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A ciência da psicologia∗
René ficou encantado. Ele tinha ouvido falar sobre os órgãos mecânicos que operavam
hidraulicamente as estátuas que se movimentavam, mas não esperava tal realismo.
Enquanto caminhava em direção à entrada da gruta, ele viu as placas enterradas no solo
que controlavam as válvulas de funcionamento da máquina. Ele passou o resto da tarde
vagando pelas grutas, ouvindo a música e se entretendo com as estátuas.
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Tradução, para uso pessoal, do primeiro capítulo (The Sicence of Psychology) da obra Psychology: The
Science of Behavior (3ª edição), de autoria de NEIL R. CARLSON, publicada em 1990, pela Allyn and Ba-
con, Needham Heights (MA), EUA. Tradutor: Prof. Paulo S. T. do Prado (Departamento de Psicologia da
Educação, UNESP-Marília)
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ta consciência. Embora muitas vezes nos ve- "querem". Pelo contrário, acreditamos que ca-
mos fazendo coisas que não tínhamos planeja- em devido à existência de forças naturais ine-
do (ou que tínhamos planejado não fazer), de rentes à matéria física, mesmo que não enten-
modo geral, sentimos que estamos no controle damos o que essas forças são. Mas note que
de nosso comportamento. Ou seja, temos a im- diferentes interpretações podem ser feitas
pressão que o nosso comportamento é contro- sobre os mesmos eventos. Certamente, esta-
lado pela nossa consciência. Consideramos al- mos tão propensos a interpretações subjetivas
ternativas, fazemos planos e, então, agi- dos fenômenos naturais, embora mais sofisti-
mos, movemos nossos músculos, nos engajamos cados, quanto nossos ancestrais. Na verdade,
em algum tipo de comportamento. quando se tenta explicar porque as pessoas
fazem o que fazem, tende-se a atribuir pelo
A consciência é uma experiência privada, mas menos alguns dos seus comportamentos à ação
mesmo assim seu estudo tem uma longa histó- de um espírito motivador – isto é, uma vonta-
ria. Atualmente, embora possamos experimen- de. No dia-a-dia, essa explicação do compor-
tar apenas nossa própria consciência direta- tamento pode, muitas vezes, se adequar às
mente, supomos que nossos companheiros se- nossas necessidades. No entanto, no plano ci-
res humanos também têm consciência e, pelo entífico é preciso basear as nossas explica-
menos em certa medida, também atribuímos ções em fenômenos que podem ser observados
consciência a outros animais. À medida que e medidos objetivamente.
nossos comportamentos são semelhantes, ten-
demos a supor que nossos estados mentais A melhor maneira que temos para garantir a
também se assemelham. Desde muito cedo na objetividade é o método científico (descrito
história da nossa espécie, as pessoas foram no Capítulo 2). A psicologia, como ciência, deve
muito generosas na atribuição de um animus estar baseada na suposição de que o compor-
vivificante ou espírito a qualquer coisa que pa- tamento é estritamente sujeito a leis físicas,
recesse mover-se ou crescer de forma inde- assim como qualquer outro fenômeno natu-
pendente. Como elas sabiam que os movimen- ral. As regras da investigação científica im-
tos de seus corpos eram controlados por suas põem disciplina aos seres humanos, cujas incli-
mentes ou espíritos, elas inferiam que o sol, a nações naturais podem levá-los a conclusões
lua, o vento, as marés e outros objetos em mo- incorretas. Parecia natural para os nossos an-
vimento eram igualmente animados. Esta filo- tepassados acreditar que as pedras tinham
sofia primitiva é chamada animismo (do latim espíritos, assim como parece natural hoje em
animare, "despertar, avivar, dotar de respira- dia que as pessoas acreditem que o comporta-
ção ou alma"). Até a gravidade era explicada mento pode ser afetado pela vontade de uma
em termos anímicos: as pedras caíam ao chão pessoa. Em contraste, a idéia de que sen-
porque os espíritos dentro delas queriam se timentos, emoções, imaginação e outras expe-
reunir com a Mãe Terra. riências privadas possam ser concebidas como
produtos de leis físicas da natureza não veio
Obviamente, nosso interesse pelo animismo é facilmente. Ela evoluiu ao longo de muitos sé-
histórico. Nenhuma pessoa instruída na nossa culos.
sociedade acredita que as rochas caem porque
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desenvolvimento de uma ciência psicológica. nado com as estátuas em movimento nos jar-
dins reais (Jaynes, 1970). Estes dispositivos
Descartes argumentou que a mente e o corpo serviram como modelo para Descartes teori-
podiam interagir. A mente controlava os movi- zar sobre como o corpo funcionava. Ele conce-
mentos do corpo, enquanto o corpo, por meio beu os músculos como balões. Eles inflavam
dos órgãos do sentido, fornecia à mente in- quando um líquido passava pelos nervos que os
formações sobre o que estava acontecendo no conectavam ao cérebro e à medula espinhal,
meio ambiente. Descartes supôs que essa inte- assim como a água fluía por meio de canos para
ração entre a mente e o corpo acontecia no ativar as estátuas. Essa inflação era a base da
corpo pineal, um pequeno órgão situado na par- contração muscular que nos faz mover.
