo de
vida e as atividades características do ser. Nesses casos, de fato, as causas formais
e finais coincidem, a realização madura da forma natural é o fim ao qual tendem
as atividades do organismo. O crescimento e desenvolvimento das várias partes
de um ser vivo, como a raiz de uma árvore ou o coração de uma ovelha, pode ser
entendido apenas como a atualização de uma certa estrutura com o propósito de
realizar uma certa função biológica.

5.11 O SER
Sempre que Aristóteles explica o significado de ser, ele faz isso explicando
o sentido do verbo grego ser. Ser contém todos os itens que podem ser os sujeitos
de proposições verdadeiras contendo a palavra É, seja ou não o É seguido por um
predicado. Assim, tanto a proposição Sócrates é e Sócrates é sábio dizem algo sobre
o ser. Todo ser em qualquer categoria que não seja substância é uma propriedade
ou uma modificação de substância. Por essa razão, Aristóteles diz que o estudo
da substância é o caminho para entender a natureza do ser. Os livros da Metafísica
(ARISTÓTELES, 1969), em que ele realiza esta investigação, do VII ao IX livro,
estão entre os mais difíceis de seus escritos.

Aristóteles (1969) apresenta dois relatos superficialmente conflitantes


do assunto da filosofia primeira. De acordo com um relato, é a disciplina que
teoriza sobre “ser enquanto (qua) ser” e as coisas que pertencem ao ser tomado
em si mesmo. Diferentemente das ciências especiais, trata das características mais
gerais dos seres, na medida em que são seres. Por outro lado, a filosofia primeira
lida com um tipo particular de ser, a saber, a substância divina, independente e
imutável. Por essa razão, ele às vezes chama a disciplina de "teologia".

80
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

É importante notar que esses relatos não são simplesmente duas descrições
diferentes de “ser qua ser”. Na verdade, não existe ser qua ser; existem apenas
maneiras diferentes de estudar o ser. Quando se estuda a fisiologia humana, por
exemplo, se estuda humanos como animais – isto é, estudam-se as estruturas e
funções que os humanos têm em comum com os animais. Mas é claro que não
existe tal entidade como um “humano qua animal”. Da mesma forma, estudar
algo como um ser é estudá-lo em virtude do que ele tem em comum com todas
as outras coisas. Estudar o universo como ser é estudá-lo como um sistema único
e abrangente, abrangendo todas as causas das coisas que surgem e permanecem
na existência.

5.12 O MOTOR IMÓVEL


A maneira pela qual Aristóteles (1969) procura mostrar que o universo
é um único sistema causal é através de um exame da noção de movimento,
que encontra seu ponto culminante no Livro XI da Metafísica. Como observado
anteriormente, o movimento, para Aristóteles, refere-se à mudança em qualquer
uma das várias categorias diferentes. O princípio fundamental de Aristóteles é
que tudo o que está em movimento é movido por outra coisa, e ele oferece vários
argumentos (pouco convincentes) para esse efeito. Ele, então, argumenta que não
pode haver uma série infinita de moventes movidos. Se é verdade que quando
A está em movimento, deve haver algum B que mova A, então, se B está em
movimento, deve haver algum C movendo B, e assim por diante. Esta série não
pode continuar para sempre, e por isso deve parar em algum X que é uma causa
do movimento, mas não se move em si – um motor imóvel.

Como o movimento que causa é eterno, este X deve ser uma substância
eterna. Deve carecer de matéria, pois não pode vir à existência ou sair da existência
transformando-se em qualquer outra coisa. Deve também carecer de potencialidade,
pois o mero poder de causar movimento não garantiria a sempiternidade do
movimento. Deve, portanto, ser pura atualidade (energeia). Embora os céus rotativos,
para Aristóteles (1969), não possuam a possibilidade de mudança substancial, eles
possuem potencialidade, porque cada corpo celeste tem o poder de mover-se para
outro lugar em sua rodada diurna. Uma vez que esses corpos estão em movimento,
eles precisam de um motor, e este é um motor imóvel. Tal motor não poderia agir
como uma causa eficiente, porque isso envolveria uma mudança em si mesmo,
mas pode atuar como uma causa final – um objeto de amor – porque ser amado
não envolve qualquer mudança no amado. As estrelas e os planetas procuram
imitar a perfeição do motor imóvel movendo-se sobre a Terra em um círculo, a
mais perfeita das formas. Para que este seja o caso, é claro, os corpos celestes devem
ter almas capazes de sentir amor pelo motor imóvel. Com base em tal princípio, diz
Aristóteles, dependem os céus e o mundo da natureza.

Aristóteles está preparado para chamar o motor imóvel de "Deus". A vida


de Deus, diz ele, deve ser como o melhor das vidas humanas. O prazer que um
ser humano tem nos momentos mais sublimes da contemplação filosófica é, em

81
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Deus, um estado perpétuo. O que, pergunta Aristóteles, Deus pensa? Ele deve
pensar em algo – caso contrário, Ele não é melhor que um humano adormecido
– e seja lá o que Ele estiver pensando, deve pensar eternamente. Ou Ele pensa
em si mesmo ou pensa em outra coisa, mas o valor de um pensamento depende
do valor do que é por Ele pensado, então, se Deus estivesse pensando em algo
diferente de si mesmo, Ele seria de alguma forma degradado. Portanto Deus deve
estar pensando em si mesmo, o ser supremo, e sua vida é um pensamento de
pensamento (noesis noeseos) (ARISTÓTELES, 1969).

Essa conclusão foi muito debatida. Alguns a consideraram uma verdade


sublime; outros pensaram que é um absurdo requintado. Entre aqueles que
adotaram a última opinião, alguns a consideraram o supremo absurdo do sistema
de Aristóteles, e outros sustentaram que o próprio Aristóteles a pretendia como
uma reductio ad absurdum. Seja qual for a verdade sobre o objeto do pensamento
do motor imóvel, parece claro que este não inclui os assuntos contingentes de
seres humanos individuais.

Assim, no ponto supremo da hierarquia causal de Aristóteles, estão os


motores ou moventes celestes, movidos e imóveis, que são a causa final de toda
geração e corrupção. E é por isso que a metafísica pode ser chamada por dois
nomes tão diferentes. Quando Aristóteles diz que a filosofia primeira estuda o
ser como um todo, ele está descrevendo-a ao indicar o campo que deve explicar;
quando ele diz que é a ciência do divino, ele está descrevendo-a ao indicar seus
princípios últimos de explicação. Assim, a filosofia primeira é tanto ciência do ser
enquanto ser é também teologia.

5.13 FILOSOFIA DA MENTE


Aristóteles considerava a psicologia como parte da filosofia natural
e escreveu muito sobre a filosofia da mente. Esse material aparece em seus
escritos éticos, em um tratado sistemático sobre a natureza da alma, De anima
(ARISTÓTELES, 2011a), e em várias monografias menores sobre tópicos como
percepção sensorial, memória, sono e sonhos.

Para Aristóteles (2011a), o biólogo, a alma não é – como em alguns


escritos de Platão – um exílio de um mundo melhor, alojada em um corpo
básico. A essência da alma é definida por sua relação com uma estrutura
orgânica. Não só os seres humanos, mas animais e plantas também têm almas,
princípios intrínsecos da vida animal e vegetal. Uma alma, diz Aristóteles, é a
atualização de um corpo que tem vida, em que a vida significa a capacidade
de autossustentação, crescimento e reprodução. Se alguém considera uma
substância viva como um composto de matéria e forma, então a alma é a forma
de um corpo natural – ou, como Aristóteles às vezes diz, orgânico. Corpo
orgânico é um corpo que tem órgãos – isto é, partes que têm funções específicas,
como as bocas dos mamíferos e as raízes das árvores.

82
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

As almas dos seres vivos são ordenadas por Aristóteles em uma hierarquia.
As plantas têm uma alma vegetativa ou nutritiva, que consiste nos poderes de
crescimento, nutrição e reprodução. Os animais têm, além disso, os poderes de
percepção e locomoção – eles possuem uma alma sensitiva, e todo animal tem pelo
menos uma faculdade sensorial, sendo o tato o mais universal. O que quer que
possa sentir, pode sentir prazer; portanto, os animais, que têm sentidos, também
têm desejos. Os humanos, além disso, têm o poder da razão e do pensamento
(logismos kai dianoia), que pode ser chamado de alma racional. A maneira pela
qual Aristóteles estruturou a alma e suas faculdades influenciou não apenas a
filosofia, mas também a ciência por quase dois milênios (ARISTÓTELES, 2011a).

O conceito teórico de alma de Aristóteles difere daquele de Platão, anterior


ao dele, e difere daquele de René Descartes (1596-1650), posterior ao dele. Uma
alma, para ele, não é um agente imaterial interior que age sobre o corpo. O corpo
e a alma não são mais distintos entre si do que a impressão de um selo é distinta
da cera em que está impressa. As partes da alma, além disso, são faculdades que
se distinguem umas das outras por suas operações e seus objetos. O poder do
crescimento é distinto do poder da sensação, porque crescer e sentir são duas
atividades diferentes, e o sentido da visão difere do sentido da audição, não
porque os olhos sejam diferentes dos ouvidos, mas porque as cores são diferentes
dos sons.

Os objetos do sentido vêm em dois tipos: aqueles que são apropriados


a determinados sentidos, como cor, som, paladar e olfato, e aqueles que são
perceptíveis por mais de um sentido, como movimento, número, forma e
tamanho. Pode-se dizer, por exemplo, se algo está se movendo, seja observando-o
ou sentindo-o, assim o movimento é um “sensível comum”. Embora não haja
um órgão especial para detectar sensíveis comuns, existe uma faculdade que
Aristóteles chama de “sentido central”. Quando alguém encontra um cavalo, por
exemplo, pode-se ver, ouvir, sentir e cheirar; é o sentido central que unifica essas
sensações em percepções de um único objeto (embora o conhecimento de que
esse objeto é um cavalo é, para Aristóteles, uma função do intelecto em vez do
sentido).

Além dos cinco sentidos e do sentido central, Aristóteles (2011a) reconhece


outras faculdades que mais tarde vieram a ser agrupadas como os “sentidos
internos”, notavelmente a imaginação e a memória. Mesmo no nível puramente
filosófico, no entanto, os relatos de Aristóteles sobre os sentidos internos não são
recompensadores.

No mesmo nível da hierarquia como os sentidos, que são faculdades


cognitivas, há também uma faculdade afetiva, que é o lócus do sentimento
espontâneo. Esta é uma parte da alma que é basicamente irracional, mas é capaz
de ser controlada pela razão. É o lugar do desejo e da paixão; quando trazido sob
o domínio da razão, é a sede das virtudes morais, como a coragem e a temperança.
O nível mais elevado da alma é ocupado pela mente ou razão, o lócus do
pensamento e da compreensão. O pensamento difere da percepção sensorial e é a

83
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

prerrogativa, na Terra, dos seres humanos. Pensamento, como a sensação, é uma


questão de emitir juízos; mas a sensação diz respeito a particulares, enquanto
o conhecimento intelectual é de universais. O raciocínio pode ser prático ou
teórico e, portanto, Aristóteles distingue entre uma faculdade deliberativa e uma
especulativa (ARISTÓTELES, 2011a).

Em uma passagem notoriamente difícil na obra De anima, Aristóteles


(2011a) introduz uma distinção adicional entre dois tipos de mente: uma passiva,
que pode tornar-se todas as coisas, e uma ativa, que pode fazer todas as coisas.
A mente ativa é separável, impassível e não é misturada. Na Antiguidade e na
Idade Média, essa passagem foi objeto de interpretações muito diferentes. Alguns
– particularmente entre comentaristas árabes – identificaram o agente ativo
separável com Deus ou com alguma outra inteligência sobre-humana. Outros
– particularmente entre os comentaristas latinos – conceberam que Aristóteles
identifica duas faculdades diferentes dentro da mente humana: um intelecto
ativo, que formava conceitos, e um intelecto passivo, que era um depósito de
ideias e crenças.

Se a segunda interpretação está correta, então Aristóteles está reconhecendo,


aqui, uma parte da alma humana que é separável do corpo e imortal. Aqui e em
outros lugares é detectável em Aristóteles, além de sua noção biológica padrão
da alma, um resíduo de uma visão platônica segundo a qual o intelecto é uma
entidade distinta, separável do corpo. Ninguém produziu uma reconciliação
totalmente satisfatória entre as ramificações biológicas e transcendentes no
pensamento de Aristóteles.

5.14 ÉTICA
As obras sobreviventes de Aristóteles incluem três tratados sobre filosofia
moral: a Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984), em 10 livros; a Ética a Eudemo
(ARISTÓTELES, 2015a), em 7 livros; e a Magna Moralia (ARISTÓTELES, 2016c),
em latim “Grande Ética”. A Ética a Nicômaco é geralmente considerada a mais
importante das três. Consiste de uma série de pequenos tratados, possivelmente
reunidos pelo filho de Aristóteles, Nicômaco. No século XIX, a Ética a Eudemo era
frequentemente suspeita de ser obra do aluno de Aristóteles, Eudemo de Rodes,
mas não há boas razões para duvidar de sua autenticidade. Curiosamente, estas
duas obras têm três livros em comum: os livros V, VI e VII do primeiro são os
mesmos que os livros IV, V e VI do último. Embora a questão tenha sido contestada
há séculos, é mais provável que o lar original dos livros comuns tenha sido a Ética
a Eudemo. Também é provável que Aristóteles tenha usado esse trabalho para um
curso de ética, que ele ensinou no Liceu durante seu período maduro. A Magna
Moralia provavelmente consiste em anotações feitas por um aluno desconhecido
de tal curso.

84
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

5.15 FELICIDADE
A abordagem de Aristóteles à ética é teleológica. Se a vida vale a pena ser
vivida, argumenta ele, certamente deve ser em benefício de algo que é um fim
em si mesmo – isto é, desejável por si só. Se existe uma única coisa que é o maior
bem humano, portanto, ela deve ser desejável por si mesma, e todos os outros
bens devem ser desejáveis ​​por causa dela. As concepções gregas tradicionais da
boa vida incluíam a vida de prosperidade e a vida de posição social, caso em que
a virtude seria a posse de riqueza ou nobreza (e talvez beleza física). A tendência
esmagadora da filosofia antiga, entretanto, era conceber a boa vida como algo
que é a realização de um indivíduo – algo que um indivíduo faz ou não faz por
si mesmo.

Como Aristóteles explica tanto na Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984)


quanto na Ética a Eudemo (ARISTÓTELES, 2015a), uma concepção popular do
bem humano mais elevado é o prazer – os prazeres sensuais da comida, da
bebida e do sexo, combinados com os prazeres da mente, incluindo os prazeres
estéticos e intelectuais. Outras pessoas preferem uma vida de ação virtuosa na
esfera política (o exemplo quintessencial desse tipo de vida é Péricles (c. 495-
429 a.E.C.), o estadista ateniense que foi, em grande parte, responsável pelo
pleno desenvolvimento da democracia ateniense e do império ateniense no
século 5 a.E.C.). Um terceiro candidato possível ao mais alto bem humano é a
contemplação científica ou filosófica. Um excelente exemplo desse tipo de vida é
o próprio Aristóteles. Assim, Aristóteles reduz as respostas à pergunta “O que é
uma boa vida?” a uma pequena lista de três: a vida filosófica, a vida política e a
vida voluptuosa. Essa tríade fornece a chave para sua investigação ética.

"Felicidade" – o termo que Aristóteles usa para designar o bem humano


mais elevado – é a tradução usual do termo grego antigo eudaimonia. Embora
seja impossível abandonar o termo felicidade, neste estágio da história deve-
se ter em mente que o que Aristóteles quer dizer com eudaimonia é algo mais
como bem-estar, prosperidade ou florescimento do que qualquer sentimento
de contentamento. A palavra grega antiga eudaimonia significa, literalmente, o
estado de ter um bom espírito, um bom gênio; assim, “felicidade” não é de forma
alguma uma tradução adequada desta palavra. Aristóteles argumenta, de fato,
que felicidade é a atividade da alma racional de acordo com a virtude. Assim, as
noções de felicidade e virtude estão ligadas (ARISTÓTELES, 1984).

De acordo com Aristóteles, os seres humanos devem ter uma função,


porque tipos particulares de humanos (por exemplo, escultores) têm, assim
como as partes e órgãos de seres humanos individuais também têm sua função.
Essa função deve ser exclusiva para humanos; assim, não pode consistir em
crescimento e nutrição, pois isso é compartilhado pelas plantas, ou a vida dos
sentidos, pois isso é compartilhado pelos animais. Deve, portanto, envolver a
faculdade peculiarmente humana da razão. O bem humano mais elevado é o
mesmo que o bom funcionamento humano, e o bom funcionamento humano
é o mesmo que o bom exercício da faculdade da razão – isto é, a atividade da

85
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

alma racional de acordo com a virtude. Existem dois tipos de virtude: moral e
intelectual. As virtudes morais são exemplificadas pela coragem, temperança e
liberalidade. As principais virtudes intelectuais são a sabedoria, que governa o
comportamento ético e o entendimento, que é expressa no esforço científico e na
contemplação.

5.16 VIRTUDE
As virtudes das pessoas são um subconjunto de suas boas qualidades. Elas
não são inatas, como a visão, mas são adquiridas pela prática e perdidas pelo desuso.
Elas são estados permanentes e, portanto, diferem de paixões momentâneas, como
raiva e piedade. Virtudes são estados de caráter que encontram expressão tanto
em propósito quanto em ação. A virtude moral é expressa em um propósito bom –
isto é, em prescrições para ação de acordo com um bom plano de vida. É expresso
também em ações que evitam tanto o excesso quanto o defeito. Uma pessoa
moderada, por exemplo, evitará comer ou beber demais, mas também evitará
comer ou beber muito pouco. A virtude escolhe a média ou o meio termo entre o
excesso e o defeito. Além do propósito e da ação, a virtude também se preocupa
com o sentimento. Pode-se, por exemplo, estar excessivamente preocupado com
sexo ou pouco interessado nele. A pessoa temperada tomará o grau apropriado de
interesse e não será nem lasciva nem frígida (ARISTÓTELES, 1984).

Enquanto todas as virtudes morais são meios de ação e paixão, não é


o caso que todo tipo de ação e paixão é capaz de um meio virtuoso. Existem
algumas ações das quais não há quantidade certa, porque qualquer quantidade
delas é demais. Aristóteles dá assassinato e adultério como exemplos. As virtudes,
além de se preocuparem com meios de ação e paixão, são elas próprias meios no
sentido de que ocupam um meio termo entre dois vícios contrários. Assim, a
virtude da coragem é flanqueada de um lado pela imprudência ou temeridade e,
do outro, pela covardia.

O relato de Aristóteles da virtude, como um meio, não é truísmo. É


uma teoria ética distinta que contrasta com outros sistemas influentes de vários
tipos. Contrasta, por um lado, com sistemas religiosos que dão um papel central
ao conceito de uma lei moral, concentrando-se nos aspectos proibitivos da
moralidade. Também difere de sistemas morais, como o utilitarismo, que julga
o acerto e o erro das ações, em termos de suas consequências. Ao contrário
do utilitarista, Aristóteles acredita que existem alguns tipos de ações que são
moralmente errados em princípio (ARISTÓTELES, 1984).

O meio, que é a marca da virtude moral, é determinado pela virtude


intelectual da sabedoria. A sabedoria é caracteristicamente expressa na formulação
de prescrições para a ação – "silogismos práticos", como Aristóteles os chama. Um
silogismo prático consiste em uma receita geral para uma boa vida, seguida por
uma descrição precisa das circunstâncias reais do agente e concluindo com uma
decisão sobre a ação apropriada a ser realizada.

86
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

A sabedoria, a virtude intelectual própria da razão prática, está


inseparavelmente ligada às virtudes morais da parte afetiva da alma. Somente
se um agente possuir virtude moral, ele endossará uma receita apropriada para
uma boa vida. Somente se ele é dotado de inteligência, ele fará uma avaliação
precisa das circunstâncias em que sua decisão será tomada. É impossível, diz
Aristóteles, ser realmente bom sem sabedoria ou ser realmente sábio sem virtude
moral. Somente quando o raciocínio correto e o desejo correto se unem resulta
uma ação verdadeiramente virtuosa (ARISTÓTELES, 1984).

A ação virtuosa, portanto, é sempre o resultado de um raciocínio prático


bem-sucedido, mas o raciocínio prático pode ser defeituoso de várias maneiras.
Alguém pode operar a partir de uma escolha cruel de estilo de vida. Um glutão,
por exemplo, pode planejar sua vida em torno do projeto de sempre maximizar
o prazer presente. Aristóteles chama tal pessoa de “intemperante”. Até mesmo
pessoas que não endossam tal premissa hedonista podem, de vez em quando,
exagerar. Esta falha em aplicar a uma ocasião particular, um plano de vida
geralmente sadio, Aristóteles chama de “incontinência” (ARISTÓTELES, 1984).

5.17 AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO


Os prazeres que são o domínio da temperança, intemperança e
incontinência são os prazeres corporais familiares da comida, da bebida e do
sexo. Em seu tratamento do prazer, no entanto, Aristóteles, explora um campo
muito mais amplo. Existem duas classes de prazeres estéticos: os prazeres dos
sentidos inferiores do tato e do paladar, e os prazeres dos sentidos superiores da
visão, audição e olfato. Finalmente, no topo da escala, há os prazeres da mente.

Platão havia colocado a questão de saber se a melhor vida consiste na busca


do prazer ou no exercício das virtudes intelectuais. A resposta de Aristóteles é
que, entendidos corretamente, os dois não estão competindo entre si. O exercício
da mais alta forma de virtude é a mesma coisa que a forma mais verdadeira de
prazer; cada um é idêntico ao outro e com a felicidade. As virtudes mais altas são
as intelectuais, e entre elas, Aristóteles distinguia entre sabedoria e entendimento.
Para a questão de saber se a felicidade deve ser identificada com o prazer da
sabedoria ou com o prazer do entendimento, Aristóteles dá respostas diferentes
em seus principais tratados éticos. Na Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 1984),
a felicidade perfeita, embora pressuponha as virtudes morais, é constituída
apenas pela atividade de contemplação filosófica, enquanto na Ética a Eudemo
(ARISTÓTELES, 2015a) consiste no exercício harmônico de todas as virtudes,
intelectuais e morais.

O ideal de felicidade eudemiano, dado o papel que atribui à contemplação,


às virtudes morais e ao prazer, pode alegar combinar as características das três
vidas tradicionais – a vida do filósofo, a vida do político e a vida do buscador
de prazer. A pessoa feliz valorizará a contemplação acima de tudo, mas parte de
sua vida feliz consistirá no exercício das virtudes morais, na esfera política e no

87
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

desfrute com moderação dos prazeres humanos naturais do corpo, bem como da
alma. Mas, mesmo na Ética a Eudemo, é o serviço e a contemplação de Deus que
estabelece o padrão para o exercício apropriado das virtudes morais, e na Ética
a Nicômaco, essa contemplação é descrita como uma atividade sobre-humana
de uma parte divina da natureza humana. A palavra final de Aristóteles sobre
ética é que, apesar de serem mortais, os seres humanos devem se esforçar para se
tornarem imortais o máximo que puderem.

5.18 TEORIA POLÍTICA


Passando dos tratados de Ética para sua continuação, a Política
(ARISTÓTELES, 1997), o leitor é trazido à Terra. O homem é um animal político,
observa Aristóteles, os seres humanos são criaturas de carne e osso, esfregando-
se entre si, nas cidades e comunidades. Tal como seu trabalho em zoologia, os
estudos políticos de Aristóteles combinam observação e teoria. Ele e seus alunos
documentaram as constituições de 158 estados – um dos quais, A Constituição de
Atenas (ARISTÓTELES, 2003), sobreviveu em papiro. O objetivo da Política, diz
Aristóteles, é investigar, com base nas constituições coletadas o que contribui para
o bom e o mau governo, e para identificar os fatores favoráveis ​​ou desfavoráveis​​
à preservação de uma constituição (ARISTÓTELES, 1997).

Aristóteles afirma que todas as comunidades visam a algum bem. O


estado (polis) pelo qual ele se refere a uma cidade-estado como Atenas, é o tipo
mais elevado de comunidade, visando ao mais alto dos bens. As comunidades
mais primitivas são famílias de homens e mulheres, senhores e escravos. As
famílias se combinam para formar uma aldeia e várias aldeias se combinam para
formar um estado, que é a primeira comunidade autossuficiente. O estado não é
menos natural que a família, isso é provado pelo fato de que os seres humanos
têm o poder da fala, cujo propósito é estabelecer o expediente e o inconveniente
e, portanto, o justo e o injusto. A fundação do estado foi a maior das benfeitorias,
porque somente dentro de um estado os seres humanos podem realizar seu
potencial (ARISTÓTELES, 1997).

O governo ou regime, diz Aristóteles (1997), deve estar nas mãos de um,
de poucos ou de muitos; e os governos podem governar para o bem geral ou
para o bem dos governantes. O governo de uma única pessoa para o bem geral é
chamado de "monarquia"; para benefício privado, “tirania”. O governo por uma
minoria é “aristocracia”; se visa ao melhor interesse do estado é a “oligarquia”;
se beneficiar apenas a minoria dominante. Governo popular no interesse comum
Aristóteles chama de “politeia” ou república; ele reserva a palavra “democracia”
para o governo da massa anárquica.

Se uma comunidade contém um indivíduo ou família de excelência


sobressaliente, então, diz Aristóteles (1997), a monarquia é a melhor constituição.
Tal caso é muito raro, e o risco de malogro é grande, pois a monarquia se corrompe
em tirania, que é a pior constituição de todas. A aristocracia, em teoria, é a segunda

88
TÓPICO 4 | A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES

melhor constituição depois da monarquia (porque a minoria dominante será a


melhor qualificada para governar), mas, na prática, Aristóteles preferia um tipo
de democracia constitucional, à qual ele chamava de “politeia” – era um estado
em que os ricos e os pobres respeitavam os direitos uns dos outros e os cidadãos
mais qualificados governam com o consentimento de todos.

Dois elementos do ensino de Aristóteles afetaram as instituições políticas


europeias por muitos séculos: sua justificação da escravidão e sua condenação da
usura. Algumas pessoas, diz Aristóteles, pensam que a regra do senhor sobre o
escravo é contrária à natureza e, portanto, injusta. Mas eles estão completamente
errados: um escravo é alguém que, por natureza, não é propriedade dele, mas de
outra pessoa. Aristóteles concorda, no entanto, que na prática muita escravidão é
injusta, e ele especula que, se máquinas não vivas pudessem ser feitas para realizar
tarefas domésticas, não haveria necessidade de escravos como ferramentas
vivas. No entanto, algumas pessoas são tão inferiores e brutas que é melhor para
elas serem controladas por um mestre do que serem deixadas à própria sorte
(ARISTÓTELES, 1997).

Embora não fosse um aristocrata, Aristóteles tinha um desdém aristocrático


pelo comércio. Nossas posses, diz ele, têm dois usos, adequado e inadequado. O
dinheiro também tem um uso adequado e inadequado. Seu uso adequado deve
ser trocado por bens e serviços, não ser emprestado a juros.

5.19 A RETÓRICA E A POÉTICA


A retórica, para Aristóteles, é uma disciplina neutra que estuda os possíveis
meios de persuasão. Ao aconselhar oradores sobre como explorar o humor de
seu público, Aristóteles empreende um tratamento sistemático e muitas vezes
perspicaz da emoção humana, lidando com raiva, ódio, medo, vergonha, pena,
indignação, inveja e ciúme – em cada caso oferecendo uma definição da emoção
e uma lista de seus objetos e causas.

A Poética (ARISTÓTELES, 2011b) é muito mais conhecida que a Retórica


(ARISTÓTELES, 2011c), embora apenas o primeiro livro da primeira, um
tratamento de poesia épica e trágica, sobreviva. O livro visa, entre outras coisas,
responder às críticas de Platão da arte representativa. De acordo com a teoria
das Formas, objetos materiais são cópias imperfeitas de Formas originais, reais.
As representações artísticas de objetos materiais são, portanto, apenas cópias
de cópias. Além disso, o drama tem um efeito especialmente corruptor, porque
estimula emoções indignas em seu público. Em resposta, Aristóteles insiste que a
imitação, longe de ser a atividade degradante descrita por Platão, é algo natural
para os humanos, desde a infância, e é uma das características que torna os
humanos superiores aos animais, pois aumenta enormemente o escopo do que
eles aprendem.

89
UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO GERAL À HISTÓRIA DA FILOSOFIA

A fim de responder à alegação de Platão de que os dramaturgos são apenas


imitadores da vida cotidiana, o que é em si apenas uma imitação do mundo real
das Formas, Aristóteles faz um contraste entre poesia e história. O trabalho do
poeta é descrever não algo que realmente aconteceu, mas algo que pode muito
bem acontecer – isto é, algo que é possível porque é necessário ou provável. Por
essa razão, a poesia é mais filosófica e mais importante que a história, pois a
poesia fala do universal, a história apenas do particular. Muito do que acontece
com as pessoas na vida cotidiana é uma questão de puro acidente. Só na ficção
pode alguém testemunhar o caráter e a ação para resolver suas consequências
naturais (ARISTÓTELES, 2011b).

Longe de depreciar as emoções, como Platão pensava, o drama tem um


efeito benéfico sobre elas. A tragédia, diz Aristóteles, deve conter episódios que
despertem piedade e medo, de modo a obter uma "purificação" dessas emoções.
Ninguém sabe ao certo exatamente o que Aristóteles quis dizer com katharsis ou
purificação. Mas talvez o que ele quisesse dizer era que assistir à tragédia ajuda as
pessoas a colocar suas próprias tristezas e preocupações em perspectiva, porque
nela elas observam como a catástrofe pode ultrapassar até mesmo pessoas que
são vastamente seus superiores (ARISTÓTELES, 2011b, 2011c).

Sintetizando o que vimos até aqui, desde o Renascimento tem sido


tradicional considerar a Academia e o Liceu como dois polos opostos da
filosofia. Platão é idealista, utópico e tende ao sobrenatural. Aristóteles é realista,
utilitarista e tende ao senso comum. No entanto, as doutrinas que Platão e
Aristóteles compartilham são mais importantes do que aquelas que os dividem.
Muitos historiadores pós-renascentistas têm sido menos perspicazes do que os
comentadores da antiguidade tardia, que consideravam seu dever construir uma
concordância harmoniosa entre os dois maiores filósofos do mundo conhecido.

Segundo qualquer cálculo, a conquista intelectual de Aristóteles é


estupenda. Ele foi o primeiro cientista genuíno da história, o primeiro autor cujas
obras sobreviventes contêm detalhadas e extensas observações de fenômenos
naturais, e o primeiro filósofo a alcançar uma sólida compreensão da relação
entre observação e teoria no método científico. Ele identificou as várias disciplinas
científicas e explorou suas relações entre si. Aristóteles foi o primeiro professor
a organizar suas palestras em cursos e a atribuir-lhes um lugar em um currículo.
Seu Liceu foi o primeiro instituto de pesquisa no qual vários acadêmicos e
investigadores se juntaram em pesquisa e documentação colaborativa. Finalmente,
e não menos importante, ele foi a primeira pessoa na história a construir uma
biblioteca de pesquisa, uma coleção sistemática de obras a serem usadas por seus
colegas e para serem entregues à posteridade.

Milênios depois, Platão e Aristóteles ainda têm uma forte reivindicação


de serem os maiores filósofos que já viveram. Mas se a contribuição deles para a
filosofia é igual, foi Aristóteles quem fez a maior contribuição para o patrimônio
intelectual do mundo. Não apenas todo filósofo, mas também todo cientista está
em dívida com ele. Ele merece o título que Dante lhe deu: “o mestre daqueles que
sabem” (REALE, 1994, p. 172).
90
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu que:

• Após a morte de seu pai, em 367, Aristóteles migrou para Atenas onde ingressou
na Academia de Platão. Ele permaneceu lá por 20 anos como aluno e colega de
Platão.

• Aristóteles escreveu, inicialmente, em forma de diálogo, e suas primeiras ideias


mostram uma forte influência platônica.

• Aristóteles tomou uma grande parte de sua agenda filosófica, aquela de Platão,
e seu ensino é mais uma modificação do que um repúdio às doutrinas de Platão.

• Aristóteles frequentemente discorda da teoria das Formas, às vezes


educadamente e às vezes com desdém.

• Aristóteles realizou uma extensa pesquisa científica, particularmente em


zoologia e biologia marinha.

• Em alguns casos, suas histórias improváveis, ​​sobre espécies raras de peixes,


foram comprovadas com precisão muitos séculos depois.

• Aristóteles construiu uma biblioteca muito substancial e reuniu em torno de


si um grupo de brilhantes estudantes de pesquisa chamados “peripatéticos”,
do nome do claustro (peripatos), no qual eles andavam e mantinham suas
discussões.

• As obras de Aristóteles, embora não tão polidas como as de Platão, são


sistemáticas de uma forma que Platão nunca foi.

• Aristóteles dividiu as ciências em três tipos: produtivas (poiéticas), práticas e


teóricas.

• A afirmação de Aristóteles de ser o fundador da lógica repousa, principalmente,


nas Categorias, na Da Interpretação e na Analíticos Anteriores, que lidam
respectivamente com palavras, proposições e silogismos.

• Além de inventar um vocabulário técnico, Aristóteles introduziu a prática de


usar letras esquemáticas para identificar padrões particulares de argumentação,
um dispositivo que é essencial para o estudo sistemático da inferência e que é
onipresente na lógica matemática moderna.

• As proposições que entram nos silogismos são todas proposições gerais,


universais ou particulares.

91
• Os escritos lógicos de Aristóteles contêm duas concepções diferentes da
estrutura de uma proposição e a natureza de suas partes.

• Aristóteles dividiu as ciências teóricas em três grupos: física, matemática e


teologia.

• Segundo Aristóteles, o espaço de uma coisa é o primeiro limite imóvel de


qualquer corpo que o contenha.

• Segundo Aristóteles, o tempo não pode ser composto de momentos indivisíveis,


porque entre dois momentos há sempre um período de tempo.

• Um paradigma da teoria do movimento de Aristóteles, que apela para as noções-


chave de realidade e potencialidade, é o movimento local ou o movimento de
um lugar para outro.

• Para Aristóteles, extensão, movimento e tempo são três contínuos fundamentais


em uma relação íntima e ordenada entre si.

• Aristóteles argumenta que, por matéria, ele quer dizer o que em si não é de
nenhum tipo nem de qualquer tamanho, nem pode ser descrito por nenhuma
das categorias do ser.

• Para Aristóteles, a forma de uma coisa particular não é separada (chorista) da


coisa em si – qualquer forma é a forma de alguma coisa.

• Aristóteles distingue quatro tipos de causa ou explicação: 1) aquilo do que uma


coisa é feita e de onde uma coisa é feita; 2) a forma ou padrão de uma coisa;
3) a origem de uma mudança ou estado de repouso em alguma coisa – causa
eficiente; 4) o fim ou o objetivo de uma coisa – causa final.

• Aristóteles diz que o estudo da substância é o caminho para entender a natureza


do ser.

• Não existe ser qua ser; existem apenas maneiras diferentes de estudar o ser.

• O princípio fundamental de Aristóteles é que tudo o que está em movimento é


movido por outra coisa.

• Aristóteles argumenta que não pode haver uma série infinita de moventes
movidos, deve parar em algo que é uma causa do movimento, mas não se
move em si – um motor imóvel.

• Aristóteles considerava a psicologia como parte da filosofia natural e escreveu


muito sobre a filosofia da mente.

• As almas dos seres vivos são ordenadas por Aristóteles em uma hierarquia.

92
• As obras sobreviventes de Aristóteles incluem três tratados sobre filosofia
moral: Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo e Magna Moralia.

• A abordagem de Aristóteles à ética é teleológica.

• A palavra grega antiga eudaimonia significa, literalmente, o estado de ter um


bom espírito, um bom gênio; assim, “felicidade” não é de forma alguma uma
tradução adequada desta palavra.

• As virtudes das pessoas são um subconjunto de suas boas qualidades. Elas


não são inatas, como a visão, mas são adquiridas pela prática e perdidas pelo
desuso.

• O ideal de felicidade eudemiano, dado o papel que atribui à contemplação, às


virtudes morais e ao prazer, pode alegar combinar as características das três
vidas tradicionais – a vida do filósofo, a vida do político e a vida do buscador
de prazer.

• O homem é um animal político, os seres humanos são criaturas de carne e osso,


esfregando-se entre si nas cidades e comunidades.

• Aristóteles afirma que todas as comunidades visam a algum bem.

• A retórica, para Aristóteles, é uma disciplina neutra que estuda os possíveis


meios de persuasão.

93
AUTOATIVIDADE

1 Aristóteles realizou uma extensa pesquisa científica, particularmente em


zoologia e biologia marinha. Este trabalho foi resumido em um livro ao
qual, posteriormente, Aristóteles acrescentou dois tratados breves. Quais
são os títulos do livro e dos tratados referidos?

2 Quem eram os peripatéticos?

3 O que são proposições universais, segundo Aristóteles? Dê um exemplo


de uma proposição universal afirmativa e um exemplo de uma proposição
universal negativa.

4 Na visão de Aristóteles, a ordem temporal é em última análise derivada do


quê?

94
UNIDADE 2

A FILOSOFIA NO MUNDO
HELENÍSTICO E ROMANO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• apresentar um panorama geral da Filosofia Helenística e Romana;

• introduzir a vida e a filosofia de Fílon e Santo Ambrósio;

• compreender a filosofia de Santo Agostinho e Boécio;

• analisar as principais obras de filósofos do período helenístico.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará auto atividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – A FILOSOFIA HELENÍSITICA E ROMANA

TÓPICO 2 – A FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E


SANTO AMBRÓSIO

TÓPICO 3 – A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

95
96
UNIDADE 2
TÓPICO 1

A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

1 INTRODUÇÃO
O período após a morte de Aristóteles foi caracterizado pela decadência
das cidades-estados gregas, que depois se tornaram peões no jogo de poder
dos reis helenistas que sucederam Alexandre. A vida tornou-se problemática e
insegura.

Foi nesse ambiente que surgiram dois sistemas filosóficos dogmáticos: o


Estoicismo e o Epicurismo, que prometiam dar aos seus partidários algo para se
apegar e torná-los independentes do mundo externo.

Outras escolas que surgiram ou continuaram durante o período


helenístico e o período romano tardio foram o Ceticismo, o Neopitagorismo e o
Neoplatonismo.

2 ESTOICISMO
O Estoicismo foi uma das mais sublimes e sofisticadas filosofias no registro
da civilização ocidental. Ao insistir na participação nos assuntos humanos, os
estoicos acreditavam que o objetivo de toda investigação é fornecer ao indivíduo
um modo de conduta caracterizado pela tranquilidade da mente e pela certeza do
valor moral (BRUN, 1986).

2.1 A NATUREZA E O ALCANCE DO ESTOICISMO


Para o primeiro filósofo estoico, como para todas as escolas pós-
aristotélicas, o conhecimento e sua busca não são mais considerados fins em si
mesmos. A Era Helenística foi uma época de transição, e o filósofo estoico talvez
tenha sido seu porta-voz mais influente. Uma nova cultura estava em formação.
A herança de um período anterior, com Atenas como seu líder intelectual, iria
continuar, mas sofreria muitas mudanças. Se, tal como foi para Sócrates, saber
é conhecer a si mesmo, a racionalidade como o único meio pelo qual algo fora
do eu pode ser alcançado, pode ser considerada a marca da crença estoica.
Como uma filosofia helenística, o Estoicismo apresentava uma ars vitae (arte da
vida), um meio de acomodação para pessoas a quem a condição humana não
mais aparecia como o espelho de uma existência universal, calma e ordenada.

97
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Somente a razão poderia revelar a constância da ordem cósmica e a fonte


originadora do valor inabalável. Assim, a razão tornou-se o verdadeiro modelo
para a existência humana. Para os estoicos, a virtude é uma característica
inerente ao mundo, não menos inexorável em relação à humanidade do que as
leis da natureza (ANTISERI; REALE, 2007).

