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Tecendo diálogos entre a prática docente e as narrativas das crianças na

Educação Infantil.

Resumo: Este trabalho propõe tecer diálogos entre a prática docente e as narrativas das crianças na
Educação Infantil. Para tal apresenta entrevistas realizadas com crianças matriculadas em uma
instituição municipal, localizada no bairro do Rio Comprido, um bairro da Zona Central do Rio de
Janeiro. O texto apresenta reflexões acerca de algumas práticas docentes exercidas nessa instituição e
revela se as narrativas das crianças são consideradas pelos professores no exercício da docência.
Apontamos então os deslocamentos provocados pelas falas das crianças dialogando com
alguns autores que nos ajudam a compreender a cultura da infância, evidenciando a criança
como ator social e sujeito ativo do processo pedagógico.
Palavras chave: prática docente; diálogo; narrativa, criança.

Abstract: This paper proposes to weave dialogues between teaching practice and children's narrative
in early childhood education. To this end, it presents interviews with children enrolled in a municipal
public institution, located downtown of Rio de Janeiro city. The paper presents reflections on some
teaching practices performed in this institution and it reveals whether the children's narratives are
considered by teachers while teaching. We, then, point out the displacements caused by children's
speeches dialoguing with some authors who help us understand the culture of childhood, putting in
evidence the child as a social actor and active subject of the pedagogical process.
Key-words: teaching, dialogue, narrative, child.

Resumen: Este trabajo propone tejer diálogos entre la práctica docente y las narrativas de los niños en
la educación infantil. Para ello, presentamos entrevistas realizadas con niños matriculados en una
institución municipal, ubicada en el barrio de Río Comprido, un barrio de la zona norte de Río de
Janeiro. El texto presenta reflexiones sobre algunas prácticas docentes que se llevan a cabo en esta
institución y revela si las narrativas de los niños son consideradas por los profesores en su práctica
docente. Esta análisis de las narrativas de los niños será desarrollada dialogando con algunos autores
que nos ayudan a comprender la cultura infantil, al niño como actor social y sujeto activo del proceso
pedagógico.
Palabras clave: prática docente, diálogo, narrativas, niño.

1
Introdução

Como professoras de Educação Infantil da rede municipal do Rio de Janeiro, desde 2011
compartilhamos momentos de muitas trocas e aprendizagens, ricos em experiências e
narrativas que foram nos constituindo, fomentando a nossa subjetividade e auxiliando na
formação de nossa identidade profissional. Recordamos que, em um desses momentos,
iniciamos uma conversa sobre a nossa prática, relatando situações e falas nas quais as crianças
deixavam explícitoas seu contentamento ou descontentamento acerca da prática docente. E
como lidar com isso? Afinal, muitos não estão preparados para lidar com críticas, ainda mais
se os autoresautor das mesmas forem crianças que, muitas vezes, têm o seu potencial de
criticidade menosprezado. As experiências pelas quais passamos, os livros que lemos e,
principalmente as crianças com as quais convivemos, são fundamentais para afinar nossas
escutas sobre o que falam as crianças. Compartilhamos também inquietações que nos levam a
estranhar algumas práticas docentes que se impõem de maneira autoritária sem que haja
espaço para o diálogo, desconsiderando a criança como sujeito de direitos que, assim como os
adultos, também produz cultura. Foi a partir desse estranhamento que surgiu o interesse pelo
tema abordado.
Este artigo “Tecendo diálogos entre a prática docente e as narrativas das crianças na Educação
Infantil” é um recorte de uma pesquisa apresentada, em 2019, ao Programa de Pós-Graduação
em Educaçãoeducação Infantil da PUC-RIO. No texto nos propomos a revelar a alteridade da
criança, legitimando-a como indivíduo em exercício de reflexão ao trazer suas narrativas que
tanto contribuem para a prática docente na Educação Infantil. Refletimos também acerca das
práticas docentes exercidas em uma instituição de Educação Infantil da rede pública
municipal do Rio de janeiro e observamos nessa mesma instituição, se as narrativas das
crianças são consideradas pelos professores no exercício da docência. Apontamos então os
deslocamentos provocados pelas falas das crianças dialogando com Larrosa (2002), Corsaro
(2002) e (2011), Benjamin (1987), Guimarães (2004) e (2008), Rinaldi (2016), Borba (2012)
e Oliveira (2014), pois são autores que nos ajudam a compreender a cultura da infância,
evidenciando a criança como ator social.
Nos últimos anos, com a promulgação da LDB/96 compondo a Educação Infantil como a
primeira etapa da Educação básica, pesquisas dando visibilidade à preocupação com a
formação de professores e as especificidades desse segmento têm crescido significativamente.
Discutir sobre a docência na Educação Infantil é muito necessário e incluir o olhar e falas das
crianças nesse movimento é considerá-las como sujeito concreto, histórico, social e delineado