te superior do tronco cerebral, enterrado em-
baixo dos grandes hemisférios ce- Esta história ilustra uma das primeiras vezes
rebrais. Quando a mente decidia realizar uma em que um dispositivo tecnológico foi usado
ação, ela inclinava o corpo pineal numa deter- como modelo para explicar o funcionamento do
minada direção fazendo o líquido do cérebro sistema nervoso. Na ciência, um modelo é um
fluir para o conjunto apropriado de nervos. sistema relativamente simples que funciona
Este fluxo de líquido fazia os músculos se in- com base em princípios conhecidos e é capaz
flarem e moverem-se. Vejamos como Descar- de fazer pelo menos algumas das coisas que
tes veio a ter essa concepção mecânica dos um sistema mais complexo pode fazer. Por e-
movimentos do corpo. xemplo, quando os cientistas descobriram que
os elementos do sistema nervoso se comuni-
A Europa ocidental no século XVII foi palco cam por meio de impulsos elétricos, pesquisa-
de grandes avanços nas ciências. Não era só a dores desenvolveram modelos do cérebro com
aplicação prática da ciência que impressionava base em centrais telefônicas e, mais recente-
os europeus, mas também a sua beleza, imagi- mente, com base em computadores. Modelos
nação e a diversão que ela proporcio- abstratos, que são completamente matemáti-
nava. Artesãos construíam muitos brinquedos cos em suas propriedades, também foram de-
e dispositivos mecânicos elaborados nesse pe- senvolvidos.
ríodo. Como vimos na vinheta de abertura, o
jovem René Descartes ficou muito impressio- Embora o modelo de Descartes sobre o corpo
humano fosse mecânico, ele era controlado pe-
la mente não mecânica (na realidade, não físi-
ca). Assim, os seres humanos nascem com uma
capacidade especial que os faz mais do que
simplesmente a soma de suas partes. Seu co-
nhecimento era mais do que simplesmente um
fenômeno físico.
cluía que a capacidade perdida devia ser fun- mental não havia fornecido. Por exemplo,
ção da parte removida. Por exemplo, se um a- Fritsch e Hitzig descobriram que a aplicação
nimal não podia mover suas pernas depois que de um pequeno choque elétrico em diferentes
parte de seu cérebro foi removida, então, a- partes do córtex cerebral provocava os movi-
quela região devia normalmente controlar os mentos de diferentes partes do corpo. Na
movimentos da perna. Este método, chamado verdade, o corpo parecia estar "mapeado" na
de ablação experimental (do latim ablatus, superfície do cérebro. (Veja a figura 1.2.)
"remover"), logo foi adotado por neurologistas
e ainda é usado por cientistas hoje. Por meio O trabalho do físico e fisiologista alemão
da ablação experimental, Flourens afirmou ter Hermann von Helmholtz fez muito para de-
descoberto as regiões do cérebro que contro- monstrar que o fenômeno mental poderia ser
lam a taxa de batimentos cardíacos e a respi- explicado por meios fisiológicos. Esse cientis-
ração, os movimentos intencionais e os refle- ta extremamente produtivo deu contribuições
xos visuais e auditivos. tanto para a física quanto para a fisiologia. Ele
ativamente se desligou da filosofia natural, da
A pessoa que aplicou a lógica do método de qual muitas suposições sobre a natureza da
Flourens aos seres humanos foi Paul Broca. Em mente foram derivadas. Müller, com quem
1861, Broca, cirurgião francês, realizou uma Helmholtz havia realizado sua primeira pesqui-
autópsia no cérebro de um homem que tinha sa, acreditava que os órgãos humanos eram
tido um acidente vascular cerebral vários anos dotados de uma força vital imaterial que coor-
antes. O derrame fez com que ele perdesse a denava o comportamento fisiológico, uma for-
capacidade de falar. Broca descobriu que o ça que não estava sujeita à investigação ex-
derrame havia danificado uma parte do córtex perimental. Helmholtz não permitiria tais su-
cerebral no lado esquerdo do cérebro do ho- posições sobre fenômenos não comprovados (e
mem. Ele sugeriu que essa região do cérebro é não comprováveis). Ele defendia uma aborda-
um centro da fala. gem
Freud, formulava uma teoria do comportamen- dos sobre o comportamento de gatos enquanto
to humano que afetaria muito a psicologia e a eles aprendiam uma tarefa o levou a formular
psiquiatria e influenciaria radicalmente inte- a lei do efeito. Ele colocava os gatos em gaio-
lectuais de todos os tipos. Freud começou sua las equipadas com um trinco. Os gatos, que es-
carreira como neurologista, por isso seu tra- tavam famintos, tinham que operar uma trava
balho foi firmemente enraizado na biologi- a fim de sair da gaiola e comer a comida colo-
a. Logo ele se interessou por problemas com- cada num recipiente no lado de fo-
portamentais e emocionais e começou a formu- ra. Thorndike observou que a atividade agita-
lar sua teoria psicodinâmica da personalidade, da dos gatos eventualmente resultava no acio-
que evoluiu ao longo de sua longa carrei- namento acidental da trava. Em tentativas
ra. Apesar de sua abordagem ter se baseado subseqüentes, o comportamento dos gatos se
na observação de pacientes e não em experi- tornava mais e mais eficiente, até que eles o-
mentos científicos, ele permaneceu convencido peravam a trava logo que eram colocados na
de que a base biológica de sua teoria acabaria gaiola. Ele chamou o processo de “aprendiza-
por ser estabelecida. gem por tentativa e sucesso acidental.”