Os estoicos acreditavam que a percepção é a base do conhecimento


verdadeiro. Na lógica, sua apresentação abrangente do tópico é derivada da
percepção, produzindo não apenas o juízo de que o conhecimento é possível,
mas também o juízo de que é possível ter conhecimento absolutamente certo.
Para eles, o mundo – o cosmos – é composto de coisas materiais, com algumas
poucas exceções (por exemplo, o sentido), e o elemento irredutível em todas as
coisas é a razão correta, que permeia o mundo como fogo divino. Coisas como
corpos materiais ou corpóreos são governadas por essa razão ou destino, em que
a virtude é inerente. O mundo em sua totalidade impressionante é tão governado
a ponto de exibir uma grandeza de arranjo ordenado, que pode servir apenas
como padrão para os seres humanos na regulação e ordenação de suas vidas.
Assim, o objetivo da humanidade é viver de acordo com a natureza, de acordo
com o design do mundo (DONINI; FERRARI, 2012).

A teoria moral estoica também é baseada na visão de que o mundo, como


uma grande cidade, é uma unidade. O indivíduo humano, como cidadão do
mundo, tem uma obrigação e lealdade a todas as coisas naquela cidade. Ele ou
ela deve desempenhar um papel ativo nos assuntos do mundo, lembrando que
o mundo exemplifica a virtude e a ação correta. Assim, o valor moral, o dever
e a justiça são ênfases singularmente estoicas, junto a uma certa severidade
mental, pois o ser humano moral não é misericordioso nem demonstra piedade,
porque estas duas sugerem um desvio do dever e da necessidade fadada que
governa o mundo. Não obstante – com sua altivez de espírito e sua ênfase no
valor essencial de todos os seres humanos –, os temas da fraternidade universal e
da benevolência da natureza divina tornam o Estoicismo uma das filosofias mais
atraentes (BRUN, 1986).

2.2 O ESTOICISMO GREGO ANTIGO


Com a morte de Aristóteles (322 a.E.C.) e a de Alexandre, o Grande (323
a.E.C.), a grandeza da vida e do pensamento da cidade-estado (polis) grega
terminou. Com Atenas não sendo mais o centro da atração do mundo, sua
reivindicação de urbanidade e proeminência cultural foi passada para outras
cidades – para Roma, Alexandria e Pérgamo. As polis gregas deram lugar a
unidades políticas maiores; o governo local foi substituído pelo de governadores
distantes. A distinção anterior entre grego e bárbaro foi destruída. Lealdades
provinciais e tribais foram separadas, primeiro por Alexandre e depois por legiões
romanas. A perda de liberdade pelos povos subjugados encorajou ainda mais a
deterioração do conceito de homem livre e resultou na prestação de obrigação e
serviço a um governante, cuja força moral tinha pouco significado. A intimidade

98
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

da ordem cósmica e cívica antiga foi agora substituída pela desordem social e
política e costumes tradicionais deram lugar a valores incertos e transitórios
(REALE, 1994).

O Estoicismo teve seu início em um mundo em mudança, no qual os códigos


de conduta e formas de entendimento anteriores não eram mais adequados,
mas também foi influenciado pelos princípios das escolas mais antigas. Das
várias escolas de filosofia oriundas de Sócrates, as escolas cínicas e megarianas
foram influentes no desenvolvimento inicial da doutrina estoica: os cínicos, por
sua ênfase na vida simples, sem adornos e sem envolvimento emocional; e os
megarianos, pelo estudo da dialética, da forma lógica e dos paradoxos (GOULET-
CAZÉ; BRANHAM, 2007; ANTISERI; REALE, 2007).

NOTA

A origem do termo “megarianas” vem da cidade de Mégara, a oeste de Atenas.

O Estoicismo leva o nome do lugar onde seu fundador, Zenão de Cítio


(Chipre), habitualmente lecionava – o Stoa Poikile – o Pórtico Pintado da ágora
(GAZOLLA, 1999). Zenão, que floresceu no início do século III a.E.C., mostrou
em suas próprias doutrinas a influência das atitudes gregas anteriores, em
especial, as mencionadas anteriormente. Ele era, ao que tudo indica, bem
versado no pensamento platônico, pois estudara na Academia de Platão, tanto
com Xenócrates de Calcedônia, e com Pólemon de Atenas, chefes sucessivos da
Academia (BRUN, 1986).

FIGURA 1 – ZENÃO DE CÍTIO

FONTE: <http://twixar.me/K1h1>. Acesso em: 10 jun. 2019.

99
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Zenão foi responsável pela divisão da filosofia em três partes: lógica, física
e ética. Ele também estabeleceu as doutrinas estoicas centrais em cada parte, para
que os estoicos posteriores expandissem, em vez de mudar radicalmente as visões
do fundador. Com algumas exceções (no campo da lógica), Zenão apresentou os
seguintes temas como a estrutura essencial da filosofia estoica: a lógica como um
instrumento e não como um fim em si mesmo; a felicidade humana como produto
da vida segundo a natureza; a teoria física como fornecendo os meios pelos quais
certas ações devem ser determinadas; percepção como base de certo conhecimento;
o sábio como modelo de excelência humana; formas platônicas como sendo irreais;
conhecimento verdadeiro sempre acompanhado de assentimento; a substância
fundamental de todas as coisas existentes como sendo um fogo divino, cujos
princípios universais são: 1) passivo (matéria) e 2) ativo (razão inerente à matéria);
crença em uma conflagração e renovação do mundo; crença na corporeidade de
todas as coisas; crença na causalidade predestinada que, necessariamente, liga
todas as coisas; cosmopolitismo, ou perspectiva cultural que transcende lealdades
mais estreitas; e a obrigação ou dever do indivíduo de escolher apenas aqueles atos
que estão de acordo com a natureza, sendo todos os outros atos uma questão de
indiferença (REALE; ANTISERI, 1990; GAZOLLA, 1999).

Cleantes de Assos, que sucedeu Zenão como chefe da escola, é mais


conhecido por seu Hino a Zeus, que descreve com vigor a reverência estoica pela
ordem cósmica e o poder da razão e da lei universal (PEREIRA, 1965). O terceiro
líder da escola, Crísipo de Solos, que viveu até o final do século III, foi talvez o
maior e, certamente, o mais produtivo dos primeiros estoicos. Ele dedicou suas
consideráveis ​​energias ao desenvolvimento quase completo dos temas zenonianos
em lógica, física e ética. Em particular, na lógica ele defendia, contra os lógicos
megarianos e os céticos, conceitos como conhecimento certo, apresentação
abrangente, proposição e argumento, verdade e seu critério e assentimento. Seu
trabalho na lógica proposicional, no qual proposições não analisadas, unidas por
conectivos são estudadas, ofereceu contribuições importantes para a história da
lógica antiga e é de particular relevância para os desenvolvimentos mais recentes
da lógica (GOULD, 2012).

Na física, Crísipo foi responsável pela tentativa de mostrar que o destino


e o livre arbítrio não são características conceituais mutuamente exclusivas da
doutrina estoica. Ele também distinguiu entre "todo" e "tudo" ou "universo",
argumentando que o todo é o mundo, enquanto o tudo é o vazio externo
junto ao mundo. A visão de Zenão sobre a origem dos seres humanos como
providencialmente gerada pela "razão ardente" da matéria foi expandida por
Crísipo para incluir o conceito de autopreservação, que governa todas as coisas
vivas. Outra visão anterior (de Zenão), a da natureza como modelo de vida, foi
ampliada primeiro por Cleantes e depois por Crísipo. O apelo zenoniano à vida
“segundo a natureza” evidentemente foi deixado vago, porque, para Cleantes,
parecia necessário falar de vida de acordo com a natureza concebida como
o mundo em geral (o cosmos), enquanto Crísipo distinguia entre natureza do
mundo e natureza humana. Assim, fazer o bem é agir de acordo com a natureza
humana e universal. Crísipo também expandiu a visão estoica de que as razões
seminais eram o ímpeto para o movimento animado (GOULD, 2012).
100
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

Ele estabeleceu firmemente que a lógica e (sobretudo) a física são


necessárias e são meios para a diferenciação de bens e males. Assim, um
conhecimento de física (ou teologia) é necessário antes que uma ética possa ser
formulada. De fato, a física e a lógica encontram seu valor principalmente nesse
propósito. Crísipo cobriu quase todos os aspectos da doutrina estoica e tratou
cada um tão detalhadamente que as características essenciais da escola mudaram
pouco depois de seu tempo (GOULD, 2012).

2.3 ESTOICISMO ROMANO POSTERIOR


A Stoa Média, que floresceu no século II e no início do primeiro século
a.E.C., foi dominada principalmente por dois homens de Rodes: Panécio, seu
fundador, e seu discípulo, Posidônio. Panécio organizou uma escola estoica
em Roma antes de retornar a Atenas, e Posidônio foi amplamente responsável
pela ênfase nas características religiosas da doutrina. Ambos eram antagônicos
às doutrinas éticas de Crísipo, que, acreditavam, haviam se afastado muito das
raízes platônicas e aristotélicas do Estoicismo. Pode ter sido por causa do tempo
considerável que Panécio e Posidônio viveram em Roma que a Stoa ali deu tanta
ênfase aos temas morais e religiosos dentro da doutrina estoica. Panécio foi
altamente considerado por Cícero, que o usou como modelo para seu próprio
trabalho. Posidônio, que havia sido discípulo de Panécio em Atenas, ensinou
Cícero em sua escola em Rodes e mais tarde foi para Roma e permaneceu lá por
um tempo com Cícero (GAZOLLA, 1999).

Se Posidônio admirava Platão e Aristóteles, ele estava muito interessado


– ao contrário da maioria de sua escola – no estudo dos fenômenos naturais e
providenciais. Ao apresentar o sistema estoico no segundo livro de Da Natureza
dos Deuses (CÍCERO, 2004) – De natura deorum (45 a.E.C.) – Cícero provavelmente
seguiu Posidônio. Como seu mestre, Panécio estava preocupado principalmente
com os conceitos de dever e obrigação, foram seus estudos que serviram de
modelo para o livro Dos Deveres (CÍCERO, 2000) – De officiis (44 a.E.C.) – de Cícero.
Hecato de Rodes, outro estudante de Panécio e um filósofo estoico ativo, também
enfatizou temas éticos semelhantes (PEREIRA, 1965).

Se Crísipo deve ser elogiado por sua diligência em defender a lógica


estoica e a epistemologia contra o ceticismo da Nova Academia (III a II século
a.E.C.), foram principalmente Panécio e Posidônio os responsáveis ​​pela ampla
popularidade do Estoicismo em Roma (REALE, 1994). Foi precisamente a
transformação da doutrina em temas de filosofia moral e ciência natural que
atraíram os romanos muito práticos. Os tempos talvez exigissem tais interesses,
e com eles o Estoicismo se tornaria predominantemente uma filosofia para o
indivíduo, mostrando como – dadas as vicissitudes da vida – alguém poderia ser
estoico (BOMBASSARO; PAVIANI; ZUGNO, 2003). A lei, a cidadania mundial, a
natureza e o funcionamento benevolente da Providência e a razão divina eram as
principais áreas de interesse do Estoicismo nessa época.

101
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Essas tendências para a praticidade também são bem ilustradas no


período posterior da escola (nos dois primeiros séculos E.C.) nos escritos de
Lucius Sêneca, um estadista romano; de Epicteto, um escravo libertado pelo
imperador romano Nero; e de Marco Aurélio, um imperador do século II E.C.
(ULLMANN, 1996a). Tanto o estilo quanto o conteúdo nos ensaios morais, Sobre a
brevidade da vida (SÊNECA, 1993) – Libri Morales – e as Cartas a Lucílio (SÊNECA,
1991) – Epistulae morales – de Sêneca reforçam a nova direção no pensamento
estoico. O Encheiridion de Epicteto (2014) e as Meditações de Marco Aurélio (1980)
promoveram o consolo sublime e pessoal da mensagem estoica e mostraram cada
vez mais a força de sua rivalidade ao crescente poder do novo Cristianismo.

FIGURA 2 – MARCO AURÉLIO

FONTE: <https://www.ancient.eu/uploads/images/5998.jpg?v=1485682660>.
Acesso em: 10 jun. 2019.

NOTA

Legenda da Figura 2
Busto de mármore do imperador romano Marco Aurélio em um manto de franjas. Um de
uma série de bustos imperiais da residência de Jason Magnus, um cidadão proeminente de
Cirene. Romano, cerca de 160-170 E.C. de Cirene, norte da África. Encontrado pelo Tenente
R. M. Smith, RE, e pelo Comandante E. A. Porcher, RN. Localizado atualmente no museu
britânico, Londres.

A marca de um guia, do professor religioso, é preeminente nestes escritos.


É difícil estabelecer com precisão, no entanto, a extensão da influência estoica
se dá na época da primeira metade do século II E.C. Essas ideias tornaram-se

102
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

tão populares que muitos termos especificamente estoicos (isto é, razão correta,
compreensão, consentimento, indiferença, logos, lei natural e a noção do sábio)
eram comumente usados em​​ debates e disputas intelectuais.

3 EPICURISMO
O pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.E.C.), contemporâneo de
Zenão, também constituía uma filosofia de defesa em um mundo conturbado. Em
um sentido estrito, o Epicurismo é simplesmente a filosofia ensinada por Epicuro;
em um sentido amplo, é um sistema de ética que abrange toda concepção ou
forma de vida que pode ser rastreada até os princípios de sua filosofia.

Na polêmica antiga, como muitas vezes desde então, o termo foi


empregado com um significado ainda mais genérico (e claramente errôneo) como
o equivalente do hedonismo, a doutrina de que prazer ou felicidade é o principal
bem. No jargão popular, o epicurismo significa, portanto, devoção ao prazer, ao
conforto e à vida altiva, com certa sutileza de estilo (BRUN, 1987).

FIGURA 3 – EPICURO DE SAMOS

FONTE: <https://museum.classics.cam.ac.uk/sites/museum.classics.cam.ac.uk/files/casts/505.JPG>.
Acesso em: 10 jun. 2019.

NOTA

Legenda da Figura 3
Esta cópia é uma das várias réplicas romanas de um original helenístico perdido. Mostra
Epicuro como um homem magro e maduro; escritores contemporâneos, por vezes,
descreveram-no como estando de má saúde. Material – Mármore de Carrara. Localização –
Roma, Museu Capitolino, Stanza dei Filosofia 64.

103
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

3.1 A NATUREZA DO EPICURISMO


Vários conceitos fundamentais caracterizam a filosofia de Epicuro. Na
física, estes são atomismo, uma concepção mecânica de causalidade (limitada,
no entanto, pela ideia de um movimento espontâneo, ou "desvio" dos átomos,
que interrompe o efeito necessário de uma causa); a infinidade do universo e o
equilíbrio de todas as forças que circunscrevem seus fenômenos; e a existência
de deuses concebidos como naturezas beatificadas e imortais, completamente
estranhas aos acontecimentos do mundo (REALE, 2011).

Na ética, os conceitos básicos são a identificação do bem com o prazer e do


supremo bem e último fim com a ausência de dor do corpo e da alma – um limite
além do qual o prazer não cresce, mas muda; a redução de toda relação humana
ao princípio da utilidade, que encontra sua mais alta expressão na amizade, na
qual é ao mesmo tempo superada; e, de acordo com esse fim, a limitação de todo
desejo e a prática das virtudes, das quais o prazer é inseparável, e uma vida
retraída e tranquila (FARRINGTON, 1968).

Em princípio, a ética do prazer de Epicuro é exatamente o oposto da


ética estoica do dever. As consequências, no entanto, são as mesmas: no final,
o epicurista é forçado a viver com a mesma temperança e justiça que o estoico.
De extrema importância, no entanto, é um ponto de divergência: as paredes da
cidade dos estoicos são as do mundo, e sua lei é a da razão; os limites da cidade
epicurista são os de um jardim, e a lei é a da amizade. Embora este jardim também
possa alcançar os limites da Terra, seu centro é sempre um indivíduo humano
(ULLMANN, 1996b).

3.2 AS OBRAS E A DOUTRINA DE EPICURO


Os predecessores de Epicuro foram Leucipo e Demócrito, na física, e
Antífona, Aristipo de Cirene e Eudoxo de Cnido (um geômetra e astrônomo),
na ética. Epicuro diferia de tudo isso em seu espírito sistemático e na unidade
que ele tentava dar a toda parte da filosofia. A esse respeito, ele foi grandemente
influenciado pela filosofia e pelos ensinamentos de Aristóteles – assumindo o
essencial de suas doutrinas e perseguindo os problemas que colocava. Em 306
a.E.C., Epicuro estabeleceu sua escola em Atenas em seu jardim, do qual veio a
ser conhecido como O Jardim (REALE, 2011).

De acordo com o objetivo que ele atribuiu à filosofia, o ensinamento


de Epicuro tinha um caráter dogmático, em substância, se não em forma. Ele
chamou seus tratados de dialogismoi, ou "conversações". Como a utilidade das
doutrinas estava na sua aplicação, ele as resumiu em stoicheia, ou "proposições
elementares", para serem memorizadas. O número de obras produzidas por
Epicuro e seus discípulos revela uma impressionante atividade teórica. Não
menos importante foi a ação prática em viver pelas virtudes ensinadas por ele e
em honrar as obrigações de ajuda recíproca em nome da amizade. Nesses esforços,

104
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

a assistência contínua foi prestada pelo próprio Epicuro, que, mesmo quando
velho e doente, estava ocupado escrevendo cartas de admoestação, orientação e
consolo – anunciando em toda parte seu evangelho da paz e, em nome do prazer,
convidando ao amor (FARRINGTON, 1968).

A filosofia era, para Epicuro, a arte de viver, e visava, ao mesmo tempo,


assegurar a felicidade e fornecer meios para alcançá-la. Quanto à ciência, Epicuro
estava preocupado apenas com o objetivo prático em vista. Se possível, ele
teria continuado sem isso. Para ele, se não ficássemos perturbados com nossas
suspeitas dos fenômenos do céu e da morte, e também por nossa incapacidade de
compreender os limites da dor e dos desejos, não teríamos necessidade da ciência
natural. Todavia, a ciência exige um princípio que garanta suas possibilidades e
sua certeza e um método de construí-la. Este princípio e este método são o objeto
do “Cânon”, que Epicuro substituiu pela lógica. Desde que ele fez o "Cânon" uma
introdução integral à "Física", no entanto, sua filosofia se divide em duas partes:
a "Física" e a "Ética" (EPICURO, 1980, 2006; DUVERNOY, 1993).

O nome cânon, que significa "regra", é derivado de um trabalho especial


intitulado Sobre o Critério, ou Cânon, segundo a lista elaborada por Diógenes
Laércio, pois esta obra está perdida (SPINELLI, 2013). Ele sustentava que todas
as sensações e representações são verdadeiras e servem como critérios. O mesmo
vale para o prazer e a dor, os sentimentos básicos aos quais todos os outros
podem ser rastreados. Também é verdade, e incluído entre os critérios, o que
pode ser chamado de conceitos (prolepsis), que consistem em uma lembrança do
que tem sido frequentemente apresentada de fora. Portanto, os humanos devem
sempre se apegar àquilo que foi originalmente pensado, em relação a cada
“termo” e que constitui seu pano de fundo. Uma vez que a verdade atestada por
cada um dos critérios é refletida no phainomena, os humanos devem se apegar a
estes, empregando-os como “sinais”, e devem “conjecturar” o que quer que “não
apareça” (SPINELLI, 2009).

No entanto, com o uso de sinais e conjecturas, o nível de julgamento é


alcançado e o pensamento adentra na esfera em que o erro é possível, um estado
que começa assim que termos simples são ligados a uma proposição. O erro, que
consiste no que nosso julgamento acrescenta à evidência, pode ser de dois tipos,
um relativo ao que não é um objeto de experiência, o outro relativo ao que é
tal objeto, mas para o qual a evidência é duvidosa. Cada tipo tem seu próprio
método de prova (EPICURO, 2002b).

Seguindo os princípios e métodos do "Cânon", Epicuro chegou a um


atomismo que, como o do antigo naturalista Demócrito, ensinou que os átomos,
o espaço vazio no qual eles se movem, e os mundos, são todos infinitos. Em
contraste com Demócrito, que seguiu a rota dedutiva do intelecto, considerando
o conhecimento dos sentidos como espúrio, Epicuro, seguindo uma rota
indutiva, atribuiu a verdade à sensação e reduziu o intelecto a ela. Com base
na totalidade dos problemas, como Aristóteles os colocou em sua Física, Epicuro
modificou inteiramente a teoria mecânica das causas e do movimento encontrada

105
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

em Demócrito e acrescentou o conceito de uma necessidade natural, que ele


chamou de natureza, e de uma causalidade livre, o que por si só poderia explicar
a liberdade de movimento de humanos e animais (EPICURO, 2002b; SPINELLI,
2013).

Para este propósito, Epicuro distinguiu três formas de movimento nos


átomos: um natural, de cair em linha reta devido ao seu peso; um forçado, devido
a impactos; e um movimento livre, de declinação ou desviar de uma linha reta.
Em segundo lugar, ele tornou finito o número de formas dos átomos, a fim de
limitar o número de qualidades sensíveis, uma vez que cada forma gera uma
qualidade distinta, e ele ensinou tanto um atomismo matemático quanto físico.
Contudo, para que uma infinidade de qualidades sensíveis não seja gerada por
uma infinidade de agregações (se não de tipos atômicos), Epicuro desenvolveu,
a partir desse conceito de infinito, a lei do equilíbrio universal de todas as forças,
ou “isonomia”. Colocando os eventos em um círculo, ele fundou uma teoria dos
retornos cíclicos (FARRINGTON, 1968).

Como parte de sua física, a psicologia de Epicuro sustentava que a alma


deveria ser um corpo. É feito de átomos muito finos de quatro espécies diferentes
– com motilidade, quiescente, ígneo e etéreo – o último, o mais fino e o mais
móvel de todos, servindo para explicar a sensibilidade e o pensamento. Assim
constituída, a alma é, de outra perspectiva, bipartida: em parte distribuída por
todo o corpo e em parte coletada no peito. A primeira parte é o lócus das sensações
e dos afetos físicos da dor e do prazer; a segunda (inteiramente dissociada da
primeira) é a excelência psíquica – a sede do pensamento, das emoções e da
vontade. O pensamento não se deve à transmissão do movimento dos sentidos,
mas à percepção de imagens constituídas por filmes que se emitem continuamente
de todos os corpos e que, retendo sua forma, chegam à psyche através dos poros.
A plena autonomia e liberdade da psyche é assegurada, pois, com um ato de
apreensão, aproveita a cada momento as imagens de que necessita, mantendo-se,
ao mesmo tempo, senhor de seus próprios sentimentos (EPICURO, 1980, 2006).

O objetivo da ética é determinar o fim e os meios necessários para alcançá-


lo. Tomando sua sugestão de experiência, Epicuro olhou para o reino animal para
sua resposta. Ele concluiu, a partir desta sugestão, que o fim principal é o prazer.
Distinguiu dois tipos: um prazer “cinético” dos sentidos e um prazer “estático”,
consistindo na ausência de dor. Ensinou que o prazer dos sentidos é bom, embora
não seja bom apenas como movimento, mas como um movimento favorável à
natureza do órgão sensorial receptor. Em essência, o prazer é o equilíbrio do ser
consigo mesmo, existindo onde quer que não haja dor (ULLMANN, 1996b).

Epicuro concluiu que a liberdade da dor no corpo e de problemas na mente


é o objetivo final de uma vida feliz. Os danos e as vantagens que acompanham
a realização de qualquer desejo devem ser medidos em um cálculo no qual até
mesmo a dor deve ser encarada com coragem, se o prazer resultante for de
duração mais longa (EPICURO, 2002a).

106
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

Tendo assim dado ordem à vida, entretanto, a pessoa sábia também


deve prover-se de segurança, isto é, conseguido de duas maneiras: reduzindo
suas necessidades a um mínimo e retirando-se, longe da competição humana e
do barulho do mundo, para viver escondido; e adicionando o pacto privado de
amizade ao pacto público do qual surgem as leis. Na verdade, a amizade vem da
utilidade; mas, uma vez nascida, é desejável em si mesma. Epicuro acrescentou
que por amor à amizade, é preciso pôr em perigo o próprio amor, pois toda
existência, estando sozinha, precisa do outro. Assim, a utilidade se sublima e se
transforma em amor. Como todo amor é intrépido, o homem sábio, se seu amigo
é torturado, sofre como se ele mesmo estivesse lá e, se necessário, morrerá por seu
amigo (EPICURO, 1980, 2002a, 2006).

Se a infelicidade dos humanos se originou apenas de seus próprios desejos


vãos e dos perigos do mundo, essa sabedoria, fundada apenas na prudência, seria
suficiente, mas além dessas fontes de infelicidade existem dois grandes medos: o
medo da morte e o medo dos deuses. Se a ciência, no entanto, é eficaz em revelar
os limites do desejo e (como já visto) em reprimir o medo dos deuses, também
pode aliviar o medo da morte. Em relação à alma, como um corpo dentro de
outro corpo, a ciência a vê como dissolução quando o corpo se dissolve. A morte,
então, não é nada para nós, desde que existamos, a morte não está conosco, mas
quando a morte chega, então não existimos (SPINELLI, 2009).

A morte é temida não apenas pelo que pode estar aguardando o homem
no além, mas também por si mesma. O cômico grego, Epicarmo de Cós, diria: "eu
não quero morrer, mas eu não tenho medo de estar morto" (GILDENHARD, 2007,
p. 220). A própria ideia de não existir instila o medo que Epicuro considerava
ser a causa de todas as paixões que causam dor à alma e desordem à vida das
pessoas. Contra isso, Epicuro argumentava que, se o prazer é perfeito em cada
instante e o tempo infinito não contém prazer maior que o tempo limitado, se
medimos por razão os limites do prazer, então todo desejo de imortalidade é
vão. Assim, o aluno mais ilustre de Epicuro, Metrodoro de Lâmpsaco, poderia
exclamar “bebiōtai” (“eu vivi”), e isso seria o bastante (REALE, 2011). A pessoa
que conquistou o medo da morte também pode desprezar a dor, que se durar
é a luz, e se for intensa é curta e aproxima a morte. O sábio tem apenas que
substituir a imagem da dor presente na carne pela das bênçãos desfrutadas, e
ele pode ser feliz mesmo “dentro do touro de Faláris”. O exemplo mais belo foi
estabelecido por Epicuro no momento de sua morte, em que escreve: “Enquanto
vivo o dia mais feliz da minha vida, que agora termino, escrevo-te esta carta:
dores na bexiga e nos intestinos se sucedem. Sua intensidade não pode ser maior.
Não obstante isto, em minha alma surge alegria (felicidade), devido à lembrança
de todos os conhecimentos que adquiri [...]” (ULLMANN, 1996b, p. 27-28).

A concentração final de toda a sua sabedoria é o Tetrafármaco, preservado


por Filodemo: Os deuses não devem ser temidos. A morte não é algo que se deva
temer. O Bem é fácil de obter. O mal é fácil de tolerar (ANTISERI; REALE, 2007).

107
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Por causa de seu caráter dogmático e seu fim prático, a filosofia de Epicuro
não estava sujeita ao desenvolvimento, exceto na polêmica e em sua aplicação a
temas que Epicuro havia tratado brevemente ou nunca havia tratado. A filosofia de
Epicuro permaneceu essencialmente inalterada. Uma vez encontrada a verdade,
ela não requer mais discussão, em especial quando satisfaz por completo ao fim
em que a natureza humana tende. O principal é ver esse fim; todo o resto vem por
si só, e não há mais nada a fazer senão seguir Epicuro, "libertador" e "salvador", e
memorizar suas "palavras oraculares" (SPINELLI, 2009).

4 CETICISMO
O ceticismo, que foi iniciado por outro dos contemporâneos de Zenão,
Pirro de Elis (c. 360-c. 272 ​​a.E.C.), estava destinado a ser de grande importância
para a preservação do conhecimento detalhado da filosofia helenista em geral.
A importância de Pirro para a história da filosofia está no fato de que um dos
adeptos posteriores de sua doutrina, Sexto Empírico (1983) – floresceu no século
III E.C. – escreveu um grande trabalho, Pros dogmatikous (Contra os dogmáticos),
no qual ele tentou refutar todos os filósofos que tinham opiniões positivas, e ao
fazê-lo, ele citou extensivamente de suas obras, preservando muito que de outra
forma teria sido perdido.

No Ocidente, atitudes filosóficas céticas começaram a aparecer na Grécia


Antiga no século V a.E.C. Os filósofos eleatas (aqueles associados à cidade grega
de Eleia na Itália) rejeitaram a existência de pluralidade e mudança, concebendo a
realidade como um único estático, e negaram que a realidade pudesse ser descrita
em termos das categorias da experiência ordinária. Por outro lado, Heráclito e
seu pupilo Crátilo pensavam que o mundo estava em tal estado de fluxo que
nenhuma verdade permanente e imutável sobre ele poderia ser encontrada; e
Xenófanes, um poeta e filósofo errante, duvidava que os humanos pudessem
distinguir o conhecimento verdadeiro do falso (SMITH, 2000, 2004).

Uma forma mais desenvolvida de ceticismo apareceu em algumas das


visões atribuídas a Sócrates e nas visões de certos sofistas. Sócrates, como retratado
nos primeiros diálogos de seu aluno Platão, sempre questionava as afirmações
de conhecimento dos outros. Na Apologia (PLATÃO, 2008), ele admite que tudo
o que ele realmente sabe é que ele não sabe nada. O inimigo de Sócrates, o sofista
Protágoras, sustentou que o homem é a medida de todas as coisas, uma tese que foi
tomada para implicar um tipo de relativismo cético: nenhuma visão é objetiva ou
definitiva, mas cada uma é apenas uma opinião. Outro sofista, Górgias, avançou a
tese cético-niilista de que nada existe; e, se algo existisse, não poderia ser conhecido;
e, se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado (PORCHAT, 2007).

O pai putativo do ceticismo grego, no entanto, foi Pirro, que empreendeu o


raro esforço de tentar viver seu ceticismo. Ele evitou se comprometer com quaisquer
visões sobre o que o mundo era realmente e agiu apenas de acordo com as aparências.
Dessa forma, ele buscou a felicidade, ou pelo menos a paz mental (LANDESMAN,
2006).
108
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

A primeira escola de filosofia cética desenvolveu-se na Academia, a


escola fundada por Platão, no século III a.E.C. e foi assim chamada de Ceticismo
“Acadêmico”. Partindo das doutrinas céticas de Sócrates, seus líderes, Arcesilau e
Carnéades, propuseram uma série de argumentos epistemológicos para mostrar
que nada podia ser conhecido, desafiando principalmente o que eram então as
duas principais escolas: o Estoicismo e o Epicurismo. Eles negaram que qualquer
critério pudesse ser encontrado para distinguir o verdadeiro do falso. Em vez
disso, apenas padrões razoáveis ​​ou prováveis ​​poderiam ser estabelecidos. Esse
ceticismo limitado, ou probabilístico, era a visão da Academia até o século I
a.E.C., quando o filósofo e orador romano Cícero estudava lá. As obras Acadêmicas
(CÍCERO, 2012) e Da Natureza dos Deuses (CÍCERO, 2004) são as principais fontes
de conhecimento moderno desse movimento. Os Contra acadêmicos de Santo
Agostinho (1982), compostos cerca de cinco séculos depois, foram concebidos
como uma resposta às opiniões de Cícero.

A outra forma principal de ceticismo antigo era o pirronismo,


aparentemente desenvolvido por céticos médicos em Alexandria. Começando
com Enesidemo (século I a.E.C.), esse movimento, batizado com o nome de Pirro,
criticou os céticos acadêmicos porque eles alegavam saber demais – a saber, que
nada poderia ser conhecido e que algumas coisas são mais prováveis ​​do que
outras – (DUTRA; SMITH, 2000; PORCHAT, 2007). Os pirrônicos avançaram
uma série de tropos, ou maneiras de se opor a vários tipos de afirmações de
conhecimento, a fim de provocar epochē (suspensão do julgamento). A atitude
pirrônica é preservada nos escritos de um de seus últimos líderes, Sexto Empírico,
no século II ou III E.C. (LANDESMAN, 2006).

Em seu Hipotiposis Pirrónicas (SEXTO EMPÍRICO, 1996) e Adversus


mathematicos (SEXTO EMPÍRICO, 1983), ele apresentou os tropos desenvolvidos
pelos pirrônicos anteriores. Os dez tropos atribuídos a Enesidemo mostraram
as dificuldades encontradas para averiguar a verdade ou a confiabilidade dos
julgamentos baseados em informações dos sentidos, devido à variabilidade e
diferenças de percepções humanas e animais. Outros argumentos levantaram
dificuldades em determinar se existem critérios ou padrões confiáveis ​​– lógicos,
racionais ou outros – para julgar se alguma coisa é verdadeira ou falsa. Para
resolver qualquer divergência, um critério parece ser necessário. Qualquer critério
pretendido, no entanto, teria de se basear ou em outro critério – conduzindo,
assim, a uma regressão infinita de critérios – ou a si próprio, o que seria circular.
Sexto ofereceu argumentos para desafiar quaisquer reivindicações de filósofos
dogmáticos a saber mais do que é evidente, e ao fazê-lo apresentou, de uma
forma ou de outra, praticamente todos os argumentos céticos que já apareceram
na filosofia subsequente (MARCONDES, 2019).

Sexto disse que seus argumentos visavam levar as pessoas a um estado


de ataraxia (imperturbabilidade). As pessoas que achavam que podiam conhecer
a realidade estavam constantemente perturbadas e frustradas. Se pudessem ser
levados a suspender o julgamento, no entanto, encontrariam paz de espírito.
Nesse estado de suspensão, eles não afirmariam nem negariam a possibilidade

109
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

do conhecimento, mas permaneceriam pacíficos, ainda esperando para ver o


que poderia se desenvolver. O pirrônico não se tornava inativo nesse estado
de suspensão, mas vivia de forma não dogmática de acordo com aparências,
costumes e inclinações naturais (DUTRA; SMITH, 2000).

5 PITAGORISMO E NEOPITAGORISMO
Na primeira metade do século IV a.E.C., Tarento, no sul da Itália, adquiriu
um significado considerável. Sob a liderança política e espiritual do matemático
Arquitas, amigo de Platão, a cidade tornou-se um novo centro do pitagorismo,
do qual os chamados acusmáticos – pitagóricos que não simpatizavam com as
Arquitas – saíam viajando como ascetas mendicantes em todo o território do
mundo onde se falava grego (SPINELLI, 2012). Os acusmáticos parecem ter
preservado alguns antigos Hieroi Logoi pitagóricos (“Discursos Sagrados”) e
práticas rituais (PAUTAS, 2017). O próprio Arquitas, por outro lado, concentrava-
se em problemas científicos, e a organização de sua fraternidade pitagórica era,
evidentemente, menos rigorosa do que a da primeira escola. Depois dos anos 380
houve uma troca entre a escola de Arquitas e a Academia de Platão, uma relação
que torna quase impossível desvincular as realizações originais de Arquitas dos
envolvimentos conjuntos (KAHN, 2007).

FIGURA 4 – PITÁGORAS DE SAMOS

FONTE: <https://www.alamy.com/stock-image-pythagoras-of-samos-570-495bc-ionian-greek-
philosopher-mathematician-168766724.html>. Acesso em: 10 jun. 2019.

110
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

NOTA

Legenda da Figura 4
Pitágoras de Samos (570-495 a.E.C.), Filósofo grego, matemático e fundador do movimento
religioso chamado pitagorismo. Gravura de “retratos e vidas verdadeiras de homens ilustres”,
de André Thévet (1516-1590), publicada em 1584.

Considerando que a escola de Arquitas aparentemente afundou em


inatividade após a morte de seu fundador (provavelmente depois de 350
a.E.C.), os acadêmicos da próxima geração continuaram doutrinas platônicas
"pitagorizantes", como a do Uno supremo, a díade indefinida (um princípio
metafísico) e a alma tripartida. Ao mesmo tempo, vários peripatéticos da escola
de Aristóteles, incluindo Aristóxeno, coletaram lendas pitagóricas e aplicaram
noções éticas contemporâneas a elas (KAHN, 2007).

Na Era Helenística, as visões acadêmicas e peripatéticas deram origem


a uma literatura antiquada bastante fantasiosa sobre o pitagorismo. Também
apareceu uma grande e ainda mais heterogênea massa de escritos apócrifos
falsamente atribuídos a diferentes pitagóricos, como se tentativas estivessem
sendo feitas para reviver a escola. Os textos criados a partir de Arquitas exibem
filosofias acadêmicas e peripatéticas misturadas com algumas noções que eram
originalmente pitagóricas (BORNHEIM, 2005). Outros textos foram criados pelo
próprio Pitágoras ou por seus alunos imediatos, imaginários ou reais. Alguns
mostram, por exemplo, que o pitagorismo se confundiu com o orfismo; outros
sugerem que Pitágoras era considerado um mágico e um astrólogo; há também
indicações de Pitágoras “o atleta” e “o nacionalista dórico”. Mas os autores
anônimos dessa literatura pseudopitagórica não conseguiram restabelecer a
escola, e as congregações “pitagóricas” formadas no início da Roma imperial
parecem ter tido pouco em comum com a escola original do pitagorismo
estabelecida no final do século VI a.E.C.; eram seitas ritualísticas que adotavam,
ecleticamente, várias práticas ocultas (PAUTAS, 2017; KAHN, 2007).

Com o sábio ascético Apolônio de Tiana, em meados do século I E.C.,


surgiu uma tendência neopitagórica distinta. Apolônio estudou as lendas
pitagóricas dos séculos anteriores, criou e propagou o ideal de uma vida pitagórica
– de sabedoria oculta, pureza, tolerância universal e aproximação ao divino – e
sentiu-se uma reencarnação de Pitágoras (KAHN, 2007). Através das atividades
dos platonistas neopitagóricos, como Moderato de Cádiz, um trinitário pagão,
e o aritmético Nicômaco de Gerasa, ambos do século I E.C., e no século II ou
III, Numênio de Apameia, precursor de Plotino (um elaborador de épocas do
platonismo), o neopitagorismo gradualmente se tornou parte da expressão do
platonismo conhecido como neoplatonismo; e o fez sem ter alcançado um sistema
escolástico próprio (ANTISERI; REALE, 2007).

111
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

O fundador de uma escola síria de neoplatonismo, Jâmblico de Cálcis


(c. 250-c. 330), um aluno de Porfírio (que por sua vez tinha sido aluno de Plotino),
considerava-se um sábio pitagórico e cerca de 300 E.C. escreveu a última grande
síntese do pitagorismo, na qual se reflete a maioria das diferentes tradições pós-
clássicas (JÂMBLICO, 1989). É característico dos neopitagóricos que eles estavam
principalmente interessados ​​no modo de vida pitagórico e na pseudociência do
misticismo numérico. Em um nível mais popular, Pitágoras e Arquitas foram
lembrados como mágicos. Além disso, foi sugerido que as lendas pitagóricas
também foram influentes na orientação da tradição monástica cristã.

6 NEOPLATONISMO
O neoplatonismo é o nome moderno dado à forma de platonismo
desenvolvido por Plotino, no século III E.C., e modificado por seus sucessores.
Veio dominar as escolas filosóficas gregas e permaneceu predominante até que o
ensino da filosofia pelos pagãos terminasse na segunda metade do século VI E.C.
Representa a forma final da filosofia grega pagã. Não era um mero sincretismo
(ou combinação de diversas crenças), mas um genuíno, se não unilateral,
desenvolvimento de ideias encontradas em Platão e no platonismo anterior –
embora também incorporasse importantes elementos aristotélicos e estoicos
(MERLAN, 2013; BRUN, 1991).

Não há evidência real para a influência oriental. Um certo tom ou coloração


gnóstica (relacionado ao conhecimento intuitivo adquirido por indivíduos
privilegiados e imune à verificação empírica), às vezes pode ser discernido no
pensamento de Plotino. Ele era conscientemente um opositor apaixonado do
gnosticismo e, em qualquer caso, havia com frequência um grande elemento do
platonismo popular nos sistemas gnósticos então vigentes. Além disso, as obras
teosóficas do final do século II E.C., conhecidas como Oráculos Caldeus, que foram
tomadas como autoridades inspiradas pelos neoplatônicos posteriores, parecem
ter sido uma miscelânea da filosofia religiosa grega popular (ULLMANN, 2008).

