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Salvador - Bahia

Julho de 2007

A Clínica
Psicossocial
das Psicoses
Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.
Programa de Intensificação de Cuidados
a Pacientes Psicóticos

Parceria:
•Hospital Especializado em Psiquiatria Mario Leal - SESAB
•Curso de Terapia Ocupacional da Fundação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências
•Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.


“Não existe nada mais profundo
e revolucionário nos dias de hoje
do que a preocupação com o outro”

Noam Choamsky

“Se quero o outro comigo,


fraco, cansado ou louco,
tenho que deixar sempre abertas
as portas do meu coração....”

Marcus Vinicius de Oliveira

“De quem será, cuidado?

Fico sempre tão impressionado


com o muito muito que se faz
do pouco pouco que é dado.
Do residir assombrado
que germina assim, tão frágil semente,
ganhando vulto em solo adubado.
De quem será? Do semeador, do semeado?
Vivo a pergunta do mérito,
da relação entre os dois, cuidado.”

Marcus Vinicius de Oliveira


Editor: Marcus Vinícius de Oliveira Silva
Co-editora: Lygia Freitas
Revisão: Lygia Freitas
Editoração: Wendel Barreto
Projeto Gráfico: Wendel Barreto

Apoio: In-tensa. Ex-tensa / Universidade Federal da Bahia. Departamen-


to de Psicologia, PIC ¬Programa de intensificação de cuidados
e pacientes psicóticos.
Ano I, n. I (2007) - Salvador, BA: UFBA, FFCH, 2007.

I.Saúde mental. 2. Psicoses. 3. Pacientes - Psicologia. I. Univer-


sidade Federal
da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Depar-
tamento de Psicologia e Laboratório de Estudos Vinculares e
Saúde Mental.

CDD - 616.89

“Todos os artigos podem ser reproduzindos desde


que citada a fonte”.
© Marcus Vinicius de Oliveira Silva

LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental


Departamento de Psicologia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal da Bahia
End.: Rua Aristides Novis n 2, Estrada de São Lázaro
Cep: 40210 730, Salvador - Bahia
email: levsaudemental@gmail.com
www.lev.ffch.ufba.br
Salvador - Bahia
Julho de 2007

A Clínica
Psicossocial
das Psicoses
Programa de Intensificação de
Cuidados a Pacientes Psicóticos

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia
LEV - Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental.
Sumário
Entrevista • 141 - A formação de díades no trato com a loucura:
acompanhando o acompanhante
• 15 - Entrevista com Eduarda Motta e Marcus Vinícius • 146 - Supervisão: espaço de continência, aprendizado
de Oliveira, supervisores do Programa de Intensificação de e reflexões
Cuidados a Pacientes Psicóticos
Complexidades
Artigos de crença
• 151 - A abordagem da crise na psicose
• 169 - Dança e xadrez: o papel da intensificação de cui-
• 40 - A clínica integral: o paradigma “psicossocial” como
dados no fortalecimento da autonomia de Felipe
uma exigência da Clínica das Psicoses
• 180 - O solitário na multidão: a solidão da diferença
• 42 - Loucura, cultura, instituição e sociedade
• 192 - Transbordamento psicótico: desafios e possibilida-
• 52 - Psicose e ressonâncias sociais
des de intervenção
• 70 - A família na psicose
• 202 - A.T. – que relação é essa?
• 78 - Psiquismo e sociedade: a psicose e os grupos
• 208 - Derrubando muros, construindo vínculos: intensifi-
• 89 - A psicose e as relações vinculares: um esforço de
cação de cuidados no HCT-BA
referenciação teórica
• 216 - Psicose negra: a imagem de si e a recusa do
corpo
Fazendo o PIC acontecer

• 97 - A clínica psicossocial da psicose: aprendizagem,


Ressonâncias
cuidado intensificado e reinserção social
• 223 - Ela não pode ser mãe – quando maternidade e
• 106 - Programa de Intensificação de Cuidados: um
loucura se cruzam
caminho para a qualidade de vida
• 228 - Encontros e desencontros com a psicose
• 114 - Programa de Intensificação de Cuidados: uma
• 238 - Causos dos casos – o incrível poder do vínculo
experiência de intervenção psicossocial
• 240 - Entre amores, quase-amores e não-amores

Estratégias Dados e Eventos


• 125 - A assistência domiciliar no âmbito do cuidado à • 251 - O BPC e a banalização da interdição judicial: um
saúde mental exemplo de atuação clínico-política
• 136 - Atenção domiciliar: uma tecnologia de cuidado • 254 - O PIC em Letra e Número
em saúde mental

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Editorial
As psicoses são tensas. Tensas para fora. Tensas para dentro. Registro de uma experiência subjetiva de
precários equilíbrios do sujeito, instabilizadora de sua presença no mundo social. O sujeito psicótico
vive o enigma da sua pertença como sócio da sociedade como uma produção subjetiva complexa,
tensa e, por vezes, dolorosa. A psicose também se apresenta como fonte de tensão para aqueles que
se dispõem a ocupar um lugar de cuidador diante dela.

A clínica das psicoses é uma clínica tensa. Tensa para dentro, fazendo importantes exigências
subjetivas para que seu agente possa estar bem situado diante de um sujeito que se movimenta em
precária estabilidade possibilitada pelo seu arranjo psíquico. Tensa para fora, exigindo que seu agente
disponha de habilidades de mediador, intermediário entre as necessidades sinalizadas pelo sujeito e
as exigências da cultura.

O ensino da clínica das psicoses é também tenso. Tenso para fora. Espaço de uma disputa teórico-
conceitual entre concepções que divergem sobre a sua natureza e sobre a priorização dos cuidados
que devem ser ensinados aos futuros profissionais. Tenso para dentro: como ensinar? Como aprender?
Como transmitir matéria que articula objetividade e subjetividade, num fazer que se situa nos limites
entre a técnica e a arte?

Os espaços institucionais de cuidado dos sujeitos psicóticos são tensos. Tensos para dentro, no ma-
nejo dos settings que pretendem proteger (a quem?), isolar, excluir os sujeitos psicóticos e o agente de
cuidados no mundo reduzido das hospitalizações, das emergências e dos consultórios acéticos. Tensos
para fora, diante da exigência ética de uma clínica que se construa no território, ocupando a cidade
e fazendo circular as representações estagnadas sobre as potencialidades dos sujeitos atendidos.

In-tensa. Ex-tensa. Neste número, o PIC - Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psi-
cóticos, submete-se à revista. Prestamos contas de um ensino que se faz extra-muros, em que a univer-
sidade executa extensão e pesquisa. Revela o vigor próprio da vida que existe fora das salas de aula
como um recurso de aprendizagem e para a produção de conhecimento. Ensino que articula a teoria
e a prática, prestando serviços à população e participando ativamente da disputa teórica e técnica
acerca dos conceitos que devem orientar a Reforma Psiquiátrica brasileira.

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Intensificação de cuidados versus internação hospitalar: dois projetos distintos em suas éticas, em
suas técnicas, suas formas de se transmitir. Intensificação de cuidados, esforço para identificar, deco-
dificar as necessidades dos sujeitos chamados psicóticos, para fazer segundo suas necessidades e não
segundo as possibilidades – sempre menores e mesquinhas – que geralmente conformam o conforto
das instituições e profissionais. Clínica que se faz onde o sujeito vive e habita, em seu domicílio e com
a sua “comunidade”: sua família e seus conhecidos, os sócios com os quais ele compartilha sua vida
social.

Articulando recursos diversos - Atenção Domiciliar, Acompanhamento Terapêutico, Coletivos de


Convivência, Redes Sociais, Suporte e Assessoria, Cuidados à Família, projetos, passeios, festas e uma
regra única: intensificar os cuidados humanos, realizando as ofertas compatíveis com as necessidades
dos sujeitos, assumindo as responsabilidades através de uma presença intensa e orientada.

Clínica Psicossocial. Resgatamos do limbo este conceito que, apesar de nomear o carro chefe da
nova institucionalização dos serviços territoriais - os CAPS - não parece estar merecendo maiores
atenções. Centro de Atenção Psicossocial, onde o signo em questão parece registrar apenas, sob
forma de junção, a urgência de se considerar uma certa dimensão expurgada – o social – das teorias
hegemônicas da clínica que fazem, no mesmo viés individualista, o triunfo do biológico e do psíquico.
Ilusão, pois fora da sociedade não existe sociedade. Todos os fatos psíquicos são fatos sociais. Não
existe sociedade humana que não se inscreva psiquicamente. Contra o que há que se afirmar: por uma
Clínica Integral das Psicoses. As demais não serão senão a sua redução.

Os artigos que fazem parte dessa coletânea têm o sabor da espontaneidade com que foram pro-
duzidos: por absoluta necessidade dos estagiários darem conta das suas experiências e sem qualquer
exigência acadêmica que os obrigasse a isso – coisa rara e deliciosa para quem trabalha com a trans-
missão. Tentativas de articular a marca de uma experiência forte, que tem como pressuposto a idéia
de que a psicose, ela própria, nos ensina.

Aprendizes de feiticeiros, os estagiários que participaram do nosso programa imprimem nos seus
escritos um pouco de sua técnica e sua arte: um desejo, uma coragem de viver assim tão próximos
deste encontro com a realidade delicada dos sujeitos atendidos, com uma cidade maltratada, com os
domicílios simples e muitas vezes precários, ruas, ruelas, becos, faltas e carências diversas, desorgani-
zação social e psíquica, pobreza e desalento. Para desse mundo tão duro e doído, extraírem a riqueza
dos sons, cores, palavras, encontros que traduzem as emoções proporcionadas pela oportunidade

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de estarem vivendo a vida tal como ela é, fora das salas de aula e das proteções que, muitas vezes,
os mimam e os sedam. Cada um trouxe o que tinha e o que pôde aportar, o que lhe marcou no seu
encontro e enganchamento com a clínica da psicose. Resultado de uma transmissão que se fez.