2
culturalmente, é dar visibilidade às ações infantis e enxergá-las repletas de significados e
possibilidades.

As entrevistas: “aquilo que todo mundo quer saber”

O texto que segue apresenta, partindo do lugar da experiência, as narrativas das crianças,
refletindo sobre suas contribuições acerca da prática docente. Para isso, escolhemos o
caminho da pesquisa com as crianças, pois, “o processo da pesquisa reflete uma preocupação
direta em capturar as vozes infantis, suas perspectivas, seus interesses e direitos como
cidadãos” (CORSARO, 2011, p. 57). De fato, a pesquisa com crianças nos encantou à medida
que fomos nos apropriando desse tipo de metodologia. Quem melhor do que elas para falar
das suas satisfações e insatisfações, para opinar e dizer o que desejam dentro desse espaço que
ocupam cinco dias da semana, pelo menos cinco horas por dia: o espaço da escola.? Isso é
importante pois,

Dialogar com as crianças e suas produções, ou assumir a infância como temática de


estudo, funda uma realidade em que a experiência da pesquisa é necessariamente
diferente daquela que poderia ser vivida no diálogo com outros interlocutores, temas
ou contextos (PEREIRA, 2012, p.63).

Dessa forma, não se pode deixar de explicitar a singularidade da pesquisa realizada com as
crianças. Garantir a elas esse lugar de autoria não é um processo fácil, porém, extremamente
necessário para que se possa exercer uma prática que construa sentido para elas.
Acreditando na observação e no diálogo, não somente para o aprendizado do olhar sensível,
como também, para pensar a alteridade dentro desse contexto, fomos a campo e, convidamos
algumas crianças para participar desta pesquisa. As que concordaram em participar
contribuíram conosco através de entrevistas. As mesmas foram realizadas em uma instituição
de Educação Infantil do município do RJ, localizada no bairro do Rio Comprido.
Conversamos com 18 crianças, dentre elas 8 meninos e 10 meninas, todas entre 5 e 6 anos de
idade, matriculados na Pré-Escola II. Entretanto, nem todas as entrevistas foram expostas
neste trabalho. A medida que solicitamos a autorização da direção, das professoras e dos
responsáveis para a realização das entrevistas1, solicitamos também a autorização das
crianças. Dissemos a elas que estávamos estudando e que tínhamos um trabalho para entregar