O neoplatonismo começou como uma filosofia complexa (e, de certa


forma, ambígua) e cresceu vigorosamente de várias formas por um longo período.
Portanto, não é fácil generalizar sobre isso. Contudo, de acordo com Merlan (2013),
Brun (1991) e Ullmann (2008), as principais ideias no pensamento de filósofos que
podem ser adequadamente descritas como neoplatônicas, parecem sempre ter
incluído o seguinte:

1. Há uma pluralidade de níveis de ser, dispostos em ordem hierárquica


decrescente, o último e o mais baixo que compreende o universo físico, que
existe no tempo e no espaço e é perceptível aos sentidos.
2. Cada nível de ser é derivado de seu superior, uma derivação que não é um
processo no tempo ou no espaço.
3. Cada ser derivado é estabelecido em sua própria realidade, voltando-se para
seu superior em um movimento de desejo contemplativo, que está implícito
112
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

no impulso criativo original de sair que ele recebe de seu superior. Assim,
o universo neoplatônico é caracterizado por um duplo movimento de sair e
retornar.
4. Cada nível de ser é uma imagem ou expressão em um nível inferior daquele
acima dele. A relação do arquétipo e da imagem perpassa todos os esquemas
neoplatônicos.
5. Os graus de ser são também graus de unidade; à medida que se desce a escala
do ser, há maior multiplicidade, mais separação e crescente limitação – até que
a individualização atômica do mundo espaço-temporal seja alcançada.
6. O nível mais elevado do ser, e através dele tudo o que existe em qualquer
sentido, deriva do princípio último, que é absolutamente livre de determinações
e limitações e transcende completamente qualquer realidade concebível, de
modo que possa ser dito “além do ser”. Porque não tem limitações, não tem
divisão, atributos ou qualificações; ele não pode ser realmente nomeado, ou
mesmo descrito apropriadamente como sendo, mas pode ser chamada de "o
Uno" para designar sua completa simplicidade. Pode também ser chamado de
“o Bem” como a fonte de todas as perfeições e o objetivo final do retorno, pois
o impulso de sair e retornar que constitui a hierarquia da realidade derivada
vem e leva de volta ao Bem.
7. Como esse princípio supremo é absolutamente simples e indeterminado (ou
desprovido de traços específicos), o conhecimento humano dele deve ser
radicalmente diferente de qualquer outro tipo de conhecimento. Não é um
objeto (uma coisa separada, determinada e limitada) e nenhum predicado
pode ser aplicado a ele; portanto, ele só pode ser conhecido se elevar a mente a
uma união imediata consigo mesma, que não pode ser imaginada ou descrita.

6.1 PLOTINO E SUA FILOSOFIA


Tanto quanto se sabe, o originador desse tipo distinto de platonismo
foi Plotino (205-270 E.C.). Ele havia sido aluno em Alexandria de um filósofo
autodidata chamado Amônio, que também ensinou o cristão Orígenes e o
homônimo pagão deste último, e cuja influência sobre seus alunos parece ter
sido profunda e duradoura, mas Amônio nada escreveu (ULLMANN, 2008).
Há poucos relatos de seus pontos de vista, e estes não são confiáveis, de modo
que, nada é realmente conhecido sobre seu pensamento. Plotino (2000) deve ser
considerado como o primeiro neoplatônico, e suas obras reunidas, os Tratados das
Enéadas (do grego enneas, “conjunto de nove” – seis conjuntos de nove tratados
cada, organizados por seu discípulo Porfírio), são a primeira e maior coleção de
escritos neoplatônicos.

Plotino, como a maioria dos filósofos antigos de Sócrates, era um professor


religioso e moral, além de um filósofo profissional envolvido na interpretação
crítica de uma longa e complicada tradição escolar. Ele era um crítico e
argumentador agudo, com um grau excepcional de honestidade intelectual para
o seu período ou qualquer outro. Para ele, a filosofia não era apenas uma questão
de especulação abstrata, mas também um modo de vida em que, através de uma

113
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

autodisciplina e purificação intelectual e moral exata, aqueles que são capazes de


ascender podem retornar à fonte de onde vieram. Suas obras escritas explicam
como, a partir do eterno ato criativo – ao mesmo tempo espontâneo e necessário
– dessa fonte transcendente, o Uno, ou Bem, procede o mundo da realidade viva,
constituído por repetidos duplos movimentos de saída e retorno na contemplação;
e esse relato, mostrando o caminho para o eu humano – que pode experimentar
e ser ativo em todos os níveis do ser – retornar ao Uno, é ao mesmo tempo uma
exortação a seguir esse caminho (NARBONNE, 2014)

FIGURA 5 – PLOTINO

FONTE: <https://davidarioch.com/wp-content/uploads/2017/07/plotinus_17_-768x769.jpg>.
Acesso em: 10 jun. 2019.

Plotino sempre insistiu que o Uno, ou Bem, está além do alcance do


pensamento ou da linguagem. O que ele disse sobre esse princípio supremo
pretendia apenas apontar a mente ao longo do caminho, não a descrever ou a
definir. Embora nenhum conceito ou definição adequada do Bem seja possível, foi,
no entanto, para Plotino, uma realidade positiva de excelência superabundante.
Plotino falava disso em linguagem extremamente negativa, mas seu objetivo ao
fazê-lo era enfatizar a inadequação de todas as maneiras de pensar e falar do
homem para expressar essa realidade suprema ou para esclarecer as implicações
da alegação de que o Bem é absolutamente Uno e indeterminado, a fonte de todas
as realidades definidas e limitadas (BAUCHWITZ, 2001).

O ato criativo original ou expressivo do Uno é a primeira grande realidade


derivada, o nous (que pode ser traduzido apenas de maneira inadequada como
“Intelecto” ou “Espírito”). Disso vem novamente a Alma, que forma, ordena e
mantém em ser o universo material. Deve ser lembrado que, para Plotino, todo o
processo de geração é atemporal. Nous e Alma são eternos, enquanto o tempo é
a vida da Alma como ativa no mundo físico, e nunca houve um tempo em que o
universo material não existisse. Os “níveis de ser”, então, embora distintos, não

114
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

são separados, mas estão intimamente presentes em todos os lugares e em todos.


Ascender da Alma através do Intelecto para o Uno não é viajar no espaço, mas
despertar para um novo tipo de consciência (BRANDÃO, 2013, 2007).

O intelecto de Plotino é ao mesmo tempo pensador, pensamento e objeto


do pensamento; é uma mente que é perfeitamente una ao seu objeto. Como
objeto, é o mundo das formas, a totalidade do ser real no sentido platônico. Essas
formas, sendo una com o Intelecto e, portanto, umas com as outras, não são
apenas objetos, mas são sujeitos vivos, pensantes, cada um não apenas em si, mas
em sua contemplação, o todo. Elas são os arquétipos e as causas das realidades
necessariamente imperfeitas nos níveis inferiores, nas almas e nos padrões ou
estruturas que fazem dos corpos o que eles são. Os seres humanos, no seu auge,
são intelectos ou almas perfeitamente conformados ao Intelecto; eles se tornam
conscientes de sua natureza intelectual quando, passando não apenas além da
percepção sensorial, mas além do raciocínio discursivo característico da vida da
Alma, eles, de imediato, compreendem as realidades eternas (GERSON, 1996).

A Alma, para Plotino, é basicamente o que era para Platão, a intermediária


entre os mundos do Intelecto e do Sentido e a representante do primeiro no
segundo. É produzida pelo Intelecto, tal como o Intelecto é produzido pelo Uno,
por um duplo movimento de saída e retorno na contemplação, mas a relação entre
os dois é mais íntima e a fronteira menos claramente definida. Para Plotino, como
para Platão, a característica da vida da Alma é o movimento, que é a causa de
todos os outros movimentos. A vida da Alma neste movimento é o tempo, e nisso
depende todo o movimento físico. A alma forma e governa o universo material
de cima; e em sua fase imanente inferior, que Plotino frequentemente chama de
natureza, ela age como um princípio interior de vida e crescimento e produz as
formas mais baixas, as dos corpos. Abaixo disso jaz a escuridão da matéria, a
ausência final do ser, o limite absoluto no qual a expansão do universo – do Uno
através de graus decrescentes de realidade e graus crescentes de multiplicidade –
chega ao fim. Por causa de sua absoluta negatividade, tal assunto é, para Plotino,
o princípio do mal; e embora ele não acredite realmente que seja um princípio
independente, formando, com o Bem, um dualismo, sua linguagem sobre isso
frequentemente tem um sabor dualista (HARRIS, 1976; CLOTA, 1989).

Plotino não era, no entanto, realmente dualista em sua atitude em relação


ao universo material. Ele manteve fortemente a sua bondade e beleza como o
melhor trabalho possível da Alma. É um todo orgânico vivo e sua integridade
é a melhor reflexão possível (embora muito imperfeita) sobre o nível espaço-
temporal da unidade viva na diversidade do mundo das formas no Intelecto. É
realizada em conjunto em todas as partes por uma simpatia universal e harmonia.
Nessa harmonia, o mal externo e o sofrimento tomam seu lugar como elementos
necessários no grande padrão, a grande dança do universo. O mal e o sofrimento
podem afetar os selves inferiores dos seres humanos, mas só excepcionalmente,
no completamente depravado, tocam em seus selves verdadeiros e superiores
e, portanto, não podem interferir no verdadeiro bem-estar do filósofo (RAPPE,
2000).

115
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Como almas dentro dos corpos, os humanos podem existir em qualquer


nível da experiência e atividade da alma. A descida de almas em corpos é para
Plotino – que teve alguma dificuldade em reconciliar as várias afirmações de Platão
sobre este ponto – tanto uma queda quanto um cumprimento necessário com a lei
universal. O indivíduo humano pode ascender através de seu próprio intelecto ao
nível universal. Na Alma, torna-se o todo que ele já é potencialmente, e na Alma,
alcança o próprio Intelecto; ou ele pode isolar-se no nível inferior, fechando-se
nas experiências, desejos e preocupações de sua natureza inferior. A conversão
filosófica – o começo da ascensão ao Uno – consiste precisamente em afastar,
por um tremendo esforço intelectual e moral, da vida do corpo, dominando e
elevando-se anteriormente de seus desejos, e despertando para outro modo de
ver, que todo mundo tem pouco uso. Isso, Plotino insistiu, é possível enquanto
alguém ainda está em um corpo terreno e sem negligenciar os deveres de seu
estado corporificado. Mas o corpo e a vida corporal pesam uma pessoa para
baixo e dificultam sua ascensão. A linguagem de Plotino ao falar do corpo e dos
sentidos nesse contexto é fortemente dualista e de outro mundo. Os platonistas
em geral pensam muito mais dualisticamente sobre seus próprios corpos do que
sobre o universo material como um todo. O mundo físico é visto positivamente
como uma imagem nobre do inteligível; o corpo animal, terrestre e individual,
pelo contrário, tende a ser considerado negativamente como um obstáculo à vida
intelectual e espiritual (ULLMANN, 2008).

Quando a conversão filosófica de uma pessoa está completa e ela se


tornou Intelecto, esta pessoa poderá ascender àquela união mística na qual o Uno
manifesta sua presença contínua, carregada na corrente ascendente do impulso
de retorno à fonte (em seu fluxo mais forte e final), o puro amor do Intelecto
pelo Bem, do qual imediatamente brota. Não há consciência da dualidade nessa
união; o indivíduo não tem consciência de si mesmo; mas nem ele é destruído
ou dissolvido no Uno – porque mesmo na união ele ainda é Intelecto, embora o
Intelecto "fora de si", transcendendo sua natureza e atividade normal. Essa união
mística de Plotino foi o foco de grande parte de seu esforço e, para aqueles de
inclinação similar, a fonte do poder contínuo de seu ensino (PLOTINO, 2000)

A Filosofia, para ele, era a religião, o esforço para realizar em si mesmo


o grande impulso de retorno ao Bem, que constitui a realidade em todos os seus
níveis; e religião para ele era a Filosofia. Não havia espaço em seu pensamento
e prática para revelação especial, graça e arrependimento no sentido cristão, e
pouco para cerimônias ou rituais externos. Para ele, a combinação de purificação
moral e esclarecimento intelectual, que somente a filosofia platônica como ele
entendia poderia dar, era o único caminho para a união com o Bem (PLOTINO,
2000).

116
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

6.2 OS NEOPLATÔNICOS POSTERIORES


Porfírio (c. 234 - c. 305 E.C.), um devoto discípulo de Plotino e cuidadoso
editor de suas obras, ocupou uma posição especial no desenvolvimento do
neoplatonismo posterior. De certa forma, seu pensamento se assemelhava
ao dos neoplatônicos pagãos posteriores, mas em outros se opunha a eles.
As características mais distintivas do seu pensamento parecem ter sido um
espiritualismo extremo, uma insistência, ainda mais acentuada do que a de
Plotino, na “fuga do corpo” e – mais filosoficamente importante – uma maior
simpatia pelas hierarquias verticais menos definidas dos platonistas que haviam
precedido Plotino (BENOIT, 1978).

Porfírio nem sempre distinguia claramente o Uno do Intelecto. Por outro


lado, pode-se ver nele o início da tendência neoplatônica tardia de estruturar a
realidade em tríades “verticais” e “horizontais”. Assim, o Ser, a Vida e o Intelecto
são fases na eterna autodeterminação da realidade última. Essa tríade tornou-se
um dos elementos mais importantes nas complexas estruturas metafísicas dos
neoplatônicos posteriores. Mas talvez a contribuição mais importante e influente
de Porfírio tenha sido a incorporação ao neoplatonismo da lógica de Aristóteles,
em particular a doutrina das categorias, com a interpretação neoplatônica
característica delas como termos significando entidades (FRANGIOTTI, 2006).
Também é interessante sua declaração de guerra ideológica contra os cristãos,
cujas doutrinas ele atacou tanto em bases filosóficas quanto exegéticas em uma
obra de 15 livros intitulada Contra os cristãos (PORFÍRIO, 1994, 2006).

Jâmblico (c. 250 a 330 E.C.) parece ter sido o originador do tipo de
neoplatonismo que passou a dominar as escolas platônicas nos séculos V e VI E.C.
Esse tipo de neoplatonismo aguçou e multiplicou as distinções entre os níveis de
ser. A posição básica subjacente as suas elaborações são de um realismo filosófico
extremo: presume-se que a estrutura da realidade corresponde exatamente
à maneira pela qual a mente funciona, que existe uma entidade real separada,
correspondente a toda distinção que ela possa fazer (JÂMBLICO, 1989, 1997).

No sistema neoplatônico tardio, plenamente desenvolvido, o primeiro


princípio da realidade, o último Uno, foi removido para uma transcendência
inteiramente inefável, mitigada por dois fatores: a presença das expressões
ou manifestações de seu poder unificador, as “henads” – identificadas com
os deuses do paganismo – em todos os níveis da realidade; e a possibilidade
de retorno à unificação absoluta através da henad com o qual se está ligado.
Abaixo do Uno, uma vasta estrutura de tríades, ou trindades, alcançou o
mundo físico; isto foi construído combinando a sucessão vertical de Plotino dos
níveis de Ser, Intelecto e Alma (muito complicada pela subdivisão interna e a
interposição em cada estágio de mediação de hipóstases, ou ordens subjacentes
de realidade não material) com outra estrutura horizontal triádica, dando um
ritmo dinâmico intemporal de saída e retorno, como o que já encontramos em
Porfírio (BAUCHWITZ, 2001).

117
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Quase todas as obras de Jâmblico foram perdidas e seu pensamento deve


ser recuperado de outras fontes. Atualmente, a principal autoridade para esse
tipo de platonismo e para alguns dos neoplatônicos posteriores é Proclo (410-485
E.C.). Proclo parece ter codificado o platonismo posterior, mas muitas vezes é
impossível dizer quais partes de seu pensamento são originais e que derivam de
seus professores Plutarco e Siriano, por um lado, e Porfírio e Jâmblico – de quem ele
cita copiosamente, mas nem sempre identificáveis, e outros platonistas anteriores
– por outro lado (BEZERRA, 2006). Um resumo cuidadosamente argumentado da
metafísica básica desse tipo de neoplatonismo pode ser encontrado no Elementos
de Teologia de Proclo (1975), que exibe as relações causais das várias hierarquias
que constituíram seu universo inteligível.

Este neoplatonismo posterior aspirava ser não apenas um sistema


metafísico completo e coerente, mas também uma teologia pagã completa, talvez
mais bem vista na Teologia Platônica de Proclo (2005). A manutenção e defesa da
antiga religião em um mundo cada vez mais intolerante, dominado por seu rival
triunfante, o cristianismo, foi uma das principais preocupações dos platonistas
depois de Plotino. Pelo estudo e, às vezes, pela exegese forçada de Aristóteles e
depois de Platão, culminando, por exemplo, nos comentários de Timeu (PROCLO,
2006) e de Parmênides (PROCLO, 1992), dos quais ele oferecia uma variedade de
interpretações altamente metafísicas, totalmente inaceitáveis ​​para os estudiosos
de Platão. Proclo e os neoplatonistas acreditavam ser possível chegar a uma
compreensão completa da verdade divina. Essa verdade eles afirmavam ser
revelada criticamente pelos próprios deuses através dos chamados teólogos –
os autores inspirados dos poemas órficos e dos Oráculos Caldeus (LEWY, 1978),
publicados na segunda metade do século II E.C.

Porfírio primeiro deu algum reconhecimento guardado e qualificado


para estas obras, mas elas eram escrituras inspiradas para Jâmblico (1973), que
escreveu um trabalho de pelo menos 28 livros sobre o assunto e seus sucessores.
Sua visão da alma humana era mais humilde que a de Plotino. Era para eles um ser
espiritual de classe baixa, que havia descido completamente ao mundo material,
enquanto que para Plotino uma parte permanecia acima; não podiam, portanto,
aspirar como Plotino, apenas através da filosofia, aquele retorno e unificação com
o divino que permanecia para eles o objetivo da vida humana. A ajuda dos deuses
era necessária, e eles acreditavam que os deuses, em seu amor pelos homens,
haviam providenciado, dando a todas as coisas o poder do retorno em oração e
implantando até mesmo em coisas materiais inanimadas – ervas, pedras e afins
– simpatias e comunicações com o divino, que possibilitou os ritos secretos da
teurgia, através dos quais o divino deu a necessária ajuda espiritual por meios
materiais.

118
TÓPICO 1 | A FILOSOFIA HELENÍSTICA E ROMANA

NOTA

Teurgia é uma palavra de origem grega que pode ser traduzida como obra divina
(theoi–Deus e ergein-obra) e faz referência a uma modalidade de magia cerimonial que
busca através de práticas como orações e rituais incorporar uma manifestação divina no
praticante; além de uma aproximação pura e profunda com a divindade em questão.

FONTE: http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/crencas/teurgia.htm. Acesso em: 15


maio 2019.

A teurgia, embora seus procedimentos fossem geralmente os da magia


grega tardia, não era, portanto, considerada meramente mágica; de fato, uma
teurgia mais elevada e mais intelectual também era praticada. O grau de atenção
prestado aos ritos externos variou consideravelmente de filósofo para filósofo;
parece ter havido pensadores até mesmo na última geração de neoplatônicos
pagãos que tinham pouco uso ou interesse em tais coisas e seguiam um caminho
místico muito parecido com o de Plotino (MERLAN, 2013).

As diferentes escolas do neoplatonismo tardio parecem diferir menos


umas das outras do que se supõe, às vezes. A escola de Pérgamo, fundada por
Edésio, aluno de Jâmblico, fez talvez a menor contribuição para o desenvolvimento
filosófico do neoplatonismo, mas não foi inteiramente entregue à teurgia. Seu
maior convertido foi o Imperador Juliano, o Apóstata, embora ele próprio não
fosse um filósofo ilustre. No final do século IV E.C., a Academia Platônica de
Atenas havia sido restabelecida e se tornara um instituto de ensino e pesquisa
neoplatônicos seguindo a tradição de Jâmblico. Foi particularmente fervoroso e
aberto em seu paganismo e atraiu a hostilidade cristã. Embora mantendo-se por
um tempo surpreendentemente longo contra essa hostilidade, acabou cedendo a
ela e, provavelmente, foi fechado pelo imperador romano oriental Justiniano, em
529 E.C. (REALE, 1994).

Nesse ínterim, entretanto, produziu o maior e mais influente expositor


sistemático do neoplatonismo posterior ou tardio, Proclo. O chefe da escola no
momento de seu fechamento, Damáscio, também foi um filósofo notável. Outro
centro do neoplatonismo floresceu em Gaza durante os séculos V e VI; já era
cristão em sua inspiração, embora alguns de seus membros estudassem com
o pagão Amônio. A escola de Alexandria nos séculos V e VI não parece diferir
muito da escola de Atenas, seja em sua perspectiva filosófica fundamental ou no
esboço principal de suas doutrinas. De fato, houve muito intercâmbio entre os
dois. O Siriano de Atenas ensinou a Hermias de Alexandria, cujo filho Amônio foi
ensinado por Proclo. Amônio foi o mais influente dos platônicos alexandrinos.
Suas exposições de Aristóteles foram publicadas principalmente nos comentários
do cristão João Filopono – final do século V a meados do século VI (RAPPE, 2000).

119
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

Simplício da Cilícia, o outro grande comentarista aristotélico, trabalhou


em Atenas, como Damáscio, estudou com Amônio. A concentração alexandrina
em Aristóteles, que produziu um vasto corpo de comentários eruditos, mas
neoplaticamente coloridos, sobre seus tratados, tem sido frequentemente
atribuída à pressão cristã e às tentativas de compromisso com a igreja. Pode
igualmente ter sido devido à qualidade e extensão do trabalho publicado de
Proclo em Platão. Embora o trabalho filosófico posterior de Filopono contenha
importantes modificações cristãs, um filósofo abertamente pagão (e muito
inferior), Olimpiodoro, ainda estava ensinando em Alexandria bem na segunda
metade do século VI (RAPPE, 2000; FRANGIOTTI, 2006).

Finalmente, no século VII, sob Heráclio, depois de o ensino filosófico ter


passado pacificamente para as mãos dos cristãos, o último filósofo alexandrino
conhecido, o cristão Estéfano, foi chamado para lecionar na Universidade de
Constantinopla.

Em síntese, como vimos neste tópico, o período após a morte de Aristóteles


foi caracterizado pela decadência das cidades-estados gregas, que depois se
tornaram peões no jogo de poder dos reis helenistas que sucederam Alexandre.
A vida tornou-se problemática e insegura. Foi nesse ambiente que surgiram dois
sistemas filosóficos dogmáticos: o Estoicismo e o Epicurismo, que prometiam
dar aos seus partidários algo para se apegar e torná-los independentes do
mundo externo. Outras escolas que surgiram ou continuaram durante o período
helenístico e o período romano tardio foram: o ceticismo, o neopitagorismo e o
neoplatonismo.

Deste modo apresentamos a natureza e o alcance do Estoicismo, tanto o


grego antigo quanto o romano posterior ou tardio. No caso do Epicurismo, além
de introduzirmos a sua natureza, também descrevemos as obras e doutrinas de
Epicuro.

As escolas de pensamentos do ceticismo, pitagorismo e neopitagorismo


também foram introduzidas de modo mais panorâmico, oferecendo uma breve
introdução aos temas centrais debatidos pelos adeptos às mesmas.

Finalmente, no neoplatonismo, especialmente através de Plotino, foi


apresentado com suas importantes contribuições e influências na Era Helenística
da filosofia ocidental.

120
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• O Estoicismo foi uma das mais sublimes e sofisticadas filosofias no registro da


civilização ocidental.

• O conhecimento e sua busca não são mais considerados fins em si mesmos.

• O Estoicismo apresentava uma ars vitae (arte da vida), um meio de acomodação


para pessoas a quem a condição humana não mais aparecia como o espelho de
uma existência universal, calma e ordenada.

• Para os estoicos, a virtude é uma característica inerente ao mundo, não menos


inexorável em relação à humanidade do que as leis da natureza.

• Os estoicos acreditavam que a percepção é a base do conhecimento verdadeiro.

• A teoria moral estoica também é baseada na visão de que o mundo, como uma
grande cidade, é uma unidade. O indivíduo humano, como cidadão do mundo,
tem uma obrigação e lealdade a todas as coisas naquela cidade.

• Das várias escolas de filosofia oriundas de Sócrates, as escolas cínicas e


megarianas foram influentes no desenvolvimento inicial da doutrina estoica.

• O estoicismo leva o nome do lugar onde seu fundador, Zenão de Cítio (Chipre),
habitualmente lecionava – o Stoa Poikile – o Pórtico Pintado da ágora.

• Zenão foi responsável pela divisão da filosofia em três partes: lógica, física e
ética. Ele também estabeleceu as doutrinas estoicas centrais em cada parte,
para que os estoicos posteriores expandissem em vez de mudar radicalmente
as visões do fundador.

• Cleantes de Assos, que sucedeu Zenão como chefe da escola, é mais conhecido
por seu Hino a Zeus, que descreve com vigor a reverência estoica pela ordem
cósmica e o poder da razão e da lei universais.

• O terceiro líder da escola, Crísipo de Solos, que viveu até o final do século III,
foi talvez o maior e certamente o mais produtivo dos primeiros estoicos.

• Na física, Crísipo foi responsável pela tentativa de mostrar que o destino e


o livre arbítrio não são características conceituais mutuamente exclusivas da
doutrina estoica.

121
• Crísipo cobriu quase todos os aspectos da doutrina estoica e tratou cada um
deles tão detalhadamente que as características essenciais da escola mudaram
relativamente pouco depois de seu tempo.

• A Stoa Média, que floresceu no século II e no início do primeiro século a.E.C., foi
dominada principalmente por dois homens de Rodes: Panécio, seu fundador, e
seu discípulo Posidônio.

• Panécio estava preocupado principalmente com os conceitos de dever e


obrigação, foram seus estudos que serviram de modelo para o livro De officiis,
de Cícero.

• Foram principalmente Panécio e Posidônio os responsáveis ​​pela ampla


popularidade do Estoicismo em Roma.

• O pensamento de Epicuro de Samos (341-270 a.E.C.), contemporâneo de Zenão,


também constituía uma filosofia de defesa em um mundo conturbado.

• Em princípio, a ética do prazer de Epicuro é exatamente o oposto da ética


estoica do dever. As consequências, no entanto, são as mesmas: no final, o
epicurista é forçado a viver com a mesma temperança e justiça que o estoico.

• Os predecessores de Epicuro foram Leucipo e Demócrito, na física, e Antífona,


Aristipo de Cirene e Eudoxo de Cnido, na ética.

• Em 306 a.E.C., Epicuro estabeleceu sua escola em Atenas em seu jardim, do


qual veio a ser conhecido como O Jardim.

• O ensinamento de Epicuro tinha um caráter dogmático, em substância, se não


em forma.

• A filosofia era, para Epicuro, a arte de viver, e visava ao mesmo tempo assegurar
a felicidade e fornecer meios para alcançá-la.

• Epicuro sustentava que todas as sensações e representações são verdadeiras e


servem como critérios.

• Os humanos devem sempre se apegar àquilo que foi originalmente pensado.

• Com o uso de sinais e conjecturas o nível de julgamento é alcançado e o


pensamento adentra na esfera em que o erro é possível, um estado que começa
assim que termos simples são ligados a uma proposição.

• Epicuro, seguindo uma rota indutiva, atribuiu a verdade à sensação e reduziu


o intelecto a ela.

122
• Epicuro distinguiu três formas de movimento nos átomos: um natural, de
cair em linha reta devido ao seu peso; um forçado, devido a impactos; e um
movimento livre, de declinação ou desviar de uma linha reta.

• Como parte de sua física, a psicologia de Epicuro sustentava que a alma deveria
ser um corpo.

• O objetivo da ética é determinar o fim e os meios necessários para alcançá-lo.


Epicuro concluiu que o fim principal é o prazer. Distinguiu dois tipos – um
prazer “cinético” dos sentidos e um prazer “estático”.

• Epicuro concluiu que a liberdade da dor no corpo e de problemas na mente é o


objetivo final de uma vida feliz.

• A própria ideia de não existir instila o medo que Epicuro considerava ser
a causa de todas as paixões que causam dor à alma e desordem à vida das
pessoas.

• O ceticismo foi iniciado por outro dos contemporâneos de Zenão, Pirro de Elis.

• No Ocidente, atitudes filosóficas céticas começaram a aparecer na Grécia


Antiga no século V a.E.C.

• Uma forma mais desenvolvida de ceticismo apareceu em algumas das visões


atribuídas a Sócrates e nas visões de certos sofistas.

• A primeira escola de filosofia cética desenvolveu-se na Academia, a escola


fundada por Platão, no século III a.E.C. e foi assim chamada de Ceticismo
“Acadêmico”.

• Partindo das doutrinas céticas de Sócrates, seus líderes, Arcesilau e Carnéades,


propuseram uma série de argumentos epistemológicos para mostrar que nada
podia ser conhecido.

• A outra forma principal de ceticismo antigo era o pirronismo, aparentemente


desenvolvido por céticos médicos em Alexandria.

• Os pirrônicos avançaram uma série de tropos, ou maneiras de se opor a vários


tipos de afirmações de conhecimento, a fim de provocar epochē (suspensão do
julgamento).

• Sexto disse que seus argumentos visavam levar as pessoas a um estado de


ataraxia (imperturbabilidade).

• Na Era Helenística, as visões acadêmicas e peripatéticas deram origem a uma


literatura antiquada bastante fantasiosa sobre o pitagorismo.

123
• Com o sábio ascético Apolônio de Tiana, em meados do século I E.C., surgiu
uma distinta tendência neopitagórica.

• Jâmblico de Cálcis (c. 250-c. 330), um aluno de Porfírio (que por sua vez tinha
sido aluno de Plotino), escreveu a última grande síntese do pitagorismo, na
qual se reflete a maioria das diferentes tradições pós-clássicas.

• O neoplatonismo é o nome moderno dado à forma de platonismo desenvolvido


por Plotino no século III E.C. e modificado por seus sucessores.

• O neoplatonismo começou como uma filosofia complexa (e, de certa forma,


ambígua) e cresceu vigorosamente de várias formas por um longo período.

• Plotino sempre insistiu que o Uno, ou Bem, está além do alcance do pensamento
ou da linguagem.

• O intelecto de Plotino é ao mesmo tempo pensador, pensamento e objeto do


pensamento; é uma mente que é perfeitamente una ao seu objeto.

• A Alma para Plotino é basicamente o que era para Platão, a intermediária entre
os mundos do Intelecto e do Sentido e a representante do primeiro no segundo.

• A Filosofia para Plotino era a religião, o esforço para realizar em si mesmo o


grande impulso de retorno ao Bem, que constitui a realidade em todos os seus
níveis; e religião para ele era a filosofia.

• Porfírio (c. 234 - c. 305 E.C.), um devoto discípulo de Plotino e cuidadoso


editor de suas obras, ocupou uma posição especial no desenvolvimento do
neoplatonismo posterior.

• Porfírio nem sempre distinguia claramente o Uno do Intelecto.

• Jâmblico (c. 250 a 330 E.C.) parece ter sido o originador do tipo de neoplatonismo
que passou a dominar as escolas platônicas nos séculos V e VI E.C.

• Proclo parece ter codificado o platonismo posterior, este aspirava a ser não
apenas um sistema metafísico completo e coerente, mas também uma teologia
pagã completa.

• A escola de Pérgamo, fundada por Edésio, aluno de Jâmblico, fez talvez a


menor contribuição para o desenvolvimento filosófico do neoplatonismo, mas
não foi inteiramente entregue à teurgia.

124
AUTOATIVIDADE

1 Qual era o posicionamento dos estoicos referente à percepção, à lógica e ao


cosmos?

2 Descreva alguns dos conceitos fundamentais que caracterizam a filosofia de


Epicuro na ética.

3 Descreva no mínimo três principais ideias do pensamento de filósofos que


podem ser adequadamente descritas como neoplatônicas.

125
126
UNIDADE 2 TÓPICO 2

FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA


CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

1 INTRODUÇÃO
Bem antes do início da Era Comum, os judeus, com alguma educação
grega, começaram a fazer uso ocasional da filosofia grega popular para expor
sua religião revelada: há traços disso na literatura sapiencial da Bíblia Hebraica
(Antigo Testamento). No discurso de Paulo no Areópago em Atos 17 (BÍBLIA,
1966), os lugares-comuns da filosofia estoica foram empregados para fins
apologéticos, mas até onde se sabe, o primeiro judeu que foi realmente bem
versado na filosofia grega e a usou extensivamente na exposição e defesa de sua
religião tradicional foi Fílon Judeu (Fílon de Alexandria [c. 15 E.C. – depois de 45
E.C.]), um contemporâneo mais velho de São Paulo.

Fílon expressou sua religião filosófica na forma de longos comentários


alegóricos sobre as Escrituras judaicas, especialmente sobre Gênesis (FÍLON,
2016a, 2016b). Nestes, ele mostrou para sua própria satisfação que a antiga
revelação dada a Moisés estava de acordo com o ensinamento dos melhores
filósofos gregos, que, em sua opinião, era posterior e derivativo. A filosofia grega
que ele preferiu e descobriu estar mais de acordo com a revelação foi o platonismo.
Fílon não foi nem aprovado nem lido por judeus ortodoxos posteriores, mas sua
influência sobre os cristãos de língua grega e gregos do século II E.C. foi grande; e,
de maneira importante, determinou o tom de sua especulação religiosa (CALABI,
2014).

Como Fílon, os platonistas cristãos davam primazia à revelação e


consideravam a filosofia platônica como o melhor instrumento disponível para
compreender e defender os ensinamentos das Escrituras e da tradição da igreja.

Embora o estoicismo tenha exercido considerável influência sobre o


pensamento ético cristão (que persistiu até os tempos modernos), o corporeismo
estoico – a crença de que Deus e a alma são corpos de um tipo sutil e peculiar – repeliu
a maioria dos cristãos, e o panteísmo estoico era incompatível com o cristianismo.
O platonismo que os primeiros pensadores cristãos conheciam era, obviamente,
o platonismo médio, e não o neoplatonismo. Seu teísmo relativamente direto e
alto tom moral adequava-se a seus propósitos com excelência; e a influência dessa
forma mais antiga de platonismo persistiu até o século IV e depois, mesmo após
as obras de Plotino e Porfírio começarem a ser lidas pelos cristãos (SPINELLI,
2002).

127
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

O primeiro cristão a usar a filosofia grega a serviço da fé cristã foi


Flávio Justino (martirizado c. 165), cuja rejeição apaixonada do politeísmo
grego, combinada com uma aceitação aberta e positiva dos fundamentos da
filosofia religiosa platônica e uma confiança inabalável em sua harmonia com
o ensinamento cristão, deveria permanecer característica da tradição cristã
platônica. Isso foi realizado no mundo de fala grega por Clemente de Alexandria
(c. 150-c. 215), um humanista cristão persuasivo, e pelo maior dos professores
cristãos alexandrinos, Orígenes (c. 185-254) (SPINELLI, 2002).

Embora Orígenes fosse conscientemente mais hostil e crítico da filosofia


platônica do que Justino ou Clemente, ele foi, no entanto, mais profundamente
afetado por ela. Ele produziu uma síntese do cristianismo e do final do platonismo
médio de notável originalidade e poder, que é a primeira grande teologia filosófica
cristã. Apesar das condenações subsequentes de alguns de seus supostos pontos
de vista, sua influência no pensamento cristão foi forte e duradoura (SPINELLI,
2002).

A teologia filosófica grega que se desenvolveu durante as controvérsias


trinitárias sobre as relações entre as pessoas da divindade, que foram estabelecidas
nos concílios ecumênicos de Nicéia (325) e Constantinopla (381), deveu muito
a Orígenes em ambos os lados, ortodoxo e herético. Seus representantes mais
importantes do lado ortodoxo foram os três teólogos cristãos platônicos da
Capadócia, Basílio de Cesaréia (c. 329-37), Gregório de Nazianzo (c. 330-c. 389)
e o irmão de Basílio, Gregório de Nissa (c. 335-c 394). Destes três, Gregório de
Nissa foi o mais poderoso e original pensador (assim como o mais próximo de
Orígenes). Ele foi o primeiro grande teólogo da experiência mística, ao mesmo
tempo platônico e profundamente cristão, e exerceu uma forte influência no
pensamento cristão grego posterior (SPINELLI, 2002).

Em algum momento entre o período dos Padres Capadócios e os


primeiros anos do século VI, uma nova mudança foi dada ao Platonismo Cristão
pelo notável escritor que escolheu publicar suas obras sob o nome de São Paulo
em Atenas, Dionísio o Areopagita. O tipo de platonismo que o pseudo-Dionísio
empregou para seus propósitos teológicos foi o neoplatonismo do século V que
é melhor representado por Proclo. Quase tudo sobre este autor misterioso é
vigorosamente contestado pelos estudiosos. Porém não pode haver dúvida sobre
a influência que seu sistema do universo hierárquico exerceu sobre o pensamento
cristão posterior; sua visão de ascensão humana através dele – carregada pelo
amor divino, para passar além de toda hierarquia e todo conhecimento para a
escuridão da união mística com Deus – teve seu impacto tanto no Oriente, onde
um dos maiores pensadores platônicos cristãos gregos, Máximo, o Confessor (c.
580-662), foi profundamente influenciado pelos escritos dionisíacos e comentou
extensivamente sobre eles, e no Ocidente, onde eles se tornaram conhecidos e
foram traduzidos para o latim no século IX (REALE, 1994).

A seguir, vamos introduzir a vida e a obra de Fílon de Alexandria e Santo


Ambrósio. Ambos pensadores centrais para compreendermos a tradição da
filosofia judaica e cristã no Mundo Antigo.
128
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

2 FÍLON DE ALEXANDRIA
Fílon de Alexandria, um filósofo judeu de língua grega e o mais importante
representante do judaísmo helenístico, nasceu em Alexandria, Egito, entre 15 e 10
a.E.C. e morreu entre 45 e 50 E.C. Seus escritos fornecem a visão mais clara desse
desenvolvimento do judaísmo na diáspora. Como o primeiro a tentar sintetizar
a fé revelada e a razão filosófica, ele ocupa uma posição única na história da
filosofia. Ele também é considerado pelos cristãos como um precursor da teologia
cristã.

2.1 VIDA E ANTECEDENTES


Pouco se sabe da vida de Fílon. Flávio Josefo (2013), o historiador dos
judeus que também viveu no século I, diz que a família de Fílon superou todas
as outras na nobreza de sua linhagem. Seu pai, aparentemente, desempenhou
um papel proeminente na Palestina antes de se mudar para Alexandria. O irmão
de Fílon, Alexandre Lisímaco, que era um administrador geral de impostos
encarregado da alfândega em Alexandria, era o homem mais rico da cidade e
deve ter sido um dos homens mais ricos do mundo helenístico, porque Josefo
disse que deu um enorme empréstimo à esposa do rei judeu Herodes Agripa I e
que ele contribuiu com o ouro e a prata com os quais nove enormes portões do
Templo em Jerusalém foram sobrepostos. Alexandre também foi extremamente
influente nos círculos imperiais romanos, sendo um velho amigo do imperador
Cláudio e tendo atuado como guardião da mãe do imperador.

FIGURA 6 – FÍLON DE ALEXANDRIA

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/6c/PhiloThevet.jpg/800px-
PhiloThevet.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.

129
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

A comunidade judaica de Alexandria, a julgar pela linguagem dos papiros


e inscrições judaicas, tinha sido por cerca de três séculos, quase exclusivamente,
de língua grega e de fato considerava a Septuaginta (a tradução da Bíblia Hebraica
para o grego no século III a.E.C.) como divinamente inspirada. Durante o século e
antes do nascimento de Fílon, Alexandria foi o lar de vários escritores judeus cujas
obras existem agora apenas em fragmentos. Esses homens eram frequentemente
influenciados pela cultura grega em que viviam e escreviam suas apologias para
o judaísmo (CALABI, 2014).