Supervisores, patronos e cúmplices - Eduarda Mota e eu - cumprimos com satisfação a tarefa de co-
ordená-los e organizar essa possibilidade da sua expressão inaugural, contando cada um o que viveu.
De minha parte, incluo nessa publicação despretensiosamente alguns dos meus “artigos de crença”:
aulas e notas que expressam um esforço pessoal para cultivar a teoria como recurso generoso que,
distribuído, nos iguala e nivela na tarefa-obrigação de sustentarmos publicamente a explicitação do
que fazemos, o que ensinamos, por que o fazemos e por que o ensinamos.

Que a Clínica Psicossocial das Psicoses que juntos temos reinventado nesses quatro anos de existên-
cia do nosso PIC possa nos trazer novas emoções e um próximo número. Que cada texto seja capaz
de falar em nome do seu autor.

Marcus Vinicius de Oliveira Silva


Editor

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Entrevista com Eduarda Mota e Marcus Vinícius Oliveira, supervisores do
Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos 1

Como surgiu a proposta de criação do PIC? ma Psiquiátrica. Todo mundo é a favor de mo-
dernização dos serviços, todo mundo é a favor
Marcus - A grande ques- de serviços que atendam mais integralmente,
tão que nos orientou, no todo mundo é a favor de criar acessibilidade
começo, foi a questão do dos pacientes ao serviço. A grande questão que
enfrentamento da idéia da pega no debate da Reforma Psiquiátrica é quan-
necessidade da “interna- do a gente tem de precisar se a nossa Reforma
ção”, a famosa idéia da ne- Psiquiátrica é uma Reforma que substitui a inter-
cessidade desta ação como nação, se tem a vocação de ser substitutiva à
“retaguarda” para a clínica internação, se tudo isto que estamos fazendo, se
da psicose. O lugar do re- todo este aparato institucional irá substituir a in-
curso à internação talvez ternação ou se o hospital psiquiátrico ou a idéia
seja hoje o ponto central do de leito hospitalar vai continuar operando como
debate ideológico da Refor- um conceito fundamental da Reforma. Então,
esta tensão é uma tensão que nos interessa radi-
1-Esta entrevista foi realizada por Noêmia de Aragão Casais como parte do calizar, porque existem aqueles que defendem a
material de base para monografia do Curso de Especialização em Saúde idéia do leito hospitalar como um componente
Mental do Departamento de Neuropsiquiatria da UFBA e editada por Marcus
fundamental da Reforma, ou seja, que não pode
Vinícius de Oliveira Silva.

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ter a Reforma sem a presença do leito hospitalar montar um monte de CAPS, Hospital Dia, Centros
(aí eu estou falando, principalmente, do leito hos- de Convivência, mas manter em nosso sistema
pitalar em psiquiatria; mas também da idéia do um hospital psiquiátrico “do bem”, um pequeno
leito do Hospital Geral como uma retaguarda da hospital psiquiátrico, aliás, ampliar mais alguns
assistência aos pacientes em crise). leitos para garantir que o paciente, quando entrar
em crise, muito em crise, possa ser internado no
Reforma Psiquiátrica sem o fim dos hospital psiquiátrico.
manicômios?
Mas o CAPS III não teria esta finalidade de
Marcus - Sim. Digo que este é o ponto nevrál- lidar com crises?
gico de disputa do debate em torno da Reforma.
Qual o lugar do leito? O conceito de leito envolve Eduarda - Na Espanha, eles têm Hospital Dia,
o paciente deitado, o paciente fragilizado, o pa- Centro Dia. Mas também
ciente que precisa estar circunscrito espacialmen- têm hospital psiquiátrico
te para receber um determinado cuidado. E então extremamente moderno, e,
existe outra posição que diz que o conceito de quando eu estava lá, eles
leito hospitalar é absolutamente prescindível, não inauguraram um hospital
precisamos do conceito de leito hospitalar para psiquiátrico para adoles-
fazer a Reforma, para fazer a clínica da Reforma, centes com quarto forte
e que contrapõe á idéia de leito hospitalar à idéia todo forrado, com uma
de cuidados intensivos. Porque afinal de contas, parte de informática. Então,
o que o leito hospitalar deveria oferecer é o cui- é uma modernização do
dado intensivo. A idéia de leito hospitalar para hospital psiquiátrico. A con-
qualquer outra clínica da medicina diz respeito à traposição exprime o conceito de albergamento,
circunscrição espacial, espacialidade num edifí- acolhimento, o CAPS III deve fazer a hospitalida-
cio, num prédio, de um conjunto de recursos que de noturna. Mas veja: é a idéia de hospitalidade,
podem ser colocado, simultaneamente, à disposi- e não de hospitalização, um outro conceito. Cabe
ção do sujeito. A pergunta é: o que, na atenção a todos os CAPS lidar com a crise, não se trata de
psiquiátrica, nós podemos defender, que tipo de um lugar, de uma instituição, mas de uma atitude
concepção sustenta que a idéia de leito hospitalar clínica compatível com as exigências de quem vai
é mais adequada para orientar a organização do substituir o hospital psiquiátrico.
serviço? Porque, se for assim, nós temos sujeitos
que vão defender que a gente tem de ter a ins-
tituição psiquiátrica “do bem”. Que a gente vá

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Como surgiu essa idéia de intensificação de cui- qualidade de vida, em sua posição no mundo,
dados? em sua liberdade. E é por isso que digo que não
há um programa realmente, que o programa é,
Marcus - A idéia da intensificação de cuidados na verdade, a presença dos estagiários lá com os
é a idéia de oferecimento de cuidados intensivos pacientes, é uma presença orientada.
a pacientes psiquiátricos que têm história de inter-
nação freqüente e laços sociais muito frágeis. En- Então cuidados intensivos são uma tecnologia
tão, dizemos assim: vamos montar um modelo de de assistência?
atuação clínica, um modo de atuar, ou seja, uma
atitude clínica que possa abordar esses pacientes Eduarda - Com relação ao aspecto da tecno-
e buscar intervir na dinâmica de suas vidas com logia, a nossa é justamente a presença do outro,
essas ofertas. Essa idéia é o nosso grande patri- é a pessoa, é o investimento na relação. Quando
mônio, porque existe uma grande precariedade se faz analogia com o hospital, com a UTI tem a
de nossa estrutura institucional de suporte do es- questão da presença do outro, mas também tem
tágio na instituição, de tal forma que a única coisa toda sofisticação de aparelhagem tecnológica; na
que a gente acabou, não intencionalmente, mas saúde mental, a sofisticação é a da presença, das
por força das circunstâncias, radicalizando foi o idéias, do pensar clínico. É também um pensa-
conceito da presença clínica. O que a gente tem mento sofisticado. É uma verticalização, não in-
para oferecer é a presença clínica e mais nada. A tencional, porque, de fato, nós temos uma posi-
gente tenta articular, através dessa presença, ou- ção periférica na instituição.
tros recursos, mas o programa mesmo só oferece
a presença clínica. Essa atitude que ele tem de Marcus - Estávamos discutindo essa questão,
cuidado intensivo, entendendo cuidado intensi- porque a gente ainda sente que há essa diferen-
vo como intensificação de investimento humano, ciação do nosso programa com a totalidade da
contrapondo à idéia de tecnologia, aparato tec- instituição que nos abriga. Estávamos localizando
nológico, parafernálias institucionais, equipamen- isso. O Mário Leal é uma instituição que ainda
tos e tal. A grande tecnologia é o investimento mantém o modelo bastante tradicional de oferta
humano. Então, o programa está baseado, fun- de assistência, é um hospital referência na Bahia,
damentalmente, na idéia de promover um intenso histórico, inclusive, mas uma instituição tradicio-
investimento humano, cuidado como investimento nal que ainda mantém o modelo antigo de aten-
humano, em prol das necessidades do sujeito que ção à saúde mental. E nós, de certa forma, esta-
está em crise ou deste sujeito psicótico no mundo, mos fazendo uma provocação, que é o oposto.
e ver o que a gente pode fazer, através deste in- Chega a ser quase crua na instituição a presença
vestimento, para produzir uma mudança em sua das idéias da Reforma, sendo um contexto pouco

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sensível à ideologia da Reforma. O Mário Leal Eduarda - Eu acho interessante, também, não
possui ambulatório que funciona, às vezes, com falar de fora, nós estamos dentro de um espaço.
aprazamento de quatro a cinco meses de aten- Na realidade, a gente vem se confrontar com a
dimento, de consulta, de re-consulta, internação prática. Eu trabalhava na internação, na época
psiquiátrica. As pessoas ainda acreditam real- do início do Programa, e ficava numa posição
mente na necessidade de internação. Mas o Má- muito tensa diante dos pacientes dessa clínica. É
rio Leal é um hospital reduzido, com poucos leitos um hospital pequeno, a gente conhece os pacien-
e que aceitou a nossa presença, da universidade tes. Freqüentemente recebíamos pacientes que
e das nossas invenções. voltavam do Sanatório Bahia, do Santa Mônica,
para o Mário Leal. Perguntava o que fazer com
Por que o Programa está localizado no aqueles pacientes dentro desta estrutura, já que o
Mário Leal? ambulatório estava funcionando contra, então o
que fazer diferente daquilo?
Marcus - Bom, primeiro, porque já tinha a Edu-
arda aqui, que trabalhava no Mário Leal. (risos). Marcus - Eduarda, que é professora da FBDC,
Acho que, dos lugares que nós tínhamos, aqui na estava aqui, trabalhando na internação, questio-
Bahia, talvez este fosse o menos hostil. Então, se nando o produto do trabalho dela; e eu estava
o Mário Leal era tradicional, ele é um tradicio- no campo da Reforma, querendo achar um lu-
nal que, dentro da sua tradicionalidade, não é gar para poder montar um programa de estágio
hostil, não foi ostensivo contra a Reforma. Se al- e fazer a problematização conceitual da idéia de
guém quiser fazer acontecer, que faça. Ele não se “internação X intensificação de cuidado.” Então,
envolve, mas também não nos limita. Nós temos nosso encontro foi fecundo nesse sentido, por-
várias direções, vários lugares, muitas delas em que, na verdade eu queria abrir um programa de
serviços públicos estaduais da SESAB, de defesa estágio para os alunos de psicologia da UFBA e
corporativa, porque eles são diretores psiquiátri- ela também. Então, acho que abrimos uma coisa
cos, defendem corporativamente a manutenção que é uma característica muito positiva do Progra-
do status quo. Dizem não a este negócio que está ma, o trabalho com dois grupos profissionais, e
se falando pelo Brasil inteiro, que vai acabar com conseguimos fazer da intensificação de cuidados
o hospital. “Aqui na Bahia não vai acabar. Nós, um objetivo clínico que não é especializado nem
psiquiatras baianos, não vamos deixar acabar, para Terapia Ocupacional nem para Psicologia. A
versão do Diabo, não temos nada a ver com essa gente consegue desenvolver as habilidades carac-
coisa” O Mário Leal tinha esta posição um pouco terísticas, mas a gente não restringe ao modelo
menos hostil à Reforma. estrito de atuação do segmento profissional. Não
é dividido em T. O. e Psicologia, mesmo porque