1
Solicitamos aos responsáveis, uma autorização por escrito.

3
para nossa professora, portanto gostaríamos de saber quem poderia nos ajudar respondendo
uma entrevista.
Colocar-nos na mesma posição que as crianças, e falar que também estudávamos e que
tínhamos um trabalho para fazer, despertou certa curiosidade e gerou alguns comentários e até
perguntas: “Não sabia que adulto estudava.” “Aonde é sua escola?” “O que é entrevista?”
Antes mesmo que pudéssemos responder o que é uma entrevista, uma criança respondeu: “é
aquilo que todo mundo quer saber.” As crianças criam teorias, não apenas questionando, mas
também encontrando respostas para seus questionamentos. De certo, estávamos mesmo em
busca de saber algo, não aquilo que todo mundo quer saber, mas aquilo que nós, como
pesquisadoras e professoras, precisávamos saber para, criarmos também, nossas próprias
teorias, para pensar sobre a prática (...).
As entrevistas expostas foram realizadas em pequenos grupos de 2, 3 ou 4 crianças. Nossa
primeira tentativa de entrevista foi realizada com um grupo de 3 crianças. Dizemosgo
tentativa, pois antes mesmo de começarmos a conversar com as crianças, elas nos trouxeram
falas muito importantes, que nos ajudaram a refletir sobre a prática docente. Dessa forma,
deixamos de lado as perguntas2 que estávamos dispostas a fazer, e agora, nossa intenção
passou a ser era escutar o que aquelas vozes queriam nos dizer. O que inicialmente seria uma
entrevista passou a ser um diálogo, sem perguntas previamente prontas. É importante ressaltar
que esse grupamento havia acabado de receber uma nova professora, pois a que os
acompanhava desde o início do ano letivo, passou a lecionar em outro município.

Entrevista 1: “1, 2, 3 histórias.”

Isabel3·: A tia Denise foi embora para outra escola.


João: Eu vou sentir saudades, porque ela brincava com a gente e contava a história do urso.
Pesquisadoras: Mas vocês podem continuar brincando e ouvindo histórias com a nova professora.
Isabela: A gente já brincou. Ela disse que vai conhecer a gente. Eu vou pedir para ela contar todas
essas histórias aqui. (Apontando para uma prateleira cheia de livros).
Fábio: Eu vou pedir para ela contar história todo dia.
João: Eu vou pedir para ela contar uma, duas, três histórias todo dia!

Nesse diálogo, percebemos a preocupação das crianças quanto a troca de professoras. Afinal
elas tinham uma professora que brincava e que contava história. Será que a nova professora
daria continuidade a essas práticas? Ouvir histórias parece ser uma das atividades preferidas
2
Perguntas que pretendíamos fazer: “O que vocês fazem na escola?” “O que a professora de vocês faz na escola?”
“O que vocês mais gostam de fazer na escola?”
3
Todos os nomes que constam nas entrevistas são nomes fictícios.(talvez caiba aqui um reflexão importante:
porque dá visibilidade às crianças em muito momentos pode ser deixar seus nomes fictícios serem escolhas
delas, ou mesmo uma reflexão sobre o desejo de manutenção de seus nomes reais)

4
do grupo. Em suas narrativas, as crianças deixam claro o desejo para que esse tipo de
atividade esteja sempre presente no cotidiano. Observamos também, através da fala de Isabel,
que a nova professora chegou disposta a conhecer o grupo, o que é fundamental para se
pensar em uma prática docente que possibilite sentido para as crianças. Mais do que conhecer,
é preciso que ela escute o grupo e que seja estabelecida uma relação dialógica para que as
crianças possam participar ativamente da construção do planejamento.construção
planejamento.
Numa prática dialógica, confirma-se o lugar ativo e interativo da criança, a
importância da sua palavra e da sua presença. Ela pode sentir-, se autora e
protagonista dos projetos cotidianos, junto com o professor e todos os envolvidos.
Paralelamente, o lugar ativo do professor também é assegurado, à medida que
produz organizações e propostas em sintonia com o movimento das crianças
(GUIMARÃES, 2004, p.4).