Os judeus alexandrinos estavam ansiosos para matricular seus filhos em


idade escolar secundária em ginásios gregos. Neles, os judeus foram certamente
chamados a fazer concessões com suas tradições. Pode-se supor que Fílon foi
um produto dessa educação. Ele menciona uma ampla gama de escritores
gregos, especialmente os poetas épicos e dramáticos. Ele estava intimamente
familiarizado com as técnicas das escolas retóricas gregas e ele elogia o ginásio. A
educação de Fílon, como aquela que ele atribui a Moisés, provavelmente consistia
em aritmética, geometria, astronomia, harmonia, filosofia, gramática, retórica e
lógica (CALABI, 2014).

Como os gregos cultos de sua época, Fílon frequentava o teatro, embora


tivesse conotações distintamente religiosas, e notou os diferentes efeitos da
mesma música em vários membros da plateia e o entusiasmo do público por uma
tragédia de Eurípides. Ele era um observador atento de competições de boxe e
participou de corridas de bigas também. Ele também menciona a frequência com
que ele comparecia a jantares caros com seus entretenimentos luxuosos (JOSEFO,
2013).

Fílon não diz nada de sua própria educação judaica. A única menção
da educação judaica em sua obra indica quão relativamente fraca deve ter sido,
porque ele fala apenas de escolas judaicas que se reuniram no sábado para
palestras sobre ética. O fato de ele estar longe dos helenizadores palestinos e
de se considerar um judeu praticante é claro, a partir de sua declaração de que
não se deve omitir a observância de nenhum dos costumes judaicos que foram
divinamente ordenados.

Fílon é crítico tanto para aqueles que tomaram a Bíblia literalmente e,


assim, encontraram dificuldades teológicas, particularmente antropomorfismos
– descrevendo Deus em termos de características humanas – e aqueles que
foram para excessos em sua interpretação alegórica das leis, com a conclusão
resultante, antecipando São Paulo, isso porque as leis cerimoniais eram apenas
uma parábola, elas não precisam mais ser obedecidas. Fílon nada diz sobre suas
práticas religiosas, exceto que fez uma peregrinação a Jerusalém, embora não
indique se fez mais de uma dessas visitas (CALABI, 2014).

Aos olhos dos rabinos palestinos, os judeus alexandrinos eram


particularmente conhecidos por sua inteligência em postular questionamentos
e por suas respostas afiadas. Como o maior repositório da lei judaica, além do

130
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

Talmude antes da Idade Média, o trabalho de Fílon é de especial importância


para aqueles que desejam discernir a relação entre a Palestina e a Diáspora no
reino da lei (halakah) e a observância ritual. A exposição de Fílon sobre a lei pode
representar uma discussão acadêmica que fornece uma descrição ideal da lei
judaica ou a prática real nos tribunais judaicos no Egito. No geral, Fílon está de
acordo com o ponto de vista palestino predominante; no entanto, ele difere em
numerosos detalhes e muitas vezes depende da lei grega e romana (CALABI,
2014).

O fato de Fílon ter experimentado algum tipo de crise de identidade é


indicado por uma passagem de sua obra Sobre as Leis Especiais (FÍLON, 2018).
Neste trabalho, ele descreve seu desejo de escapar das preocupações do mundo
para a vida contemplativa, sua alegria por ter conseguido fazê-lo – talvez com a
seita ascética judaica egípcia dos Terapeutas descrita em seu tratado Sobre a Vida
Contemplativa (FÍLON, 1981), e sua renovada dor ao ser forçado mais uma vez a
participar da turbulência cívica. Fílon parece ter ficado insatisfeito com sua vida
na agitada metrópole de Alexandria: ele elogia os essênios – uma seita judaica
que vivia em comunidades monásticas na região do Mar Morto – para evitar
grandes cidades por causa das iniquidades que se tornaram inveteradas entre
os moradores da cidade, por viver uma vida agrícola e por desdenhar a riqueza.

O único evento identificável na vida de Fílon ocorreu no ano 39 ou 40,


quando, após um pogrom contra os judeus em Alexandria, ele encabeçou uma
embaixada ao imperador Calígula pedindo-lhe para reafirmar os direitos judaicos
concedidos pelos Ptolomeus (governantes do Egito) e confirmado pelo imperador
Augusto. Fílon estava preparado para responder à acusação de deslealdade
levantada contra os judeus pelo notório antissemita Apion, um gramático grego,
quando o imperador o interrompeu. Em seguida, Fílon disse a seus colegas
delegados que não se desencorajassem, porque Deus puniria Calígula, que, pouco
depois, foi de fato assassinado (CALABI, 2014).

2.2 OBRAS
As obras genuínas de Fílon podem ser classificadas em três grupos,
segundo Calabi (2014):

1. Ensaios bíblicos e homilias: baseados em versículos ou tópicos específicos do


Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), especialmente Gênesis. O mais
importante dos 25 tratados existentes neste grupo são Alegorias das Leis, um
comentário sobre Gênesis; e Sobre as Leis Especiais, uma exposição das leis no
Pentateuco.
2. Ensaios filosóficos e religiosos gerais: estes incluem Que todo homem bom é livre,
provando o paradoxo estoico de que somente o sábio é livre; Sobre a Eternidade
do Mundo, talvez não genuíno, provando, particularmente em oposição aos
estoicos, que o mundo é incriado e indestrutível; Sobre a Providência, existente
em armênio, um diálogo entre Fílon, que argumenta que Deus é providencial

131
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

em sua preocupação pelo mundo, e Alexandre, presumivelmente, o sobrinho


de Fílon, Tibério Júlio Alexandre, que levanta dúvidas; e Sobre Alexandre,
existente em armênio, sobre as almas irracionais dos animais.
3. Ensaios sobre temas contemporâneos: estes incluem Sobre a Vida Contemplativa,
um elogio da seita Os Terapeutas; a fragmentária Hypothetica (Suposições), na
verdade, uma defesa dos judeus contra acusações antissemitas a que o tratado
de Josefo Contra o Apion tem muitas semelhanças; Contra Flaccus, sobre os
crimes de Aulus Avillius Flaccus, o governador romano do Egito, contra os
judeus alexandrinos e sobre seu castigo; e Sobre a Embaixada a Gaio, um ataque
ao imperador Calígula (isto é, Gaio) por sua hostilidade em relação aos judeus
alexandrinos e um relato da malsucedida embaixada ao imperador encabeçada
por Fílon.

Um certo número de obras atribuídas a Fílon é quase certamente falsa. A


mais importante delas é Antiguidades Bíblicas, uma reconstrução imaginativa da
história judaica de Adão até a morte de Saul, o primeiro rei de Israel (CALABI,
2014).

Os trabalhos de Fílon são desconexos, com pouco senso de forma;


repetitivo; artificialmente retóricos; e quase desprovido de senso de humor. Seu
estilo é geralmente envolvido, alusivo, fortemente tingido de misticismo e muitas
vezes obscuro; isso pode ser o resultado de uma tentativa deliberada da parte
dele de desencorajar todos, menos os poucos iniciados.

2.3 A ORIGINALIDADE DE SEU PENSAMENTO


As principais influências na filosofia de Fílon foram Platão, Aristóteles,
os neopitagóricos, os cínicos e os estoicos. A visão filosófica básica de Fílon é
platônica, tanto que Jerônimo e outros padres da igreja citam o dito aparentemente
difundido: "Platão filoniza ou Fílon platoniza" (MORAES, 2017, p. 221). A
reverência de Fílon por Platão, particularmente pelo Simpósio e pelo Timeu, é
tal que ele nunca o questionou, como ele fez com os estoicos e outros filósofos.
Contudo Fílon dificilmente é um plagiador; ele fez modificações nas teorias de
Platão.

Para Aristóteles, Fílon estava em dívida principalmente em questões de


cosmologia e ética. Para os neopitagóricos, que haviam crescido em importância
durante o século anterior, ele estava particularmente endividado por suas visões
sobre o significado místico dos números, especialmente o número sete, e o
esquema de um modo de vida peculiar e autodisciplinado como uma preparação
para a imortalidade. Os cínicos, com suas diatribes, o influenciaram na forma de
seus sermões. Embora Fílon empregasse com mais frequência a terminologia dos
estoicos do que qualquer outra escola, ele criticava seus pensamentos (MORAES,
2017).

132
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

No passado, os estudiosos tentaram diminuir a importância de Fílon


como um pensador teológico e apresentá-lo apenas como um pregador, mas em
meados do século XX, Wolfson (1982), um estudioso americano, demonstrou
a originalidade de Fílon como pensador. Em particular, Fílon foi o primeiro a
mostrar a diferença entre a capacidade de conhecimento da existência de Deus
e a incognoscibilidade de sua essência. Novamente, em sua visão de Deus, ele
foi original em insistir em uma Providência individual capaz de suspender as
leis da natureza em contraste com a visão filosófica grega prevalecente de uma
Providência universal que está sujeita às leis imutáveis ​​da natureza. Como
Criador, Deus fez uso de assistentes, daí o plural “Façamos o homem” em Gênesis,
Capítulo 1 (BÍBLIA, 1966).

Fílon não rejeitou a visão platônica de uma matéria preexistente, mas


insistiu que essa matéria também foi criada. Da mesma forma, Fílon reconciliou
sua teologia judaica com a teoria das formas de Platão de uma maneira original:
ele propôs as formas como pensamentos eternos de Deus, que Deus criou como
seres reais antes de criar o mundo (WOLFSON, 1982).

Fílon viu o cosmos como uma grande corrente de ser presidida pelo Logos,
um termo da filosofia pré-socrática, que é o mediador entre Deus e o mundo,
embora em um ponto ele identifica o Logos como um segundo Deus. Fílon partiu
de Platão principalmente no uso do termo Logos para a forma das formas e para
as formas como um todo e em sua declaração de que o Logos é o lugar do mundo
inteligível. Em antecipação à doutrina cristã, ele chamou o Logos de o Filho
primogênito de Deus, o homem de Deus e a imagem de Deus (MORAES, 2017).

Fílon também foi inovador em sua exposição do amor místico de Deus,


que Ele implantou em humanos e através do qual os seres humanos se tornam
divinos. Segundo alguns estudiosos, ele usou a terminologia das religiões pagãs
e dos cultos de mistérios, incluindo o termo enthousiasmos (ter Deus dentro de si),
simplesmente porque fazia parte do discurso comum ordinário. Todavia, não há
nada intrinsecamente contraditório no judaísmo na combinação de misticismo e
legalismo no mesmo pensador (MORAES, 2017).

A influência das noções místicas do platonismo, especialmente do Simpósio


e dos cultos populares, de mistério sobre a tentativa de Fílon de apresentar o
judaísmo como o único mistério verdadeiro, não é superficial. De fato, este
pensador é uma importante fonte de conhecimento das doutrinas desses cultos
de mistérios, notadamente a do Renascimento (BURKERT, 1992). Talvez, através
de sua apresentação mística do judaísmo, Fílon esperasse capacitar o judaísmo
na diáspora para competir com as religiões de mistério em seus esforços de
proselitismo, bem como em suas tentativas de manter seus adeptos. O fato de ele
estar essencialmente na corrente principal do judaísmo, no entanto, é indicado
por seu respeito pela interpretação literal da Bíblia, por sua denúncia dos
alegoristas extremos e por não mencionar quaisquer ritos específicos de iniciação
aos prosélitos, bem como a falta de evidência de que ele era um devoto de um
culto de mistério particular.

133
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

O objetivo do que Fílon chamava de “intoxicação sóbria” mística era levar


alguém do mundo material para o mundo eterno. Como Platão, ele considerava
o corpo como a prisão da alma e em seu dualismo de corpo e alma, como em sua
descrição da fuga do eu, o contraste entre Deus e o mundo e o anseio por uma
experiência direta de Deus, ele antecipou muito do gnosticismo, uma religião
dualista que se tornou importante no século II a.E.C. Mas ao contrário de todos
os filósofos gregos, com exceção dos epicuristas, que acreditavam na limitada
liberdade de vontade, ele sustentava que os humanos são completamente livres
para agir contra todas as leis de sua própria natureza (MORAES, 2017).

Em sua teoria ética, Fílon descreveu duas virtudes, sob o título de justiça,
que são desconhecidas na literatura filosófica grega – fé religiosa e humanidade.
Novamente, para ele, o arrependimento era uma virtude, enquanto para outros
filósofos gregos era uma fraqueza. A felicidade perfeita vem, no entanto, não
através dos esforços dos próprios humanos para alcançar a virtude, mas somente
através da graça de Deus (CALABI, 2014).

Em sua teoria política, Fílon costumava dizer que a melhor forma de


governo é a democracia. Mas para ele a democracia estava longe do governo
do povo, que ele denunciou como o pior da política, talvez porque ele visse a
multidão alexandrina em ação. Para ele, democracia não significava uma forma
particular de governo, mas a devida ordem sob qualquer forma de governo em
que todos são iguais perante a lei. Deste ponto de vista, a constituição mosaica,
que incorpora os melhores elementos de todas as formas de governo, seria a ideal.
De fato, o objetivo final da história é que o mundo inteiro seja um estado único
sob uma constituição democrática (WOLFSON, 1982).

3 SANTO AMBRÓSIO
Santo Ambrósio nasceu em 339 E.C., em Augusta Treverorum, na Gália
(atual Trier, no sudoeste da Alemanha) e morreu em 397 em Milão. Ele era
um bispo de Milão, um teólogo e crítico bíblico que incorporou as doutrinas
neoplatônicas em sua exegese da Escritura, e um iniciador de ideias que forneceu
um modelo para concepções medievais das relações entre a Igreja e o Estado.
Suas obras literárias foram aclamadas como obras-primas da eloquência latina, e
suas realizações musicais são lembradas em seus hinos (COSTA, 2018).

Ambrósio também é lembrado como o professor que converteu e batizou


Santo Agostinho de Hipona, o grande teólogo cristão, e como um bispo modelo
que via a igreja se erguendo acima das ruínas do Império Romano.

134
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

3.1 INÍCIO DE CARREIRA DE SANTO AMBRÓSIO


Embora Ambrósio, o segundo filho do prefeito romano (vice-rei) da Gália,
tenha nascido na residência oficial em Augusta Treverorum, seu pai morreu logo
depois. Ambrósio foi criado em Roma, em um palácio frequentado pelo clero,
por sua mãe viúva e sua irmã mais velha, Marcelina, uma freira. Promovido
devidamente ao governo das províncias de Ligúria e Emília em c. 370, ele viveu
em Milão e foi inesperadamente aclamado como bispo pelo povo da cidade em
374 (PAREDI, 1964).

FIGURA 7 – SANTO AMBRÓSIO

FONTE: <https://i2.wp.com/catholicism.org/wp-content/blogs.dir/1/files/2000/12/Saint_
Ambrose_of_Milan.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Ambrósio, um forasteiro popular, escolhido como candidato de


compromisso para evitar uma eleição disputada, mudou de um leigo não batizado
para um bispo em oito dias. Vindo de uma família senatorial bem relacionada,
mas obscura, Ambrósio poderia ser ignorado como governador da província.
Todavia, como bispo de Milão, ele foi capaz de dominar a vida cultural e política
de sua época.

3.2 REALIZAÇÕES ADMINISTRATIVAS ECLESIÁSTICAS


Um tribunal imperial frequentemente se reunia em Milão. Em confrontos
com essa corte, Ambrósio demonstrou uma franqueza que combinava o ideal
republicano das prerrogativas de um senador romano com uma veia sinistra de
demagogia. Em 384 ele garantiu a rejeição de um pedido de tolerância por membros
pagãos do senado romano, cujo porta-voz, Quintus Aurelius Symmachus, era seu
parente. Em 385-386, ele se recusou a entregar uma igreja para o uso de hereges
135
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

arianos. Em 388, ele repreendeu o Imperador Teodósio por ter punido um bispo
que havia queimado uma sinagoga judaica. Em 390, ele impôs penitência pública
a Teodósio por ter punido uma rebelião em Tessalônica pelo massacre de seus
cidadãos. Essas intervenções sem precedentes foram atenuadas pela lealdade e
desenvoltura de Ambrósio como diplomata, notavelmente em 383 e 386 por suas
visitas oficiais ao usurpador Maximus em Trier. Em suas cartas e em suas orações
fúnebres sobre os imperadores Valentiniano II e Teodósio – De obitu Valentiniani
consolatio (392) e De obitu Theodosii (395) – Ambrósio estabeleceu o conceito
medieval de um imperador cristão como um filho obediente da igreja "servindo
sob ordens de Cristo”, e assim sujeitas aos conselhos e restrições do seu bispo
(AMBRÓSIO, 2017).

3.3 REALIZAÇÕES LITERÁRIAS E MUSICAIS


As relações de Ambrósio com os imperadores formaram apenas parte de
sua posição de comando entre a classe governante leiga da Itália. Ele absorveu
rapidamente o mais moderno aprendizado grego, cristão e pagão – notavelmente as
obras de Fílon, Orígenes e São Basílio de Cesareia e do neoplatônico pagão Plotino.
Esse aprendizado ele usou em sermões que expunham a Bíblia e, especialmente, na
defesa do significado “espiritual” da Bíblia Hebraica por alegoria filosófica erudita
– especialmente no Hexaemeron (AMBRÓSIO, 2014) – “Nos Seis Dias da Criação” –
e em sermões sobre os patriarcas, dos quais De Isaac et anima (Sobre Isaque e a Alma)
e De bono mortis (Sobre a bondade da morte) revelam uma profunda familiaridade
com a linguagem mística neoplatônica (AMBRÓSIO, 2010a).

Sermões, cuja data infelizmente permanece incerta, foram a principal


produção literária de Ambrósio. Eles foram aclamados como obras-primas
da eloquência latina e continuam a ser uma referência para os estudantes da
transmissão da filosofia e teologia gregas no Ocidente. Por tais sermões, Ambrósio
ganhou seu mais notável convertido, Agostinho, depois bispo de Hipona, no
norte da África, e destinado, como Ambrósio, a ser reverenciado como doutor
(professor) da igreja. Agostinho foi para Milão como professor cético de retórica
em 384. Quando ele partiu, em 388, ele havia sido batizado por Ambrósio e estava
em dívida com o neoplatonismo católico do mesmo, que fornecia uma base
filosófica que acabou por transformar a teologia cristã (PAREDI, 1964).

Ambrósio forneceu aos latinos instruídos uma versão impecavelmente


clássica do cristianismo. Seu trabalho sobre as obrigações morais do clero, De officiis
ministrorum (AMBRÓSIO, 2001), do ano 386, é habilmente modelado no De officiis
de Cícero (2000). Ele procurou substituir os heróis de Roma pelos santos da Bíblia
Hebraica como modelos de comportamento para uma aristocracia cristianizada.
Por cartas, visitas e nomeações, ele fortaleceu esse cristianismo aristocrático nas
cidades do norte da Itália que ele havia governado como governador romano.

Em Milão, Ambrósio “enfeitiçou” a população introduzindo novas


melodias orientais e compondo belos hinos, notavelmente “Aeterne rerum
Conditor” (“Criador da terra e do céu”) e “Deus Creator omnium” (“Criador de
136
TÓPICO 2 | FILOSOFIA JUDAICA E FILOSOFIA CRISTÃ: FÍLON E SANTO AMBRÓSIO

todas as coisas"). Ele não poupou esforços em instruir candidatos para o Batismo.
Ele denunciou os abusos sociais (notavelmente nos sermões De Nabuthe (Sobre
Nabote) e frequentemente assegurava o perdão de condenados. Ele defendia o
ascetismo mais austero: as famílias nobres relutavam em deixar que suas filhas
casadas assistissem aos sermões em que ele instava sobre elas a virtude suprema
da virgindade (AMBRÓSIO, 2017).

3.4 AVALIAÇÕES E INTERPRETAÇÕES


A reputação de Ambrósio após a sua morte não foi contestada. Para
Agostinho, ele era o bispo modelo. Uma biografia foi escrita em 412 por Paulino,
diácono de Milão, por instigação de Agostinho (PAREDI, 1964). Para o adversário
de Agostinho, Pelágio, Ambrósio era a flor da eloquência latina (REALE, 1994).
De seus sermões, a Expositio evangelii secundum Lucam (AMBRÓSIO, 2010b) –
Exposição do Evangelho Segundo Lucas – de 390, circulava amplamente.

No entanto, Ambrósio é uma figura semelhante a Janus. Ele impôs sua


vontade aos imperadores, mas nunca se considerou um precursor de uma política
na qual a igreja dominava o Estado. Ele agia por um temor tradicional de que o
Cristianismo ainda pudesse ser eclipsado por uma nobreza pagã e o Catolicismo
desenraizado em Milão por cortesãos arianos.

Sua atitude em relação ao aprendizado que ele usou foi similarmente


antiquada. Ainda assim, seus sermões traem o misticismo pagão de Plotino em
seus matizes mais silenciosos. Em um mosaico quase contemporâneo na capela
de São Sátiro, na igreja de Santo Ambrósio, em Milão, Ambrósio aparece como
desejava ser visto: um simples bispo cristão segurando o livro dos Evangelhos.
No entanto, a maneira como ele estabeleceu suas funções como bispo assegurou
que, para usar sua própria imagem, a Igreja Católica se levantaria “como uma lua
crescente” acima das ruínas do Império Romano.

Para finalizar, neste tópico conseguimos explorar um pouco a vida e as


obras de dois pensadores que influenciaram e fundamentaram o pensamento
filosófico judaico-cristão na Era Helenística.

Introduzimos a vida e os antecedentes de Fílon de Alexandria.


Conseguimos sucintamente descrever e classificar as suas obras. Além disso,
expusemos a originalidade deste pensador em suas reflexões filosóficas.

Finalizamos o tópico apresentando a vida e a carreira de Santo Ambrósio,


um pensador que acumulou realizações administrativas e eclesiásticas, além das
inúmeras realizações literárias e musicais.

No próximo tópico, introduziremos o pensamento de dois importantes


filósofos: Santo Agostinho e Boécio.

137
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O primeiro judeu que foi realmente bem versado na filosofia grega e a usou
extensivamente na exposição e defesa de sua religião tradicional foi Fílon
Judeu.

• Como Fílon, os platonistas cristãos davam primazia à revelação e consideravam


a filosofia platônica como o melhor instrumento disponível para compreender
e defender os ensinamentos das Escrituras e da tradição da igreja.

• O primeiro cristão a usar a filosofia grega a serviço da fé cristã foi Flávio Justino
(martirizado c. 165).

• Orígenes produziu uma síntese do cristianismo e do final do platonismo médio


de notável originalidade e poder, que é a primeira grande teologia filosófica
cristã.

• A teologia filosófica grega que se desenvolveu durante as controvérsias


trinitárias sobre as relações entre as pessoas da divindade deveu muito a
Orígenes em ambos os lados, ortodoxo e herético.

• Gregório de Nissa foi o primeiro grande teólogo da experiência mística, ao


mesmo tempo platônico e profundamente cristão.

• O sistema do universo hierárquico de Dionísio, o Areopagita, exerceu grande


influência sobre o pensamento cristão posterior.

• A comunidade judaica de Alexandria, a julgar pela linguagem dos papiros e


inscrições judaicas, tinha por quase três séculos sido quase exclusivamente de
língua grega e de fato considerava a Septuaginta (a tradução da Bíblia Hebraica
para o grego no século III a.E.C.) como divinamente inspirada.

• A educação de Fílon, como aquela que ele atribui a Moisés, provavelmente


consistia em aritmética, geometria, astronomia, harmonia, filosofia, gramática,
retórica e lógica.

• Fílon é crítico tanto para aqueles que tomaram a Bíblia literalmente e aqueles
que foram para excessos em sua interpretação alegórica das leis.

• A exposição de Fílon sobre a lei pode representar uma discussão acadêmica


que fornece uma descrição ideal da lei judaica ou a prática real nos tribunais
judaicos no Egito.

138
• As obras genuínas de Fílon podem ser classificadas em três grupos: ensaios
bíblicos e homilias; ensaios filosóficos e religiosos gerais; ensaios sobre temas
contemporâneos.

• As principais influências na filosofia de Fílon foram Platão, Aristóteles, os


neopitagóricos, os cínicos e os estoicos.

• Para Aristóteles, Fílon estava em dívida principalmente em questões de


cosmologia e ética.

• Fílon foi o primeiro a mostrar a diferença entre a capacidade de conhecimento


da existência de Deus e a incognoscibilidade de sua essência.

• Fílon não rejeitou a visão platônica de uma matéria preexistente, mas insistiu
que essa matéria também foi criada.

• Fílon também foi inovador em sua exposição do amor místico de Deus, que
Deus implantou em humanos e através do qual os seres humanos se tornam
divinos.

• O objetivo do que Fílon chamava de “intoxicação sóbria” mística era levar


alguém do mundo material para o mundo eterno.

• Em sua teoria ética, Fílon descreveu duas virtudes, sob o título de justiça, que
são desconhecidas na literatura filosófica grega – fé religiosa e humanidade.

• Em sua teoria política, Fílon costumava dizer que a melhor forma de governo é
a democracia, que significava a devida ordem sob qualquer forma de governo
em que todos são iguais perante a lei.

• Santo Ambrósio era um bispo de Milão, um teólogo e crítico bíblico que


incorporou as doutrinas neoplatônicas em sua exegese da Escritura, e um
iniciador de ideias que forneceu um modelo para concepções medievais das
relações entre a Igreja e o Estado.

• Sermões foram a principal produção literária de Ambrósio, aclamados como


obras-primas da eloquência latina.

• Ambrósio ganhou seu mais notável convertido, Agostinho.

• Ambrósio forneceu aos latinos instruídos uma versão impecavelmente clássica


do Cristianismo.

139
AUTOATIVIDADE

1 Em quais grupos podem ser classificadas as obras de Fílon?

2 Descreva ao menos duas das contribuições originais do pensamento de


Fílon.

3 Quem foi o mais notável convertido pelos sermões de Santo Ambrósio?

140
UNIDADE 2 TÓPICO 3

A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E


BOÉCIO

1 INTRODUÇÃO
No Ocidente latino, havia mais de um tipo de platonismo cristão. Uma
impressionante e extremamente difícil teologia filosófica, empregando ideias que
se aproximam da versão de Porfírio do neoplatonismo para explicar e defender a
doutrina ortodoxa da Trindade, foi produzida na segunda metade do século IV
pelo retórico e gramático Mario Vitorino. Um forte e simples teísmo e moralidade
platônica, que teve grande influência na Idade Média, foi nobremente expresso
na obra final do último grande filósofo-estadista do Mundo Antigo: Boécio (c.
470-524). Esta foi a Consolação da Filosofia, escrito na prisão enquanto seu autor
estava sob sentença de morte (BOÉCIO, 2012). Boécio também foi influente no
Ocidente medieval através de suas traduções das obras lógicas de Aristóteles,
especialmente as Categorias juntamente a Isagoge (Introdução) de Porfírio, sobre
as quais ele produziu dois comentários (SHIEL, 1990; SPADE, 1994).

Mas o platonismo cristão que teve a influência mais ampla, profunda


e duradoura no Ocidente foi o de Santo Agostinho de Hipona (354-430). Cada
um dos grandes platonistas cristãos compreendeu o platonismo e aplicou-o à
compreensão de sua fé em seu próprio caminho individual, e nenhum deles era
mais verdadeiro que Agostinho, com sua personalidade extremamente forte e
história religiosa distinta (MATTHEWS, 2007).

O pensamento de Agostinho não era meramente uma subespécie do


platonismo cristão, mas algo único – agostinianismo. Não obstante, a leitura de
Plotino e Porfírio (em traduções latinas) teve uma influência decisiva em seu
desenvolvimento religioso e intelectual, e ele foi mais profunda e diretamente
afetado pelo neoplatonismo do que qualquer de seus contemporâneos e sucessores
ocidentais.

2 SANTO AGOSTINHO
Santo Agostinho, também conhecido como Agostinho de Hipona, nasceu
em 13 de novembro de 354, em Tagaste, Numídia (atual Souk Ahras, Argélia),
e morreu em 28 de agosto de 430, em Hipona ou Hippo Regius (hoje Annaba,
Argélia). Ele foi bispo de Hipona de 396 a 430, um dos padres latinos da igreja, um
dos doutores da igreja, e talvez o mais importante pensador cristão depois de São
Paulo. A adaptação de Agostinho do pensamento clássico ao ensino cristão criou

141
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

um sistema teológico de grande poder e influência duradoura. Suas numerosas


obras escritas, das quais as mais importantes são Confissões e Cidade de Deus,
moldaram a prática da exegese bíblica e ajudaram a estabelecer as bases para
grande parte do pensamento cristão medieval e moderno (HAMMAN, 1989).

Agostinho é notável pelo que fez e extraordinário pelo que escreveu. Se


nenhuma de suas obras escritas tivesse sobrevivido, ele ainda teria sido uma
figura a ser considerada, mas sua estatura teria sido mais parecida com a de
alguns de seus contemporâneos. No entanto, mais de cinco milhões de palavras
de seus escritos sobrevivem, virtualmente todas exibindo a força e agudeza de
sua mente (e algumas limitações de alcance e aprendizado) e algumas possuindo
o raro poder de atrair e prender a atenção dos leitores tanto no seu dia quanto no
nosso tempo. Seu estilo teológico característico moldou o cristianismo latino de
uma maneira superada apenas pela própria escritura. Seu trabalho continua a ter
relevância contemporânea, em parte por causa de sua participação em um grupo
religioso que era dominante no Ocidente em seu tempo e permanece assim até
hoje (GILSON, 2006).

Intelectualmente, Agostinho representa a adaptação mais influente da


antiga tradição platônica com as ideias cristãs que já ocorreram no mundo latino-
cristão. Agostinho recebeu o passado platônico de maneira muito mais limitada
e diluída do que muitos de seus contemporâneos de língua grega, mas seus
escritos foram tão amplamente lidos e imitados em toda a cristandade latina que
sua síntese particular de tradições cristãs, romanas e platônicas definiu os termos
para muitas das tradições e dos debates posteriores (GILSON, 2006).

Tanto o cristianismo católico moderno quanto o cristianismo protestante


devem muito a Agostinho, embora, em alguns aspectos, cada comunidade tenha,
às vezes, se sentido envergonhada de admitir essa lealdade diante de elementos
irreconciliáveis ​​em seu pensamento. Por exemplo, Agostinho foi citado como um
defensor da liberdade humana e um defensor articulado da predestinação divina,
e suas visões sobre a sexualidade eram de intenção humanizada, mas muitas
vezes foram recebidas como opressivas em efeito.

2.1 A VIDA DE SANTO AGOSTINHO


O local de nascimento de Agostinho, Tagaste, era uma modesta comunidade
romana em um vale de rio a 64 km da costa africana. Ficava a poucos quilômetros
do ponto em que a civilização romana se estreitava nas terras altas da Numídia.
Os pais de Agostinho eram da classe respeitável da sociedade romana, livres para
viver do trabalho de outros, mas seus meios eram limitados. Eles conseguiram, às
vezes com dinheiro emprestado, adquirir uma educação de primeira classe para
Agostinho e, embora ele tivesse pelo menos um irmão e uma irmã, ele parece ter
sido o único filho enviado para ser educado. Estudou primeiro em Tagaste, depois
na vizinha cidade universitária de Madaura e finalmente em Cartago, a grande

142
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

cidade da África romana. Depois de um breve período de ensino em Tagaste, ele


retornou a Cartago para ensinar retórica, a principal ciência para o cavalheiro
romano, e ele evidentemente era muito bom nisso (MATTHEWS, 2007).

FIGURA 8 – SANTO AGOSTINHO

FONTE: <https://img.cancaonova.com/cnimages/canais/uploads/sites/6/2006/08/formacao_
confira-algumas-frases-marcantes-de-santo-agostinho-768x576.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Ainda em Cartago, escreveu um pequeno livro filosófico destinado a


mostrar seus próprios méritos e avançar em sua carreira; infelizmente, este livro
está perdido. Aos 28 anos, inquieto e ambicioso, Agostinho deixou a África em 383
para fazer sua carreira em Roma. Ele ensinou lá antes de conseguir uma nomeação
como professor imperial de retórica, em Milão. A residência costumeira do
imperador na época, Milão era a capital de fato do Império Romano do Ocidente
e o lugar onde as carreiras eram melhor realizadas. Agostinho nos diz que ele
e os muitos membros da família com ele, esperavam não menos do que um
governo provincial como a eventual – e lucrativa – recompensa por seus méritos
(HAMMAN, 1989).

A carreira de Agostinho, no entanto, encalhou em Milão. Depois de apenas


dois anos, ele renunciou ao seu cargo de professor e, depois de alguma busca
da alma e aparente ociosidade, voltou para sua cidade natal de Tagaste. Lá ele
passou o tempo como um culto senhor de terras, cuidando de sua propriedade
familiar, criando o filho, Adeodato, e continuando seus passatempos literários.
A morte daquele filho ainda adolescente deixou Agostinho sem a obrigação de
entregar a propriedade da família, e assim ele vendeu todo seu patrimônio e deu
o dinheiro aos pobres, mantendo apenas a casa da família, que ele converteu
numa fundação monástica para si e alguns amigos. Viu-se, então, aos 36 anos,
literalmente pressionado a servir como clérigo júnior na cidade costeira de
Hipona, ao norte de Tagaste (GILSON, 2006).

A transformação não foi totalmente surpreendente. Agostinho sempre foi


um diletante de uma forma ou de outra da religião cristã, e o colapso de sua
carreira em Milão esteve associado a uma intensificação da religiosidade. Todos
143
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

os seus escritos daquela época em diante foram motivados por sua lealdade a
uma forma particular de cristianismo, tanto ortodoxa quanto intelectual. Seus
correligionários no norte da África aceitaram sua posição e estilo distintos com
alguma dificuldade, e Agostinho escolheu associar-se com a ramificação “oficial”
do cristianismo, aprovada pelos imperadores e injuriada pelas ramificações
mais entusiastas e numerosas da igreja africana. As habilidades literárias e
intelectuais de Agostinho, no entanto, deram a ele o poder de articular sua
visão do cristianismo de um modo que o diferenciava de seus contemporâneos
africanos. Seu dom original era a capacidade de escrever em um nível altamente
teórico para os leitores mais exigentes e ainda ser capaz de fazer sermões com
paixão e ferocidade em um idioma que um público menos culto poderia admirar
(GILSON, 2006).

Tornou-se um "presbítero" (grosso modo, um padre, mas com menos


autoridade do que o clero moderno daquele título) em Hipona, em 391. Agostinho
tornou-se bispo em 395 ou 396 e passou o resto de sua vida naquele ofício. Hipona
era uma cidade comercial, sem a riqueza e a cultura de Cartago ou Roma, e
Agostinho nunca ficava inteiramente em casa ali. Ele viajaria a Cartago por vários
meses do ano para buscar negócios eclesiásticos em um ambiente mais acolhedor
aos seus talentos do que o de sua cidade natal adotiva (HAMMAN, 1989).

A formação educacional e o ambiente cultural de Agostinho o treinaram


para a arte da retórica: declarar o poder do self através da fala que diferenciava o
interlocutor de seus companheiros e influenciava a multidão a seguir seus pontos
de vista. O treinamento e o talento natural de Agostinho coincidiram. O estilo do
retórico transita em sua personalidade eclesiástica ao longo de sua carreira. Ele
nunca esteve sem controvérsias para lutar, geralmente com outros de sua própria
religião (MATTHEWS, 2007).

No início do seu tempo em Hipona, ele escreveu, livro após livro, atacando
o maniqueísmo, uma seita cristã que ele tinha aderido no final da adolescência e a
deixou dez anos mais tarde, quando se tornou impolítico permaneceu um adepto
da mesma. Nos 20 anos seguintes, dos anos 390 a 410, ele estava preocupado
com a luta para fazer com que sua própria ideia de cristianismo prevalecesse
sobre todas as outras na África. A tradição cristã africana nativa tinha entrado em
conflito com os imperadores cristãos que sucederam Constantino (reinou de 305
a 337) e foi vilipendiada como cismática; foi marcado com o nome de donatismo
por causa de Donato, um de seus primeiros líderes. Agostinho e seu principal
colega na igreja oficial, o bispo Aurélio de Cartago, travaram uma campanha
sagaz e implacável contra ela com seus livros, com o recrutamento de apoio entre
os líderes da igreja e com apelo cuidadoso ao funcionalismo romano. Em 411, o
imperador reinante mandou um representante oficial para Cartago para resolver
a disputa. Um debate público realizado em três sessões durante o período de 1º
a 8 de junho e assistido por centenas de bispos de cada lado, terminou com uma
decisão a favor da igreja oficial. As restrições legais decorrentes do donatismo
decidiram a luta em favor do partido de Agostinho (MATTHEWS, 2007).

144
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

Mesmo assim, aproximando-se de seus 60 anos de idade, Agostinho


encontrou – ou construiu – um último grande desafio para si mesmo. Levando
em consideração as implicações dos ensinamentos de um pregador itinerante da
sociedade chamado Pelágio, Agostinho gradualmente trabalhou até uma febre
polêmica sobre as ideias que Pelágio pode ou não ter abraçado. Outros clérigos
da época ficaram perplexos e reagiram com certa cautela a Agostinho, mas ele
persistiu, até mesmo revivendo a batalha contra monges austeros e bispos dignos
ao longo dos anos 420. No momento de sua morte, ele estava trabalhando em
um ataque vasto e disforme ao último e mais polido de seus oponentes, o bispo
italiano Juliano de Eclano (HAMMAN, 1989).

Ao longo desses anos, Agostinho construiu cuidadosamente para si


uma reputação de escritor em toda a África e além. Seu cultivo cuidadoso de
correspondentes selecionados tornara seu nome conhecido na Gália, na Espanha,
na Itália e no Oriente Médio, e seus livros circulavam amplamente pelo mundo
mediterrâneo (HAMMAN, 1989).

Em seus últimos anos, ele compilou um catálogo cuidadoso de seus livros,


anotando-os com defensiva munida para dissuadir acusações de inconsistência.
Ele tinha adversários, muitos deles aquecidos em seus ataques contra ele, mas ele
geralmente mantinha seu respeito pelo poder e eficácia de seus escritos.

2.2 PRINCIPAIS OBRAS DE AGOSTINHO


Duas das obras de Agostinho destacam-se acima das outras por sua
influência duradoura, mas elas tiveram destinos muito diferentes. A Cidade de
Deus foi amplamente lida no tempo de Agostinho e durante toda a Idade Média
e ainda exige atenção, mas é impossível ler sem um esforço determinado para
colocá-la em seu contexto histórico (AGOSTINHO, 2006). As Confissões não foram
muito lidas nos primeiros séculos da Idade Média, mas a partir do século XII
foi continuamente lida como um retrato vívido da luta de um indivíduo pela
autodefinição na presença de um Deus poderoso (AGOSTINHO, 2017).

2.2.1 As Confissões
Embora a narrativa autobiográfica represente grande parte dos nove
primeiros dos 13 livros das Confissões de Agostinho, publicadas em 397, a
autobiografia é incidental ao objetivo principal do trabalho. Para Agostinho, as
confissões é um termo genérico para atos de discurso religiosamente autorizado:
louvor a Deus, culpa do self, confissão de fé. O livro é uma meditação ricamente
texturizada de um homem de meia-idade (Agostinho estava em seus 40 e poucos
anos quando o escreveu) sobre o rumo e o significado de sua própria vida.

145
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

A dicotomia entre a odisseia passada e a atual posição de autoridade como


bispo é enfatizada de várias maneiras no livro. Até porque o que começa como
uma narrativa da infância termina com uma discussão extensa e muito eclesial do
livro de Gênesis. A progressão é de os primórdios da vida de um homem até os
primórdios da sociedade humana.

Entre esses dois pontos, a narrativa do pecado e da redenção é a que mais


chama a atenção dos leitores. Aqueles que procuram encontrar nele as memórias
de um grande pecador ficam invariavelmente desapontados, na verdade muitas
vezes confusos com as minúcias do fracasso que preocupam o autor. De maior
significado é o relato da redenção.