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a atuação do CAPS não fecha na especificidade. o lugar menos hostil. Eduarda era uma pessoa
Claro, nós estamos preparando profissionais para que dava para conversar dentro das disputas, dis-
o mercado de trabalho atual no meio psiquiátri- putas políticas de Reforma, que eu me envolvo
co. por ser do movimento social, aqui era o lugar me-
nos contaminado. E também porque pensei: Poxa,
Mas como combinar o que é especifico de cada aqui é um lugar menor, é um hospício pequeno.
grupo de estagiários e o que é comum? A conjuntura do lugar, do tipo que seria possível,
como foi. E, apesar de a gente falar que a gente
Marcus – Usamos a idéia de núcleo e campo. é um tanto marginal, de a gente estar um pouco
Existe o campo que é de todos. Então ao cam- fora, a instituição não nos abraça, mas também
po que é de todos, nosso estágio dá preferência. nos tolera bem, cria até um mínimo de tensão.
O campo dessa clínica, dessa atuação intensiva, Eu acho que poderia ser menor, mas a gente tem
dessa atitude clínica, deve ser de todos: os enfer- conseguido.
meiros, psicólogos, assistentes sociais, etc. É uma
atitude, uma postura, e óbvio que cada um a par- Eduarda - Na verdade, há quatro anos tra-
tir de uma ferramenta do seu núcleo específico, balhamos com pacientes indicados pela institui-
disciplinar. ção. Então, nós fazemos a reunião, supervisão do
Programa aqui. Já pensamos assim, por que não
Eduarda - No estágio, isso é um diferencial. fazemos a supervisão fora daqui, na FBDC, no
Já temos quatro anos de Programa, e foi um en- espaço da UFBA? A gente mantém esta coisa de
contro importante, no sentido institucionalmente fazer aqui dentro, porque a gente quer caracteri-
produtivo; já passaram não sei quantas pessoas zar. Às vezes temos problemas de sala, de espaço,
por aqui, já abrigou muita gente. Já são oito se- mas queremos caracterizar que é um Programa
mestres de atividades. Um aluno, ex-estagiário, no Mário Leal, e com o Mário Leal. Não é um
passou em primeiro lugar agora na residência em Programa clandestino.
saúde mental da UNEB. Outra passou para a re-
sidência de Psicologia do Juliano Moreira. Então Como se dá a apresentação do programa aos
nossos estagiários estão se destacando. usuários?

Marcus - Acho que é isso aí, estas apostas, es- A apresentação é feita pelos próprios estagiá-
tes espaços para formar, ensinar. A gente vem de rios do PIC que oferecem a possibilidade do pa-
culturas profissionais diferentes, mas a busca é de ciente ingressar. A gente assume a identificação
se encontrar. É isso aí. Foi um encontro. Aqui, por institucional como um programa do Mário Leal,
quê? Por essa coincidência. Para mim também foi pois não estamos fazendo nada clandestino. A

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gente não é oficial do ponto de vista da ideologia, sível produzir na vida dessas pessoas, manejando
da atitude. Fazemos questão de defender como se um conjunto de atitudes para que elas possam
fosse um algo mais, um plus do serviço do hos- não precisar de internação. Nós estamos fazen-
pital para os pacientes. E nós temos a liberdade do, na prática, um debate entre intensificação de
de triar os pacientes segundo nossos critérios. A cuidado e necessidade de internação. Então, nós
instituição não nos impõe isto segundo os critérios estamos dizendo assim: nenhum paciente precisa
dela. Nem número de pacientes, até na estrutura ser internado. Alguns precisam de cuidados in-
inicial do programa. tensivos, porque seus casos são muito graves e
precisam de uma atenção diferenciada se a gente
Qual é o critério de seleção dos pacientes? não quiser interná-los. Então a gente está inver-
tendo um pouco, tem um caráter demonstrativo;
Eduarda - Inicialmente, o primeiro critério foi a o programa de uma perspectiva teórica e técnica
internação e a reinternação. Aqueles que tinham dentro da Reforma Psiquiátrica. O que a gente
um ciclo de internação freqüente, pacientes jovens provoca nos alunos hoje é que todos os pacien-
que, depois da primeira internação, sofrem com tes acompanhados precisam de cuidado intensi-
a internação e aí começa uma carreira. Este foi e vo. Mesmo compensados, é preciso estar sempre
é o primeiro critério. Importante relatar um caso: com a antena ligada.
Um paciente que tem a primeira internação com
quinze anos e, com dezoito, já tem quatro interna- Existe um critério de idade para ser aceito?
ções. Este é um paciente típico que nos interessa.
E é um paciente considerado difícil, é a “carne Eduarda - No inicio, até se tentou, mas não se
de pescoço” para quem trabalha com internação, conseguiu manter este critério. São duas idéias:
porque ele volta e com o mesmo quadro, justifi- uma era por pacientes mais jovens e outra que
ca a internação para a equipe. Supostamente ele não tivessem muitas perdas cognitivas. Mas aca-
precisa estar internado, porque se pensa que uns bou predominando o critério de se internar muito.
não têm jeito, você precisa interná-los. Agora se aceita quase tudo, o que se interna muito
e está muito abandonado e sozinho. Por exemplo:
Marcus – E então são esses que se internam tem um paciente com mais de vinte internações
freqüentemente, os que não têm jeito, os que na vida. Paciente que leva a vida inteira sendo
“têm de internar” que nós buscamos. Uma aposta internado, passa dois dias em casa e é internado,
no contrário. Ao tomar esta clientela, aceitamos a indo assim de um lugar para outro. Hoje temos
provocação, bem são estes aí, os “taizinhos” que uma grande dificuldade em mantê-lo fora da in-
não têm jeito, que têm de viver internados, preci- ternação. Na verdade, a gente passou os últimos
sam de internação. Então, vamos ver o que é pos- meses praticamente sem que ele fosse internado.

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formou no contrário, nós que passamos a ser um
recurso do CAPS. Este serviço, ao invés de apor-
tar novos recursos, aportou apenas, como recurso
fundamental para o paciente, a alimentação, por-
que ele não tinha como comer e, ao freqüentar
aquela instituição, começou a ter comida, com
muitas tensões, porque o CAPS fica muito irritado,
já que o paciente vai lá para comer e não adere
aos outros tratamentos.

Os recursos da clínica do CAPS são


insuficientes?
Hoje, por acaso, ele está internado. Está interna-
do, porque nós somos muito insuficientes como Marcus - Nós temos uma crítica, que é a críti-
programa, somos muito limitados. Ao limitarmo- ca exatamente do que os gestores da política de
nos à mera presença, nós nos damos conta de saúde mental estão fazendo – monta-se um equi-
que ela não é suficiente. pamento, mas não se tem a ideologia da intensifi-
cação de cuidados. Então o CAPS termina sendo
Marcus - É preciso também os recursos estru- um lugar muito hostil, pouco acolhedor, pouco
turais, institucionais. Diria que, se nós tivéssemos sedutor, para que o paciente possa se vincular.
hoje o manejo de recursos estruturais/ institucio- E nesse caso nos acabamos sendo o recurso do
nais, certamente ele não estaria internado. Es- CAPS. Apesar do programa do CAPS vir como
tou falando de uma atitude mais acolhedora na algo muito mais instituído, mais chance de gera-
emergência, uma atitude/postura mais agressiva ção de recursos, de intervir no caso desse pacien-
da instituição no sentido de ser mais bem articula- te, nós passamos, praticamente, a contar com, o
da com a política integral da cidade, com a rede. CAPS para a alimentação, para você ver como a
Se a gente tivesse isto, ele não estaria internado. questão é social. Nós conseguimos que o CAPS
Ele não foi internado por uma questão psíquica. fosse um recurso para produzir alimentação, mas
Foi internado, pois nós não conseguimos superar, não para intensificar cuidados junto ao paciente.
com a mera presença, o grave déficit social. E, di-
ga-se de passagem, este caso é bom, porque nós Eduarda - Ele tem uma situação social pecu-
fizemos uma intermediação deste paciente para liar. Ele mora num buraco com dois cômodos sem
ser atendido no CAPS, que devia, este espaço, luz, sem água e sem gás, sujo. Mora numa cova,
possuir mais recursos do que nós, mas se trans- um verdadeiro antro. Quer dizer, estas situações