De fato, se faz necessário refletir acerca de uma prática docente que (re) pense o cotidiano, de
forma que as crianças possam contribuir na organização da vida coletiva. Guimarães (2004)
nos ajuda a compreender essa questão, quando coloca que é de grande importância considerar
a escuta como eixo de trabalho, pois é através desse movimento de escuta que se pode “dar
visibilidade às crianças, e às manifestações de suas cem linguagens: dramatizações,
movimentos, gestos, falas, construções com objetos, etc.” (Guimarães, 2004, p.2). Rinaldi
(2016) corrobora com essa visão, quando discorre sobre a importância de uma escuta sensível
e aberta à necessidade do outro, pois para exercer a escuta é preciso que estejamos não
somente disponíveis para compreender as diferenças como também para valorizar um ponto
de vista diferente do nosso. Deve-se pensar na ação de escutar, não somente como um
recurso para a prática pedagógica, mas, como uma forma de compreender e perceber diversas
perspectivas e teorias.
Escutar é uma metáfora do encontro e do diálogo. Como acreditamos na pedagogia
da escuta, a experiência em Reggio, tenta honrar as crianças dando ouvidos a essa
expressão do ser humano. Talvez a pedagogia da escuta possa ser uma pedagogia
que apoie uma forma de viver com a esperança de que seja possível para os seres
humanos mudar (RINALDI, 2016, p. 243).

Que incrível seria se todas as nossas crianças fossem honradas com a pedagogia da escuta, se
todas se tornassem visíveis em suas ações, suas falas, seus gestos, seus desejos.

Entrevista 2: “ela não deixa!”


Pesquisadoras: O que vocês fazem na escola?
Renata: Estudar, trabalhar, fazer trabalhinhos.
Clara: A gente também faz dever de casa.
Pesquisadoras: E o que a professora de vocês faz na escola?

5
Clara: Ela manda dever e manda desenho, várias coisas para nós. E deixa a gente estudar bastante
para aprender.
Renata: Eu acho que ela vem passar trabalho para gente. A gente estuda.
Pesquisadoras: O que você mais gosta de fazer na escola?
Renata: Eu gosto de estudar. Eu queria que a tia Kátia voltasse porque ela é muito legal e ela deixa só
a gente brincar.
Clara: Eu gosto de desenhar, fazer artes.
Pesquisadoras: O que vocês têm vontade de fazer aqui na escola, que ainda não fizeram?
Renata: Eu queria que a tia me deixasse jogar futebol. Tem uma bola lá de futebol que eu amo. Sabe?
Lá no banheiro. Aí eu sempre quis pegar ela, para jogar futebol, para fazer gol. Eu amo futebol.
Pesquisadoras: Vvocês podem conversar com a professora de vocês. E se organizar para jogar futebol
no pátio.
Clara: Mas ela não deixa!
Renata: É, a. A gente conversa, mas ela não deixa! Olha, tem uma bola de melancia na nossa sala.
Agora não pode mais brincar. Eu sou da turma de tarde. Só pode brincar na turma de manhã.

As narrativas das crianças que foram entrevistadas acima parecem indicar reverberam uma
prática na qual as definições da professora prevalecem. O desejo das crianças em jogar
futebol não é considerado pela professora. A frase “a gente conversa, mas ela não deixa”, dá
indícios de que há uma tentativa, explicita a tentativa de um diálogo por parte das crianças,
em tentar negociar, sem sucesso, porém o exercício da escuta não parece ser uma prática
adotada nessa relação. Em nenhum momento o brincar aparece, na narrativa das crianças,
como parte da rotina das crianças. Primeiramente, há a negação do brincar pela professora, e
em seguida, o brincar aparece em uma lembrança de Renata, quando ela recorda como era
legal quando a tia Kátia deixava brincar. Renata diz que não pode mais brincar porque agora
ela faz parte da turma da tarde, e que só pode brincar na turma da manhã. Ao refletirmos
sobre a sua fala, notamos que ela estava querendo nos dizer que, quando ficava na instituição
em período integral, ou seja, quando ainda compunha as turmas de creche, havia espaço para
as brincadeiras, e agora, que permanece na unidade apenas em horário parcial, pois encontra-
se cursando o período pré-escolar, o momento do brincar já não existe mais como prioridade.
Essas mudanças na prática docente e pedagógica, após a transição da creche para a pré-escola,
não são tão incomuns no cotidiano das instituições. Mas, porque será que isso acontece, já
que, segundo a Lei de Diretrizes e Bases - LDB 9394/1996, tanto as turmas de creche como as
turmas da pré-escola fazem parte da Educação Infantil, que é a primeira etapa da Educação
Básica? Tal questionamento nos remete àas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Infantil (DCNEIS), que sinalizam as interações e brincadeiras como eixos norteadores do
trabalho desenvolvido na Educação Infantil.infantil.
Para Santos (2015. P. 229), Benjamin “apresenta uma precisa diferenciação entre a
experiência dos (as) mais velhos e a dos (as) pequenos. Enquanto o adulto descreve sua
experiência, a criança se fundamenta na repetição típica de brincadeiras e dos jogos como