Agostinho é especialmente influenciado pela poderosa pregação


intelectual do amável e diplomático Bispo Ambrósio, que reconcilia para ele as
atrações da cultura intelectual e social da Antiguidade, na qual Agostinho foi
criado e era mestre, e os ensinamentos espirituais do cristianismo. A ligação
entre os dois foi a exposição de Ambrósio e a recepção de Agostinho de uma
seleção das doutrinas de Platão, mediada na antiguidade tardia pela escola do
neoplatonismo. Agostinho ouviu Ambrósio e leu, em tradução latina, algumas
das obras extremamente difíceis de Plotino e Porfírio. Ele adquiriu deles uma
visão intelectual da queda e ascensão da alma do homem, uma visão que ele
encontrou confirmada na leitura da Bíblia proposta por Ambrósio (GILSON,
2006).

Religião, para Agostinho, no entanto nunca foi meramente uma questão


de intelecto. O sétimo livro das Confissões relata uma conversão intelectual
perfeitamente satisfatória, mas o extraordinário oitavo livro leva-o a um passo
necessário adiante. Agostinho não conseguiu buscar a pureza ritual do batismo
sem se purificar dos desejos da carne num grau extremo. Para ele, o batismo exigia
a renúncia da sexualidade em todas as suas manifestações expressas. A narrativa
das Confissões mostra Agostinho formando a vontade de renunciar à sexualidade
através da leitura das cartas de Paulo. A cena decisiva ocorre em um jardim em
Milão, em que a voz de uma criança parece convencer Agostinho a “pegar e ler”,
e então ele encontra nos escritos de Paulo a inspiração para adotar uma vida de
castidade.

O resto das Confissões é principalmente uma meditação sobre como o estudo


continuado das escrituras e a busca da sabedoria divina ainda são inadequadas
para atingir a perfeição, e como, sendo bispo, Agostinho faz as pazes com suas
imperfeições. Está embebido em linguagem bíblica e é um trabalho de grande
força e arte.

146
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

2.2.2 A Cidade de Deus


Quinze anos depois de Agostinho (2017) escrever as Confissões, numa
época em que ele estava chegando ao fim (e invocando o poder do governo
para fazê-lo) de sua longa luta com os donatistas, mas antes de ele agir contra
os pelagianos, o mundo romano foi abalado por notícias de uma ação militar
na Itália. Um exército desorganizado, sob a liderança de Alarico, um general de
ascendência germânica e, portanto, considerado líder de um bando "bárbaro",
procurava privilégios do império há muitos anos, fazendo de vez em quando
ataques extorsivos contra áreas populosas e prósperas. Finalmente, em 410, suas
forças atacaram e tomaram a cidade de Roma, segurando-a por vários dias antes
de partir para o sul da Itália (HAMMAN, 1989).

O significado militar do evento era nulo – tal era a desordem do governo


romano que outros bandos de guerra tornariam as províncias reféns cada vez
mais frequentemente, e esse bando, em particular, vagaria por mais uma década
antes de se estabelecer principalmente na Espanha e no sul da França, mas o
efeito simbólico de ver a cidade de Roma tomada por forasteiros pela primeira vez
desde que os gauleses o haviam feito, em 390 a.E.C., abalou a confiança secular
de muitas pessoas conscientes do outro lado do Mediterrâneo. Ocorrendo em
menos de 20 anos após o decreto decisivo contra o "paganismo" pelo Imperador
Teodósio I em 391, foi seguido por especulações de que talvez o Império Romano
tivesse confundido seu caminho com os deuses. Talvez o novo deus cristão não
fosse tão poderoso quanto parecia. Talvez os antigos deuses tivessem feito um
trabalho melhor em proteger seus seguidores (HAMMAN, 1989).

É difícil dizer quão séria ou amplamente tais argumentos foram feitos.


O paganismo nessa época estava em desordem, e o domínio do cristianismo
nas rédeas do governo era inabalável. Contudo, Agostinho viu nas dúvidas
murmuradas uma esplêndida ocasião polêmica que ele procurara por muito
tempo, e assim saltou em defesa dos caminhos de Deus. Contudo, era improvável
que seus leitores e descrentes, cujos murmúrios ele ouviu, fossem pagãos. Pode-
se dizer que, ao menos, o público-alvo dele compreendia muitas pessoas que
eram exteriormente afiliadas à Igreja Cristã.

Durante os quinze anos seguintes, trabalhando meticulosamente através


de uma elevada arquitetura de argumentação, ele delineou uma nova maneira
de entender a sociedade humana, estabelecendo a Cidade de Deus sobre e contra a
Cidade do Homem (AGOSTINHO, 2006). Roma foi destronada – e o saque da cidade
mostrou ser de nenhuma importância espiritual – em favor da Jerusalém celeste,
o verdadeiro lar e fonte de cidadania para todos os cristãos. A Cidade do Homem
estava condenada a desordenar, e os sábios guardariam seus passaportes como
cidadãos da Cidade acima, vivendo neste mundo como peregrinos desejosos de
voltar para casa.

De civitate dei contra paganos, escrita entre 413-426/427 (AGOSTINHO,


2006), é dividida em 22 livros. Os dez primeiros refutam as alegações de poder
divino de várias comunidades pagãs. Os últimos doze recontam a história bíblica
147
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

da humanidade desde Gênesis até o Juízo Final, oferecendo o que Agostinho


apresenta como a verdadeira história da Cidade de Deus, contra a qual, e somente
contra a qual, a história da Cidade do Homem, incluindo a história de Roma,
pode ser entendida corretamente.

A obra é longa e, às vezes, particularmente, nos últimos livros, discursiva


demais para uma leitura totalmente satisfatória hoje em dia, mas permanece
impressionante como um todo e fascinante em suas partes. O ataque pungente
ao paganismo nos primeiros livros é memorável e eficaz, o encontro com o
platonismo nos livros 8 e 10 é de grande significado filosófico, e os últimos livros
(especialmente o livro 19, com uma visão da verdadeira paz) oferecem uma visão
do destino humano que seria amplamente persuasivo por pelo menos mil anos.

De certa forma, a Cidade de Deus de Agostinho é – mesmo conscientemente


– a réplica cristã da República de Platão e a imitação de Platão por Cícero em sua
própria Da República. A Cidade de Deus seria lida de várias maneiras ao longo
da Idade Média, em alguns pontos virtualmente, como documento fundador de
uma ordem política de reis e papas que Agostinho poderia imaginar. Em seu
âmago está uma poderosa visão contestadora da vida humana, que aceita o lugar
do desastre, da morte e do desapontamento, mantendo a esperança de uma vida
melhor, uma esperança que, por sua vez, facilita e orienta a vida neste mundo.

2.2.3 As Retratações
De muitas maneiras, um livro não menos incomum do que suas Confissões
(AGOSTINHO, 2017), As Retratações (AGOSTINHO, 1993), publicadas entre 426-
427, escritas nos últimos anos de sua vida, oferece uma retrospectiva da releitura
da carreira de Agostinho. Na forma, o livro é um catálogo de seus escritos com
comentários sobre as circunstâncias de sua composição e com as retratações ou
retificações que ele faria em retrospectiva.

Um dos efeitos do livro foi tornar muito mais fácil para os leitores
medievais encontrar e identificar obras autênticas de Agostinho, e isso foi
certamente um fator na notável sobrevivência de tanto o que ele escreveu. Outro
efeito do livro é imprimir ainda mais profundamente nos leitores as próprias
opiniões de Agostinho sobre sua vida.

Há pouco na obra que seja falso ou impreciso, mas a forma e a apresentação


fazem dela um trabalho de propaganda. O Agostinho que emerge é um que foi
sido fiel, consistente e inabalável em sua doutrina e vida. Contudo, muitos que o
conheciam teriam visto nele progresso ou deserção total, dependendo do ponto
de vista deles.

148
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

2.3 ESPÍRITO E REALIZAÇÃO DE AGOSTINHO


O impacto de Agostinho na Idade Média não pode ser superestimado.
Milhares de manuscritos sobrevivem e muitas bibliotecas medievais sérias –
que não possuem mais do que algumas centenas de livros – tiveram mais obras
de Agostinho do que de qualquer outro escritor. Sua realização é paradoxal,
na medida em que – como um artista moderno que ganha mais dinheiro
postumamente do que na vida – a maior parte foi conquistada após sua morte e
em terras e sociedades muito distantes da sua. Agostinho foi lido avidamente em
um mundo onde a ortodoxia cristã prevalecia de uma maneira que ele mal podia
sonhar, daí um mundo diferente daquele ao qual seus livros deveriam se aplicar
(BROWN, 2006).

Alguns de seus sucessos se devem ao inegável poder de seus escritos,


alguns a sua boa sorte em ter mantido uma reputação ortodoxa sem mácula,
mesmo com debates sobre algumas de suas opiniões mais extremas, mas, acima
de tudo, Agostinho encontrou sua voz em alguns poucos temas que ele defendeu
com eloquência ao longo de sua carreira. Quando ele se pergunta em seus
primeiros solilóquios o que ele deseja saber, ele responde: “duas coisas apenas,
Deus e a Alma”. Assim, ele fala de sua reverência por um Deus que é remoto,
distante e misterioso, bem como poderosa e incessantemente presente em todos
os tempos e lugares. Totus ubique era o mantra repetido de Agostinho para essa
doutrina: “O todo dele em toda parte” (BROWN, 2006).

Ao mesmo tempo, Agostinho capta a pungência e a tentação da condição


humana, centrada na experiência isolada e individual da pessoa. Por tudo que ele
escreve sobre a comunidade cristã, o cristão, em sua visão, permanece sozinho
diante de Deus e é aprisionado em um corpo e alma únicos, dolorosamente
conscientes, da maneira diferente como ele conhece a si mesmo e conhece – a
distância e com dificuldade – outras pessoas.

Mas Agostinho alcança uma maior pungência. Seu self isolado na presença
de Deus é negado até mesmo a satisfação do solipsismo: o self não se conhece até
que Deus se digne a revelar aos seres humanos sua identidade, e mesmo assim
nenhuma confiança, nenhum descanso é possível nesta vida. Em um ponto das
Confissões (AGOSTINHO, 2017), o bispo maduro admite com pesar que não sabe a
qual tentação se entregará a seguir – e vê nessa incerteza, o perigo de sua alma sem
fim, até que Deus o chamasse de volta para casa. A alma experimenta liberdade
de escolha e subsequente escravidão ao pecado, mas sabe que a predestinação
divina prevalecerá.

Milhares e milhares de páginas foram escritas sobre Agostinho e seus


pontos de vista. Dada a sua influência, ele é frequentemente questionado por
sua opinião sobre as controvérsias (da Imaculada Conceição de Maria à ética
da contracepção) que ele mal imaginou ou poderia ter falado. Os temas do
Deus imperial e do self contingente são profundos e vão longe para explicar
sua recusa em aceitar as doutrinas maniqueístas de um demônio poderoso em

149
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

guerra com Deus, o particularismo donatista em face da religião universal, ou


reivindicações pelagianas de autonomia e confiança humanas. Seus pontos de
vista sobre a sexualidade e o lugar das mulheres na sociedade têm sido estudados
e encontrados falhos nos últimos anos, mas também têm raízes na solidão de um
homem aterrorizado por seu pai – ou seu Deus (HAMMAN, 1989).

No final, Agostinho e sua própria experiência, tão vividamente exibida e,


ao mesmo tempo, velada em suas Confissões (AGOSTINHO, 2017), desaparecem
de vista, sendo substituídas pela imagem serena de um professor retratada na
arte medieval e renascentista. Vale lembrar que Agostinho acabou a sua vida no
meio de uma comunidade que temia por seu bem-estar material e escolheu passar
seus últimos dias sozinho em um quarto, afixando em uma parede onde pudesse
ver os textos dos sete Salmos penitenciais, para lutar uma última vez com seus
pecados antes de conhecer seu criador.

3 ANÍCIO MÂNLIO TORQUATO SEVERINO BOÉCIO


Boécio foi um estudioso romano, um filósofo cristão, um estadista e o
autor da célebre De consolatione philosophiae – Consolação da Filosofia (BOÉCIO,
2012) – uma obra em grande parte neoplatônica em que a busca da sabedoria e do
amor de Deus são descritos como as verdadeiras fontes de felicidade humana. Ele
nasceu em Roma, em 475, e morreu em Pavia, em 524.

A biografia mais sucinta de Boécio, e a mais antiga, foi escrita por Flávio
Magno Aurélio Cassiodoro, seu colega senatorial, que o citou como um orador
bem-sucedido que proferiu um excelente elogio de Teodorico, rei dos ostrogodos
que se fez rei da Itália. Cassiodoro também mencionou que Boécio escreveu sobre
teologia, compôs um poema pastoral e foi muito famoso como tradutor de obras
de lógica e matemática gregas (COSTA, 2018).

Outras fontes antigas, incluindo a própria obra de Boécio De consolatione


philosophiae (BOÉCIO, 2012), oferecem mais detalhes. Ele pertencia à antiga
família romana dos Anicii, que havia sido cristã por cerca de um século e da
qual o Imperador Olybrius era membro. O pai de Boécio fora cônsul em 487,
mas morreu logo depois, e Boécio foi criado por Quintus Aurelius Memmius
Symmachus, cuja filha Rusticiana se casou. Ele se tornou cônsul em 510 sob o
rei ostrogodo Teodorico. Embora pouco da educação de Boécio seja conhecida,
ele estava evidentemente bem treinado em grego. Seus primeiros trabalhos
sobre aritmética e música ainda existem, ambos baseados em manuais gregos de
Nicômaco de Gerasa, um matemático palestino do século I E.C. Apenas poucos
fragmentos da geometria de Boécio sobreviveram ao tempo, e nada de sua
astronomia sobreviveu (GIBSON, 1981).

O objetivo acadêmico de Boécio era traduzir para o latim as obras


completas de Aristóteles, com comentários e todas as obras de Platão, talvez com
comentários, seguidas de uma restauração de suas ideias em uma única harmonia.

150
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

O helenismo dedicado de Boécio, modelado sobre a influência do orador romano


Cícero, apoiou seu longo trabalho de traduzir o Organon de Aristóteles (seis
tratados sobre a lógica) e as glosas gregas sobre a obra (GIBSON, 1981).

FIGURA 9 – BOÉCIO

FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/-_hCzBXro0EE/TuVmcMp6GRI/AAAAAAAAAA0/
l1g551MCrZ0/s1600/Bo%25C3%25A9cio.jpg>. Acesso em: 11 jun. 2019.

Boécio havia começado antes de 510 a traduzir Isagoge de Porfírio, uma


introdução grega do século III à lógica de Aristóteles, e a elaborou em um
duplo comentário. Ele então traduziu o Katēgoriai (Categorias) de Aristóteles,
escreveu um comentário em 511, no ano de seu consulado, e também traduziu e
escreveu dois comentários sobre o segundo dos seis tratados de Aristóteles, o Peri
hermeneias (Sobre Interpretação). Um breve comentário antigo sobre a Analytika
Protera de Aristóteles (Análises Prévias) pode ser dele. Ele também escreveu dois
breves trabalhos sobre o silogismo (SHIEL, 1990).

Por volta de 520, Boécio utilizou seu estudo aprofundado de Aristóteles


em quatro breves tratados, em forma de carta, sobre as doutrinas eclesiásticas
da Trindade e sobre a natureza de Cristo. Estas são basicamente uma tentativa
de resolver disputas que resultaram da heresia ariana, que negava a divindade
de Cristo. Usando a terminologia das categorias aristotélicas, Boécio descreveu a
unidade de Deus em termos de substância e as três pessoas divinas em termos de
relação (BOÉCIO, 2000).

Boécio também tentou resolver os dilemas decorrentes da descrição


tradicional de Cristo como humano e divino, empregando definições precisas de
“substância”, “natureza” e “pessoa”. Apesar dessas obras, a dúvida, às vezes, é
lançada sobre os escritos teológicos de Boécio, porque em suas obras lógicas e na
posterior Consolação, a linguagem cristã não é aparente. A descoberta no século

151
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

XIX da biografia escrita por Cassiodoro, no entanto, confirmou Boécio como


escritor cristão, mesmo que suas fontes filosóficas não fossem cristãs (BOÉCIO,
2000).

Por volta de 520, Boécio tornou-se Magister officiorum (chefe de todo o


governo e serviços judiciais) sob Teodorico. Seus dois filhos foram cônsules juntos,
em 522. Eventualmente, Boécio caiu em desgraça com Teodorico. A Consolação
contém a principal evidência existente de sua queda, mas não descreve claramente
a acusação real contra ele. Após a reparação de um cisma entre Roma e a Igreja
de Constantinopla, em 520, Boécio e outros senadores podem ter sido suspeitos
de se comunicar com o imperador bizantino, Justino I, que era ortodoxo na fé,
enquanto Teodorico era ariano. Boécio defendeu abertamente o senador Albino,
que foi acusado de traição por ter escrito ao imperador Justino contra o governo
de Teodorico. A acusação de traição trazida contra Boécio foi agravada por mais
uma acusação da prática da magia, ou do sacrilégio, que o acusado teve grande
dificuldade em rejeitar. A sentença foi aprovada e foi ratificada pelo Senado,
provavelmente sob coação (GIBSON, 1981). Na prisão, enquanto aguardava a
execução, Boécio escreveu sua obra-prima, De consolatione philosophiae (BOÉCIO,
2012).

A Consolação (BOÉCIO, 2012) é o mais pessoal dos escritos dele, a coroa


de seus esforços filosóficos. Seu estilo, uma mudança bem-vinda do idioma
aristotélico que forneceu a base para estudos da escolástica medieval. O argumento
da Consolação é basicamente platônico. A filosofia, personificada como mulher,
converte o prisioneiro Boécio à noção platônica do Bem e assim o leva de volta à
lembrança de que, apesar da aparente injustiça de seu exílio forçado, existe um
summum bonum (bem maior), que forte e docemente controla e ordena o universo.
A fortuna e o infortúnio devem estar subordinados a essa Providência central,
e a existência real do mal é excluída. Os seres humanos têm livre arbítrio, mas
não é obstáculo à ordem e presciência divinas. A virtude, quaisquer que sejam
as aparências, nunca fica sem recompensa. O prisioneiro é finalmente consolado
pela esperança de reparação e recompensa além da morte.

Através dos cinco livros desse argumento, nos quais a poesia se alterna
com a prosa, não há um dogma especificamente cristão. É o credo de um
platonista, embora em nenhum lugar claramente incongruente com a fé cristã. O
livro mais lido nos tempos medievais, depois da Bíblia Sacra Vulgata, transmitiu as
principais doutrinas do platonismo para a Idade Média. O leitor moderno pode
não ser tão prontamente consolado por seus antigos modos de argumentação,
mas pode ficar impressionado com a ênfase de Boécio na possibilidade de outros
graus de Ser além do que é humanamente conhecido e de outras dimensões da
experiência humana do tempo.

Após sua detenção, provavelmente em Pavia, ele foi executado em 524.


Seus restos mortais foram posteriormente colocados na Igreja de San Pietro in Ciel
d'Oro, em Pavia, onde, possivelmente por uma confusão com seu homônimo, São
Severino de Nórica, ele recebeu a veneração devido a um mártir e uma saudação
memorável de Dante (GIBSON, 1981).
152
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

Quando Cassiodoro fundou um mosteiro em Vivário, na Campânia,


instalou ali sua biblioteca romana e incluiu as obras de Boécio nas artes liberais
na lista de leituras anotadas, em sua Institutiones (CASSIODORO, 2018) que ele
compôs para a educação de seus monges. Assim, alguns dos hábitos literários da
antiga aristocracia entraram na tradição monástica. A lógica boeciana dominava
o treinamento do clero medieval e o trabalho do claustro e das escolas da corte.
Suas traduções e comentários, particularmente os das Peri Hermeneias e Katēgoriai,
tornaram-se textos básicos na escolástica medieval (GIBSON, 1981; SHIEL, 1990).

A grande controvérsia sobre o nominalismo (negação da existência


de universais) e realismo (crença na existência de universais) foi incitada por
uma passagem em seu comentário sobre Porfírio. As traduções da Consolação
apareceram no início das grandes literaturas vernáculas, com o rei Alfred (século
IX) e Chaucer (século XIV) em inglês, Jean de Meun (poeta do século XIII) em
francês e Notker Labeo (um monge por volta do século XI) em alemão. Houve
uma versão bizantina no século XIII por Planudes e uma inglesa do século XVI
por Elizabeth I (GIBSON, 1981).

Assim, a resoluta atividade intelectual de Boécio em uma era de mudança


e catástrofe teve seu efeito mais tarde, em eras muito diferentes. A terminologia
sutil e precisa da antiguidade grega sobreviveu em latim quando o próprio grego
era pouco conhecido.

Em síntese, os antigos filósofos são distinguidos como os inventores da


filosofia e como os originadores da estrutura conceitual básica dentro da qual
a filosofia ocidental tem sido praticada desde a Idade Média até os dias atuais.
Seu legado mais importante, no entanto, deve ser sua convicção de que os seres
humanos são capazes de entender os mistérios mais profundos do universo e da
existência humana e que o caminho para essa conquista não é através de religião
ou magia, mas através de cuidadosa observação empírica e a aplicação da razão.

Uma crença relacionada, característica da filosofia grega antiga, é que


esse tipo de investigação racional vale a pena e é importante não apenas porque
satisfaz à curiosidade intelectual natural dos seres humanos, mas porque torna
a vida humana mais rica e mais significativa através do entendimento e da
sabedoria que isso produz. O dito de Sócrates “a vida não examinada não vale
a pena ser vivida" (PLATÃO, 2008, p. 163), é um exemplo famoso dessa atitude,
pois se aplica à reflexão sobre o caráter moral individual.

Essas suposições não foram compartilhadas por todas as sociedades


ocidentais em todas as idades, é claro, e até hoje elas são questionadas ou
descartadas em alguns segmentos da cultura intelectual e religiosa do Ocidente.
Nesse aspecto, esses veneráveis ​​ideais intelectuais ainda não são seguros; de fato,
alguns pensadores mais pessimistas argumentaram que estão em perigo. Para
que não sejam perdidos ou esquecidos completamente, portanto, faríamos bem
em lembrar os profundos pensadores da filosofia antiga.

153
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

LEITURA COMPLEMENTAR

A RELAÇÃO PROTENSIVA ENTRE FÉ E RAZÃO NA FILOSOFIA MEDIEVAL

António Amaral

Introdução

[...]

Tudo o que urge e importa saber em ordem à Salvação está já contido


na Saqrada Escritura; devotemo-nos, portanto, à leitura da lei divina,
meditemo-la, vivamos de acordo com os seus preceitos; de nada mais
precisaremos, nem mesmo da filosofia. Dever-se-ia mesmo dizer:
especialmente não da filosofia. Na verdade, as coisas passar-se-iam
infinitamente melhor sem o conhecimento filosófico do que com ele
(GILSON, 1952, p. 6).

I. Formação do problema: tardo-helenismo e proto-cristianismo - transição crítica

O anúncio da fé cristã, como conteúdo enraizado na mensagem e na


vida libertadora e salvífica de um Deus incarnado, não obedeceu a um impulso
de propagação linear e unilateral - de dentro para fora, de cá para lá, de nós
para eles etc. O que se desenha na emergência da cristã Boa Mensagem [trad.
lit. do grego “eu-aggelion”/“ev-angelion”] no mundo helenístico ou helenizado
de então, não é a acareação de duas alternativas definitivamente estabilizadas
e irredutíveis: de um lado, a fé cristã desdenhando na filosofia grega as razões
que no fundo lhe faltavam; do outro, a filosofia grega resistindo aos conteúdos
salvíficos da mundividência cristã de que no fundo carecia. O processo de
helenização da religião cristã, e por osmose de cristianização da filosofia grega,
é ambivalente e envolve o concurso de uma dupla mediação: do lado cristão,
a existência de uma comunidade judaica já helenizada; do lado helenístico
a consolidação de uma experiência filosófica centrada no que Pierre Hadot
designa de “exercícios espirituais”, inerentes sobretudo às correntes estoica e
epicurista (HADOT, 1981).

Graças ao impulso inicial do monaquismo oriental, a prática de tais


exercícios espirituais do helenismo não só induziu e estimulou o cultivo ascético
de uma práxis, mas também, o que é digno de nota, contribuiu para qualificar
como corrente filosófica a primitiva vida monástica cristã, ideia que, desde o
século IV d.C. com Gregório de Nazianzo, Gergório de Nissa e João Crisóstomo,
vingou e persistiu ao longo de boa parte da Idade Média.

O cristianismo pôde assim ser conotado como philosophia, na medida em


que a filosofia helenística já se encontrava precisamente proposta e realizada, nas
suas correntes mais representativas, como prática de vida, como modo de ser e de
estar (HADOT, 1981). Ora, é na esteira dessa linha sapiencial que encontraremos,
por exemplo, Evágrio o Pôntico, Basílio de Cesareia e Doroteu de Gaza a sugerirem
154
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

uma curiosa tese espiritualista segundo a qual a triádica conspiração entre as


palavras acolhidas pela fé, meditadas pela razão e memoradas pelo coração, bem
como a sua íntima ligação com os acontecimentos que ocasionam a oportunidade
de as pôr em prática, espelha antropologicamente o vínculo das faculdades
humanas - fé, razão e coração – que em ternária conjugação se articulam (HADOT,
1981). Convertida em modus vivendi, esta visão trinitária das faculdades, repercute
a bem dizer a tendência, já insinuada no platonismo tardio, desde Plutarco, e
prosseguida por Orígenes, de dividir organicamente a filosofia em três saberes,
congruentes com três graus de ascese espiritual: a ética (conexa com a purificação
das moções desiderativa e volitiva), a física (ligada à suspensão do sensível em
ordem ao entendimento da ordem material e corporal) e a teologia (vinculada
enfim à contemplação do Princípio ordenador do Universo). Neste subsolo
sapiencial das escolas helenísticas, mergulharão as raízes que nutrirão histórica
e hermeneuticamente as concepções de sophia, didakhe, doctrina, magisterium e
scientia, sem as quais a comunicação credível e razoável do kerigma cristão nunca
teria alcançado a condição civilizacional de uma efetiva cidadania ecuménica,
nem porventura atingido o refinamento conceptual, universal e sistémico de
uma theologia. De resto, o insólito episódio, ou talvez não, da estadia paulina
no Areópago de Atenas atesta que o cristianismo nascente não é visceralmente
irracional nem a filosofia grega estruturalmente descrente.

Como se desenvolveu e consubstanciou essa assimilação, sem que tal


implicasse nem uma miscigenação descaracterizadora dos seus conteúdos,
objetos e procedimentos próprios?

II. Formulação problemática: Gnose - mediação instável

A par das correntes sapienciais helenísticas, a fé cristã enfrenta, em sentido


diametralmente oposto, mas com idêntico pragmatismo, o desafio da Gnose.

A Gnose é uma hidra de cem cabeças. Com esta espécie de estribilho


alegórico, vários Padres da Igreja sublinharam a dificuldade em definir um
fenômeno religioso complexo que, em termos geográficos, se estendeu da Gália
ao Irão, e que, numa escala temporal, vigorou do século I até pelo menos ao
século XIII da nossa era, e que, numa perspectiva doutrinal, extraiu e amalgamou
de forma eclética elementos do mazdeísmo, dos cultos babilónicos, do judaísmo
heterodoxo, das religiões mistéricas gregas, da filosofia helenística e do
cristianismo nascente. (TARDIEU, 1989)

A sedução cristã pela gnose era inevitável. Ela explica-se em larga


medida pela urgência de autojustificação ditada por motivos exógenos (por
exemplo, acusações públicas de ateísmo e impiedade) e por motivos endógenos
(por exemplo, heresias), passando pela exigência universal (katholon) de
comunicabilidade e interação num contexto cosmopolita fortemente helenizado.
Sabendo-se emissários de uma doutrina ecuménica de salvação, muitos cristãos
cultos que refletiam sobre a sua ambivalente condição “trans” e “intra”-mundana,
vislumbravam na gnose uma oportunidade para “dar razões da sua esperança a
todas as interrogações” (I Pe 3:15).
155
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

O apelo da Gnose revelou-se, porém, ilusório e inconsequente. À primeira


vista oferecia algo que a mensagem cristã pretendia: um molde cognitivo. Alguns
autores como Justino, e determinadas escolas como a Alexandrina, de Clemente e
Orígenes, souberam dosear esse contributo sem comprometer o núcleo essencial
da revelação cristã, avançando mesmo para soluções elegantes e consistentes do
ponto de vista teórico: a tese seminal das Sementes do Verbo, de Justino, constitui
disso exemplo digno de menção (BOURGEOIS, 1981). Todavia, o que poderia
ter constituído o embrião de uma bendita gnose cristã não poderia ir muito mais
longe do que aquilo que lhe permitia o depósito da fé. E aí residia, justamente, o
ponto crítico do atrito com o Gnosticismo.

O gnóstico sabe-se (não presume, nem tão pouco acredita...) portador de


uma Revelação superior que conhece. Sabe-se sabendo a sabê-la, não por graça de
uma doação ou na gradualidade de uma aproximação, mas por uma iluminação
imediata, mais brilhante do que incandescente, mais apropriada do que consentida,
mais sugestionada do que acreditada. Nessa voragem luminescente, a fé, se não
é descartável, situa-se, pelo menos, num plano bem inferior e subalterno ao do
conhecimento.

Sabendo-se investido de verdadeira natureza divina e detentor do estado


de pureza (katharos) que essa condição implicava, o gnóstico encontra-se em
condições de se reapossar do mundo superior descomprometendo-se com o
inferior. Nascido “cá embaixo”, renascerá “lá em cima”. Desprezo do mundo
e da odiosa fatalidade que o governa, desdém pelo corpo e pela repugnante
sexualidade que o comanda, repúdio da sociedade e do ignóbil jogo dos poderes
e das sujeições, aversão à palavra, engenharia demiúrgica de divindades,
semidivindades e divindades menores, eis o preço a pagar para consumar a
assimilação gnóstica à Transcendência. Nessa condição, o gnóstico torna-se um
allogenos, um exilado, um estranho, um esquecido do mundo, restando-lhe apenas
o recurso a uma delirante multiplicação de oráculos e revelações para precipitar
uma escatologia que tarda sempre demais (TARDIEU, 1675). Enquanto as demais
religiões se centram na divindade que as institui, a gnose centra o indivíduo na
divinização de si próprio.

A Gnose afigurou-se, para o cristianismo problemática como


mediação racional porque, em bom rigor, ela configura uma trágica noção de
mediacionalidade: se por um lado a destituição do demiurgo bíblico condena-os
a multiplicar as entidades e dramas do mundo celeste, por outro lado a abolição
da Lei força-os a adoptar uma demiurgia religiosa, inadmissível não apenas
para o cristianismo, bem como para a própria filosofia tardo-helenística, como
se comprova, por exemplo, pelos amplos debates e controvérsias no interior da
escola de Plotino (TARDIEU, 1675).

Numa palavra, o Gnosticismo foi decisivo para o cristianismo mais como


pretexto do que como texto, ou mesmo como contexto. De facto é à luz dessa
sedução crepuscular que se entende, em parte, as opções que conduziram não
só à elaboração e estabilização do cânone das Escrituras cristãs, mas também as

156
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

peripécias especulativas e institucionais que envolveram os debates teológicos


subsequentes. Do lado da cultura helenística ela permite compreender o
recentramento racionalista da filosofia pelos grandes exegetas platónicos e
neoplatónicos e a sua consequente, e bem mais pacífica, assimilação pela doutrina
cristã.

III. Formalização problematológica: fé e razão - sinergia possível

A demarcação da mundividência cristã e da filosofia helenística face à


Gnose acabará por redundar não em fria coabitação, mas em crucial oportunidade
para selar aquilo que, no decurso do período medieval, acabou por constituir a
relação protensiva entre fé e razão.

Pretendo, apenas, pontualmente e a título de exemplo, apresentar dois


modelos distintos que materializaram essa relação: um agonístico, de alcance
apologético, com Tertuliano; o outro resolutivo, de contornos ciclomórficos, com
Agostinho.

Modelo agonístico {--} O pretexto apologético de Tertuliano: Quid ergo Athenis


et Hierosolimis?

O que é que Atenas tem a ver com Jerusalém? E a Academia com a


Igreja? E a heresia com o Cristianismo? ... Procuremos o Senhor
com pureza de coração... A partir de Jesus Cristo já não há lugar
para mais curiosidade; com o Evangelho já não são necessárias mais
investigações. Não continues procurando depois de teres encontrado
e acreditado naquilo que foi instituído por Aquele que te ordenou que
procurasses o que Ele instituiu (TERTULIANO, Praescr., p. 8-9).

Não nos iludamos. Na verdade, o trecho supramencionado, não expressa


uma catilinária febril endereçada à filosofia. Mobilizando os melhores dotes
retóricos, Tertuliano representa uma mente romana apostada em exibir o lastro
das formulações do kerygma cristão, não apenas no texto de uma ortodoxia, mas
sobretudo na agenda de uma "ortopraxia", onde a fé deve desempenhar um papel
decisivo e determinante, na sua condição testemunhal e probatória.

Mais do que atacar o reduto da filosofia, para o impugnar ou dissolver,


Tertuliano pretende despojar o credo e a praxis cristãos da sua conotação furtiva
e clandestina, para os legitimar num espaço público, o que implicava resguardá-
los de contaminações que pudessem desvirtuar a sua identidade. Na esteira da
tradição jurídica romana, o modelo retórico e litigante não podia, “de jure” e “de
facto”, ser mais apropriado para alcançar esse objetivo apologético.

“Enfim, que pode haver de semelhante entre um filósofo e um cristão?


Entre um discípulo da Grécia e um discípulo do Céu? Um trabalhando por vã
glória e o outro pela vida eterna; um dando-se a palavras e o outro às obras”?
(TERTULIANO, Apol., XLVI, p. 18).

157
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

A lógica binária e dual dos contrastes reflete bem, para lá do plumitivo


efeito estilístico, o cunho defensivo da Apologia. Todavia, uma leitura precipitada
pode obliterar o verdadeiro alcance desse efeito antagonístico. Pesem embora as
aparências, Tertuliano foi precisamente filho de Atenas e de Jerusalém, ao nível
mais profundo da unidade do seu pensamento. E como não haveria de sê-lo, se
Roma já o era?... Para além disso, continuaria a haver filósofos perante os quais os
novos sábios da revelação divina teriam de continuar a dirimir as suas questões,
tornando-se assim, paradoxalmente, "Filósofos Cristãos". Na prática, é o que
Tertuliano tem plena consciência de fazer, em inúmeros momentos da sua obra,
ao submeter as opiniões recolhidas da história da filosofia à pedra de toque da
revelação cristã (MIRANDA, 2002).

Modelo resolutivo - O contexto ciclomórfico de Agostinho: crede ut intellegas;


intellege ut credas

Para Agostinho, por seu turno, a fé e a compreensão devem estar sujeitas


ao mesmo impulso de crescimento e desenvolvimento da própria vida humana.
De acordo com Tertuliano, como se viu, esta premissa era válida apenas em
relação à procura do caminho para a fé; uma vez encontrada, não haveria sentido
para buscas posteriores. Todavia, aqui é que começa, segundo Agostinho, a
decisiva jornada: a fé colocou o crente no bom caminho; agora importa crescer
em compreensão.

Escutemos Agostinho no Sermão 43:

Todo o homem quer entender; não existe ninguém que não o queira.
Mas nem todos querem crer. Diz-me então alguém: “Entenda eu e
acreditarei.” Respondo-lhe: “Crê e entenderás.” (...) Aquele suposto
adversário (...) não emite palavras vazias de sentido quando diz:
“Entenda eu e acreditarei”. (...) De certo modo é verdade o que ele
diz. Mas também o é quando eu digo, com o profeta: “antes crê para
entenderes (AGOSTINHO, Sermo, 43).

“Como ambos dizem a verdade”, em que ficamos? – poderíamos nós


retorquir também...

O proverbial intellege, ut credas; crede, ut intellegas parece encerrar


um engenhoso expediente oratório. Por isso Agostinho, como se adivinhasse os
intentos hemenêuticos de interlocutores futuros, tem necessidade de ser mais
claro:

“Vou dizer-vos em poucas palavras como devemos compreender isto sem


nenhuma controvérsia: entende para crer na minha palavra; crê para entender a
palavra de Deus” (AGOSTINHO, Sermo 43).

Agora entendemos nós, e, portanto, podemos acreditar em Agostinho: ao


desnivelar a relação entre fé e razão em dois planos assimétricos, o da palavra
humana (verbum meum), que precisa de receber razões para dar crédito, e o da

158
TÓPICO 3 | A FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO E BOÉCIO

palavra de Deus (verbum Dei), que requer fé para conceder razões, o hiponense
resolve a tensão entre as duas faculdades sem a artimanha de uma circularidade
redundante, pleonástica ou tautológica. Cada um dos extremos da relação remete
para algo que, no plano da fé, não é mais um conteúdo de fé (fides quae), mas
um vislumbre inteligente da sua credibilidade (fides qua), tal como, no plano
da razão, não é mais um conteúdo racional, mas uma anuência confiante à sua
razoabilidade.

Conclusão

Em suma, os dois paradigmas selecionados, o apologético de Tertuliano


e o ciclomórfico de Agostinho, atestam até que ponto e em que medida a relação
entre fé e razão releva de uma tarefa protensiva, incessante, inacabada, que o
paradigma “circumlógico” só em parte interpreta.

Talvez o Credo, que tantos de nós proclamam em comunidades de fé (o


mesmo se poderia dizer do Credo subjacente a um Manifesto como o do Círculo
de Viena, a propósito da “antimetafísica” crença positivista...), ainda constitua
a referência mais cristalina dessa relação tensional, ao entrelaçar, com credível
racionalidade e razoável credibilidade referentes existenciais (Pai...), factos
históricos (sob Pôncio Pilatos...), conceitos metafísicos (consubstancial...) e
obviamente noções teológicas (ressurreição...). Do desvelo por essa relação
dependerá o enredo e a cumplicidade epistemológica que a filosofia e a
teologia souberem engendrar entre si, sem duplos nem efeitos visuais. Nessa
relação ter-se-á de jogar uma cartada decisiva, não só a partir da qual a filosofia
ofereça à teologia a possibilidade transcendental de uma fenomenologia que
manifeste a credibilidade da “logia” que ostenta em epígrafe, mas também
a partir da qual a teologia ofereça à filosofia a transcendente oportunidade
de uma hermenêutica que amplifique o sentido da “sophia” de quem se diz
amiga ou amante.

Entre os extremos inóspitos do credo quia absurdum (que lateja em


Tertuliano) e do intelligo quia absolutum (poderíamos nós dizer), urge o intervalo
mediacional de uma tensão que se deve cumprir em síntese e unidade vitais em
cada indivíduo, uma tensão que diferencia sem separar, integra sem confundir e
relaciona sem opor fé e razão. Quanto mais tensa a corda estiver, mais longe do
arco será lançada a flecha e mais audível na lira será a tangência, se a ninguém
exasperar esta inesperada visita de Heráclito.

Pierre-Jean Labarrière, no seu recente ensaio Croire et Comprendre,


abrevia razões, com as quais concluo:

o movimento [histórico e lógico da fé (croire) e da razão (comprendre)]


irá, com efeito, do afrontamento à sinergia; exprimindo uma
reorientação e um despertar para uma nova figura (...); desenhando um
itinerário semeado de nomes, de sistemas, de esforços de pensamento
e de vida, de tentativas de solução, de combates e armistícios, de
tentativas de subjugação, de pretensões e revoltas, de injustiças e

159
UNIDADE 2 | A FILOSOFIA NO MUNDO HELENÍSTICO E ROMANO

actos heróicos (...); visando um diálogo estrutural entre a vida e a


palavra (...) , num absoluto respeito pelos elementos que compõem
a experiência humana : acreditar e compreender, adesão e procura,
obediência da fé e demanda de inteligibilidade são actos do mesmo
espírito. (LABARRIÈRE, 1999, p. 43-45)

FONTE: AMARAL, A. A relação protensiva entre Fé e Razão na Filosofia Medieval. In: REIMÃO, C.
(Org.). O círculo hermenêutico entre fé e a razão. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003.
p. 31-39. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/antonio_amaral_fe_razao_filosofia_
medieval.pdf>.

160
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• O pensamento de Agostinho não era meramente uma subespécie do platonismo


cristão, mas algo único – agostinianismo.