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sociais, que nós estamos pelejando aqui, mas que segue dialogar por quê? Porque falta repertório
são limitadas pela mera presença sem institucio- clínico, e é aí que entramos no seu assunto.
nalidade. Então, nós não temos problemas, não
temos de demonstrar que os pacientes do pro- Então o que faz a diferença é a ideologia
grama nunca mais foram internados, basta ter da clínica?
um programa como este. Claro que nós estamos
dizendo que o manejo clínico produz alteração Marcus - O grande diferencial do PIC, talvez, o
substantiva na qualidade de vida, na continência que a gente está querendo instalar, é um novo re-
social. Altera muito as chances de o sujeito ser pertório clínico, uma nova atitude para o exercício
internado. da clínica com essa clientela. Esta lógica que es-
tamos querendo problematizar, esta lógica, exata-
Marcus - O paciente citado passou um ano mente, que clínica é essa? O grande problema da
sem se internar, e isso só aconteceu porque nós Reforma Psiquiátrica, hoje, é a questão da incon-
operamos o tempo todo ao lado deste sujeito. sistência da clínica que é feita. Há uma ideologia
Quer dizer, este sujeito não precisa de internação, geral, há um repertório de atitudes prescritas, mas
precisa de alguma coisa que o programa sabe, existe um limite para operar na clínica. Então, o
mas não tem para dar. Mas sabe que é possível PIC está baseado no esforço teórico e prático de
dentro de uma política pública de ser oferecido uma fundamentação de uma clínica psicossocial
para um cidadão portador de transtorno mental. com psicóticos, uma clínica que articule, no mes-
O que ele precisa não é nada estratosférico fora mo movimento, a questão da subjetividade e do
do campo do que uma política pública de saú- pertencimento social. Não a clínica que tome a
de mental pode oferecer. Nós sabemos do que questão da subjetividade como uma questão de
ele precisa, mas não podemos oferecer, porque indivíduo que está disfuncional e opere na clíni-
somos um programa limitado. Mas a tecnologia ca da falta de funcionamento psíquico do indi-
de intensificação de cuidados evidenciou ser um viduo e trate como uma outra coisa a questão
caminho certo para operar com este tipo de sujei- do pertencimento social, dos laços sociais e da
to. Quando convocado, o CAPS mesmo afirmou sociabilidade dos sujeitos. Ela é uma clínica muito
que se tratava de caso para internação. O CAPS empírica. Dentro dos CAPS, hoje, fazem-se mui-
até agora associou as forças expulsivas. Fizemos tas coisas, fazem-se muitas ofertas, mas a articu-
todo movimento (durante um ano) para mantê-lo lação, a fundamentação, a estruturação de uma
fora do hospital psiquiátrico, e o que o CAPS tem reflexão sobre condição psíquica e pertencimento
a dizer sobre este caso é que ele é um caso para social, pertencimento social e condição psíquica,
internação. Caso de internação por quê? Porque isto não está sendo feito.
ele não consegue dialogar com o caso. Não con-

22
Qual é o diferencial da teorização do PIC do social como se ela fosse uma questão distinta
em relação à clínica psicossocial dos psicóticos? da questão da estruturação psíquica individual.
Normalmente não têm repertório, é como se isso
Marcus - É o esforço de produzir um pensa- não lhes pertencesse, e como se diz no prontu-
mento que orienta a ação, uma atitude clínica, ário, a minha parte é até aqui, ali é o social e
baseada numa articulação que não os vê como sobre o social eu não tenho o que fazer. Inclusive,
dois âmbitos diferentes. Estruturação psíquica e é um jogo de empurra, é como se dividissem os
pertencimento social são duas coisas que estão pacientes em vários. Um lado é o social, outro
em mão dupla o tempo todo, em tráfego intenso, o psíquico, outro lado é das drogas, outro é a
e quem quiser trabalhar nesta clínica, ser efetivo família, como se o paciente fosse um bocado de
nessa clínica, trabalhar integralmente, tem de ser coisas separadas.
capaz de não separar, de não distinguir isto, mas
operar com uma coisa operando com a outra (es- Marcus - Eu acho que essa clínica, que se cha-
trutura psíquica e pertencimento social, pertenci- ma “clínica ampliada”, ela vem mudar essa visão.
mento social e estrutura psíquica). Talvez assim, o O paciente não é só uma soma de um monte de
que nós temos recenseado mais, o maior esfor- coisas, que não opera sobre os sintomas, ope-
ço que a gente tem aqui é de fazer essa costura. ra sobre a presença do sujeito no mundo; consi-
Ensinar a clínica em que não se separa, agora deram-se as dificuldades psicológicas, subjetivas
o social, agora o psiquismo. Mas agora a gente para a presença desse sujeito no mundo e se con-
pensa o psiquismo como sociedade, sociedade sidera que, efetivamente, o mundo é o lugar que
como psiquismo, em vínculo, ou laços sociais, em realmente é difícil para o sujeito estar se ele não
relações, em sociabilidade, em pertencimento, está operando num certo registro da normalida-
em convivência, em expulsão social, em exclusão de. É tentar produzir este diálogo entre o mundo e
social, pensa todas essas coisas. Em estruturação o sujeito, o mundo psíquico do sujeito e a cultura,
do sujeito, em delírio, enfim, toma essas coisas a cultura e o mundo psíquico. Eu acho que a gen-
todas como produção que está no campo, que te trabalha muito forte com essa questão de per-
precisa ser trabalhada, estudada. tencimento na cultura, a idéia da psicose como
uma dificuldade de ser sócio da cultura e de que
Eduarda - Eu acho, pessoalmente, que o cam- nosso trabalho, nossa clínica é exatamente essa
po da teorização da clínica da saúde mental é um de criar possibilidades, de ampliar as chances de
campo que valoriza muito a questão do indivíduo esse sujeito pertencer à cultura. Às vezes eu digo,
e da abordagem individual. Os profissionais não um pé na cultura: “cultura, tem paciência, afinal
têm repertório para lidar com a questão social e, de contas esse sujeito está psicótico”; um pé na
quando têm esse repertório, lidam com a questão psicose: “psicose, tem paciência, não fique nessa

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posição, afinal de contas a cultura não perdoa, psicose. Tenório fala que quanto mais pertencente
a cultura é exigente, não vai deixar você ficar a alguma coisa (várias coisas) maior grau de au-
nessa posição”. Então um pouco essa idéia de tonomia esse sujeito adquire.
mediador.
Marcus – No PIC, a gente lidou com vários
A mediação seria uma nova função do profis- casos de recusa do paciente que a gente aplicou
sional de Saúde Mental? aquela idéia da reforma psiquiátrica italiana, da
lei 180, que afirma: o paciente tem o direito de
Marcus – É assim que vejo. Esse operador da recusar tratamento, a unidade de atenção à saú-
saúde mental como mediador dessa tensão entre de mental tem a obrigação de oferecer o aten-
a disfunção psíquica e a disfunção social, criando dimento. Então, colocar essa contradição, esse
a possibilidade do cabimento da disfunção psí- direito de recusa e a obrigação da oferta como
quica no funcionamento social. ponto de negociação. Porque se um tem o direito
de recusar, o outro tem o dever de ofertar. Você
Eduarda - Ela é uma clínica sofisticada, né, faz o ponto de tensão que só pode ser solucio-
Marcus? Você precisa da alteridade, que é outra nado através do ponto de negociação. O serviço
coisa que a gente trabalha também, alteridade no tem de ser capaz de convencer o sujeito que ele
lugar da autoridade. Eu acho que inicialmente é vai receber o serviço. E o sujeito? Respeitando o
uma questão para os estagiários, elas vão visitar sujeito, ele tem o direito de recusar, ou seja, se o
os pacientes do programa que se encontram in- serviço não for convincente, ele não vai cumprir
ternados em hospitais, e às vezes no CAPS tam- sua função se ele não tem de convencer o pacien-
bém, as equipes de lá ficam dizendo: “ah, vocês te que ele deve aceitar. E ele só deve convencer,
são babás dos psicóticos. Aqui nós damos auto- não pode impor à força, porque o paciente tem
nomia”. Então, tem uma leitura equivocada dos o direito de recusar. Em vários casos aqui a gente
termos que são hoje em dia socialmente corretos, usa esse paradigma, sobretudo os casos de pa-
politicamente corretos. Autonomia é um termo cientes que dizem assim: “eu não quero ver vocês,
que é comum hoje na saúde mental, mas autono- vão embora”. Aí a gente diz assim: “você tem o
mia como desresponsabilização. Então, tem esse direito de não querer ver a gente, mas a gente
detalhe ético. É um equívoco o que está aconte- tem a obrigação de vir cá e dizer que a gente está
cendo com o termo “autonomia”: “os pacientes à sua disposição”. Então, temos aí um problema.
têm autonomia, eles tomam medicação se eles O seu direito é o nosso dever, nosso dever ético
quiserem, eles vão ao caps se eles quiserem, não de te perceber numa condição fragilizada e de
temos nada com isto”. Vêem autonomia como perceber suas condições de fazer estas delibera-
desresponsabilização do técnico em relação à ções sobre seu desinteresse por nós. Porque você

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está supondo que nós estamos no lugar de perse- mento. Na verdade, não é a tecnologia que é so-
guidores, porque você está supondo que vamos fisticada, é o pensamento sobre essa difícil atitude
colocar você nesse lugar hostil. Nós não estamos que é oferecer uma clínica para essa clientela.
nesse lugar hostil, sabemos eticamente disso, va-
mos só sustentar nossa presença até a hora em E qual a relação do acompanhamento terapêu-
que você tope conversar com a gente. tico com o programa, como é que ele entrou?

Eduarda – Em vários casos a gente teve de Marcus – Na verdade, hoje eu penso que cada
aplicar isso aqui. Tá certo, isto é um problema, vez mais nós tendemos a definir a clínica como
senão a gente se demite da responsabilidade do baseada no manejo das relações vinculares, des-
problema: “você não quer, você não quer! É pro- de o conceito de transferência (strictu sensu), con-
blema seu” – é assim que o CAPS faz: “estou res- ceito já consagrado na clínica da saúde mental.
peitando que você não quer”. E eu pergunto, não Nós extrapolamos esse conceito de transferência e
é engraçado? Quando ele quer se jogar lá do manejamos múltiplas relações vinculares. Isto, de
alto, acho que posso intimidá-lo, não respeito o alguma forma, pode definir essa clínica como clí-
que ele quer! Quando acho que ele diz que vai nica do manejo das relações vinculares. Por isso,
matar alguém, eu interno e não respeito o que no lugar do estágio, nós dizemos que trabalha-
ele quer! Agora, quando ele diz para mim que mos com a clínica que preserva a relação transfe-
não quer a minha presença, eu rapidamente faço rencial, e, para isso, delimitou-se um setting para
concordância com ele e digo: “eu respeito o que preservar a relação terapeuta-paciente, porque
você quer”. Então é uma coisa meio de conveni- aquela relação vincular promove os efeitos tera-
ência. pêuticos (você pode chamar isso de reforço de
pureza, pureza do vínculo transferencial isolan-
Marcus - Esse é um ponto legal, um ponto ra- do através do setting). A questão é que o setting
dical. Tivemos aqui três ou quatro casos em que do serviço substitutivo é exatamente o setting da
tivemos de enfrentar isso, ação de nos demitirmos contaminação, não tem esta pureza, as relações
da responsabilidade. Vimos que o problema era vinculares são atravessadas, ligadas por muitos
um problema da nossa dinâmica clínica, então aspectos, muito dinâmicas. Então, temos aí um
nós fomos desafiados a mudar nossa dinâmica fato, é uma condição nova. E o saber psicológico,
clínica de abordagem para permitir que o pacien- psicanalítico, relação psiquiatria-médico-pacien-
te se sentisse confortável para aceitar nossa oferta. te, ela não se preparou para lidar com essa di-
Então, na hora em que ele se sentiu confortável, mensão das relações vinculares transversais, para
ele aceitou nossa oferta. Então, esse é o ponto em lidar com a dimensão das relações vinculares res-
que nós trabalhamos com um sofisticado pensa- tauradas nos processos de convivências coletivas.