Freud e sua teoria são discutidos em detalhes Thorndike observou que alguns eventos, ge-
no capítulo 16. Eu o menciono aqui apenas para ralmente aqueles que se esperaria que fossem
marcar seu lugar na história da psicologia. Sua agradáveis, pareciam "estampar" uma resposta
teoria da mente incluía estruturas, mas o seu que acabara de ocorrer. Eventos nocivos pare-
estruturalismo era completamente diferente ciam "remover" a resposta ou torná-la menos
do de Wundt. Ele inventou os conceitos de e- provável de ocorrer. (Hoje em dia, nós chama-
go, superego, id e outras estruturas mentais mos esses processos de reforço e punição, os
por meio de conversas com seus pacientes, não quais são descritos mais detalhadamente no
de experimentos de laboratório. Suas hipoté- Capítulo 4.) Thorndike definiu a lei do efeito
ticas operações mentais incluíam muito do que da seguinte forma:
era inconsciente e, portanto, não acessível à
introspecção. E ao contrário de Wundt, Freud Qualquer ato que em uma dada situação produz
enfatizava a função. Suas estruturas mentais satisfação fica associado a esta situação, de
modo que quando a situação se repete, também
serviam a impulsos biológicos e instintos e re-
fletiam a nossa natureza animal.
é mais provável do que antes que o ato volte a substituindo-os por termos mais objetivos que
ocorrer. Por outro lado, qualquer ato que em refletiam o comportamento do organismo em
uma determinada situação produz desconforto vez de quaisquer sentimentos que ele pudesse
se torna dissociado dessa situação, de modo
ter.
que quando a situação se repete é menos pro-
vável do que antes que o ato retorne. (Thorndi-
Outra figura importante no desenvolvimento
ke, 1905, p. 203).
da tendência behaviorista não era um psicólo-
A lei do efeito está, certamente, na tradição go, mas sim um fisiologista: Ivan Pavlov, um
funcionalista. Ela observa que as consequên- russo que estudou a fisiologia da digestão (pe-
cias de um comportamento retroagem sobre o lo que, mais tarde, recebeu o Prêmio No-
organismo, afetando a probabilidade de que o bel). No decorrer dos estudos sobre os estí-
comportamento que já ocorreu irá ocorrer no- mulos que produzem salivação, ele descobriu
vamente. O gato acidentalmente aciona o trin- que cães famintos salivavam ao ver o atenden-
co e as conseqüências desse ato (ser capaz de te que trazia seu prato de comida. Pavlov des-
sair da gaiola e comer) torna o acionamento da cobriu que um cão podia ser treinado a salivar
trava mais provável na próxima vez que o gato a estímulos completamente arbitrários, como o
for colocado na gaiola. Este processo é muito som de uma sineta, se o estímulo fosse rapi-
parecido com o princípio da seleção natural, damente seguido pela entrega de um pouco de
assim como os organismos que conseguem se comida na boca do animal.
adaptar a seu meio ambiente são mais prová-
A descoberta de Pavlov teve profundo signifi-
veis de sobreviver e se reproduzir, comporta-
cado para a psicologia. Ele mostrou que atra-
mentos que causam resultados úteis se tornam
vés da experiência um animal podia aprender a
mais provável de ocorrer de novo.
produzir uma resposta a um estímulo que nun-
Embora Thorndike insistisse que o objeto de ca tinha causado essa resposta antes. Essa ca-
estudo da psicologia era o comportamento, su- pacidade, por sua vez, poderia explicar como
as explicações continham termos mentalis- os organismos aprendem relações de causa e
tas. Por exemplo, em sua lei do efeito que ele efeito no ambiente. Em contraste, a lei do e-
falou de "satisfação", que certamente não é feito, de Thorndike, sugeria uma explicação
um fenômeno que pode ser observado direta- para a adaptação do comportamento de um in-
mente. Mais tarde, behavioristas descartaram divíduo ao seu ambiente particular. Assim, a
termos como "satisfação" e "desconforto", partir dos estudos de Thorndike e Pavlov, dois
Ivan Pavlov (1849 – 1936) em seu laboratório com alguns de seus colaboradores. Sua história
é uma das mais felizes ocorrências nas quais a pesquisa revela um resultado valioso, apesar
de não procurado.
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