• A adaptação de Agostinho do pensamento clássico ao ensino cristão, criou um


sistema teológico de grande poder e influência duradoura.

• Intelectualmente, Agostinho representa a adaptação mais influente da antiga


tradição platônica com as ideias cristãs que já ocorreram no mundo latino-
cristão.

• Tanto o cristianismo católico moderno quanto o cristianismo protestante devem


muito a Agostinho.

• As habilidades literárias e intelectuais de Agostinho deram a ele o poder de


articular sua visão do cristianismo de um modo que o diferenciava de seus
contemporâneos africanos.

• No início do seu tempo em Hipona, Agostinho escreveu, livro após livro,


atacando o maniqueísmo.

• Dos anos 390 a 410, Agostinho estava preocupado com a luta para fazer com
que sua própria ideia de cristianismo prevalecesse sobre todas as outras na
África.

• Duas das obras de Agostinho destacam-se acima das outras por sua influência
duradoura, A Cidade de Deus e Confissões.

• Para Agostinho, as confissões é um termo genérico para atos de discurso


religiosamente autorizado.

• A dicotomia entre a odisseia passada e a atual posição de autoridade como


bispo é enfatizada de várias maneiras no livro.

• Agostinho é especialmente influenciado pela poderosa pregação intelectual do


amável e diplomático Bispo Ambrósio, que reconcilia para ele as atrações da
cultura intelectual e social da Antiguidade e os ensinamentos espirituais do
cristianismo.

• Agostinho não conseguiu buscar a pureza ritual do batismo sem se purificar


dos desejos da carne num grau extremo.

161
• De civitate dei contra paganos, escrita entre 413-426/427 é dividida em 22 livros.

• Os dez primeiros refutam as alegações de poder divino de várias comunidades


pagãs, os últimos doze recontam a história bíblica da humanidade desde
Gênesis até o Juízo Final.

• As Retratações, publicada entre 426-427, escrita nos últimos anos de sua vida,
oferece uma retrospectiva da releitura da carreira de Agostinho.

• Um dos efeitos do livro foi tornar muito mais fácil para os leitores medievais
encontrar e identificar obras autênticas de Agostinho.

• Agostinho foi lido avidamente em um mundo onde a ortodoxia cristã prevalecia


de uma maneira que ele mal podia sonhar, daí um mundo diferente daquele ao
qual seus livros deveriam se aplicar.

• Agostinho capta a pungência e a tentação da condição humana, centrada na


experiência isolada e individual da pessoa.

• Boécio foi um estudioso romano, um filósofo cristão, um estadista, nascido em


Roma, em 475 e morreu em Pavia, em 524.

• A biografia mais sucinta de Boécio, e a mais antiga, foi escrita por Flávio Magno
Aurélio Cassiodoro.

• O objetivo acadêmico de Boécio era traduzir para o latim as obras completas de


Aristóteles com comentários e todas as obras de Platão, talvez com comentários,
seguidas de uma restauração de suas ideias em uma única harmonia.

• Por volta de 520, Boécio utilizou seu estudo aprofundado de Aristóteles em


quatro breves tratados em forma de carta sobre as doutrinas eclesiásticas da
Trindade e sobre a natureza de Cristo.

• Usando a terminologia das categorias aristotélicas, Boécio descreveu a unidade


de Deus em termos de substância e as três pessoas divinas em termos de relação.

• Boécio também tentou resolver os dilemas decorrentes da descrição tradicional


de Cristo como humano e divino, empregando definições precisas de
“substância”, “natureza” e “pessoa”.

• A acusação de traição trazida contra Boécio foi agravada por mais uma acusação
da prática da magia, ou do sacrilégio, que o acusado teve grande dificuldade
em rejeitar.

• Na prisão, enquanto aguardava a execução, Boécio escreveu sua obra-prima,


De consolatione philosophiae.

162
• O argumento da Consolação é basicamente platônico, a filosofia, personificada
como mulher, converte o prisioneiro Boécio à noção platônica do Bem e assim
o leva de volta à lembrança de que, apesar da aparente injustiça de seu exílio
forçado, existe um summum bonum (bem maior), que forte e docemente controla
e ordena o universo.

• Através dos cinco livros desse argumento, nos quais a poesia se alterna com a
prosa, não há um dogma especificamente cristão, é o credo de um platonista,
embora em nenhum lugar claramente incongruente com a fé cristã.

• Após sua detenção, provavelmente em Pavia, Boécio foi executado, em 524.

• A lógica boeciana dominava o treinamento do clero medieval e o trabalho do


claustro e das escolas da corte, suas traduções e comentários, particularmente
os das Peri Hermeneias e Katēgoriai, tornaram-se textos básicos na escolástica
medieval.

• A grande controvérsia sobre o nominalismo (negação da existência de


universais) e realismo (crença na existência de universais), foi incitada por uma
passagem em seu comentário sobre Porfírio.

163
AUTOATIVIDADE

1 O termo “confissões” significava o que para Santo Agostinho?

2 Qual é o tema dos dez primeiros livros e dos últimos doze da obra A Cidade
de Deus, de Santo Agostinho?

3 Descreva o argumento apresentado na obra a Consolação da Filosofia, de


Boécio.

164
UNIDADE 3

A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• apresentar os principais filósofos escolásticos;

• conhecer os elementos centrais dos pensadores escolásticos;

• compreender os elementos que influenciaram o desenvolvimento do


pensamento escolástico;

• avaliar o significado da obra de cada pensador para aquele período


histórico e para a posteridade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA,


AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E
BOAVENTURA

TÓPICO 2 – DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART E GUILHERME DE


OCKHAM

TÓPICO 3 – NICOLAU DE CUSA, PENSAMENTO MEDIEVAL E


RENASCIMENTO

165
166
UNIDADE 3
TÓPICO 1

PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO,


AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES,
TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

1 INTRODUÇÃO
Nesta unidade iremos discorrer sobre a filosofia escolástica que vai do
século IX até o final do século XVI, um período em que a Europa estava passando
por uma série de mudanças políticas, econômicas, culturais e religiosas.

O século XI é marcado por um reflorescimento das discussões filosóficas.


Os pensadores tiveram que lidar com novas questões. Isso, naturalmente,
impôs a eles a necessidade de tentar responder aos desafios de seu tempo sem,
contudo, desprezar o conhecimento filosófico que fora produzido até o momento.
Diante disso, as obras antigas passaram por uma releitura à luz de um novo
tempo histórico. Há uma recuperação ou uma volta ao estudo dos clássicos,
principalmente Platão, Plotino e Aristóteles, buscando reinterpretá-los à luz da fé.

Com a finalidade de não nos estendermos muito em nosso estudo,


apresentaremos uma biografia sintetizada de cada um dos pensadores e
passaremos logo para sua principal contribuição para as discussões filosóficas.
Indicaremos leituras que poderão ampliar e aprofundar seus estudos sobre cada
um dos filósofos aqui apresentados. Nesse sentido, gostaríamos de enfatizar que
o conteúdo apresentado neste livro didático tem um caráter introdutório.

Convidamos você a trilhar um pouco mais a história da filosofia, mas, de


agora em diante, pela filosofia medieval. Vamos lá?!

2 ANSELMO: O PAI DA ESCOLÁSTICA


Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta, mas viveu, sobretudo, na França
e na Inglaterra. Inicialmente foi para a Normandia, para o mosteiro de Bec, onde
passou muitos anos da sua vida. Foi prior e em seguida abade deste mosteiro e,
por fim, foi nomeado Arcebispo da Cantuária (1093), onde trabalhou até a sua
morte.

167
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

FIGURA 1 – ANSELMO DE CANTUÁRIA

FONTE: <http://paxprofundis.org/livros/anscant/ac1.jpg>. Acesso em: 27 jun. 2019.

Com Anselmo, a filosofia passa a tomar novos rumos, pois ele “representa
a síntese clássica da teologia e da dialética” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 254).
O que Anselmo buscava em seu labor teológico e filosófico era “esclarecer com
a razão aquilo que já se possui com a fé” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 153), pois
como ele mesmo afirmava: “Não tento, ó Senhor, penetrar na tua sublimidade,
pois de modo algum comparo o meu entendimento com ela; mas anseio para
entender até certo ponto a tua vontade, que meu coração crê e ama. Não busco,
pois, entender para crer, mas creio para compreender” (Anselmo apud OLSON,
2001, p. 235). Para isso, ele utiliza a lógica aristotélica aplicando-a em seus
argumentos teológicos, fato que levou a ser considerado o pai da escolástica.

A teologia havia passado por um longo período de esterilidade, pois


houve uma longa seca da “criatividade da teologia cristã” (OLSON, 2001, p. 317)
e os escolásticos foram os responsáveis por reavivar a reentronizar a teologia. Na
visão dos escolásticos, a filosofia possuía um papel relevante na esfera teológica,
contudo, a filosofia não passava de uma serva da teologia, ou seja, era uma
ferramenta conceitual necessária para o teólogo desenvolver seu pensamento.

Quanto à fé e à razão, Anselmo segue na esteira agostiniana, pois em sua


filosofia, Anselmo estabelece a precedência da fé sobre a razão. Tal precedência
significa dizer que a fé “entendida não como simples ato, mas como regra de vida,
é a pressuposição necessária para toda especulação proveitosa sobre as verdades
divinas” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 256), pois no seu entender fé e razão são
mutuamente dependentes.

Anselmo estava disposto a colocar a lógica a serviço da revelação divina


com a finalidade precípua de fortalecer a fé e não racionalizar as crenças cristãs,
como muitos o acusaram (OLSON, 2001). Seu racionalismo não excluía a fé, mas
buscava fazer frente aos avanços do ceticismo que estavam emergindo em alguns
lugares da Europa e que poderiam ameaçar a ortodoxia da Igreja Católica.
168
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

No sentido de pontuarmos a principal contribuição de Anselmo para a


Teologia e para a Filosofia, vamos discorrer brevemente sobre seu argumento
ontológico.

NOTA

Argumento ontológico: trata-se de uma prova a priori da existência de Deus,


obtida a partir da própria ideia de Deus. Esta prova se baseia no pressuposto de que a existência
real é uma perfeição; se Deus é o Ser que, por definição possui todas as perfeições, deve,
necessariamente, possuir também a existência. Em outras palavras: não se pode pensar Deus
como não existente, porque de outro modo não pensaríamos Deus, mas um Ser inferior.

FONTE: Reale e Antiseri (2003, p. 150)

2.1 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE ANSELMO


O argumento ontológico de Anselmo perpassa pela compreensão de dois
conceitos fundamentais em sua teoria: realidade e necessidade, ou seja, Deus é
a realidade necessária. O objetivo deste argumento é refutar o ateísmo, muito
embora não fosse tão explícito em seu tempo devido às perseguições do Estado e
da Igreja em relação àqueles que se declarassem abertamente ateus.

Ao desenvolver o argumento ontológico, Anselmo não recorre à fé ou a


qualquer revelação divina, pois seu propósito era construir uma argumentação
inteiramente racional sobre a fé cristã (OLSON, 2001). Tanto é que em suas duas
principais obras, Monologium e Proslogium, ele não recorreu às escrituras nem
mesmo à tradição católica para defender a fé cristã, mas recorreu unicamente à
luz da razão para fundamentar sua defesa. Para Anselmo:

Existe, portanto, um ser único que sozinho existe no maior e mais


alto grau. Mas o que é o maior de todos e pelo qual tudo de bom
ou grandioso existe e, resumindo, tudo tem alguma existência,
necessariamente é supremamente bom e grande e o mais sublime de
todos os seres existentes (ANSELMO apud OLSON, 2001, p. 326).

Isso naturalmente nos leva a outro estágio de seu argumento sobre a


existência de Deus, no qual Anselmo apresenta provas a posteriori. Vale destacar
que o argumento ontológico é provável, muito embora não seja possível
demonstrá-lo empiricamente.

A primeira prova “deriva da consideração de que cada qual tende a


se apoderar das coisas que julga boas” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149). As
pessoas são capazes de julgar entre o que é e o que não é bom, objetivamente,
somente porque Deus existe. Nesse sentido, Anselmo entende que o bom é

169
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

universal e cada agente moral é capaz de conceber juízos sobre o que é bom
ou não bom, e isso não depende necessariamente de uma simples expressão de
gosto pessoal.

A segunda prova “deriva da ideia de grandeza, não espacial, mas


qualitativa” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 149). Para Anselmo, Deus é a suma
grandeza. Todas as demais coisas têm uma participação gradual dessa grandeza.
Deus é amor em seu sentido absoluto. O homem é capaz de amar, mas não como
Deus ama, pois ele é a plenitude do amor, não há nada no universo que supere a
grandeza do amor de Deus.

A terceira prova “não deriva de um aspecto particular da realidade


(bondade ou grandeza), mas do ser simplesmente” (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 149). Isso significa dizer que tudo o que existe é derivado de um princípio
anterior, pois é ilógico pensarmos que, por exemplo, uma folha de papel não seja
derivada de alguma coisa anterior a ela que não seja uma folha de papel. Na visão
de Anselmo, o que existe não pode ter derivado do nada. Nesse sentido, ele busca
encontrar o princípio de todas as coisas, que no seu entendimento, este princípio
seria Deus.

A quarta e última prova “deriva da constatação dos graus de perfeição,


apoia-se sobre a hierarquia dos seres e exige que exista uma perfeição primeira
e absoluta” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 150). De acordo com essa linha de
pensamento, o universo é constituído de uma hierarquia de perfeição em que,
por exemplo, o cavalo é superior à árvore, o homem superior ao cavalo, e Deus
superior ao homem e a todas as coisas.

O argumento ontológico de Anselmo foi alvo de duras críticas por parte


de um monge chamado Ganilo, que escreveu um tratado com a finalidade de
refutar as ideias de Anselmo. Dentre as objeções, Ganilo aponta que o argumento
de Anselmo é válido apenas quando já se tem previamente a certeza de que aquele
ser, do qual não se pode pensar nada maior, existe no pensamento de maneira
diferente da que é possível existir as coisas falsas ou duvidosas, pois acerca do
termo Deus “não é suficiente ter uma ideia Dele para que se possa afirmar sua
realidade objetiva” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 151). Isso significa dizer que
basta pensar em alguma coisa para que ela exista.

Diante das objeções de Ganilo, Anselmo escreve apelando para a fé


levando-o a uma formulação mais precisa sobre a sua definição do termo Deus, que
é um Ser “que possui todas as perfeições em grau absoluto, e, por conseguinte, um
ser sem começo e sem fim, um ser absoluto e necessário” (BOEHNER; GILSON,
2012, p. 269).

170
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

3 ABELARDO: O LÓGICO
Pedro Abelardo (1079-1142) nasceu em Burg do Palais, perto de Nantes,
na França. Possuidor de uma mente inquieta e brilhante foi considerado o maior
escritor de seu tempo. Apaixonou-se por Heloísa, o grande amor de sua vida,
com quem se casou secretamente e teve um filho. Tal romance desagradou
profundamente ao tio curador de Heloísa, Fulbert, que incomodado com a
situação contratou alguns homens para invadirem a casa de Abelardo e castrá-
lo. Abelardo retirou-se de Paris e tornou-se um monge, enquanto Heloísa fez os
votos de freira e enclausurou-se em um convento.

FIGURA 2 – PEDRO ABELARDO

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/3c/Abelard.jpg/800px-
Abelard.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2019.

Diante das linhas tradicionais de ensino, Abelardo recorreu à lógica como


um instrumento necessário ao fazer teológico. Acerca deste pensador, Boehner e
Gilson (2012, p. 295) observam que:

Para bem compreendermos a personalidade e a Obra de Abelardo, é


mister situá-lo na linha da evolução que parte dos dialéticos de Santo
Anselmo. Com aqueles, Pedro compartilha o talento e a propensão
para a lógica e, com este, o empenho sincero de elucidar os mistérios
da fé por via racional.

Observe que Abelardo recorreu à lógica para esclarecer as dificuldades


associadas aos mistérios da fé. Sua intenção era tornar tais mistérios passíveis de
uma discussão no nível da razão, fugindo de um misticismo que mais alienava
as pessoas do que as conduzia a Deus. Vale destacar, ainda, que sua formação
resultou em um mestre que ofuscou o brilho de seus antigos professores. Suas
principais discussões vão girar em torno dos universais, que para ele não eram
171
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

uma coisa, mas apenas um nome, e o fato de se poder explicar os nomes às várias
coisas individuais é que os tornam universais. Por exemplo, a bondade não é uma
coisa, porém, apenas um nome aplicado a várias coisas.

Em sua obra Teologia Cristã, Abelardo estava disposto a superar a ideia de


incompatibilidade entre a verdade cristã e a verdade da filosofia. Sua crença era
de que:

[...] embora a razão não conseguisse resolver todo o problema teológico


que porventura existisse e certamente não tivesse a menor chance
de fazê-lo sem a fé, as verdades básicas do cristianismo estavam
implícitas na mente humana e podiam ser alcançadas e entendidas
com o pensamento lógico (OLSON, 2001, p. 333-4).

Por mais que não houvesse uma reconciliação plenamente perfeita entre a
verdade teológica e a filosófica, Abelardo defende a tese de que pelo menos não
deveria haver conflito entre essas duas verdades.

Abelardo também rompeu com o realismo de Anselmo, que acreditava


que “as proposições universais continham uma realidade ontológica além da
mente humana” (OLSON, 2001, p. 334). Anselmo fundamentava sua defesa no
platonismo, que resultou em realismo exagerado que considera os universais
como “entidades metafísicas subsistentes” (REALE, ANTISERI, 2004, p. 168).
Diante do realismo extremado dos universais, Abelardo assume uma posição
mais moderada, argumentando que:

[...] a solução [para o problema das proposições universais] está em


reconhecer que as proposições universais não são “coisas”, isto é, não
subsistem em si mesmas se não forem abstraídas. Elas existem da
mesma maneira que a forma existe na matéria: é possível abstrair a
forma da matéria, mas ela nunca realmente existe sem a matéria. Da
mesma maneira, as proposições universais podem ser abstraídas de
coisas individuais - e temos de fazê-lo para pensarmos -, mas nunca
vêm desacompanhadas de algo específico e concreto (ABELARDO
apud OLSON, 2001, p. 334).

Esta posição assumida por Abelardo é intermediária entre o Realismo


e o Nominalismo. O Nominalismo se trata de uma posição cética em relação
ao Realismo platônico, pois os universais são apenas nomes que indicam uma
multiplicidade de indivíduos e nada mais que isso, ou seja, os universais não
possuem um status ontológico como queriam os realistas.

172
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

DICAS

Sugestão de filme: Em Nome de Deus

No século XII, Abelardo (Derek De Lint), um respeitado filósofo e professor em


Paris, é contratado para ser o tutor da bela e inteligente Heloísa (Kim Thomson).
Rapidamente eles se apaixonam, mas precisam manter seu relacionamento
escondido de todos, porque Abelardo está comprometido com o celibato. O
filme é um retrato vívido das pressões sociais e religiosas sobre as escolhas
livres dos indivíduos.

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=c20mqZUy2VA>. Acesso em: 4 jul. 2019.

4 AVICENA E O ARISTOTELISMO
Avicena (980-1037), cujo nome é Ibn Sina, em árabe, nasceu em Bukara,
na Pérsia e morreu em Hamadan. Ele escreveu muitas obras, contudo, a mais
importante foi O livro da Cura, que abrange questões lógicas, retórica, poesia e
física.

FIGURA 3 – AVICENA

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/50/Avicenna_TajikistanP17-
20Somoni-1999_%28cropped%29.png>. Acesso em: 30 abr. 2019.

De acordo com Reale e Antiseri (2003, p. 192), a obra de Avicena “constitui


a primeira grande síntese especulativa que tem raízes na cultura clássica e que
constituiu um ponto de referência essencial para a cultura ocidental e a orientou
de modo decisivo”. Isso significa dizer que a filosofia de Avicena consiste numa
tentativa de construir um sistema coerente e abrangente que estivesse em
consonância às exigências religiosas da cultura muçulmana.

173
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Outra questão importante a ser destacada em relação ao pensamento


filosófico de Avicena, é que sua filosofia “é profundamente permeada de
Neoplatonismo e de elementos extraídos da religião islâmica que completaram suas
perspectivas aristotélicas (sobretudo no que se refere à teologia e à cosmologia),
o que permitiu entusiástica acolhida por muitos pensadores cristãos” (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 192).

O que podemos e devemos destacar no pensamento de Avicena é


a distinção que o filósofo faz entre o ente e a essência, pois no entendimento
dele “os homens, por exemplo, constituem o ente, ao passo que a humanidade
constitui a essência” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 192). Nesse sentido, o ente é
concreto, enquanto a essência se refere àquilo que é abstrato. Com isso ele está
querendo dizer que:

Os primeiros existem de fato, mas a segunda prescinde da existência,


pois representa a definição ou o quid est, que em si mesma não denota
a existência nem a não existência, a necessidade ou a contingência: [...]
Portanto, uma coisa é a essência e outra a existência. E a primeira, em
si mesma, não denota a segunda (REALE; ANTISERI, 2003, p. 192).

Todavia, em Deus, a essência e a existência são idênticas, muito embora


isso não se aplique aos demais seres criados. Deste modo, Deus é ser necessário,
diferentemente dos demais seres no universo que seriam apenas contingentes. A
questão que se levanta diante dessas afirmações é: “Qual a relação entre o mundo
e Deus? Trata-se de relação de necessidade ou de liberdade, de emanação ou de
criação”? (REALE; ANTISERI, 2003, p. 193).

Para responder a questões dessa natureza, Avicena recorre a Aristóteles e ao


neoplatonismo. Para o filósofo, Deus é um ser necessário, absoluto, pleno, perfeito
em verdade, amor e bondade. Ele compartilha desta essência com suas criaturas.

A distinção que Avicena faz entre a existência e a essência das coisas,


defendendo a ideia de que a forma e a matéria não podem interagir sozinhas e por
conta própria gerar o movimento, logo, são incapazes de gerar a própria existência.
Nesse sentido, a existência tem sua origem em uma causa que necessariamente
a coloca em relação à essência e à existência. Essas teses terão grande influência
sobre a filosofia de Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Escoto.

NOTA

Ente e essência: com estes termos se distinguem a realidade concreta e


existente (por exemplo, o homem individual) e o universal abstrato (por exemplo, a ideia de
humanidade). O ente existe de fato (de modo necessário, caso se trate de Deus; de modo
contingente, caso se trate das criaturas), enquanto a essência exprime “o que é” de cada coisa
singular, isto é, o conjunto de suas determinações.

174
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

5 AVERRÓIS
Averróis (1126-1198) nasceu em Córdoba e faleceu no Marrocos. Além de
ser um dos mais importantes comentadores de Aristóteles, Averróis foi médico,
jurista e um grande metafísico. É difícil denominar qual de suas obras foi a mais
importante, contudo, sua obra Tratado decisivo sobre a concordância entre a filosofia e
religião foi amplamente combatida por teólogos e filósofos cristãos, bem como por
islamitas, pois nesta obra fica clara sua plena confiança ilimitada na razão, pois
acreditava que “a revelação, com efeito, produz símbolos imperfeitos que cabe à
razão decifrar” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 194).

FIGURA 4 – AVERRÓIS

FONTE: <https://www.iep.utm.edu/wp-content/media/Ibn_rushd.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2019.

A filosofia de Averróis deve ser entendida como um misto de aristotelismo


com algumas nuances platônicas. Podemos exemplificar isso a partir da
constatação de Averróis acerca da existência do mundo de modo independente de
Deus (ambos são coeternos) e de que também não existe providência divina, que
são ideias essencialmente aristotélicas. A influência de Platão é percebida na sua
concepção de que a inteligência, fora dos seres, existe como unidade impessoal.

Devemos destacar alguns pontos essenciais para entendermos o


pensamento de Averróis: a filosofia é uma busca da verdade por meio da razão;
a inteligência pode ser dividida em intelecto possível e intelecto agente; e por
último sua negação da imortalidade da alma.

Para Averróis, tanto a religião quanto a filosofia estão preocupadas em


ensinar a verdade e não deve haver desacordo grave entre ambas. Caso haja
desacordo, não é possível que haja duas verdades, mas “apenas a verdade da
razão; as verdades religiosas expostas no Corão são símbolos imperfeitos, que
devem ser interpretados e propostos à mentalidade dos simples e ignorantes,
da verdade única que a filosofia enucleia e sistematiza” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 196). Nesse sentido, a religião dos filósofos consiste na busca de um

175
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

conhecimento profundo, pois este é o melhor culto que eles podem manifestar
a Deus: conhecer profundamente a sua obra. Portanto, é tarefa da filosofia se
preocupar com investigações teóricas do fundamento das coisas, enquanto que
a tarefa da religião é preocupar-se com as ações humanas. Quanto à divisão da
inteligência, Averróis:

[...] reformula a teoria aristotélica da inteligência divina e da


inteligência humana de modo original e paradoxal: a única inteligência
ativa (agente) seria de Deus; a inteligência humana é apenas potencial
(possível), ou seja, tem necessidade de inteligência divina para passar
a potência ao ato, mas também ela é única para toda a humanidade
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 196).

O intelecto potencial ou possível é a inteligência de cada ser humano.


O intelecto potencial é assim denominado porque pode ou não se desenvolver.
Assim como dependemos da luz para ver e distinguir as cores dos objetos.

De acordo com Averróis, “Assim como a luz faz com que a cor em potência
passe a ser cor em ato, de modo que possa mover nossa vista, do mesmo modo
o intelecto agente faz com que os conceitos inteligíveis em potência passem a ser
conceitos em ato, de modo que o intelecto material os receba” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 196).

O intelecto agente não atua diretamente sobre o intelecto possível, mas


apenas sobre a imaginação ou fantasias. Portanto, os conhecimentos que são
produzidos por todos os intelectos potenciais ficam acumulados no intelecto
possível. Isso quer dizer que a inteligência humana individual é uma fantasia,
ou seja, apenas uma imaginação que é retirada do intelecto possível, e é “essa
imaginação sensível, sobre a qual atua o intelecto divino, que, sendo individual,
dá a sensação de que o conhecimento seja individual” (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 196).

6 MAIMÔNIDES
Moisés Maimônides (1135-1204) nasceu em Córdoba e morreu no Cairo,
aos 69 anos. Deixou a Espanha em decorrência da intolerância dos Almoadas. Ao
se estabelecer no Egito, comercializava pedras preciosas e dava aulas públicas até
se tornar médico da corte do sultão Saladino. Daí em diante, pôde se dedicar com
maior afinco em seus estudos.

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TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

FIGURA 5 – MAIMÔNIDES

FONTE: <https://cdn.fedweb.org/fed-70/2/maimonides-1.jpg?v=1410549405>.
Acesso em: 30 abr. 2019.

Influenciado pelas ideias de Aristóteles, o pensamento de Maimônides é


caracterizado pela sua profundidade e racionalidade. Sua obra mais importante
é o Guia dos Perplexos. A finalidade é demonstrar que “a Filosofia e a Bíblia,
na realidade, são conciliáveis” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 201). Ele estava
interessado em harmonizar as divergências entre a Filosofia e a Teologia de sua
época.

Maimônides entendia que se as coisas existem, elas existem conforme


aquilo que percebemos com nossos sentidos e, portanto, é obrigatório que exista
também um ser necessário, pois “as coisas existentes são contingentes, pois não
têm em si mesmas as razões de sua própria existência e, consequentemente,
remetem a um Ser necessário” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 201). As coisas
que existem necessitam de uma causa e esta causa é o Ser necessário ou Deus.
Portanto, Deus conhece todas as coisas, mas o conhecimento que Deus possui de
todas as coisas não quer dizer que Ele possua múltiplos conhecimentos, pois o
conhecimento de Deus não muda, muito embora as coisas estejam em constante
mudança. Nesse sentido, o conhecimento de Deus é único, pois são as coisas que
dependem do seu conhecimento e não o contrário.

Em relação ao mundo criado, Maimônides entende que este não é


necessário, mas contingente. Isso significa dizer que Deus criou o mundo por livre
vontade, pois se aderíssemos à ideia de um mundo necessário, logo negaríamos
a liberdade divina, pois Deus é a causa eficiente e final de todo o universo”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 201). A criação, portanto, é um ato livre e não um ato
necessário. Isso significa que o mundo como o conhecemos poderia ser diferente
do que é, mas ele é deste modo e possui as características que têm por causa de
uma escolha livre feita por Deus.

177
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Para concluir, gostaríamos de chamar sua atenção para o fato de que as


questões que incomodavam os filósofos medievais consistiam, basicamente, em
aproximar a fé e a razão, a teologia e a filosofia, sem que, com isso, fosse gerado
algum prejuízo para ambas. Nessa jornada pela conciliação entre esses dois
fundamentos da reflexão humana, estes pensadores atualizaram teorias antigas
e desenvolveram novas ideias, criando perspectivas para a compreensão dos
elementos comuns à teologia e à filosofia.

DICAS

Sugestão de leitura: História da Filosofia

FONTE: <https://www.paulus.com.br/loja/historia-da-filosofia-volume-2-patristica-e-
escolastica_p_1336.html>. Acesso em: 15 jul. 2019.

O livro publicado no Brasil, pela editora Paulus, é uma obra importantíssima para quem deseja
conhecer um pouco mais sobre a filosofia Patrística e Escolástica. O volume dois é uma
fonte riquíssima de informações que auxiliarão o leitor a compreender o pensamento dos
vários filósofos que deixaram sua contribuição para a humanidade. É leitura indispensável
para todos os estudantes e amantes da filosofia. Boa leitura!

7 SÃO TOMÁS DE AQUINO


São Tomás (1225-1274) nasceu em Roccasecca e faleceu na cidade de
Fossanova. Contrariando a vontade da família, Tomás entrou para a ordem dos
dominicanos. Entre os anos 1248 a 1252 foi discípulo de Alberto Magno, filósofo,
escritor, astrólogo e teólogo católico.

178
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

FIGURA 6 – TOMÁS DE AQUINO

FONTE: <https://tuporem.org.br/wp-content/uploads/2017/08/tomas-aquino.jpg>.
Acesso em: 30 abr. 2019.

Devido à amplitude de seu pensamento e das suas obras, torna-se difícil


fazer um recorte acerca de qual foi sua maior contribuição para a Teologia e a
Filosofia. Talvez a obra mais importante, embora não tenha sido concluída, seja
a Summa theologiae, que ficou inacabada devido a sua morte aos 53 anos, em 7 de
março de 1274, quando viajava para Lião.

Em relação ao pensamento e os escritos de São Tomás, Reale e Antiseri


(2003, p. 2013) destacam que “o objeto primário de suas reflexões é Deus, não o
homem ou o mundo, porque somente no contexto da revelação é que se torna
possível raciocinar sobre o homem e o mundo”. Seu método teológico iniciava
estabelecendo a relação entre o conhecimento (revelação) natural, que são os
conhecimentos produzidos pela filosofia e pelas ciências consideradas não
teológicas, e a revelação divina, que se dedicava a buscar algum conhecimento
acerca de Deus.

Por mais que São Tomás tenha zelo pela verdade em relação a Deus,
contudo, segundo ele, “Há algumas verdades que superam todo poder da razão
humana, como por exemplo, a verdade de que Deus é trino. Outras verdades
podem ser pensadas pela razão natural, como, por exemplo, as verdades de que
Deus existe, de que Deus é uno, e outras coisas mais (TOMÁS DE AQUINO apud
REALE; ANTISERI, 2003, p. 213).

Em seu contexto acadêmico, a filosofia aristotélica estava sendo


redescoberta e logo a lógica do pensador grego se tornou um paradigma da boa
lógica e, portanto, significou que não mais o platonismo, mas o aristotelismo se
tornaria o paradigma para os teólogos católicos escolásticos.

O método teológico-filosófico de Tomás de Aquino é tipicamente


escolástico. Mas no que consiste o método escolástico? Ele era organizado a partir
de leituras de textos produzidos por filósofos sobre determinada Escritura. A
leitura de tais textos tinha como finalidade provocar o debate e a partir deste

179
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

resolver problemas filosóficos. Os filósofos medievais são crentes, isto implica


em dizer que a filosofia se coloca no interior de uma religião revelada (cristã,
judaica ou islâmica). Nesse sentido, os problemas formulados são orientados
para reafirmar ou redefinir a fé religiosa, jamais para negá-la.

Os pensadores medievais buscavam na Filosofia Antiga respostas às


questões da fé religiosa. Neste sentido, a filosofia escolástica adapta a filosofia
de Aristóteles e Platão para que ela seja aceita pela religião, não como um dogma
com o mesmo grau de importância dos dogmas teológicos, mas apenas como uma
ferramenta necessária à reflexão teológica. No caso da filosofia tomista, as obras
de Aristóteles são basilares para o desenvolvimento da sua filosofia e teologia.

7.1 TOMÁS DE AQUINO E A TEORIA DO CONHECIMENTO


Tomás de Aquino desenvolveu uma teoria do conhecimento a partir da
perspectiva de que o conhecimento humano se dá em dois momentos: sensível e
intelectual. O primeiro momento (sensível) pressupõe o intelectual, pois na visão
do Aquinate:

A fim de obter um conhecimento ou saber atual, o intelecto precisa


voltar-se para as coisas sensíveis e se apropriar dos inteligíveis que
neles se contêm. Só as coisas sensíveis são imediatamente acessíveis ao
homem, não, porém as realidades espirituais, como Deus ou os anjos;
de tais realidades ele possui apenas um saber abstrativo, adquirido
com a ajuda da experiência sensível (BOEHNER; GILSON, 2012, p.
473).

No seu entendimento sem o conhecimento sensível, o conhecimento


intelectivo não é capaz de formular princípios, por exemplo, a extensão de um
objeto, “a faculdade sensitiva se encontra na origem de todo conhecimento. É
ela que torna possível a atividade superior ou espiritual” (BOEHNER; GILSON,
2012, p. 471). Mais tarde, essa teoria do conhecimento será melhor desenvolvida
por John Locke com o empirismo moderno.

O conhecimento intelectivo depende do sensitivo, mas vai além, pois no


sensitivo temos acesso ao conhecimento do objeto material na sua individualidade,
considerando propriedades como espacialidade, temporalidade etc., porém sem
a matéria que “foi usada para designar aquilo que tem a capacidade de sofrer
modificações substanciais” (CHAMPLIN, 2004, p. 248).

O conhecimento intelectivo, portanto, possui o acesso à matéria, que é o


inteligível, o universal, a essência das coisas que estão presentes implicitamente,
e que é necessário extraí-los por abstração. A abstração “consiste no seguinte: o
intelecto agente inspeciona, nas coisas materiais, aquilo que as constitui em sua
espécie própria, prescindindo daquilo que as caracteriza como individualidades”
(BOEHNER; GILSON, 2012, p. 474).

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TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

O meio pelo qual se pode chegar à verdade se dá através de um processo


em que os conhecimentos sensitivos e intelectivos cumprem um papel importante
e necessário. Essa concepção foge um pouco da ideia agostiniana que valorizava
a iluminação divina como a maneira de se chegar à verdade. Tomás de Aquino
aponta para a importância da razão e do conhecimento natural, para se chegar às
verdades filosóficas e teológicas mais profundas.

7.2 AS CINCO VIAS QUE LEVAM A DEUS


Talvez esta seja uma das contribuições mais controversas de Tomás
de Aquino à Teologia, isso porque ele tenta demonstrar pela razão simples e
natural, pois para ele, “a razão era um dos caminhos da mente até Deus, mas esse
caminho é pavimentado pela graça” (OLSON, 2001, p. 344). Tal posição se choca
diretamente com tudo aquilo que havia sido defendido pelos pensadores cristãos
antes dele, incluindo Anselmo e Abelardo.

Este pensamento de São Tomás implica aceitar que “existia um mundo


natural e um tipo de conhecimento natural que não dependem totalmente da
graça, de modo que até mesmo um não cristão, totalmente destituído de fé –
como Aristóteles – podia seguir o caminho puramente natural para conhecer
Deus” (OLSON, 2001, p. 344). Isso não significa que a razão era completamente
à parte de Deus, mas uma criatura racional é a imagem de Deus e a operação de
conhecer a Deus pelas vias da razão “por mais natural que fosse, era a imagem de
Deus nos seres humanos” (OLSON, 2001, p. 344).

Seguindo esta linha de pensamento, São Tomás acreditava que a existência


de Deus pode ser descoberta sem a necessidade de uma revelação divina ou da
fé, mas a razão sozinha, mesmo sem a graça de Deus, pode descobrir operando
apenas e exclusivamente no âmbito natural.

Na tese de que é possível provar a existência de Deus através das cinco


vias (Quinque viis) da razão, Tomás de Aquino irá empreender um esforço
sistemático no sentido de provar sua tese, partindo de uma argumentação de que
a razão humana é capaz de compreender que existe um Deus e que isso pode ser
alcançado naturalmente. Segundo Olson (2001, p. 346):

Aquino apresentou cinco maneiras de demonstrar racionalmente


a existência de Deus e todas encontram-se, de alguma forma, na
filosofia de Aristóteles. As cinco maneiras apelam às experiências que
a mente humana sofre em relação ao mundo natural e mostram que,
se Deus não existisse, as experiências não teriam sentido ou seriam
impossíveis. De fato, o que estaria sendo experimentado não existiria.
Como existem, Deus também deve existir.

Partindo desta citação, vamos discorrer de maneira sucinta acerca das


cinco vias para termos uma visão sobre seu argumento e a maneira como ele está
fundamentado.

181
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

A primeira via tem seu fundamento na constatação de que no universo


existe movimento e que tudo que se move é movido por outro, “portanto, é
necessário chegar à causa motriz que não é movida por outra, e todos entendem
que se trata de Deus” (AQUINO apud OLSON, 2001, p. 346).

Neste fragmento já é possível perceber o importante papel que a filosofia


aristotélica, do ato e potência, exerceu sobre a maneira como Aquino desenvolveu
seu raciocínio. Para São Tomás, antes do movimento, todos os seres estão em
potência e, nesse sentido, existe a possibilidade de tornarem-se diferentes. O ato
é aquilo que o ser é, a realização, enquanto a potência é aquilo que o ser poderá
se tornar. Nada daquilo que é contingente é capaz de mover-se por si só, sempre
há uma causa do movimento que é exterior ao próprio ser que está em mudança.

Se todo movimento tem um primeiro motor, logo é necessário chegar à


causa do primeiro movimento. Partindo desse entendimento, o primeiro motor
é Deus, ou seja, a causa de todo movimento que há no universo, e Ele é puro
ato, pois nunca virá a ser outra coisa que não seja Deus. Isso carrega a ideia da
necessidade de Deus para que as demais coisas se movam, sem que seja necessária
outra coisa que mova Deus.

A segunda via diz respeito à primeira causa eficiente. Todas as coisas são
efeitos de uma causa. De acordo com este raciocínio, todas as coisas necessitam de
uma causa para serem causadas. Por exemplo, uma pessoa, para nascer, necessita
de uma causa, neste caso - seus pais, pois ela é resultado da fecundação de um
espermatozoide em um óvulo, ou seja, o ser humano necessita desta causa para
vir a ser.

Essa segunda via baseia-se na ideia da necessidade para que uma potência
se transforme em ato e, assim, constatamos a obrigatoriedade de uma causa
eficiente para que as coisas existam. Nada é causa e efeito ao mesmo tempo e o
efeito sempre nos remeterá a uma causa até o infinito, mesmo sendo Deus a causa
não causada, não existe por meios racionais a concepção de que alguma coisa
tenha causado Deus.

A terceira via refere-se à necessidade e possibilidade. Sobre essa via,


vamos recorrer às próprias palavras de São Tomás (1957 apud OLSON, 2001, p.
347), pois de acordo com ele:

Encontramos na natureza coisas que têm a possibilidade de existir e de


não existir, visto que são geradas e corrompidas e, por isso, é possível
que existam e não existam. Mas é impossível que sempre existam, pois
o que pode não existir num momento, não existe. Portanto, se tudo
pode não existir, logo houve um tempo em que não existia nada. Ora,
se assim fosse, mesmo agora não existiria nada, pois o que não existe
começa a existir somente a partir de algo já existente. Se, portanto,
nada existia, seria impossível que algo viesse a existir; e, portanto,
mesmo agora nada existiria — o que é absurdo. Logo, não somente
todas as coisas existentes são meramente possíveis, mas deve existir
algo cuja existência é necessária. Mas toda coisa necessária pode ter ou

182
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

não sua necessidade causada por outra. Porém, é impossível progredir


infinitamente nas coisas necessárias que têm sua necessidade causada
por outra, conforme já foi provado em relação às causas eficientes.
Não podemos, portanto, deixar de reconhecer a existência de algum
ser que tem sua própria necessidade e que não a recebe de outro, mas
que, pelo contrário, causa nos outros a necessidade que têm. A tudo
isso o homem chama de Deus.