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Então, é uma clínica que não sabe sobre isso, ela escuta sicrano, ou seja, maneja-se esse conjunto
não tem recurso de pensamento. de relações no ambiente da família. Outra coisa
que a gente faz é uma aposta no trabalho com a
Então o vínculo é um conceito central sociabilidade. Então, o trabalho com a sociabili-
para vocês? dade, com os pacientes, o esforço de produção
da sociabilidade, ela define o espaço do trabalho
Marcus - Essa clínica está baseada nesse re- grupal. E a gente mantém um grupo, o grupo do
curso, manejar as relações vinculares como orien- encontro, que é uma modalidade que a gente está
tação nessa clínica. E aí, a gente vem trabalhando ainda ensaiando. Este espaço de grupo é um es-
com a idéia de que nós fazemos muitas ofertas paço importante. Dentro deste espaço nós temos
(não ofertas tipo pacotes), de que o programa, um tipo de oferta que é um esforço para olharmos
na verdade, é baseado em várias possibilidades, as necessidades sociais integrais.
em articulações dessas relações vinculares, e uma
dessas possibilidades é essa coisa de atenção do- Marcus – Retomando a sua pergunta. Um
miciliar. Hoje o paradigma da atenção domiciliar desses componentes que usamos nesse manejo
começa a ser desenvolvido no PSF, na idéia de múltiplo é o componente do Acompanhamento
medicina da família, algumas coisas começam a Terapêutico ou AT. Tanto na dinâmica da relação
ser desenvolvidas a partir do saber sobre atenção grupal, nos processos grupais, isto porque o pa-
domiciliar. Atenção domiciliar é tomar o lócus do ciente vem para o grupo acompanhado, vem in-
domicílio como lócus de ofertas de atenção. O troduzido no grupo com o acompanhante, quan-
setting completamente tenso, conturbado, confu- to nos passeios coletivos de todos os pacientes,
so, às vezes a gente vai lá fazer a oferta dentro quando os estagiários saem com os pacientes
desse setting, tomar o domicílio como setting da em grupo, que também divergem da estrutura
oferta. Talvez esse seja um ponto forte sobre o típica do acompanhamento terapêutico, em que
qual a gente nem saiba tanto, mas a gente apos- um acompanha um. Aqui, muitos acompanham
tou nele, e ele foi revelando uma potencialidade. muitos. E também temos a dinâmica do AT stric-
Talvez os PSFs tenham um saber sobre isso, dife- tu sensu, porque, às vezes, com cada paciente,
rente do saber que nós estamos produzindo, que há uma dinâmica relacional, às vezes a dupla sai
é o manejo das relações vinculares transversais, com um para isso, para aquilo. Às vezes sai com
cruzadas, enfim. dois também, mas o mais comum é sair a dupla
com um paciente, fazer coisas da necessidade do
Eduarda - Nós trabalhamos com as duplas, paciente na rua, coisas ligadas à cidadania: tirar
pessoas que vão para dentro das casas. As ar- identidade, título de eleitor, benefício, ministério
ticulações das duplas: uma escuta fulano, outra público, não tem regras.

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A intensificação de cuidados então é mais
ampla do que o acompanhamento terapêutico?

Eduarda - Temos de enfatizar mais a questão


do trabalho com as redes sociais na comunidade
a partir do núcleo familiar. Você toma o núcleo fa-
miliar, a atenção domiciliar e uma certa expansão
disso para outras relações, dos pacientes com, os
amigos por exemplo. Aspecto importantíssimo é
a articulação com os vizinhos, com a igreja, com
a comunidade, com a rua, com a barraca em
frente. A gente tem casos de a comunidade fa- esse paciente conversasse com ele para que ele
zer movimento contra o paciente, de brigar. Tem conseguisse se alimentar, para produzir uma in-
uma situação em que o paciente xingou a mãe de terferência a partir de uma outra relação que é
significativa para ele, para interferir no caso dele.
alguém, e esse foi lá brigar, bater no paciente, e
E tem um caso interessante de estagiários que fo-
as estagiárias lá na casa tiveram de contornar, do
lado do paciente, intermediar, e depois voltaramram fazer uma visita a um paciente que mora aqui
para trabalhar com os vizinhos, com o grupo de perto do Mário Leal e foram assaltados no meio
adolescentes para poder conviver de uma outra do caminho. Aí roubaram a bolsa e o celular dos
maneira. Articularam a rede objetiva e subjetivaestagiários. Eles voltaram para o Mário Leal, a
mesmo. moça chorando, o rapaz não podia chorar, por-
que “homem não chora”. E todos num clima de
Marcus - Fazer advocacia do paciente na co- drama, porque afinal de contas, “veja como é ar-
munidade é emprestar o poder contratual, é aju- riscado esse programa, colocou os estagiários em
dar a negociar uma melhor posição diante do risco, eles foram à comunidade que moravam as
outro, usando o poder das estagiárias: “olha, pessoas pobres, perigosas, que assaltam as pes-
comunidade, vocês têm de ter paciência com o soas”, todo um drama. E, enquanto estão todos
cara, porque ele está muito mal”. lá, discutindo esse drama, vem a paciente trazen-
do a bolsa da estagiária, dizendo “eu estava na
Eduarda - E às vezes o contrário também, porta da minha casa, de repente vi fulano passar
às vezes o paciente entra em crise, não quer se com uma bolsa e reconheci, aquela bolsa é a bol-
alimentar e tem um pastor que é um integrante sa do meu estagiário. Corri lá, falei com não sei
importante na vida desse paciente, e bastou que quem, e não sei quem foi lá e trouxe a sua bol-

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sa. Tome aqui sua bolsa, na minha comunidade a que interroga hoje os nossos serviços. Os serviços
sua bolsa não será roubada”. hoje estão cheios de pessoas que, ao invés de
suportar a psicose, agridem a psicose com uma
Marcus – É, pelo ponto de vista do laço social, certeza clínica que advém da teoria psicanalítica,
produziu proteção para os estagiários, pela ques- da psicopatologia psiquiátrica, enfim, das diver-
tão do vínculo, do manejo. Em todas essas ope- sas formas de localização do sujeito psicótico.
rações, há questões que nos fazem aproximar da
temática do AT. Entretanto nós produzimos cursos Os serviços não estão preparados para lidar
sobre AT, incentivamos, enfim. Nos interessa mui- com os pacientes?
to qualificar as principais funções típicas, o modo
de operação típica do AT, ainda que isso esteja Marcus - Acho que pouco preparados, teórica
calcado na perspectiva didática, de uma díade e tecnicamente, para a clínica com psicóticos. Eu
do acompanhante e paciente. Nós achamos que olho aí, esse é pensamento meu, e vejo que há
isso pode ser uma base nuclear interessante, para uma asfixia tática que impede qualquer clínica de
pensar na questão da continência, do holding, de prosperar com esse sujeito esquisito aí, arranja-
uma série de funções que o AT pode exercitar. É, a do psiquicamente ao modo da psicose. Com esse
dinâmica psíquica do psicótico, ela é muito com- tipo de fechamento, em que a teoria hegemônica
plexa, toda informação teórica, clínica que puder produz a certeza sobre o que o sujeito tem, se
ajudar para que um sujeito compreenda melhor é incapaz de produzir qualquer efeito dialogante
o que significa estar diante de um paciente psi- com a psicose. Então, eu acho que isso aí é perda
cótico, acho que essa é a matéria principal que de tempo. A atitude clínica que a gente desenvol-
tem faltado no mercado, que é um preparo para ve é essa atitude que tenta produzir a condição
que os sujeitos possam se localizar diante desse de suportar.
enigma, que é a psicose, se é que é possível isto.
Que o sujeito possa ter um repertório mais elásti- O acompanhamento terapêutico não seria um
co para se movimentar diante do sujeito psicótico. recurso útil aí?
A gente acha que este programa é um preparo,
um tipo de preparo para o trabalho, e, no caso, Marcus – Há um saber sendo produzido nes-
este preparo a gente procura trabalhar aqui no sa relação diádica do acompanhante terapêutico
estágio. Na verdade, o que a gente está prepa- com o acompanhado que nos interessa, que é
rando nesses estagiários é uma atitude para uma uma matéria útil para o nosso trabalho. Agora, a
postura. Lição número um para quem quer traba- gente acha que o AT é o recurso, ou é o melhor
lhar com pacientes psicóticos: é preciso aprender recurso? Não! Porque o que estamos falando é de
a suportar a psicose! Esse é um ponto de partida manejo das relações vinculares. Se a gente tem