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forma de elaboração de suas experiências.” Portanto, se o brincar não ocupa uma posição
privilegiada no cotidiano das crianças, como elas irão elaborar e nutrir suas experiências?
Benjamin (1933 apud Santos, 2015), discorre sobre a pobreza da experiência, colocando que,
com a modernidade, a experiência torna-se cada vez mais escassa, pois os avanços
tecnológicos tendem a diminuir a memória coletiva dos sujeitos, o que compromete
diretamente a sua capacidade de narrar acontecimentos memoráveis. Diante disso, a
experiência torna-se cada vez mais individual, que deixa de ser compartilhada para ser apenas
vivida. Benjamin (1987), afirma que:
Está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre
1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não
seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes
tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências
comunicáveis e não mais ricos (BENJAMIN, 1987, p. 1).

Dessa forma coloca-se a necessidade de reconstrução da experiência, através do resgate das


narrativas e das memórias coletivas. Se pensarmos na prática cotidiana, o que, além da
modernidade, pode empobrecer a experiência das crianças?
Larrosa (2002) reafirma a pobreza da experiência, citada por Benjamin. “Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara” (LARROSA, 2002, p.21). Para ele, o
excesso de informação pode ser um dos motivos para tal empobrecimento. Se voltarmos à
análise da entrevista, é possível interpretar que, quando as crianças dizem que vão para a
escola para “estudar, trabalhar, fazer trabalhinhos”; “fazer dever de casa”, e que o papel de
sua professora é “mandar dever, mandar desenhos”;“passar trabalho para gente”,
compreendemos uma prática docente pautada na transmissão de informação e no controle das
ações e do tempo das crianças.
Infelizmente, a visão de que as turmas de pré-escola devem preparar as crianças para o Ensino
Fundamental, está ainda é culturalmente enraizada em diversas práticas docentes. Essa visão
necessita ser desconstruída. Porém, tal necessidade não torna o processo mais fácil. Diante
disso, é importante afirmar que “a informação não é experiência. E mais, a informação não
deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma
antiexperiência” (LARROSA, 2002, p. 21). Além do excesso de informação, outro motivo
para o empobrecimento da experiência é o excesso de trabalho. As crianças entrevistadas têm
tanto “trabalho” para fazer, que não lhes sobra tempo nem para jogar futebol, não lhes sobra
tempo para brincar, para ser criança, para viver a sua infância.

Entrevista 3: “brincando, brincando, brincando, brincando.”