Seu argumento demonstra que, para que alguma coisa exista, é necessário
um princípio. Esse método aponta para a necessidade da existência de algo que
antes dele nada existiu, ou seja, uma causa não causada, um princípio não criado,
um ser autoexistente. Essa via procura a essência dos seres do universo, e aquilo
que deve ser o ponto de partida para virem a existir.

A quarta via diz respeito aos graus de perfeição do ser. São Tomás (apud
OLSON, 2001, p. 346), entende que “deve haver [...] algo que seja, para todos os
seres, a causa da existência, virtude e qualquer outra perfeição; e a ela chamamos
Deus”. Essa via pode ser considerada de índole platônica, pois podemos observar
que em todas as coisas há graus hierárquicos, e consequentemente esses níveis
de hierarquia e perfeição irão culminar na necessidade de um ser que está acima
de todas as coisas e é perfeitíssimo. Se há perfeição no mundo, é porque alguém
perfeito criou todas as formas de requintes.

Todas as coisas que há no universo estão classificadas em ordem pelo


grau de beleza e nobreza que possuem, à medida que uma coisa for mais nobre
e bela concluímos que ela se aproxima de algo mais nobre e belo do que ela,
todavia, toda perfeição reside em Deus.

A quinta e última via diz respeito ao fato de que todas as coisas convergem
para um fim, pois segundo Aquino (apud OLSON, 2001, p. 346), “existe algum ser
inteligente, por quem todas as coisas naturais são dirigidas para um fim; e esse ser
chamamos Deus”. Essa via nos leva a pensar na ordem existente no cosmos, pois
o que existe no universo segue uma ordem de funcionamento e, de acordo com o
pensamento de Aquino, esta ordem converge para um fim estabelecido por Deus, e
este fim último para o qual convergem todas as coisas criadas é Deus. É necessária
uma inteligência que tenha projetado todas as coisas, pois assim como uma lança
só chega ao seu destino se alguém a lançar, logo concluímos que todas as coisas
acontecem no universo porque alguém estabeleceu um fim para o qual ela existe.

Se você observar, o argumento de São Tomás de Aquino é uma releitura


daqueles argumentos que foram desenvolvidos por filósofos e teólogos ao longo
da História. Seu empenho em sintetizar e unificar o pensamento teológico e
filosófico que havia sido produzido até ali, com a finalidade de explicar a fé cristã,
foi um empreendimento sem precedentes na história, pois ele tentou responder
à luz da teologia e da filosofia as mais diversas e profundas questões sobre Deus,
a alma etc.

183
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

8 BOAVENTURA
Boaventura (1221-1274) nasceu em Civita, atualmente distrito de
Bagnoregio, e morreu em Lyon. Estudou filosofia na Universidade de Paris e
tornou-se um grande amigo de Tomás de Aquino. Vale ressaltar que foi graças
a Boaventura que o escolasticismo tradicional teve continuidade, pois tratou de
conservar as ideias gerais do movimento. É considerado um dos autores que mais
produziu na Idade Média, pois sua produção literária reúne 65 obras.

FIGURA 7 – SÃO BOAVENTURA

FONTE: <https://recursos.cultordelivros.com.br/MediaCenter/S%C3%A3o-Boaventura.png>.
Acesso em: 30 abr. 2019.

No entendimento de Boaventura, a filosofia e a razão formam uma etapa


no caminho que conduz a alma a Deus. A fé, por sua vez, leva à razão, que leva à
contemplação. Deste modo, devemos partir do sensível para transcendê-lo, pois
o sensível é apenas um sinal de Deus, e não ele próprio. Nesse sentido:

Uma vez que tudo fala de Deus, o filósofo não tem necessidade de
provar sua existência, e sim sua presença no mundo, e sobretudo em
nossa alma (o homem é imagem de Deus). Por meio deste contato
particular com o divino, a alma goza de certa autonomia em relação
ao corpo e existe por si. Por conseguinte, tanto a alma como o corpo
são compostos de matéria e forma (REALE; ANTISERI, 2003, p. 255).

Aqui nós temos uma síntese de sua ideia acerca de que todas as coisas falam
e apontam para Deus. A fé, portanto, deve conduzir a razão para a contemplação,
para que esta se dê conta da existência de Deus e, não apenas isso, mas que a alma
experimente a alegria divina que está para além dos prazeres físicos.

O que chama atenção nas obras de Boaventura é sua posição contra o


aristotelismo averroísta. Devemos lembrar que o averroísmo apresentava
alguns problemas que foram combatidos por São Tomás. Os problemas como a

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TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

eternidade da matéria colocavam-na ao mesmo nível da eternidade de Deus, bem


como a ausência da imortalidade do homem e a doutrina da dupla verdade que
estava implícita em seu conjunto de doutrinas.

Para Boaventura, o saber filosófico, por mais sublime e elevado que seja,
“é fonte de erros se detém o olhar em si mesmo e não o dirige para saber mais
alto, teológico e místico” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 256). Nas palavras de
Boaventura:

Ainda que o homem tenha o conhecimento da natureza e da


metafísica, que se eleve até as substâncias mais altas, e admitamos
que, aí chegando, o homem se detenha: é impossível ele não cair em
erro se não for ajudado pela luz da fé e não crer que Deus é uno e
trino, poderosíssimo e ótimo ao extremo na bondade [...]. Foi por isso
que essa ciência precipitou e obscureceu os filósofos (pagãos), já que
eles não possuíam a luz da fé [...]. A ciência filosófica é o caminho
para outras ciências, mas quem quer se deter nela cai em trevas
(BOAVENTURA apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 254).

Isso não significa que Boaventura esteja se posicionando terminantemente


contra filosofia em geral. Sua crítica é direcionada exclusiva a um tipo de filosofia
que é “incapaz de captar a tensão entre o finito e o infinito, entre o homem e
Deus, na concretude do nosso ser, tendencialmente orientado para a salvação,
mas continuamente exposto ao mal” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 255).

De acordo com Reale e Antiseri (2003, p. 257), “A ciência filosófica que


Boaventura busca e, a seu modo, elabora é [sic], portanto, ‘caminho para outras
ciências’, constituídas pela teologia e pela mística, da qual a filosofia, precisamente,
é prólogo e instrumento”. Ele não era contrário à filosofia, nem mesmo à filosofia
aristotélica, muito embora demonstre preferência pela filosofia agostiniana que
se fundamenta no platonismo. A filosofia em Boaventura consistia apenas na
primeira parte do caminho para o verdadeiro conhecimento e para a verdade,
que deveria perpassar pela teologia e pela mística. Isso significa que para ele
não há conhecimento verdadeiro somente na filosofia, ela é unicamente o início
do caminho e não o caminho completo. Segundo Boaventura (apud BOEHNER;
GILSON, 2012, p. 423):

Platão é justamente censurado por Aristóteles por haver limitado todo


conhecimento certo ao mundo espiritual ou ideal; não certamente por
haver afirmado a existência de Ideias ou razões eternas - pois nisso
é louvado por Agostinho -, mas por ter desprezado o mundo dos
sentidos, e por ter querido coarctar toda certeza àquelas Ideias. Com
tal afirmação quis assegurar aparentemente o caminho da sabedoria
traçado segundo as razões eternas, mas ao mesmo tempo obstruiu o
caminho da ciência que leva pelas razões criadas. Este é o caminho
assegurado por Aristóteles, que, porém, desprezou aqueloutro [sic].
E assim parece que, entre os filósofos, Platão recebeu a palavra da
sabedoria, e Aristóteles a da ciência. Aquele considerou de preferência
as coisas superiores, e este as inferiores. Ambas as palavras, porém,
a da sabedoria e da ciência, foram outorgadas pelo Espírito Santo a
Agostinho.

185
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

O que Boaventura combate é o aristotelismo em sua versão averroísta,


pois esta versão consistia em uma ameaça deletéria ao pensamento cristão. Nesse
sentido, ele se empenhou intensamente para renovar as ideias cristãs a partir da
teologia e filosofia platônica agostiniana.

A filosofia platônica agostiniana se caracterizava por apontar para o anseio


do homem e das coisas criadas por Deus. Deste modo, o que Boaventura busca
na filosofia é uma que seja capaz de alimentar sua religiosidade. Por este motivo,
ele aponta a diferença entre o platonismo (palavra da sabedoria) e a aristotélica
(palavra da ciência). Enquanto a primeira aponta para a contemplação ou união
mística com Deus, a segunda (aristotélica) está fechada em si mesma, afastando-
se da verdade quando nega a doutrina das ideias de Platão e assume um caráter
essencialmente materialista.

A finalidade de apresentar esses dois pensadores é mostrar que ambos


estavam dispostos a desenvolver um argumento teológico que provasse a
existência de Deus e a importância da religião cristã. Tomás de Aquino optou
por trilhar o caminho da filosofia aristotélica para fundamentar seu argumento,
por outro lado, Boaventura, mesmo não negando completamente o aristotelismo,
optou pela filosofia platônica agostiniana para reforçar a importância da fé cristã.

DICAS

Sugestão de leitura: História da Filosofia Cristã

FONTE: <http://twixar.me/06h1>. Acesso em: 15 jul. 2012.

Esta obra trata-se de um manual em que se delineiam as figuras mais representativas e a


evolução da filosofia cristã desde Orígenes até o final da Idade Média. Boehner e Gilson (2012)
empreenderam um grande esforço, no sentido de escrever uma História de Filosofia Cristã,
que trouxesse aos leitores informações extraídas diretamente da fonte. Esta obra possui um
valor inestimável para aqueles que desejam saber e compreender um pouco mais da filosofia
medieval.

186
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

LEITURA COMPLEMENTAR

DEUS É IMÓVEL

Tomás de Aquino

Daqui se infere ser necessário que o Deus que põe em movimento todas
as coisas é imóvel. Com efeito, por ser a primeira causa motora, se Ele mesmo
fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou por outro. Ora, Deus não pode ser
posto em movimento por outra causa motora, pois neste caso haveria uma outra
causa anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira causa motora. Se fosse
movido por si mesmo, teoricamente isto poderia ocorrer de duas maneiras: ou
sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causa e efeito ao mesmo tempo, ou sendo Ele,
sob um aspecto, causa de si mesmo, e, sob outro, efeito.

Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois tudo o que é movido
está em potência, ao passo que o que move está em ato (na qualidade de causa
motora). Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa e efeito ao mesmo tempo,
seria necessariamente potência e ato sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, o
que é impossível.

Tampouco pode-se verificar a segunda hipótese que foi apontada. Pois, se


Deus fosse sob um aspecto causa motora, e sob outro efeito movido, já não seria
a primeira causa em virtude de si mesmo. Ora o que é por si mesmo, é anterior
ao que não o é. Logo, é necessário que a primeira causa motora seja totalmente
imóvel.

A mesma argumentação pode ser feita a partir das causas motoras e dos
defeitos existentes no universo criado. Com efeito, parece que todo o movimento
procede de uma causa imóvel, a qual não é movida segundo o mesmo tipo de
movimento. Assim, observamos que os processos de alteração, de geração e
de corrupção verificados no reino criado inferior se reduzem ao corpo celeste
(o Sol) como a sua primeira causa motora, a qual, por sua vez, não é movida
por nenhuma outra situada dentro da mesma esfera, uma vez que não pode ser
gerada, nem corrompida, nem alterada. Conclui-se, portanto, necessariamente
que Aquele que constitui o princípio primário de todo movimento é totalmente
imóvel.

FONTE: São Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia, Col. Os pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1973, p. 78. In.: ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. Filosofando: Introdução à Filosofia. 2.
ed. São Paulo: Moderna, 1993.

187
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

BOAVENTURA E TOMÁS: “UMA” FÉ E “DUAS” FILOSOFIAS

Reale e Antiseri

É a partir de Cristo que Boaventura olha e lê a história do homem e do


universo inteiro. A filosofia de Boaventura, portanto, é filosofia cristã. Boaventura
é um cristão-que-filosofa e não um filósofo-que-é-também-cristão.

Ele é um místico. Olha o mundo com os olhos da fé. A razão é instrumentum


fidei: a razão lê aquilo que a fé ilumina, é a gramática escrita com o alfabeto da
fé. Por isso, pode-se compreender perfeitamente porque as filosofias de São
Boaventura e de Santo Tomás, de certa forma, são incomensuráveis, para usar
uma expressão da epistemologia contemporânea.

Naturalmente, há pontos em comum, pois trata-se de dois filósofos


cristãos. E toda ameaça contra a fé os encontra unidos. Mas essa concordância se
dá a propósitos das linhas, não da forma. Os dados são os mesmos, mas vistos
sob luz diferente.

Em 1879, Leão XIII de Tomás e Boaventura como de duae olivae et duo


candelabra in domo Dei lucentia. Mas o que se deve destacar logo, é que os dois
candelabros iluminam as coisas de modo diferente. Na realidade, a concordância
não é identidade. Está claro que as duas doutrinas foram elaboradas com base em
duas preocupações diferentes, nunca vendo os mesmos problemas sob o mesmo
aspecto. Trata-se de duas filosofias complementares: a fé em Deus é única, mas as
tentativas humanas de nos situar na fé e pela fé são múltiplas.

Em suma, podemos dizer que a fé é libertadora, permitindo-nos e impondo-nos


que sejamos despreconceituosos, ao passo que todas as tentativas humanas são relativas
(ao tempo, ao espaço, à cultura da época, aos instrumentos disponíveis e assim
por diante).

FONTE: REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: da patrística e escolástica. São Paulo:
Paulus, 2003, p. 261.

A SAGA DA RAINHA DAS CIÊNCIAS:


OS ESCOLÁSTICOS REAVIVAM E ENTRONIZAM A TEOLOGIA

Roger Olson

Depois de longa seca na criatividade da teologia cristã, começou um novo


florescimento de reflexão intelectual a respeito de Deus e da salvação no Ocidente
no século XI. A teologia escolástica, como é normalmente chamado o renascimento
do pensamento, brotou das grandes ordens monásticas reformadoras fundadas
na Europa e floresceu nas novas universidades, como a de Paris e a de Oxford. As
188
TÓPICO 1 | PENSAMENTO DE ANSELMO, ABELARDO, AVICENA, AVERRÓIS, MAIMÔNIDES, TOMÁS DE AQUINO E BOAVENTURA

universidades eram, de início, simplesmente grupos de estudiosos independentes


que ingressavam nas escolas das grandes catedrais e mosteiros. Alguns eram
monges, mas boa parte dos estudiosos da Era Medieval era formada por leigos
que tinham recebido educação clássica nas escolas das catedrais ou nos mosteiros
sem nunca, entretanto, fazer os votos ou ser ordenados. No entanto, esperava-se
que vivessem como sacerdotes e monges. O celibato, assim como a castidade, a
pobreza e a obediência à Igreja, eram normas até mesmo para eles. Gradualmente,
porém, homens de bom nível cultural, de sabedoria e com boa capacidade didática
formaram associações para seu sustento e se estabeleceram em lugares próximos
para atender aos alunos e se desenvolverem culturalmente. Esses grupos de
estudiosos e alunos desenvolveram-se até formarem as universidades da Europa
medieval.

Com as escolas de catedrais e os mosteiros surgiu um novo tipo de


teologia, conhecido como escolasticismo. Seus intelectuais e mestres são chamados
Escolásticos. O próprio termo é derivado da palavra latina schola (escola).
Naturalmente, é a mesma palavra que dá origem a escolástico e escolado. Mas o
escolasticismo propriamente dito designa uma abordagem específica da teologia
cristã que passou paulatinamente a dominar o Ocidente, de 1100 ao seu declínio
nos séculos XIV e XV. Os historiadores da igreja e os teólogos históricos não são
unânimes a respeito da definição exata do escolasticismo e nem sequer de suas
características universais. Mas, na ideia geral, eles são mais categóricos. A maioria
concordaria em dizer que “o escolasticismo foi basicamente o movimento que
procurou demonstrar metodologicamente e filosoficamente que a teologia cristã
é essencialmente racional e coerente” no contexto da Europa medieval. Conforme
já vimos, a racionalidade era um ideal de muitos pais da igreja. Agostinho, sem
dúvida, pensava dessa forma e esforçou-se para apresentar em seus escritos uma
explicação consistente e racional da fé cristã. A teologia escolástica medieval, no
entanto, deu nova dimensão à preocupação com a racionalidade na teologia.

Para muitos teólogos e filósofos escolásticos medievais, o raciocínio


humano podia, com a ajuda da graça de Deus, descobrir as respostas para
virtualmente todas as perguntas de real importância que se podia imaginar. Sua
epistemologia (teoria do conhecimento humano) era otimista. Alguns críticos
diriam que era demasiadamente idealista e que, sutilmente, colocava o intelecto no
centro de toda a reflexão teológica, de tal forma que a fé, o mistério e até mesmo a
revelação divina acabavam ficando de lado ou eram subjugados pela lógica e pela
especulação. Essa crítica não se aplica a todos os escolásticos. Alguns procuraram
usar a razão para criticar ela mesma e para demonstrar que a revelação e a fé
são necessárias para entendermos Deus, o mundo e a salvação plenamente. No
entanto, como generalização, é verdade que “no auge do escolasticismo, quase
tudo era considerado acessível à cognição e classificação humanas”. Todos os
grandes pensadores escolásticos concordavam que a razão humana só pode
funcionar com perfeição dentro do âmbito da fé e tendo por alicerce a revelação
divina nas Escrituras e na tradição da Igreja. Porém, de formas diferentes, tentaram
edificar grandes “catedrais de ideias” - edifícios arquitetônicos de proposições a
respeito de Deus, do mundo e da salvação - que ocupassem lugar de destaque nos

189
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

currículos das universidades medievais. A teologia deveria ser entronizada como


a Rainha das ciências para que todas as disciplinas (scientia) das universidades
fossem guiadas ou mesmo determinadas por ela.

[...]

Os escolásticos medievais também tinham essa preocupação. Uma de suas


grandes preocupações na teologia filosófica era encontrar uma forma de conceber
as proposições universais de modo cristão. O que é a verdade, a beleza e a
bondade? Como o cristão deve considerar essas proposições universais? A beleza
realmente está apenas nos olhos do observador? Ou é uma norma verdadeira de
alguma coisa fora da mente humana? Ou será apenas um nome (termo) que os
seres humanos atribuem às coisas que lhes são agradáveis? O que se pode dizer da
verdade? Existe alguma norma genuína para a verdade ou ela também é relativa?
As mesmas perguntas podem ser postuladas no tocante à bondade. Todas essas
perguntas são cruciais para a filosofia e, portanto, para a teologia segundo os
escolásticos, que se recusavam a dividir e separar as duas disciplinas. Mas eles
não conseguiram entrar em acordo sobre a delicada e controvertida questão da
natureza das proposições universais, e esse desacordo acabou contribuindo para
a derrocada do escolasticismo como método dominante de reflexão teológica.

FONTE: OLSON, R. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo:
Editora Vida, 2001. p. 318-320.

190
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• Com Anselmo, a filosofia passa a tomar novos rumos, pois ele “representa a
síntese clássica da teologia e da dialética” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 254).

• O argumento ontológico de Anselmo perpassa pela compreensão de dois


conceitos fundamentais em sua teoria: realidade e necessidade, ou seja, Deus é
a realidade necessária.

• Diante das linhas tradicionais de ensino, Abelardo recorreu à lógica como um


instrumento necessário ao fazer teológico.

• Em sua obra Teologia Cristã, Abelardo estava disposto a superar a ideia de


incompatibilidade entre a verdade cristã e a verdade da filosofia.

• O que podemos e devemos destacar no pensamento de Avicena é a distinção


que o filósofo faz entre o ente e a essência.

• A filosofia de Averróis deve ser entendida como um misto de aristotelismo


com algumas nuances platônicas.

• Para Averróis, tanto a religião quanto a filosofia estão preocupadas em ensinar


a verdade, e não deve haver desacordo grave entre ambas.

• Maimônides estava interessado em harmonizar as divergências entre a filosofia


e a teologia de sua época.

• O método teológico-filosófico de Tomás de Aquino é tipicamente escolástico.

• Tomás de Aquino desenvolveu uma teoria do conhecimento a partir da


perspectiva de que o conhecimento humano se dá em dois momentos: sensível
e intelectual.

• Na tese de que é possível provar a existência de Deus através das cinco vias
(Quinque viis) da razão, Tomás de Aquino irá empreender um esforço sistemático
no sentido de provar a existência de Deus, partindo de uma argumentação de
que a razão humana é capaz de compreender que existe um Deus e que isso
pode ser alcançado naturalmente.

191
• No entendimento de Boaventura, a filosofia e a razão formam uma etapa no
caminho que conduz a alma a Deus. A fé, por sua vez, leva à razão, que leva à
contemplação.

• Para Boaventura o saber filosófico, por mais sublime e elevado que seja, “é
fonte de erros se detém o olhar em si mesmo e não o dirige para saber mais alto,
teológico e místico” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 256).

192
AUTOATIVIDADE

1 Apesar da amplitude do pensamento de Tomás de Aquino é possível


perceber algumas características de seu pensamento e das suas obras, que
são peculiares e originais. Sobre as principais características do pensamento
de São Tomás de Aquino, assinale V para as sentenças verdadeiras e F para
as falsas.

( ) Deus era o objeto primário das pesquisas de Aquino.


( ) O escolasticismo é o método teológico-filosófico adotado por Aquino.
( ) A base teórica do pensamento de São Tomás é a filosofia platônica, pois
ele refundou o neoplatonismo.
( ) Para Tomás de Aquino, o conhecimento se dá em dois momentos: o
sensível e o intelectual.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) V – V – F – V.
b) ( ) F – V – V – F.
c) ( ) V – F – V – F.
d) ( ) F – F – V – V.

2 Boaventura foi um dos pensadores escolásticos que mais produziu durante


a Idade Média. Partindo desta afirmação, qual é o tema central de suas
reflexões?

3 Anselmo dedicou-se profundamente em elaborar um argumento que fosse


capaz de provar a existência de Deus. Com isso em mente, ele lança mão
da lógica aristotélica para fundamentar sua defesa. Sobre isso, analise as
sentenças a seguir.

I- Anselmo entendia que a fé e a razão são dependentes uma da outra.


II- Com a finalidade de fortalecer a fé, Anselmo coloca da lógica a serviço da
revelação divina.
III- O racionalismo de Anselmo excluiu a fé no estudo da teologia, pois
entendia que a lógica era suficiente.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
b) ( ) Apenas a sentença I está correta.
c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
d) ( ) Todas as sentenças estão corretas.

4 A filosofia desenvolvida por Avicena foi uma tentativa importante de


desenvolver um sistema coerente e abrangente, que não apenas contemplasse
os anseios da razão, mas que fosse capaz de estar em consonância com

193
as exigências de caráter religioso da cultura muçulmana. Nesse sentido,
analise as sentenças a seguir sobre as principais características da filosofia
de Avicena.

I- Para Avicena, os universais são entidades metafísicas subsistentes.


II- Avicena faz distinção entre o ente e a essência por acreditar que o ente é
concreto e a essência refere-se ao que é abstrato.
III- Segundo Avicena, Deus é um ser necessário, enquanto todas as demais
coisas são contingentes.
IV- Avicena recorreu a Aristóteles para demonstrar que a filosofia e a Bíblia
são conciliáveis.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
b) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas.
c) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.
d) ( ) Todas as sentenças estão corretas.

194
UNIDADE 3
TÓPICO 2

DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART,


GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE
CUSA

1 INTRODUÇÃO
No último quarto do século XIII, a atividade intelectual continua intensa,
pois apesar de importantes nomes da escolástica terem morrido, os escritos
aristotélicos encontram-se nas mãos de outros estudiosos, que no mesmo
entusiasmo dos primeiros escolásticos estavam dispostos a dar continuidade ao
empreendimento iniciado por seus influenciadores.

Neste tópico iremos discorrer acerca de três grandes nomes deste novo
momento da filosofia escolástica, a saber: João Duns Escoto, Mestre Eckhart e
Guilherme de Ockham.

O que se percebe no decorrer da escolástica é que as preocupações


filosóficas vão ganhando novos contornos na medida em que o tempo passa.
Surgem novos questionamentos e novos paradigmas que reascendem velhos
debates em um novo momento histórico. O que se percebe é que não é possível
lidar com novos problemas sem atualizar o discurso teológico e filosófico.

No período em que viveram esses dois pensadores, já se experimentava


um avanço significativo no debate filosófico, pois as obras de Aristóteles, por
exemplo, já estavam disponíveis a todos os estudiosos, além dos exaustivos
comentários sobre o conteúdo de sua filosofia.

Nesse sentido, o trabalho de Escoto e Eckhart vai dar início às discussões


de novas e decisivas ideias no interior das discussões filosóficas.

Convidamos você a dar mais um passo neste magnífico momento da


filosofia escolástica!

2 DUNS ESCOTO
João Duns Scotus (1266-1308) nasceu na cidade de Duns, no condado
de Rosburgh, na Escócia, e morreu em Colônia, na Alemanha. Sua capacidade
intelectual fez dele um grande teólogo e filósofo capaz de fundir a tradição da
Universidade de Oxford com a de Paris. Pela profundidade de suas obras e
capacidade lógica, ele foi chamado de Doctor Subtilis, ou seja, Doutor Sutil.

195
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

FIGURA 8 – DUNS ESCOTO

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/ce/JohnDunsScotus_-_
full.jpg/250px-JohnDunsScotus_-_full.jpg>. Acesso em: 30 abr. 2019.

Devido ao seu curto período de vida, pois morreu com apenas 42 anos,
deixou algumas obras importantes, tais como: Opus Oxioniense (Obra de Oxford),
Quaestiones de Metaphysica (Questões de Metafísica) e De Primo Princípio (Do
Primeiro Princípio). De acordo com Gilson (2012, p. 488), “Duns Escoto se mostra
extremamente exigente em matéria de demonstração”. Seu amor à verdade faz com
que ele renuncie qualquer asserção que não pode ser logicamente demonstrável.

Duns Escoto faz clara distinção entre a teologia e filosofia, pois, para ele,
o cerne das disputas entre elas era decorrente da ausência de uma “delimitação
rigorosa dos âmbitos de pesquisa” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 278). Se por
um lado a filosofia se ocupa em refletir sobre o ente e “tudo aquilo que a ele é
redutível”, a teologia se propõe a tratar “dos objetos da fé” (REALE; ANTISERI,
2003, p. 278).

O problema apontado por Escoto é que os aristotélicos avicenistas e


averistas tentavam com seus argumentos subordinar a teologia à filosofia. No
outro extremo estavam os agostinianos que tentavam sufocar a filosofia com a
teologia. Em relação aos escolásticos, Escoto aponta que estes tentaram de todas
as maneiras encontrar uma concordância entre a razão e a fé. Diante disso, ele
propõe uma distinção rigorosa entre a filosofia e a teologia a partir dos métodos
e objetos de cada uma dessas áreas do conhecimento humano. Segundo Reale e
Antiseri (2003, p. 279):

Para evitar equívocos, Escoto propõe submeter à análise todos os


conceitos complexos para reduzi-los a conceitos simples, e para isso
elabora uma doutrina da distinção. Há pelo menos três tipos de
distinção: a real (por exemplo: Sócrates é diferente de Platão); a formal
(por exemplo: entre Inteligência e vontade); a modal (conforme graus
de intensidade). A estas acrescente a distinção de razão (lógica), que se
refere ao âmbito mental e não ao real.

196
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA

Para ele, os conceitos complexos são cheios de ambiguidades, mas ao


analisar os conceitos complexos com a finalidade de encontrar os conceitos
simples é a forma encontrada para evitar as confusões que são comuns tanto na
filosofia quanto na teologia.

Nesse sentido, “Aquilo que existe e sobre o que meditamos é complexo.


A função do filósofo é contribuir para dissipar tal complexidade, antes de mais
nada, ajudando a pôr em ordem e ver claro na selva de nossos conceitos” (REALE;
ANTISERI, 2003, p. 280). O papel do filósofo é adentrar o caminho do conhecimento
com uma lamparina com a finalidade de iluminar o caminho para aqueles que o
seguem. O filósofo não é a luz, mas é apenas aquele que a carrega. A finalidade,
portanto, do trabalho filosófico é tornar claro aquilo que se apresenta obscuro.

No entendimento de Tomás de Aquino, os conceitos simples são aqueles


que não estão passíveis de interpretação, que podem gerar confusões, mas se tratam
de conceitos que “só é possível negar ou afirmar, mas não ambas as coisas juntas”
(REALE; ANTISERI, 2005, p. 280), ou seja, independentemente do ângulo que os
conceitos simples sejam analisados, a resposta será apenas a negação ou a afirmação.

Diante disso, Escoto desenvolve sua doutrina da univocidade, que consiste


numa tentativa de evitar a confusão entre os conceitos filosóficos. Com isso, ele
estava rejeitando a doutrina tomista acerca de uma distinção real entre essência e
existência. Para Escoto, não podemos conceber o que é ser algo sem conceber este
algo existindo realmente.

NOTA

Univocidade: Para o Tomismo, o conceito de ser é analógico, enquanto para


Duns Escoto é unívoco: isto significa que ele é predicável da mesma forma de tudo aquilo
que existe.

FONTE: Adaptado de Reale e Antiseri (2003).

De acordo com Boehner e Gilson (2012, p. 499-500):

Muitos equívocos teriam sido evitados se a doutrina de Duns Escoto


sobre a univocidade do ser tivesse sido exposta em terminologia
correta. Ser é um termo, um conceito, que é predicável de toda a
realidade ou de todo ente. O termo é unívoco; não o são, porém, as
coisas. É um conceito real e não lógico, visto ser predicado, não de
conceitos, mas de coisas; é um conceito enunciado in quid (a modo de
uma essência) e não in quale (a modo de uma propriedade) de cada coisa,
porquanto designa as coisas como tais, e não em suas propriedades.
Segundo Duns Escoto, este conceito real e absoluto do ser é unívoco,
por designar todo ente como tal, sem qualquer determinação ulterior.

197
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Para Escoto, dentre todos os conceitos unívocos, o conceito primeiro e


mais simples é o de “ente”. Tal simplicidade se deve ao fato de que pode ser
dito de tudo aquilo que existe de algum modo. Deste modo, o conceito de ente
pode ser fixado prescindindo dos modos específicos em que eles efetivamente
se concretizam. Diante disso, temos o conceito unívoco do ente, que é universal
porque é aplicável a tudo aquilo que existe de maneira unívoca. O resultado disso
é que este conceito se aplica tanto a Deus quanto ao homem porque ambos existem.
Mas qual seria então a diferença entre Deus e o homem? A diferença entre eles
não reside no fato de que o primeiro exista e o segundo não, mas simplesmente
no fato de que o primeiro existe de modo infinito e o segundo de modo finito.
Portanto, deixando-se de lado os modos de ser, logo, o conceito de ente aplica-se
a ambos da mesma forma.

Esta doutrina de Duns Escoto sofreu duras críticas, pois segundo seus
adversários acadêmicos, “o ser não é concebível independentemente das suas
determinações modais de finidade e infinidade, de necessidade ou contingência,
etc.” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 500). Contra isso, Escoto argumenta que
independentemente de seu saber se algo é finito ou infinito, “o que eu sei é que
este algo é um ser, ou seja, tenho um conceito mais simples que o ser finito e o ser
infinito, e anterior a eles” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 500).

DICAS

Sugestão de filme: Blessed Duns Scotus

A produção cinematográfica conta a história de um


frei franciscano que ofereceu a explicação teológica da
Imaculada Conceição de Maria. O beato interpretado por
Adriano Braidotti narra a vida e os ensinamentos dos bem-
aventurados nos anos entre 1303 e 1305. Com a direção de
Fernando Muraca, o filme também oferece um breve olhar
sobre a infância do homem e sua vontade de ingressar na
Ordem Franciscana desde a infância.

FONTE:<https://www.youtube.com/watch?v=2QMHFwiSLag>. FONTE: <http://twixar.me/P2h1>.


Acesso em: 4 jul. 2019. Acesso em: 17 jul. 2019.

3 MESTRE ECKHART: O MÍSTICO


Eckhart de Hochheim (1260-1328) nasceu em Tambach (Turíngia) e faleceu
na Colônia. Entrou para a ordem dos dominicanos muito jovem e, aos 17 anos,
foi a Paris estudar Artes, que na época incluía lógica, gramática, retórica, música,
astrologia, geometria e aritmética.

198
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA

O conteúdo de uma obra filosófica requer, por parte do pesquisador, um


grande cuidado para evitar interpretações equivocadas em relação àquilo que o
autor pretende expor. Na história da filosofia e da teologia, não foram raras as
vezes que porções de uma obra foram tiradas de seu contexto e interpretadas ao
bel prazer de quem as lê.

O Mestre Eckhart foi alvo desse tipo de incoerência hermenêutica. Suas


obras são de uma profundidade impressionante, sendo necessário um excepcional
cuidado na hora da leitura. Infelizmente, este pensador foi equivocadamente
acusado de ser herege devido a uma leitura descontextualizada que fizeram das
suas obras.

Diante disso, nossa intenção aqui não será fazer qualquer interpretação de
seus escritos, mas apresentar resumidamente suas ideias principais. Sugerimos
ao acadêmico interessado em aprofundar seus conhecimentos sobre as temáticas
abordadas por este pensador, a buscar em literaturas especializadas, um maior
aprofundamento acerca daquilo que tenha lhe chamado a atenção.

FIGURA 9 – MESTRE ECKHART

FONTE: <https://www.escritas.org/pt/estante/mestre-eckhart>. Acesso em: 30 abr. 2019.

Um detalhe importante da biografia do Mestre Eckhart é que, em 1326, tem


início um processo inquisitorial contra Eckhart, por supostas doutrinas heréticas. A
partir desta acusação, foi designada uma comissão, que selecionou 120 proposições
dele, tiradas do livro Da Divina Consolação, das obras latinas e dos sermões em
alemão. Diante disso, ele protesta veementemente contra esse método de selecionar
frases dentro de uma imensa obra, tirando-as do contexto em que foram escritas e
atribuir-lhes um significado que não faz sentido fora de seu contexto.

De acordo com Reale e Antiseri (2003, p. 327), o pensamento de Eckhart


“está centrado na ideia de unidade entre Deus e o homem, entre o sobrenatural e o
natural. Sem Deus, o homem e o mundo natural não teriam nenhum sentido e nada
seriam”. Nesse sentido, a tentativa “principal de Eckhart era explicar os mistérios
da deidade e a relação entre o criador e os indivíduos” (CHAMPLIN, 2004, p. 252).
199
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

O que Eckhart procura esclarecer em sua teodiceia é que Deus transcende


sobre todo ser criado, pois, segundo ele, “se o ser convém às criaturas, ele não
está em Deus senão como na causa: por isso, em Deus não está o ser, e sim a
pureza do ser” (ECKHART apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 327). Deus não é
um ser enquanto criatura, mas é o criador e é por ele que todas as coisas existem.

Segundo Eckhart, todas as criaturas dependem de Deus, pois sua


existência se deve exclusivamente a Ele. Embora sua terminologia possa sugerir
certa crença teísta, contudo o que parece que ele esteja enfatizando é a unicidade
entre criatura e Criador, “Deus está em todas as criaturas, pois elas têm uma
essência e nem por isso deixa de estar acima delas. E Ele, que está em todas as
criaturas, é o mesmo que está acima delas, pois aquilo que é uno em muitas
coisas deve estar necessariamente acima das coisas” (ECKHART apud REALE;
ANTISERI, 2003, p. 328).

Entretanto, é necessário atentar para a afirmação de que o Criador está


acima das criaturas. Isso implica que “em consequência disso, a criatura, enquanto
ser, é totalmente exterior a Deus; por outras palavras, Deus está isento de todo
ser criado, ou, o que vem a ser o mesmo, Deus está isento do ser” (BOEHNER;
GILSON, 2012, p. 523). O ser, portanto, pode ser conhecido, mas Deus é indizível.
Ao afirmar que Deus está acima do ser, Eckhart diz que “com isto não lhe tirei o
ser; ao contrário, eu o enobreci” (ECKHART apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 328).

Tais afirmações nos levam a concluir necessariamente, a partir da visão de


Eckhart, que tudo aquilo que existe, somente existe por obra de um Ser Divino. Se
as criaturas sem o Criador não são nada, “essa é a razão pela qual o homem deve voltar
para Deus: somente retornando para Deus é que o homem encontrará a si mesmo”
(REALE; ANTISERI, 2003, p. 328, grifo dos autores).

Nesse sentido, a razão “deve ser capturada por Deus e se aprofundar


nele” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 328). A razão humana deve ser capturada por
Deus para que nos voltemos efetivamente para Ele. Nesse sentido, Eckhart faz
distinção entre a razão superior e a razão inferior. A razão inferior se volta para
este mundo e para o corpo, pois é por meio dela que o homem exerce a virtude e
aprecia a arte. A razão superior volta-se diretamente para Deus, pois “o ápice ou
a parte mais profunda da razão superior, porém, é a centelha da alma [...], em que
convergem as três potências mais nobres da alma, a razão, a vontade e a memória,
para formar o ponto de contato com a divindade” (GILSON, 2012, p. 527).

A retidão é, portanto, uma virtude que demonstra que esta pessoa que a
possui tem Deus em si e age de acordo com a vontade divina. Segundo Eckhart
(apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 328), a pessoa que tem Deus “o tem em todos
os lugares, nas ruas e entre as pessoas, da mesma forma que na Igreja, na solidão
ou na cela. Se ele o possui verdadeiramente e o possui sempre, ninguém poderá
perturbá-lo”.

200
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA

Não devemos nos esquecer de que Eckhart era, além de teólogo, um grande
pregador. Nesse sentido, o conteúdo de suas obras reflete seu apelo constante
para que os homens se voltem a Deus e vivam de acordo com Sua vontade. O
que ele busca é apontar um caminho que os homens sejam capazes de andar por
ele livremente. Segundo ele, o homem deve ser livre de seus desejos e entregar-se
inteiramente a Deus, pois este retorno a Deus é necessário que a alma “esteja livre e
despojada de toda coisa criada” (ECKHART apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 328).

Essa referência que Eckhart faz à alma tem uma influência platônica e
agostiniana, pois a razão inferior deverá conduzir à razão superior, pois a alma
tende para aquilo que é incriado, neste caso, Deus, logo, a alma deverá abandonar
irrestritamente todas as coisas criadas.

Para Eckhart, há dois modos de a alma retornar para Deus: pela via
negativa da pobreza e pela via positiva da divinização (BOEHNER; GILSON,
2012, p. 529, grifos do original):

1. A via negativa da pobreza – graças a sua participação íntima da


Divindade, a alma jamais pode apartar-se de Deus. Contudo, ela se
priva da posse de Deus na medida em que se apega a si própria e se
locupleta de si mesma; ao contrário, a alma que se arrima a Deus vem a
se unir com o que há nela de mais profundo. A condição básica desta união
é que o homem se convença de que as coisas, tomadas em si mesmas, nada
são. Desconhecer esta verdade equivale a negar e a blasfemar a Deus, e até
mesmo repudiá-lo. Pois é de Deus que as coisas derivam todo o seu
ser. Por si mesmas nada seriam. Por isso as alegrias que buscamos fora
de Deus só produzem amargura e tristeza na alma. É preciso que ela se
despoje de tudo. Aquele que atinge esta renúncia perfeita se encontra
num estado de perfeita pobreza perante Deus; nada mais deseja, nada
mais pode, nada mais possui, nada mais sabe: penetra na caligem
mística do não saber.