28
uma crítica ao abuso do setting tradicional que, um psicólogo ou psicanalista, e aí tem um AT. O
para manejar as relações vinculares, isola a rela-
AT para possibilitar as dinâmicas da sociabilida-
ção vincular, que protege o lugar da relação vin-de. É como se cada um desses sujeitos tivesse de
cular, que, para isso, tem de se fechar numa sala,
preservar um campo de especificidade da sua
trancar seu diálogo entre quatro paredes, porque atuação para garantir a efetividade do que ele
só assim vai produzir esse laço que vai permitir faz. E aí nós estamos propondo algo diverso com
a interferência transferencial. Se a gente identifi-
essa idéia de cuidado intensivo, baseado no ma-
ca tudo isso, é lógico que a gente valoriza o AT,nejo das relações vinculares, múltiplas, diversas,
na medida em que o AT rompe com esse setting aquelas que foram fundamentais para o desen-
e coloca o sujeito numa situação de exposição. volvimento do CAPS como projeto de instituição
Ele cria para o AT a necessidade de flexibilidade,
de cuidados aos psicóticos. Estamos perguntan-
de lidar com as situações de transversalidades, do, na verdade, que especificidade é essa onde
com os atravessamentos, com a simultaneidade, um escuta, o outro medica, e o outro circula pela
com a multiplicidade de situações. Então, o AT é cidade? Que história é essa? Que lugar é esse?
progressivo em relação ao tema de ruptura com O grande desafio é perguntar: alguém é capaz
o setting clássico da clínica, que tenta reduzir a
de trafegar por tantas posições diante do sujeito e
relação do sujeito pelo recenseamento simbólico sustentar sua posição de alteridade diante dele?
que ele apresenta no contato. Ou pela postura A exposição à convivência do profissional com o
ou pela atitude física do paciente tenta-se deduzir
sujeito atendido em múltiplas situações, múltiplos
coisas sobre ele. O AT entra na vida do pacien- espaços, múltipla referência, coloca que tipo de
te, tem mais chances de receber do paciente in- risco? Coloca o risco de que a alteridade seja per-
formações, perceber, fazer leituras interpretativas
dida, mas isso é um problema da relação vincu-
acerca das dinâmicas subjetivas, psíquicas do pa-lar, esse é um problema do material, do preparo
ciente psicótico. do sujeito que está posto nessa relação. Talvez o
E quais seriam as limitações do AT em relação que nós estejamos dizendo, querendo dizer, é que
à proposta de vocês? talvez seja possível para um sujeito experimentar
múltiplas posições diante do paciente sem perder
Marcus - O AT ainda está mantido no registro a posição da alteridade.
de uma sociabilidade privatizada, ou seja, a re-
lação diádica ainda é tida como ponto principal Como se articula essa questão da alteridade
da sustentação. Mas acontece uma coisa interes- com a noção de vínculo?
sante, lá em São Paulo, onde essa prática é mais
difundida, onde se vêem casos assim: um pacien- Marcus - Esse tema é muito interessante, por-
te, para ser cuidado, tem de ter um psiquiatra, que, muitas vezes, existe uma confusão entre a

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posição que sustenta a alteridade e a perspectiva só vai exigir que esse profissional seja um profis-
moral que exige dos psicóticos uma submissão à sional mais permanentemente atento e mais de-
autoridade. Fica aquele papo da alteridade como vidamente centrado na sua função, no seu saber,
autoridade, e, muitas vezes, fica parecendo que na sua localização no mundo. Ou seja, vai exigir
a figura da alteridade é exercício de autoridade. um profissional mais sofisticado. Agora, nós não
Autoridade: eu sou um médico, eu sou um psica- podemos querer colocar as pessoas em ambien-
nalista, eu sou seu AT. Fica parecendo que o que tes, em settings absolutamente diversos, múltiplos,
sustenta a relação vincular é uma certa autorida- movimentados, coletivos e manter a referência te-
de do saber sobre a psiquiatria, sobre psicanálise, órica, interpretativa da clínica no registro da rela-
sobre AT; e não a postura do cuidador que conse- ção diádica.
gue manter-se na condição de um “Outro” válido
diante do psicótico. No CAPS, eles dizem não ser Eduarda - Temos podido desenvolver essa pro-
possível suportar a convivência, suportar o grupo, blemática, a problemática de como que a gente
porque eles aprenderam teoricamente que têm de pode, sem culpas e sem dar satisfações a nenhu-
lidar no espaço neutro, no espaço que não conta- ma igreja teórica específica, tentar produzir uma
mine. Se eles estão no grupo, se estão no espaço clínica baseada na alteridade e no vínculo, sobre-
da convivência, eles se expõem, entram em cho- tudo considerando que, de vez em quando, você
que contra sua própria questão. pode não conseguir, que de vez em quando você
vai falhar, você vai se perder, mas ainda assim,
O vínculo seria um tipo de transferência? sem culpa, sem aquela obrigação, sem aquela
imposição, sustentar a busca de uma clínica que
Marcus - Ou a transferência que é apenas mais se envolva na complexidade das relações sociais
um tipo de vínculo? Entendeu? Nós estamos, na concretas que definem as possibilidades e as po-
verdade, fazendo uma provocação do campo, o sições dos sujeitos no mundo. Resistir à tentação
principal campo orientador da fundação teórica de reduzir a complexidade do sujeito para caber
do preparo para a clínica mental que é a psica- nas nossas conveniências teóricas.
nálise. E ela toma a transferência ao modo de
uma relação vincular muito especial, e nós esta- Marcus - Mas, sobretudo está a tarefa de pro-
mos partindo da transferência para dizer “tudo é duzir um elemento orientador para a prática clí-
vínculo”. A grande questão é saber qual o prepa- nica: olhe, diante do paciente, eu tenho que o
ro que alguém tem de ter para se sustentar numa tempo todo estar fazendo alteridade, e a alterida-
posição, em múltiplas localizações diante do su- de é estar sempre centrado na minha função, na
jeito, sustentando alteridade. Isto tem a ver com o minha escuta, na minha atitude, na minha posi-
preparo do sujeito, isso não é um ideal absurdo, ção. A gente está tentando que desenvolvam essa

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habilidade, que é muito mais uma atitude, que os pacientes da dupla que está saindo. Então, a
tem relação com o preparo, que tem relação com passagem é uma fase do estágio, é o primeiro
as idéias que estão sendo orientadas. Então, é contato do paciente com seu futuro acompanhan-
por isso que aqui hoje eu disse assim: as pessoas te. Durante a passagem, ele é progressivamente
têm uma atitude, nós oferecemos uma presença apresentado ao paciente, informado que substi-
orientada por um certo pensamento que compre- tuirá e ele, durante um mês, vai sendo repassado,
ende o que é a psicose, o que significa o delírio, então ele vai da posição de alguém que está che-
o que significa a crise, o que significa um deter- gando até a posição de alguém que está saindo.
minado tipo de produção dos pacientes em sua Em momento nenhum o atendimento é interrom-
vida, que os outros que estão lá com os pacien- pido. Nas duas primeiras semanas, você (a dupla
tes, que também são sujeitos psíquicos, que tam- que está chegando), e nas duas outras, você (a
bém estão expressando sua condição de sujeitos dupla que está saindo) atuam juntos. Então faz aí
barrados, as suas dificuldades, suas limitações, e o que a gente chama de “passagem”, aí depois,
nós produzimos uma interação entre sujeitos psí- após um mês, o paciente está por conta dos no-
quicos precários. Somos todos sujeitos psíquicos vos. Ele conhece o paciente nas 4, 5 semanas,
precários, inclusive o sujeito que está atendendo mas sabe muito pouco sobre qualquer coisa, seja
o outro sujeito. Devia ser preparado, mas é pre- sobre clínica, seja sobre psicose.
cário, e, dentro dessa precariedade, ele busca se
preparar para superar a precariedade. Nós todos Marcus – O aluno vem com uma experiência
somos sujeitos psíquicos precários, e os psicóti- mínima e, às vezes, nenhuma sobre a psicose. Ele
cos sujeitos psíquicos com um tipo de precarie- nunca viu alguém psicótico, ele nunca se relacio-
dade, os seus familiares com as precariedades e nou com alguém psicótico, não viveu experiência
nós com nossas precariedades: “um encontro de anterior, é virgem na relação com a psicose. No
precários”. máximo, viu pacientes internados na disciplina de
psicopatologia. E aí a gente deixa um período ini-
Como se dá a formação para atuar cial de quase um mês e meio pelo menos (só aí
no programa? já vão quase dois meses e meio de convivência).
Dizemos assim, só seja delicado e gentil, simpá-
Eduarda - Se tem uma metodologia que é as- tico e presta atenção, esteja presente, mas não
sim: exposição durante dois meses, mera exposi- complique, não perturbe a vida do paciente, por-
ção aos pacientes. O segundo momento é reser- que o contato com o sujeito psicótico é uma das
vado para a teorização; em seguida vem a ação. principais fontes de aprendizagem sobre a psico-
Este programa é assim, quem quiser participar do se. Nada das idéias que são trazidas aqui podem
estágio tem de ficar durante as férias para receber substituir o contato com a experiência do sujeito

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psicótico. Passagem e depois exposição à psico- com as mães de diferentes pacientes, ou seja, não
se. Aqui se tem uma concepção teórica: “a psi- há uma condição indicada a seguir, cada caso é
cose ensina”. A psicose é uma obra da produção único. O que os estagiários apreendem são deles,
psíquica que tem uma direção de trabalho, de su- isso é aprendizagem clínica. É lógico que ninguém
peração. Então, são crenças teóricas de trabalho vai sair daqui perito em intervenções precisas de
que orientam essa atitude, de que a psicose en- clínica da psicose. Ninguém pode ensinar, e não
sina, de que quem quiser aprender aprende com há esta perícia, é muito mais a postura, a atitude,
a psicose. É só prestar atenção, tem de ter uma a interpretação e a abertura e capacidade de su-
postura de abertura. Aí tem a questão: abertura, portar.
suporte, acolhimento. Na primeira fase, a gente
está preocupado com as idéias mais gerais sobre: Seis meses dá para atingir o objetivo?
vínculo, internação, fases da reforma, a base do
programa, o que é que a gente faz, e as pessoas Eduarda - Claro que não, quem fica mais tem-
estão lá em contato. Então, está em descompasso po desenvolve mais, mas percebemos que tem
clínico, as pessoas estão angustiadas porque não uma mudança de postura, isso sim. Mudança de
sabem o que fazer, são incompetentes, e a gen- postura, compreensão, atitude. Em seis meses,
te não está oferecendo recursos de interpretação as pessoas adquirem leitura acerca do psiquis-
nesse momento. mo, um olhar sobre o psiquismo psicótico e uma
postura clínica. São seis meses intensivos também
E a formação teórica? para os estagiários. Eles atendem final de sema-
na, à noite, pela manhã. Alguns pacientes eles
Marcus - Depois dessa fase, a gente começa, estão visitando três vezes por semana. Às vezes,
paulatinamente, a oferecer mais recursos teóricos os estagiários saem da casa do paciente mais de
das mais diversas fontes: pode ser teoria sistêmi- 9h da noite, tentando negociar: “só saímos da-
ca, psicanálise lacaniana, psicanálise freudiana, qui após você tomar o remédio”. É intensificação
Pichon Riviére, dos grupos, das teorias da reforma também de contato, de conhecimento, de convi-
psiquiátrica, da clínica antimanicomial, podem ser vência clínica, de impacto.
coisas úteis e interessantes para pensar em instruir Marcus - Mas é também uma intervenção pe-
esse contato com os sujeitos (estagiários), com os dagógica. Ao falar da forma que lida, orienta os
pacientes (também sujeitos). Então, essa interpre- estagiários, cada supervisor com seu estilo próprio
tação é mais ou menos assim. Nós começamos “pai e mãe”, rígido, brando. Tem pessoas aqui
a perceber que começa a se instaurar um pensa- que precisam deslocar de posição, elas tentam
mento e atitude clínica. Ex: uma estagiária relata nos enrolar, se você não der uma dura, uma de-
que percebeu que precisa lidar de forma diferente sorganizada... E é melhor que ela se desorganize