7
Alice: A gente vem para escola para estudar, brincar, aprender, desenhar.
André: Aqui tem pouquinho brinquedo. O joguinho da pescaria não tem a varinha. Aí a gente pesca
com o lápis. Eu queria brincar muito. Sabe aonde? Lá na tia Kátia, porque lá tem muito brinquedo.
Pesquisadoras: E os brinquedos daqui? Cadê?
Julia: Só tem ali ó! (apontando para uma prateleira com algumas caixas de jogos).
Pesquisadoras: E quando vocês brincam com eles?
André: A gente desce, faz a rodinha e aí, depois a gente brinca.
Pesquisadoras: E o que vocês fazem na roda?
Alice: A gente ouve história. Conversa. Tem que esperar o amigo falar para poder falar.
André: Um dia eu fui aprender a andar de bicicleta e contei para professora. A gente faz brincadeira
na roda. Brinca de batata quente, gato mia.
Pesquisadoras: E a professora faz o que na escola?
Marcelo: Ela vem para cuidar da gente.
André (5 anos): Ela não é babá! (Interrompe o amigo, mostrando discordar com sua resposta). Ela é
professora. Ela me ensinou a escrever meu nome sem a ficha.
Pesquisadoras: O que vocês mais gostam de fazer aqui?
Alice: Se divertir. Brincando. Brincando com os amigos, sabendo as coisas, brincando com aqueles
brinquedos, brincando com vários negócios.
Pesquisadoras: E você, Júlia?
Júlia: Eu gostava de dormir. Eu gosto da escola da minha irmã porque ela toma banho e dorme.
André: A professora me ensinou a fazer, sabe o quê? Aquilo. As formas (apontando para o mural com
várias formas geométricas). Quadrado, círculo, retângulo, triângulo. Sabia que no Mister Maker tem
isso. Mas só tem na Netflix.

Na terceira entrevista, as crianças nos revelam que nesse cotidiano a brincadeira se faz
presente e assume uma ação privilegiada no trabalho do professor. Em uma resposta dada por
Alice, quando a mesma responde o que mais gosta de fazer na escola, a palavra “brincando”
aparece quatro vezes na mesma frase, o que reforça a dicotomia apresentada na docência
exercida pelo professor da Entrevista 2 e da Entrevista 3. Mesmo quando uma das crianças
alega que naquela sala há uma quantidade pequena de brinquedos e que a vara de pescar, que
faz parte de um jogo, está quebrada, encontra uma solução para dar continuidade à
brincadeira, substituindo a vara por um lápis. As narrativas sobre as brincadeiras aparecem
também nos momentos da rodinha. Além da entrevista, acompanhamos esse grupamento de
perto durante uma semana, observamos que nessa prática a brincadeira é incorporada como
experiência de cultura e não vista como um passatempo ou uma segunda alternativa para
ocupar o tempo de um grupo, enquanto o outro cobre pontilhados ou fazem cópia do quadro.
Ao refletirmos a respeito da brincadeira como experiência de cultura, Borba (2012) surge,
colocando que:
O brincar abre para a criança múltiplas janelas de interpretação, compreensão e ação
sobre a realidade. Nele, as coisas podem ser outras, o mundo vira do avesso, de
ponta cabeça, permitindo à criança descolar-se da realidade imediata e transitar por
outros tempos e lugares, inventar e realizar ações /interações com a ajuda de gestos,
expressões e palavras, ser autoras de suas histórias e ser outros, muitos outros: pai,
mãe, cavaleiro, bruxo, fada, príncipe, sapo, cachorro, trem, condutor, guerreiro,
super-herói (BORBA, 2012, p.66).