2. A via positiva da divinização – pela renúncia perfeita a si mesma


e a toda realidade criatural, a alma dá lugar ao divino: diviniza-se na
proporção em que deixa de ser ela mesma; todavia, esta divinização
- não deificação - é obra da graça. Quando Deus confere esta graça da
união se acende o amor do Espírito na alma: o amor carismático que,
segundo o mestre das sentenças a quem Eckhart apela expressamente
-, outra coisa não é senão o próprio Espírito Santo.

Observe que a via da pobreza não se refere à pobreza material, mas está se
referindo a um tipo de pobreza de alma, ou seja, diz respeito à renúncia de tudo
aquilo que possa separar a criatura do Criador, o homem da Divindade.

O que fica patente nas obras de Eckhart é seu caráter místico de união do
homem com a Divindade. Seu trabalho consistiu, essencialmente, traduzir “em
termos racionalmente compreensíveis os seus anseios místicos mais profundos,
servindo-se para isso dos recursos da dialética escolástica e do seu cabedal de
conceitos” (BOEHNER; GILSON, 2012, p. 530).

201
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

4 GUILHERME DE OCKHAM
Gilherme de Ockham (1285-1349) nasceu em Ockham, na Inglaterra, e
faleceu em Munique. Ainda na sua juventude entrou para a ordem franciscana.
Durante o período em que viveu em Munique, trabalhou intensamente em sua
atividade literária de caráter político-eclesiástica. Era conhecido como o príncipe
dos nominalistas.

FIGURA 10 – GULHERME DE OCKHAM

<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/70/William_of_Ockham.
png/200px-William_of_Ockham.png>. Acesso em: 30 abr. 2019.

Não será possível, neste livro, discorrer sobre uma mínima parte daquilo
que Ockham produziu. Nesse sentido, tocaremos brevemente em alguns pontos
principais da sua filosofia, para que você possa, a partir dessas colocações, avançar
em estudos mais aprofundados, se assim você desejar.

De acordo com Gilson (2012, p. 536) Ockham, “é extremamente exigente


em matéria de demonstração. No terreno da filosofia, não merece a qualificação
de saber seguro senão o que é percebido com evidência, ou o que é dedutível
de verdades imediatamente evidentes”. Esta posição de Ockham é claramente
vista na filosofia racionalista e no empirismo inglês que irão dar os contornos da
investigação filosófica moderna.

A demonstração exigida por Ockham não é exatamente a demonstração


empírica exigida pela ciência moderna. Ockham exigia a demonstração lógica
das proposições, ou seja, a demonstração lógica se fundamenta na racionalidade
humana, na capacidade de demonstrar pela razão simples a validade dos
argumentos.

202
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA

NOTA

Navalha de Ockham (ou Occam): a expressão é mais conhecida do que o


próprio nome Guilherme de Ockham (ou Occam, em latim). A ideia é usar uma navalha para
cortar fora partes desnecessárias de um argumento, de modo a chegar ao que é essencial -
na verdade, seria mais fácil pensar em um descascador de batatas... assim, quando você se
deparar com argumentos conflitantes que parecem igualmente válidos, escolha aquele que se
baseia no menor número de premissas e pode ser reduzido ao máximo. O princípio também
é conhecido como Lei da Parcimônia, embora talvez fosse melhor substituir "parcimônia" por
"concisão", pois a ideia pode ser resumida da seguinte forma: em geral, a melhor solução é
a mais simples.

FONTE: LEVENE, L. Penso, logo existo: tudo o que você precisa saber sobre Filosofia. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

Em Ockham é possível ver sua clara distinção e independência entre a fé


e a razão. Diferentemente dos escolásticos que o antecederam, tais como Tomás
de Aquino, Boaventura e Escoto, ele entendia que a tentativa perpetrada por estes
pensadores no esforço incansável “no sentido de mediar a relação entre razão e
fé com elementos aristotélicos ou agostinianos, através de complexas construções
metafísicas e gnosiológicas, pareciam-lhe inúteis e danosas” (REALE; ANTISERI,
2005, p. 299). Ockham partia da ideia de que os planos do saber racional e da
doutrina teológica são assimétricos, ou seja, são planos diferentes, pois o saber
racional se baseia na clareza e evidência lógica, enquanto que as doutrinas
teológicas se orientam “pela moral e baseado na luminosa certeza da fé” (REALE;
ANTISERI, 2005, p. 299).

Segundo Guilherme de Ockham (apud REALE; ANTISERI, 2005, p.


299), em sua obra Lectura Sententiarum, “os artigos de fé não são princípios de
demonstração nem conclusões e nem mesmo prováveis, já que parecem falsos
para todos, ou para a maioria ou para os sábios, entendendo por sábios os que se
entregam à razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência e
na filosofia”.

O que Ockham procura esclarecer é que as verdades da fé não podem


fazer-se conhecer de maneira clara e inequívoca. Nesse sentido, a fé não pode
apresentar argumentos que possam ser demonstrados ou provados. Com isso, ele
estava ressaltando que a verdade manifestada por Deus não pertence ao mundo
natural ou racional.

Isso implica dizer que a filosofia não pode se submeter à teologia, como
queriam Aquino, Boaventura e Escoto, pois a teologia não é uma ciência, mas
consiste num conjunto de afirmações e sentenças que não se relacionam lógica
e racionalmente. As afirmações da teologia estão unidas pela fé e não pela razão
num sentido lógico.

203
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Diante das coisas divinas, a razão também não pode proporcionar


assistência e apoio para a fé, pois para isso ela é ineficaz. Deste modo, Ockham
compreendia que somente a fé consegue esclarecer assuntos da revelação
divina. O entendimento da revelação divina vai além da capacidade humana,
pois a revelação não é racionalmente compreensível. Diante disso, se justifica a
interdependência da fé em relação à razão, pois a razão humana trabalha em um
território diverso do território da fé.

NOTA

Da ética

Em nenhum outro domínio Duns Escoto se mostra tão fiel à tradição agostiniana
como na ética. Nota-se, também, o forte influxo da doutrina de Santo Anselmo. Seu propósito
é harmonizar os direitos de Deus com os do indivíduo humano: há que salvaguardar não só a
contingência (severa contingentian!), como ainda a dignidade da pessoa humana (dignificare
naturam!).

1. O primado da vontade – não se deve entender o predomínio da vontade sobre o intelecto,


no sentido de uma espécie de irracionalismo gnoseológico (sic). Ao insistir no primado
da vontade, Duns Escoto tenciona, apenas, salientar-lhe o valor e emprestar maior relevo
a sua atividade. Duns Escoto subscreve o axioma de que toda volição pressupõe um
conhecimento prévio. Todavia, a vontade não é determinada pelo conhecimento distinto
do bem e nem sequer pelo conhecimento do Sumo Bem: mesmo aqui ele permanece
livre, podendo apartar o intelecto da consideração do Sumo Bem e deixar de executar o
ato volitivo. Pois a vontade não se determina por outra causa que não seja ela mesma [...],
visto que o intelecto retém uma posição de simples subserviência em relação à vontade
[...].

Como se vê, Duns Escoto salienta a autonomia da vontade, atribuindo-lhe a função


de instância suprema no domínio das decisões humanas. Não é o erro da inteligência, e sim
o da vontade que mais profundamente transtorna o homem interior. [...] Diz Santo Anselmo
que a vontade é o motor por excelência no reio da alma e que tudo lhe obedece.

2. A vontade de Deus como norma da moralidade – A expressão de Duns Escoto: “voluntas


sua (sc. Dei) est prima regula” tem dado lugar a muitos mal-entendidos. O que ele quer
dizer é que Deus não quer as coisas por serem boas, mas que elas são boas porque Deus
as quer e ama: “omne aliud a Deo ideo est bonum, quia a deo volitum et non e converso”.
Com isso não se afirma que o domínio da ética depende do arbítrio incondicional de
Deus, visto que a vontade divina tem que se orientar pelas normas lógicas, e sobretudo
pela própria essência divina enquanto conhecida. Por conseguinte, conquanto Deus
pudesse ter imposto uma lei moral diferente relativamente aos preceitos da segunda tábua
do Decálogo, pois que estes governam as relações entre as criaturas - é-lhe impossível,
contudo, modificar os dois primeiros mandamentos, que derivam, em derradeira análise,
de sua própria essência.

FONTE: Boehner e Gilson (2012, p. 515-516)

204
TÓPICO 2 | DUNS ESCOTO, MESTRE ECKHART, GUILHERME DE OCKHAM E NICOLAU DE CUSA

NOTA

A unificação do homem com Deus

Quinquagésima-nona proposição: o homem deve viver de tal maneira que ele com
(em) o Filho Unigênito, e que ele mesmo seja aquele Filho Unigênito. Entre o Filho Unigênito
e a alma não há nenhuma distinção. Explicação: Três coisas vêm expressas neste artigo:

Primeiro, que “o homem deve viver de tal maneira que ele seja um com (em) o Filho
Unigênito”. O que é verdade. Pois o homem deve viver na caridade; “ora, quem permanece na
caridade permanece em Deus”, como se lê em São João, cap. 4; e mais adiante, no capítulo
5, diz ele que “estejamos no verdadeiro filho de Deus”.

Segundo que “ele mesmo seja aquele Filho Unigênito”. Se por isto se entende que
eu mesmo seja Deus, é falso; se, porém, se entende que eu sou aquele, enquanto membro
dele, é verdade. O mesmo é afirmado frequentemente por Santo Agostinho; e com relação à
palavra da Escritura: “Eu me santifico por eles” diz Agostinho: porque eles são seus.

Terceiro: “Entre o Filho Unigênito e a alma não há nenhuma distinção”. E isto é


verdade. Pois como pode algo ser branco, sendo distinto ou separado da brancura? Ademais
a matéria e a forma são uma só coisa no ser, no viver e no operar. E nem por isso a matéria
é forma, ou vice-versa. O mesmo ocorre no presente caso: ainda que a alma santa seja um
com Deus, segundo a palavra de João: “para que também eles sejam um com nós, assim
como nós somos um”, nem por isso a criatura é o Criador, nem o homem justo é Deus.

Tampouco se deve pensar que cada qual dentre os justos seja filho de Deus por um
filho de Deus distinto; antes, eles o são do mesmo modo em que todos os bons são bons
analogicamente por uma e mesma bondade. E como o único Deus está em todos por sua
essência, assim o único filho de Deus está em todos os filhos adotivos; por Ele e nele são
filhos analogicamente, como tantas vezes mostramos mais acima. Como exemplo, temos as
imagens da face de um só espectador, reproduzida em muitos espelhos; todas estas imagens,
enquanto imagens, provêm daquela única imagem, que é a face do contemplador. Não só
isso: nenhuma delas existia ou permanece exceto por ela e nela (a face); donde a significativa
declaração do apóstolo: “Nós somos coerdeiros de Cristo”. Com efeito, Ele é herdeiro, porque
já o era, e por permanecer eternamente na casa, segundo a palavra de São João, visto ser
filho por natureza. Assim também a imagem ou espécie colocada ante os espelhos sempre
permanece a natureza. Pois natural deriva de nascimento.

FONTE: Eckhart (apud BOEHNER; GILSON, 2012, p. 530-531)

205
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

NOTA

Guilherme de Ockham e o nominalismo

Occam (sic) também é conhecido na história intelectual geral por ter desenvolvido
e defendido uma versão do nominalismo. Se ele era nominalista ou não é uma questão
extremamente controversa. Muitos preferem, com razão chamar de “conceitualismo” a sua
teoria dos universais. De muitas maneiras, ela reflete a teoria que Abelardo desenvolveu
contra o realismo extremado, dois séculos antes. É mais apropriado chamar nominalistas os
seguidores de Occam, já que a teoria de vários deles foi muito além do que o próprio Occam
postulou. Mesmo assim, bem ou mal, Occam é geralmente considerado um filósofo e teólogo
do nominalismo moderado do final da Idade Média. De qualquer forma, não há dúvida de
que “Occam [...] rejeitava categoricamente todas as formas do realismo e fundamentava o
conhecimento na apreensão direta dos objetos individuais”. No seu tempo, isso significou um
revolucionário passo adiante e muitos historiadores creditam o início da ciência moderna a
ele. Eles mencionam a via moderna, o “caminho moderno” do conhecimento, que começa
com Occam e continua com Copérnico, Galileu, Kepler e Newton.

FONTE: Olson (2001, p. 360)

206
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Duns Escoto faz clara distinção entre a teologia e a filosofia, pois, para ele, o
cerne das disputas entre elas era decorrente da ausência de uma “delimitação
rigorosa dos âmbitos de pesquisa” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 278).

• O problema apontado por Escoto é que os aristotélicos avicenistas e averístas


tentavam com seus argumentos subordinar a teologia à filosofia. No outro
extremo estavam os agostinianos que tentavam sufocar a filosofia com a
teologia.

• Escoto desenvolve sua doutrina da univocidade, que consiste numa tentativa


de evitar a confusão entre os conceitos filosóficos.

• Para Escoto, dentre todos os conceitos unívocos, o conceito primeiro e mais


simples é o de “ente”.

• O pensamento de Eckhart “está centrado na ideia de unidade entre Deus e


o homem, entre o sobrenatural e o natural. Sem Deus, o homem e o mundo
natural não teriam nenhum sentido e nada seriam” (REALE; ANTISERI, 2003,
p. 327).

• Segundo Eckhart, todas as criaturas dependem de Deus, pois sua existência se


deve exclusivamente a Ele.

• A posição de Ockham é claramente vista na filosofia racionalista e no empirismo


inglês que darão os contornos da investigação filosófica moderna.

• Em Ockham é possível ver sua clara distinção e independência entre a fé a


razão.

• Para Ockham, a filosofia não pode se submeter à teologia.

207
AUTOATIVIDADE

1 Guilherme de Ockham é um filósofo extremamente exigente quando se


trata de demonstração das proposições. Sobre o tipo de demonstração que
Ockham exigia é correto afirmar que:

a) ( ) Se tratava de uma demonstração puramente empírica.


b) ( ) Se tratava de uma demonstração que fosse capaz de repeti-la em laboratório.
c) ( ) Se tratava de um demonstração lógica.
d) ( ) Se tratava de uma apelo à fé.

2 A independência entre a razão e a fé é um aspecto central na filosofia de


Ockham. Isso se deve ao fato de que para ele não há simetria entre os planos
do saber racional e da doutrina teológica. Partindo dessa afirmação, analise
as sentenças a seguir.

I- Para Ockham, as verdades da fé não podem fazer-se conhecer de maneira


clara e inequívoca.
II- Da mesma forma que o saber racional, a fé pode apresentar argumentos
que possam ser demonstrados.
III- Diferentemente das doutrinas teológicas, o saber racional se baseia na
clareza e evidência lógica.

Agora, assinale a alternativa CORRETA:


a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
b) ( ) Apenas a sentença III está correta.
c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.
d) ( ) Todas as sentenças estão corretas.

3 Duns Escoto era extremamente exigente quanto às asserções, fossem


elas teológicas ou filosóficas, pois, para ele, uma asserção precisava ser
logicamente demonstrável, caso isso não acontecesse deveria ser renunciada.
Nesse contexto o filósofo tinha um papel importante. Diante disso, qual o
papel do filósofo de acordo com Escoto?

4 O pensamento de Eckhart chegou a ser acusado de herético, pois sua ideia


da unidade de Deus em relação às coisas criadas foi vista com desconfiança,
como sendo uma espécie de panteísmo cristão. Sobre a teodiceia de Eckhart
é correto afirmar que:

a) ( ) Deus e as criaturas possuem o mesmo ser, não há distinção entre criador


e criatura.
b) ( ) Eckhart nega a premissa de que sem Deus o homem e o mundo natural
não teriam nenhum sentido e nada seriam.

208
c) ( ) Para Eckhart, Deus transcende todo ser criado, pois todas as coisas
dependem de Deus e Deus não depende das coisas.
d) ( ) A presença de Deus é sentida apenas pelos iniciados no misticismo
oriental.

209
210
UNIDADE 3
TÓPICO 3

PENSAMENTO MEDIEVAL E O
RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE
NICOLAU DE CUSA

1 INTRODUÇÃO
O longo período da filosofia medieval está dando seus últimos passos na
história do pensamento ocidental. Os ventos de mudanças que começaram como
uma brisa fraca no início do século XV se intensificou e tornou-se um verdadeiro
furacão, pelo menos no que se refere ao pensamento filosófico.

As velhas explicações sobre a vida, o mundo, a existência, a fé e a razão já


não eram mais suficientes diante do crescente interesse por explicações racionais,
que não mais remetessem os pensadores sempre ao campo da fé para lidar com
o inexplicável.

Neste tópico vamos apresentar de que maneira se deu este processo de


ruptura com o pensamento medieval na direção do renascimento cultural, que foi
capaz de descolar o centro do universo da divindade para a humanidade.

O século XV experimentara alguns ventos de mudanças profundas que


estão por vir. Um exemplo disso foi a queda do Império Bizantino, em 1453,
diante da invasão dos otomanos. No século XVI foi a vez de a Igreja Católica
experimentar um impacto profundo em sua estrutura política, mas este será
assunto para o próximo tópico.

Nicolau de Cusa é o último grande pensador medieval. O escolasticismo


esteve intrinsecamente associado à filosofia aristotélica. Com Nicolau houve
um deslocamento dessa discussão na direção do platonismo, pois o que marca
a filosofia de Nicolau é seu caráter neoplatônico. Este pensador está situado no
período da renascença.

Nesse sentido, este tópico apresentará o crepúsculo da filosofia medieval,


mais precisamente a filosofia escolástica.

Tome fôlego e vamos caminhar por mais um momento da história da


filosofia medieval!

211
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

2 O PENSAMENTO MEDIEVAL
Não é possível negar que o pensamento medieval foi predominante
e profundamente marcado pelas doutrinas cristãs. A filosofia serviu como um
instrumento lógico necessário para a interpretação das escrituras sagradas. Não
apenas isso, mas a filosofia serviu para clarificar o sentido das escrituras, bem
como para defender a fé cristã construindo uma doutrina sistemática muito
abrangente.

A visão teocêntrica do mundo orientava o pensamento dos filósofos e


teólogos no sentido de tentar explicar as coisas a partir da fé, tendo a razão como
instrumento necessário para essas explicações, muito embora esta não ocupasse
o papel central.

Isso não significa dizer que a filosofia cristã tenha sido uma criação forçada
da Igreja Católica. Segundo Gilson (2012, p. 570-571):

Foi só relativamente tarde que a autoridade eclesiástica começou a se


interessar pela serva da teologia. Como se vê pela própria história, foi só
raríssimas vezes que o influxo desta autoridade exerceu papel decisivo.
Toda intervenção puramente externa se revela impotente em face do
desenvolvimento vivo das ideias. Foi por essa razão que a Igreja, de
preferência a limitar o âmbito dos estudos, sempre manifestou grande
empenho em fomentá-los. Exemplo clássico da liberdade interna da
filosofia cristã é a vitória do aristotelismo no século XIII, que, por sinal,
foi obra de um santo. A filosofia cristã enveredou por um caminho
próprio, não porque a Igreja lhe prescrevesse, mas porque ela mesma,
incrementada em ampla escala pela Igreja, logrou encontrá-lo por seus
próprios esforços. [...] Na verdade, um dos maiores títulos de glória
da filosofia cristã é o fato de haverem os seus representantes mais
conspícuos sabido unir em suas pessoas o ideal da santidade ao fulgor
da ciência.

Nesse sentido, o escolasticismo foi o método que predominou por um


longo período da Idade Média, sendo precedido pela patrística que teve um
caráter predominantemente apologético e platônico. A razão e a fé consistiam
no programa de pesquisa fundamental da Escolástica (REALE; ANTISERI,
2004). Não foi um método escolhido pela igreja, mas foi o método adotado pelos
filósofos cristãos com a finalidade de refinar ainda mais a pregação cristã.

O que se percebe na escolástica é que a razão é colocada a serviço da


fé cristã. Os pensadores deste período, dotados de uma profunda capacidade
lógica, foram capazes de produzir obras monumentais, nas quais expunham
suas doutrinas. Se a fé teve como serva a razão, não é incoerente afirmar que
para estes pensadores a filosofia era serva da teologia e, portanto, deveria
servir-lhe da melhor forma possível. Por este motivo, os filósofos escolásticos,
por exemplo, lançaram mão de obras de Aristóteles e Platão para fundamentar
seus argumentos.

212
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA

A escolástica, no século XIV, entrou em uma profunda crise. Com o declínio


dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente
desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano
alcançavam o seu ápice. Outra questão importante é que o ataque final à Escolástica
veio de dois campos opostos, um externo e o outro interno, mas curiosamente
aliados: após a reforma luterana o aumento dos grupos de protestantes calvinistas
e a Igreja Católica, que denunciou a escolástica por sua suposta decadência e
defeitos de formação moral.

3 O HUMANISMO E O RENASCIMENTO
O final da Idade Média é marcado pelo renascimento das ideias humanistas
e antropocêntricas do universo. Se durante a escolástica o filósofo que predominou
nos debates e serviu de base para a reflexão filosófica dos grandes pensadores
medievais tenha sido Aristóteles, o que se vê no século XIV é a influência do
platonismo nas principais escolas filosóficas.

NOTA

O termo "Humanismo" foi usado pela primeira vez no início do 800 para
indicar a área cultural coberta pelos estudos clássicos e pelo espírito que Ihe é próprio,
em contraposição ao âmbito das disciplinas científicas. A palavra humanista, porém, já era
empregada pela metade do 400, e deriva de humanitas, que em Cícero e Gelio significa
educação e formação espiritual do homem, na qual tem papel essencial as disciplinas literárias
(poesia, retórica, história, filosofia). Ora, a partir, sobretudo da metade do 300, e depois de
modo representado sempre crescente nos dois séculos sucessivos, desenvolveu-se na Itália
justamente uma tendência a atribuir valor muito grande aos estudos das litterae humanae
e a considerar a antiguidade clássica, grega e latina, como um paradigma e um ponto de
referência para as atividades espirituais e a cultura em geral. "Humanismo", portanto, significa
em geral esta tendência que, surgida essencialmente no seio da cultura italiana, pelo fim do
400 se difundiu em muitos outros países europeus.

FONTE: Reale e Antiseri (2003, p. 3)

De acordo com Reale e Antiseri (2004, p. 31), “a época do Humanismo e


da Renascença é marcada por uma maciça revivescência do platonismo, que cria
uma têmpera espiritual inconfundível”. Isso não significava que este platonismo
reflete exatamente o pensamento de Platão como aqueles que constam em suas
obras. Este é um neoplatonismo.

A partir dessa revivescência do Platonismo, filósofos como Nicolau de


Cusa, Marsílio Ficino e, até mesmo Pico Della Mirandola tinha o platonismo
como pano de fundo de suas reflexões filosóficas.

213
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

O Renascimento se caracteriza por ter sido um importante movimento


de ordem artística, cultural e científica que se deflagrou na passagem da Idade
Média para a Moderna. É importante ressaltar que o Renascimento é, portanto, o
período entre a Idade Média e o Iluminismo.

O que se pode perceber de imediato é que o Renascimento ficou


profundamente marcado pelas mudanças abruptas que ocorreram em diversas
áreas da vida humana, pois se caracteriza pela transição do feudalismo para
o capitalismo. Essas mudanças significaram uma importante ruptura com as
estruturas políticas, sociais e religiosas da Idade Média.

Na filosofia, os pensadores da renascença passaram a ter uma visão


crítica em relação às doutrinas intelectuais medievais, mais particularmente
com o aristotelismo, que tomava todo o saber científico. Os ideais renascentistas
já não seguem as mesmas linhas medievais, pois estes novos ideais abriram o
caminho da filosofia da época moderna. A partir daí a razão humana já não é
mais concebida como serva da fé, mas se torna independente da fé e estrutura a
ciência entendida atualmente.

Na renascença houve o despertar do indivíduo, pois na Idade Média


o indivíduo estava imerso no tipo de vida determinada objetivamente pelas
instituições. Não havia a liberdade de o indivíduo conceber-se como indivíduo,
pois sua existência, valores, desejos etc. estavam envolvidos por um tipo de véu.
Sobre isso, leia com atenção o que significa este despertar:

Na Idade Média os dois lados da consciência - o que reflete em si o mundo


externo e o que mostra a imagem da vida interna do homem - estavam
como que envolvidos por um véu comum, sob o qual ou longuesciam
em lento torpor ou se moviam em um mundo de puros sonhos. O véu
era tecido de fé, de ignorância infantil, de vãs ilusões: vistos através dele,
o mundo e a história apareciam revestidos de cores fantásticas, mas o
homem não tinha valor a não ser como membro de uma família, de um
povo, de um partido, de uma corporação, das quais quase inteiramente
vivia a vida. A Itália é a primeira a rasgar este véu e a considerar o Estado
e todas as coisas terrenas de um ponto de vista objetivo; mas ao mesmo
tempo se desperta poderosamente no italiano o sentimento de si e de seu
valor pessoal ou subjetivo; o homem se transforma no indivíduo, e se
firma como tal (REALE; ANTISERI, 2004, p. 19).

Neste novo momento da história, o homem já não aceita ser apenas mais
uma extensão do Estado ou de outras instituições. Ele está tomando consciência
da sua subjetividade, de seu poder de escrever e dirigir sua própria história sem
a necessidade da tutela das instituições e poderes que o cercam.

Outro aspecto importante a ser destacado é que a renascença “está


enraizada na Idade Média e foi dominada por um profundo impulso de humanizar
a religião” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 20). Isso não significa que foi introduzido
no seio da religião cristã um tipo de paganismo disfarçado. A humanização da
religião vai conferir ao fiel um papel mais ativo e de protagonismo, que não ficará
restrito à esfera clerical, como era o caso da Igreja Católica.
214
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA

A Reforma Protestante possui este caráter humanista, quando Lutero


defende a tese do sacerdócio universal. Com isso, ele estava individualizando o
crente e dizendo que cada indivíduo pode se comunicar com Deus diretamente,
sem a necessidade de um intermediário.

NOTA

A Reforma Protestante teve causas relacionadas a aspectos políticos, econômicos


e teológicos e resultou da corrupção existente na Igreja Católica. Além disso, teve resultado
de interesses políticos oriundos de nobres que viram na reforma uma possibilidade de
romper o vínculo de autoridade com o Papa. Por fim, foi imposta a questão dos interesses
econômicos, uma vez que a Igreja estipulava a cobrança de impostos de todos seus fiéis.
No aspecto teológico, o ponto imediato a ser destacado é a insatisfação de Martinho Lutero
com as práticas da Igreja Católica. A Igreja de Roma era, naquele período, a maior autoridade
da Europa Ocidental e detinha um imenso poder, uma vez que era dona de terras e riquezas
gigantescas.

FONTE: SILVA, D. N. Reforma Protestante. Disponível em: https://www.historiadomundo.


com.br/idade-moderna/reforma-protestante.htm. Acesso em: 4 jun. 2019.

O que se pode dizer da renascença é que a humanidade está se


encaminhando para um novo momento. A velha estrutura Medieval não poderá
suportar o peso dos ideais renascentistas e nem conter os avanços que estes
ideais proporcionarão aos indivíduos. Devemos lembrar que os movimentos da
renascença, em síntese, consistiram na valorização da razão humana, fornecendo
as sementes para o desenvolvimento das ciências modernas.

4 NICOLAU DE CUSA
Nicolau (1401-1464) nasceu em Cusa e morreu em Todi. Em seus
primeiros anos de estudos, ele se interessou pelas ciências do Direito, embora
tenha estudado com grande entusiasmo as ciências naturais. Após ter perdido
seu primeiro processo na área do Direito, voltou-se inteiramente para o estudo
da teologia.

215
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

FIGURA 11 – NICOLAU DE CUSA

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4c/Nicholas_of_Cusa.jpg>.
Acesso em: 30 abr. 2019.

Em relação aos outros pensadores escolásticos, que sempre estiveram


envolvidos em debates filosóficos intensos e disputas políticas, Nicolau possuía
um comportamento diferenciado. Em relação a este comportamento, Gilson
(2012, p. 557) comenta que:

Dotado de índole gentil e delicada, Nicolau se prestava antes à


contemplação e ao recolhimento do que às lutas políticas. É possível
que este traço do seu caráter seja responsável também por sua aparente
incoerência de atitudes no Concílio de Basileia. Seus objetivos foram
sempre a conciliação e a paz; seu ideal se resumia do desejo de
promover uma verdadeira concordantia catholica, sobre a qual soube
discorrer com eloquência. Sua biblioteca, que ainda se conserva em
Cues, denota-lhe a grandeza de espírito.

Dentre suas principais obras, podemos destacar A Douta Ignorância (1440),


na qual ele salienta as limitações da intelecção humana. Isso significa a tomada
de consciência de que há limites do saber humano. Esta obra é composta de
três livros. A primeira parte diz que a verdade é Deus. A segunda parte da obra
fala do Universo e a terceira parte diz que Jesus Cristo é Deus, portanto, fala da
humanidade.

Quando desejamos alcançar a verdade de alguma coisa, o caminho mais


utilizado é relacionarmos algo que temos por verdadeiro com algo que temos
incerto de ser verdadeiro, pois em geral, “quando se busca a verdade acerca
de várias coisas, põem-se em relação e comparam-se o certo com o incerto, o
desconhecido com o conhecido” (REALE; AANTISERI, 2004, p. 34).

Este método filosófico pode funcionar para as coisas finitas que podem
ser de fácil ou difícil entendimento, pois “quando se indaga no âmbito das coisas
finitas, o juízo cognoscitivo é fácil ou difícil (quando se trata de coisas complexas),

216
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA

mas de qualquer modo é possível” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 34). Isso porque
se alguma coisa finita é de difícil compreensão, logo, é possível conhecê-la, ainda
que não no presente, mas no futuro.

Quando se trata de algo infinito, o método de relação e comparação não


é possível, pois do infinito não temos como fazermos relações, não temos como
conhecer a sua dimensão. Não há simetria entre o finito e o infinito, pois:

Assim, toda investigação consiste numa proporção comparativa


fácil ou difícil. É por isso que o infinito como infinito, porque escapa
a qualquer proporção, é desconhecido. A proporção, exprimindo
simultaneamente acordo por um lado e alteridade por outro, não
pode ser entendida sem o número. O número inclui, pois, todas as
coisas susceptíveis de proporção. Portanto, o número não está apenas
no âmbito da quantidade, que cria proporção, mas em todas as coisas
que, de qualquer modo, possam concordar ou diferir em substância ou
em acidente. Talvez por isso, Pitágoras considerava que todas as coisas
eram constituídas e entendidas pela força dos números (NICOLAU,
2003, p. 2).

Para Nicolau, a mente humana é finita. Tal finitude acaba por ignorar o
conhecimento do infinito. A douta ignorância é nada mais nada menos que o
reconhecimento dessa incapacidade humana para conhecer o infinito.

Deus é um ser infinito. Se nossa mente é incapaz de conhecer o infinito,


logo, a mente humana é incapaz de conhecer a Deus. No entanto, a consciência
dessa limitação humana para o conhecimento de Deus é, na verdade, por onde
começamos a conhecê-lo. No método adotado por Nicolau é imprescindível
compreender que os limites do nosso conhecimento é o ponto de partida para
obtermos o conhecimento da verdade.

Diante disso, Nicolau aponta três graus do conhecimento: percepção


sensorial; razão; e intelecto.

a) A percepção sensorial é sempre positiva e afirmativa.


b) A razão, que é discursiva, afirma e nega, mantendo os opostos distintos
(afirmando um, nega o outro, e vice-versa) segundo o princípio da não
contradição.
c) Já o intelecto, acima de toda afirmação e negação racional, capta a coincidência
dos opostos em um ato de intuição superior (REALE; ANTISERI, 2004, p. 35).

Isso implica dizer que acima dos sentidos há dois graus do saber: a razão e
o intelecto. A razão, que é discursiva, abstrai das noções particulares os conceitos
universais e forma os juízos e raciocínios, pois seu caráter discursivo consiste em
percorrer um trajeto de estudo até chegar a um objeto, juízo desejado.

O intelecto está acima da razão, pois consiste numa atividade suprarracional


iluminada pela fé (ou pela mística), cujo objeto é Deus.

217
UNIDADE 3 | A FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

Em síntese, o que Nicolau está propondo é que todo conhecimento


vai desde o conhecido até o desconhecido, mediante o estabelecimento de
proporcionalidades. No seu entendimento, não há proporção perfeita entre a
coisa conhecida e nosso conhecimento dela, nem, em geral, entre o medido e a
medida. Nesse sentido, a ciência humana é conjectural, ou seja, apenas infere algo
que é provável com base em evidências incompletas.

Por fim, ele compreende que Deus é ratio essendi (razão de ser) e ratio
cognoscendi (razão de saber) de toda a realidade. Isso significa que qualquer
investigação filosófica tem, por horizonte, Deus. Deste modo não existe pergunta
ou ente que não suponha necessariamente a Deus como princípio.

NOTA

As correntes culturais da renascença

Na literatura filosófica da Renascença a primeira corrente que nos vem ao encontro


é o Aristotelismo [...]. O Humanismo, segundo entre os maiores movimentos intelectuais da
Renascença, também teve seus precedentes medievais, mas atinge seu pleno desenvolvimento
apenas durante a Renascença, da qual representa em certo sentido o aspecto mais
característico e mais difuso. Em seus precedentes e em sua origem, o Humanismo foi um
movimento literário mais que filosófico, e sua influência sobre a história da filosofia foi antes
indireta, mas forte e penetrante [...]. O Platonismo foi sem dúvida o mais importante entre
os vários movimentos filosóficos que surgiram do Humanismo. Ele merece consideração à
parte, também porque teve outras raízes fora do classicismo humanista [...]. Outro grupo de
pensadores, os dos assim chamados filósofos da natureza, é constituído por alguns dos mais
famosos pensadores do período, como Paracelso, Bruno e Campanella. Ainda menos que os
aristotélicos, os humanistas e até os platônicos, eles podem ser considerados como escola
ou tradição unificada [...]. A última corrente intelectual da Renascença que devemos lembrar,
e talvez a mais importante, é a que desembocou na ciência clássica moderna.

FONTE: Reale e Antiseri (2004, p. 18)

218
TÓPICO 3 | PENSAMENTO MEDIEVAL E O RENASCIMENTO E FILOSOFIA DE NICOLAU DE CUSA

NOTA

A verdade absoluta é incompreensível

Sendo evidente que não há proporção entre o infinito e o finito, é igualmente


evidente que ali onde se encontra um mais ou menos não se chega ao simplesmente
máximo, pois que as coisas suscetíveis de um mais ou de um menos são finitas, ao passo que
o máximo é necessariamente infinito. Dando-se, pois, qualquer coisa que não seja o próprio
máximo simples, é manifesto que se pode dar outra maior.

E sendo que a igualdade só se encontra em graus determinados, de modo que uma


coisa se iguala mais a esta do que àquela, conforme a conveniência e diferença genérica,
específica, local, de influência ou de tempo para com seus semelhantes, é evidente que não
podem se encontrar duas ou mais coisas a tal ponto semelhantes ou iguais, que não possam
ser ainda infinitamente mais semelhantes. Logo, por mais iguais que sejam a medida e a
coisa medida, elas permanecerão diferentes para sempre.

Por esta razão, o entendimento finito não pode atingir a verdade precisa das coisas
mediante a semelhança. Indivisível por natureza, a verdade exclui o mais e o menos, de tal
forma que nada senão a própria verdade pode ser a medida da verdade, assim como o círculo
não pode ser medido senão pelo próprio círculo, por serem sua natureza uno e indivisível.
Por isso o entendimento, que não é a verdade, jamais compreende a verdade com tanta
precisão, que ela não pudesse ser compreendida com uma precisão infinitamente maior. O
entendimento está para com a verdade como o polígono está para o círculo: quanto maior
for o número de ângulos inscritos no polígono, tanto mais semelhante ele será ao círculo;
nunca, porém, chegará a ser igual a ele, mesmo que se multiplicassem os ângulos ao infinito
- a não ser que coincida com o círculo.

É evidente, pois, que tudo o que sabemos sobre a verdade tomada precisamente
como tal, é que ela nos é incompreensível, visto que a verdade, que não pode ser nem mais
nem menos do que é, é a mais absoluta necessidade, ao passo que o nosso intelecto, em
contraste, é possibilidade. De forma que a quididade das coisas, que é a verdade ontológica,
é inatingível em sua pureza e, embora investigada por todos os filósofos, não foi encontrada
por nenhum deles em sua verdadeira realidade. Quanto mais profundamente nos instruirmos
nesta lição da ignorância, tanto mais nos aproximaremos da própria verdade.

FONTE: De docta ignorantia, Lib. I, cap. 3, ed. Hoffmann-Klibansky, p. 8s. In: BOEHNER, P.;
GILSON, E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. 13. ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2012, p. 567-568.

219
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A visão teocêntrica do mundo orientava o pensamento dos filósofos e teólogos


no sentido de tentar explicar as coisas a partir da fé.

• A escolástica, no século XIV, entrou em uma profunda crise.

• O final da Idade Média é marcado pelo renascimento das ideias humanistas e


antropocêntricas do universo.

• Na filosofia, os pensadores da renascença passaram a ter uma visão crítica


em relação às doutrinas intelectuais medievais, mais particularmente com o
aristotelismo, que tomava todo o saber científico.

• A Reforma Protestante possui este caráter humanista, quando Lutero defende


a tese do sacerdócio universal.

• Nicolau de Cusa se diferenciava dos demais pensadores escolásticos por não se


envolver em intensos debates filosóficos.

• Para Nicolau, quando se busca a verdade acerca de várias coisas, põem-se em


relação e comparam-se o certo com o incerto, o desconhecido com o conhecido.

• Para Nicolau, a mente humana é finita.

• Deus é um ser infinito.

220
AUTOATIVIDADE

1 Nicolau de Cusa produziu obras vastas e de grande importância para o


pensamento filosófico de seu tempo. Sobre a obra Douta Ignorância é
possível afirmar que, em síntese, Nicolau está apresentando:

a) ( ) A capacidade humana de conhecer a infinitude de Deus.


b) ( ) As limitações da intelecção humana frente ao infinito.
c) ( ) A tese de que apenas o seres humanos dotados de muita inteligência
podem conhecer a Deus.
d) ( ) A incapacidade humana de crer em Deus.

2 Uma das preocupações de Nicolau em relação a Deus é a maneira que ela


se comportava frente a sua grandiosidade, pois toda investigação consiste
numa proporção comparativa fácil ou difícil. Em relação à mente humana e
ao conhecimento de Deus, Nicolau defende que:

a) ( ) É muito limitada para compreender toda a grandeza de Deus.


b) ( ) É capaz de penetrar nos mistérios do infinito quando é disciplinada
pela filosofia.
c) ( ) A mente humana deve ser completamente ignorada na relação do
homem com Deus.
d) ( ) A mente humana se equipara a mente divina em termos de capacidade
de conhecimento.

3 O pensamento medieval se caracteriza pelo seu viés predominantemente


escolástico, pois este foi o método teológico-filosófico que predominou
durante a Idade Média. Sobre as características do pensamento medieval,
assinale V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) Os teólogos e filósofos medievais eram predominantemente orientados


por uma visão teocêntrica do mundo.
( ) O platonismo foi a base de sustentação para os principais pensadores
escolásticos.
( ) Na filosofia escolástica medieval, a razão foi colocada a serviço da fé.
( ) A filosofia medieval se caracteriza por sua total e irrestrita independência
da teologia.

Agora, assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:


a) ( ) F – V – V – F.
b) ( ) V – F – V – F.
c) ( ) V – V – V – F.
d) ( ) V – V – F – F.

221
4 O Renascimento consistiu em um importante movimento de ordem artística,
cultural e científica, que se deflagrou na passagem da Idade Média para a
Moderna. Sobre a filosofia deste período é correto afirmar que:

a) ( ) Na filosofia, os pensadores renascentistas desenvolveram uma visão


crítica em relação às doutrinas intelectuais medievais.
b) ( ) A única área que permaneceu intacta durante o Renascimento foi a
filosofia.
c) ( ) A filosofia renascentista marca um retorno para o pensamento de Tomás
de Aquino.
d) ( ) A filosofia deste período é puramente cristã.

222
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