32
aqui, na supervisão... Às vezes alguém chora, pois ções para não fazer, mas o que é que tem de ser
somos todos sujeitos psíquicos precários. A provo- feito, o que deve ser feito? O que a psicose preci-
cação é um pouco calculada, cada um recebe do sa que seja feito? Nossa proposta é assim: “faça
jeito que pode agüentar. Não nos interessa deses- segundo a necessidade da psicose”, não precisa
tabilizar a posição defensiva, estas coisas têm um a gente mandar, faça segundo a necessidade da
certo cálculo, um manejo da aprendizagem, das psicose, a psicose vai lhe interpelar, e, se ela lhe
transferências, do rigor, do esforço da ética. interpelar e você estiver sustentando ativamente,
você não vai ter para onde correr. Você vai ter
Eduarda - Eles, os estagiários, trazem um inte- de entrar e vai ter de responder, ou vai se demitir,
resse muito grande, que vai além da nossa exigên- cair fora, você não vai ficar no meio termo. E nor-
cia, nós conseguimos gerar, a partir do clima de malmente, de modo geral, a atitude das pessoas
equipe, um ambiente de altíssimo envolvimento. é muito bacana, só não elogio demais, porque
senão estraga. Fico muito orgulhoso, a gente
Marcus - Trabalhamos e operamos com o con- nota, que pessoas bacanas, que aprendizagem,
ceito de autonomia radical. Talvez assim as pes- voluntária, gastando dinheiro do próprio bolso,
soas acreditem na minha autoridade, pela minha é pura transferência com o trabalho. O fato de
forma forte e dura, às vezes, de tratar os temas, estarem ali por escolha facilita, porque permite
mas o grau de autonomia com que as pessoas que você tenha uma equipe ali que está a fim. A
operam é enorme, talvez seja essa a tensão, pois forma como a gente conseguiu criar o ambiente,
as pessoas operam com muita autonomia. A or- sem institucionalizações, mas muito nessa idéia:
ganização da dinâmica do atendimento é muito “tem de fazer aquilo que a psicose exige”. O que
por conta dos estagiários. Nós supervisionamos,
naturalmente. A avaliação é feita a partir da mu-
dança de atitude, a fala, como falam com o pa-
ciente, o desenvolvimento psíquico do paciente,
a mudança no pensamento clínico, tudo. Um
alto grau de envolvimento, comprometimento.
A aprendizagem principal, que tudo move, é da
perspectiva ética. Uma perspectiva ética de aber-
tura, de generosidade, de compreensão que esse
é o serviço, que eu posso até não querer fazer o
serviço, mas entender que esse é o serviço, isso é
que tem de ser feito. Tá certo que essa é a clínica,
eu posso achar pretextos, justificativas, explica-

33
é a clínica? Fazer o que a psicose exige. Na su- mais fáceis de a gente dizer, né? A gente achou
pervisão, orientamos assim: você está atendendo um jeito, criou umas regras assim, tem uma idéia.
o que a psicose está exigindo, o que é que o caso Mas essa coisa de dupla, por exemplo, é uma coi-
está pedindo? O caso pede, você faz; ou você se sa fundamental. Hoje, não faria de outro jeito. Tá
demite ou você atende. Eles são os responsáveis certo, não sei se funcionaria de outro jeito. Traba-
pelo caso, são eles que devem prestar conta, são lhamos em dupla, sempre que possível, duplas de
eles que estão em contato com o paciente, às ve- T.O. e Psicologia. Depois criamos uma coisa as-
zes, três vezes por semana. sim: dois pacientes com uma mesma dupla, e um
terceiro com uma dupla diferente, para criar alte-
Eduarda -Tem alunas para as quais o estágio ridade. Porque três pacientes com a mesma dupla
significa, pela primeira vez, ter contato com as cria um vício na dupla. Para comparar: quando
realidades sociais muito duras, tem um aspecto eu trabalho com fulano, é assim; quando eu tra-
muito duro. Moças muitas vezes preservadas, que balho com cicrano, é de uma forma diferente. A
são de famílias de classe média, fazem cursos química das duplas é diferente na abordagem, na
pró-ativos, e as pessoas herdam essa generosi- atitude, na aprendizagem. A história das duplas,
dade. Pois esta coisa de terapia ocupacional e acho que traz assim, suporte recíproco para elas,
psicologia não vai dar dinheiro, mas você já tem o fato de estarem acompanhadas, a questão do
uma certa direção generosa, são pessoas protegi- testemunho, feedback, pensar junto, testemunhar
das socialmente. Para algumas delas, é a primeira o desenvolvimento e a dificuldade do outro. En-
vez que vão se expor à vida da pobreza, da de- tão, eu acho que o fato de fazer em duplas criou
sigualdade social, da miséria. Então, no final, há uma química interessante do programa. Não faria
um discurso como - “foi uma lição de vida” muito diferente, até porque o manejo, uma vai cuidar da
importante. Há casos das estagiárias que expres- mãe, elas vão se dividir, pois estão lidando com
sam não estar suportando a situação de vida/ transferências múltiplas, transversais, as pessoas
miséria de certo paciente, então a gente altera, podem se aproximar, fazer um revezamento.
inclui mais um na dupla/trio, e recua aquele que
não está suportando. Mas a troca destas duplas a cada semestre não
cria dificuldades?
E a história de se trabalhar em dupla?
Marcus - Uma das nossas descobertas mais in-
Marcus - Na verdade, é outra sacação, tudo teressantes colocou em xeque uma das questões
assim, muito empírico. Na verdade, no primeiro centrais do programa que era a questão da psico-
semestre foi muito difícil, porque a gente tinha de se, a questão vincular. Então, nosso eixo, nosso di-
inventar o programa. Algumas idéias agora ficam álogo, nosso enfrentamento de pensar a psicose,

34
que expressa uma dificuldade de pertencimento não vai poder se vincular?! Ele vai construir uma
social, de laço social, da condição de ser sócio da história, ele vai ter uma oportunidade de construir
sociedade. Então, a questão vincular passa a ser uma não, 5, 6, 12, várias histórias vinculares, em
para nós como uma questão de manejo delicado um curto espaço de tempo, com pessoas que têm
na psicose, vínculo e manejo em todo lugar (filho, um zelo, um cuidado vincular, pessoas que estão
pai, mãe, professor, aluno, etc). A psicose exige postas numa relação vincular, no lugar de alte-
uma delicadeza no manejo clínico. E o fato de o ridade, delicadeza com eles. Então, é como se
paciente psicótico ser um sujeito, às vezes, refra- fosse (estou pensando nisso agora) uma espécie
tário ou narcísico, no investimento vincular, torna de treino para o manejo desse enigma. Às vezes
a questão de, de seis em seis meses, trocar as dizem que o psicótico aprende de ouvido, que ele
pessoas um problema. Então, a cada seis meses, não tem o outro dentro. Ele pode treinar que o
nós vivemos um processo de reconstrução da re- outro existe, que o outro tem certo modo de ope-
lação vincular com as novas duplas. Então, esse é ração e que ele pode se adequar a isso, e a vida
um exercício que não era intencional, mas propõe pode ser menos tensa.
marcar uma transferência não com o sujeito, mas
com o lugar do outro, com o lugar de cuidador. Como vocês vêem a possibilidade do progra-
Então, eu acho que isso é uma coisa bacana, que ma, ao invés de ser um estágio, ser um traba-
a gente precisa desenvolver teoricamente, por- lho permanente, de ele se tornar um recurso
que boa parte dos pacientes tem ficado pacíficos, desenvolvido dentro do CAPS?
não são todos, têm alguns que problematizam o
enigma vincular, para eles é muito radical. Vários Marcus - Na verdade, eu acho, a gente acha
pacientes estão entrando numa um pouco assim: que isso deveria ser não um programa, mas que
“não quero nem saber, eu sei que tem alguém isso deveria ser uma orientação teórica, meto-
aqui comigo. Se vai embora, fico com saudade, dológica, técnica e ética para o trabalho com a
mas vem outra pessoa e do que eu sei é que es- clínica psicossocial no interior dos CAPS. Na re-
tou me dando bem, que tem alguém cuidando de alidade, a gente acha, porque a gente não está
mim, preocupado comigo, com uma atitude boa no CAPS, porque esse seria o trabalho do CAPS.
comigo, que me faz bem”. Entendeu? Como se A gente está no Mário Leal, com essa condição
fosse uma espécie de treino psicótico com a ques- de ser uma unidade de internação, e por quê?
tão dessa alteridade do vínculo, que seria uma Porque nós queremos desenvolver uma metodo-
questão emblematicamente séria dos núcleos cen- logia com determinados arcabouços de inter-
trais da psicose. Até o fato de ter, de seis em seis pretação teórica, a gente quer desenvolver uma
meses, de mudar de dupla, que pode ser, para al- certa metodologia que possa ser orientadora da
guns, um obstáculo, impossível. Como o paciente ação clínica. Nós temos certeza de que estamos