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Essa colocação nos remete aos dias em que participamos da rotina desse grupamento. Na
verdade não vimos sapos, fadas ou príncipes. Vimos outros: detetives, mocinhos e bandidos,
que surgiam com armas montadas por peças de lego; manicures e cabeleireiras, que
arrumavam suas clientes para irem para festas; professores e crianças que brincavam de
escolinha, desenhando e escrevendo em diversas folhas de rascunho. Vimos também as
brincadeiras tradicionais sendo aprendidas e reproduzidas pelas crianças em diferentes
momentos. Nessas interações, conseguimos observar, com olhar atento, as relações que se
formam entre a nas brincadeiras como parte da e a cultura. Borba (2012) nos ajuda a pensar
nessas relações, pois diz que, durante a brincadeira, a criança imprime suas experiências
naquilo que faz, comunicando-as e expressando-as, mas também as reelabora à medida que se
reconhece como sujeito que está incluído em um grupo social e em um contexto cultural.
Dessa forma, a criança não aprende somente sobre si, mas, sobretudo sobre a sua relação com
o outro, com o mundo. “O brincar é, portanto, experiência de cultura, por meio, da qual
valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social são constituídos e
reinventados pela ação coletiva das crianças” (BORBA, 2012, p.66).
Corsaro (2002) foi um dos pesquisadores e estudiosos que também delineou a teve a
brincadeira como foco de interesse. Em seus estudos sobre cultura de pares e reprodução
interpretativa, ele afirma que a criança, na brincadeira com seus pares, demonstra a
capacidade de produzir, reproduzir e interpretar a cultura. Para ele, “cultura de pares é
entendida como o conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que
as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares” (CORSARO, 2009, p.32).
Através desse conjunto, ao qual Corsaro se refere, as crianças transformam o seu
conhecimento infantil e as suas práticas em competências e conhecimentos para interiorizar a
cultura adulta e fazer parte dela. “As crianças apropriam-se criativamente da informação do
mundo adulto para produzir a sua própria cultura de pares. Este processo de apropriação
criativa pode ser visto como uma reprodução interpretativa” (CORSARO, 2002, p. 114).
As falas das crianças que foram entrevistadas nos revelaram muitas questões acerca da prática
com crianças pequenas que precisam ainda ser discutidas. São narrativas que nos trazem
informações relevantes para se pensar que concepção de criança e infância queremos
considerar nas experiências que são proporcionadas com o trabalho na Educação Infantil.
Com autenticidade, elas colocam seus desejos, suas angústias. Querem apenas ser crianças,
ouvir histórias, brincar, imaginar. E nós? O que desejamos lhes possibilitar?

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Considerações

Se entendemos a criança como aquela que não só está inserida, mas também participa num
determinado contexto sociocultural, para nós, a prática docente em uma perspectiva dialógica,
é a única que faz sentido, e dá sentido às as ações cotidianas das instituições de Educação
Infantil. É uma prática onde a relação de encontro se faz presente, tornando-se responsável
pela entrega e inteireza dos sujeitos nas relações, onde a alteridade se constrói nas interações,
e, concomitantemente, estamos falando sobre a postura responsiva e ética que o professor
deve assumir em sua prática cotidiana. Entretanto, torna-se evidente que ainda há professores
que, revestidos em sua couraça, não se permitem conhecer o outro, impossibilitando esse
encontro que é tão precioso e necessário para prática docente pautada na perspectiva
dialógica.
Se há diálogo, a escuta atenta e sensível precisa ser também destacada na prática docente.
Dessa forma sentimos a necessidade de dialogar com as crianças, de escutá-las e através de
suas narrativas, buscar compreender, através do olhar das crianças, como elas interpretam o
trabalho docente. Ao longo das entrevistas que realizamos com elas, reafirmamos a riqueza de
suas narrativas e a capacidade de opinarem, e construírem teorias. A fala das crianças nos
remeteu a váriashá várias reflexões e nos mostrou evidências do quanto elas são afetadas, seja
positivamente, ou negativamente, pelos seus professores e de como as açõescomo ações
docentes podem oportunizar, ou não, um lugar de autoria das crianças dentro das instituições.
Entendemos que a docênciaque docência na Educação Infantil é construída tendo como
referência uma determinada concepção de infância e de Educação Infantil. Dessa forma, cabe
pensar qual concepção de infância e Educação Infantil cada um de nós defende e reafirmar a
importância da formação para a prática docente do professor de Educação Infantil. É preciso
que práticas que considerem a criança como sujeito ativo do processo pedagógico,
tomemtome cada vez mais espaço dentro das instituições.

Referências Bibliográficas

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