35
preparando pessoas para trabalharem no CAPS. ências, certamente, coisas que Marcus e eu domi-
Aqui, a turma daqui vai chegar ao CAPS e vai dar namos pouco.
show, show de atitude, de postura, de manejo, de
depoimento do que está fazendo na vida, show Marcus - É muita coisa, o campo é múltiplo
de clínica. Pode não estar tão afiado do ponto de demais, e, dentro do que a gente conseguiu sis-
vista da perícia técnica, da clínica, porque isso tematizar, a gente tem um roteiro de direção que
exige muito treino, muita bagagem. Eles são éti- tem um clima de muita dedicação e interesse. As
cos, fundamentalmente pela postura, pela atitu- pessoas estão atentas, estão interessadas, há uma
de, na presença, na interpretação do fenômeno, sintonia “quem o pode mais, pode o menos”. Se
do jogo de cintura, da capacidade de movimen- esta atitude clínica desenvolvida aqui e voltada
tar-se no setting. Aos profissionais que atuam no para a psicose é o que mais desafia a clínica da
CAPS falta, muitas vezes, esse preparo prévio, o reforma psiquiátrica, eu acredito que, no futuro,
saber se movimentar, saber sair para a rua, para com treino especifico, nós poderemos ter bons
a cidade, saber juntar muita gente: eles têm medo terapeutas para as outras clínicas, para CAPSI,
de misturar, tá certo? A turma aqui não tem medo CAPS AD. A atitude principal que as pessoas ad-
de misturar. Em uma situação de crise, as meninas quirem, depois do treinamento específico que nós
são muito bem resolvidas, escutam: tá delirando? damos, centrado na questão da psicose, lhes per-
Estão lá dentro da casa com a família, calma aí, mitirá uma atitude clínica bastante diferenciada.
sem alarmar, sem tragédia, com uma desenvol-
tura.

Eduarda – E, às vezes, a experiência do CAPS


é a de ficar esperando do paciente demanda es-
pontânea. O paciente em crise, o CAPS fala “não,
não vai lá, que ele está em crise”. As meninas di-
zem “não, porque, se ele está em crise, é que a
gente precisa estar lá”; porque este treino de seis
meses dá essa perspectiva. Eu tenho certeza de
que nós estamos preparando recursos humanos
para trabalharem na Reforma Psiquiátrica, para
trabalharem no CAPS. O recurso básico, o recur-
so é isso, nem tinha essa pretensão toda. Aqui as
pessoas estão passando por uma formação que
tem pontos mais fortes, pontos altos, tem defici-

36
Artigos de crença
Alguns artigos de crença...

A relação entre teoria e prática é, certamente,


uma questão central quando se trata do pre-
paro para o trabalho com a coisa mental. Este
ainda que ao modo de uma reconstrução que se
faz à posteriori da intervenção. Todavia, sem o
encontro empírico, é impossível apreender a clí-
preparo envolve um tipo de treinamento no qual nica. Não há leitura teórica que possa prescindir
o exercício do encontro empírico com o fenôme- da experiência quando se trata de construir um
no mental deve se articular com a administração saber clínico de tipo intelectual, mas, sobretudo,
da teoria. Não pode haver dúvidas em relação subjetivo. Tampouco podemos prescindir nessa
ao lugar ocupado pela teoria nesse processo. Um tarefa da companhia do Outro. Do outro mais ex-
repertório teórico amplo e diverso deve estar à periente, e sempre haverá alguém mais experiente
disposição como pensamento disponível para ilu- ou com uma outra experiência, que nos cuidará
minar este encontro. Somente assim a teoria pode subjetivo, que nos escutará numa supervisão, que
encarnar-se, ganhar as dimensões singulares de nos transmitirá conhecimento num seminário ou
uma aprendizagem subjetiva que define o estilo curso. De muitos outros colhi, ao longo do ca-
de cada um que deseja ocupar este lugar de um minho, no esforço de produzir a minha sistema-
agente profissional de cuidados às pessoas que tização, formas de entender, formas de explicar,
demandam tal atenção. O encontro clínico que em nome das quais, hoje coordeno este projeto
ensina é aquele em que a mediação da teoria de preparo para futuros trabalhadores de saú-
ajuda a romper com a especularidade que marca de mental. Nestes “artigos de crença”, explicito
a relação entre dois sujeitos, introduzindo aí um as minhas fragmentárias construções, a partir da
terceiro através da dimensão simbólica represen- quais tenho buscado criar pontos de partida para
tada pela teoria. Mas é preciso cuidar para que as interrogações daqueles pelos quais academi-
a teoria não assuma o governo desse encontro, camente sou responsável por orientar e que espe-
aviltando as dimensões complexas da realidade ram de mim que eu seja uma boa companhia no
empírica, pretendendo reduzir às categorias do seu processo de iniciação. Através destes, textos,
pensamento, os aquecidos fenômenos subjetivos aulas transcritas e notas de trabalho vão registran-
com os quais lida. Entendemos que todos os su- do um pensamento que se sabe, sempre, apenas
jeitos que trabalham com a clínica têm a obriga- uma expressão nas fronteiras da ignorância. Mas,
ção de responder à interpelação acerca dos seus por hora, é isso o que eu tenho oferecido.
motivos de agir: como entendem o fenômeno que
trata e como o tratam. Todo sujeito tem a obriga- Marcus Vinícius de Oliveira Silva
ção de explicitar as razões do seu fazer clínico,

39
A CLÍNICA INTEGRAL:
O PARADIGMA “PSICOSSOCIAL” COMO UMA EXIGÊNCIA
DA CLÍNICA DAS PSICOSES

*Marcus Vinícius de Oliveira Silva

O programa de atenção psicossocial a pacien- das redes sociais de sua relação, bem como o es-
tes psicóticos com histórico de internações tabelecimento destas nos casos de desfiliação ou
psiquiátricas, marcados pela condição de início forte precarização dos vínculos que lhes dão sus-
da carreira manicomial (com vistas a sua inter- tentação na sociedade. De caráter ativo, a “inten-
ceptação) ou pela grande freqüência de interna- sificação de cuidados” trabalha na lógica do “um
ções motivadas por situações de fragilidade social por um” e pretende colher o indivíduo no con-
está baseado no conceito de “intensificação de texto de sua vida familiar e social, estabelecendo
cuidados”, que decorre de uma compreensão das um diagnóstico que respeite a complexidade de
necessidades clínicas de natureza “psicossocial” cada caso em suas peculiaridades psíquicas e so-
presentes nessas situações e que, de um modo ciais. Baseada em visitas domiciliares regulares,
geral, são negligenciadas pelos modos tradi- de prospecção e intervenção, a “intensificação de
cionais de organização da oferta de assistência cuidados” oferece desde os recursos terapêuticos
aos mesmos¹. Por “intensificação de cuidados”, tradicionais até o assessoramento existencial do
compreende-se um conjunto de procedimentos qual os sujeitos psicóticos carecem, com vistas a
terapêuticos e sociais direcionados ao indivíduo contribuir para o processo de re-organização de
e/ou ao seu grupo social mais próximo, visando suas vidas, para o enfrentamento das tendências
o fortalecimento dos vínculos e a potencialização socialmente expulsivas motivadoras das re-inter-
nações freqüentes. Como elemento de suporte e
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ci- de organização do programa, a “intensificação
ências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do de cuidados” investe na produção de novos es-
Departamento de Psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos
paços de sociabilidade, sustentados no interior da
a Pacientes Psicóticos.
instituição, criando dispositivos coletivos de aco-

40 40
lhimento e convivência através da “grupalização” casos psiquiátricos, mas apenas quando essas al-
dos sujeitos, bem como para os seus familiares, terações ultrapassam um certo patamar da crítica
apostando no poder do vínculo social como um social, os encaminhamentos dos casos os direcio-
elemento fundamental da “continência psíquica”. nam na busca de ajuda e, mais especificamente,
Como pressuposto e justificativa fundamental de na demanda de internações. Portanto pode-se
tal perspectiva, temos a compreensão de que, an- considerar que, nos casos denominados como
tes de se constituir como “doença mental” e ser “urgências psiquiátricas” e que demandam inter-
inscrita como um fato médico, a psicose, inter- nações, ao lado dos seus componentes psíquicos,
pretada como loucura, caracteriza-se por ser um encontram-se envolvidos vultosos elementos de
fato social. Torná-la médica não retirou dela sua administração de situações sociais complexas que
condição de ser um fato social, mas a reinscreveu não são compatíveis com as simplificações ana-
numa certa perspectiva reducionista cujos únicos líticas e institucionais mormente encontradas na
beneficiários são certas instâncias de poder social estruturação dos dispositivos clínicos tradicional-
das quais os sujeitos loucos não participam ou mente disponíveis. Portanto o paradigma da clí-
usufruem. O ponto de corte para a construção nica psicossocial das psicoses pretende devolver à
do comportamento bizarro ou desviante como clinica a condição de operar com a complexidade
alvo das intervenções psiquiátricas, sobretudo na do seu objeto, manejando um conjunto heterodo-
geração das demandas de internações, situa-se xo de recursos e possibilidades que extrapolam
antes em marcadores sociais do que em marca- os limites disciplinares, acadêmicos e/ou corpora-
dores clínicos ou da sintomatologia estritamente tivos que, tradicionalmente, moldaram de forma
psíquica. Todo fato psíquico é um fato social. Não reducionista os fenômenos sobre os quais preten-
existe fato psíquico que não se inscreva como fato de intervir, de modo a submetê-los às conveniên-
social. Não existe fato social que não se inscre- cias protocolares das instituições.
va como psiquismo. A “loucura” ou a “psicose”
como fato psíquico encontra-se marcada pela
condição de ser um fato social estridente e signi-
ficativo. Somente quando os sintomas interferem
na ordem social de forma relevante, o sujeito será 1- Os ambulatórios que não “ambulam” e oferecem consultas episódicas e intermitentes, com dispensa

insensível de psicofármacos, desresponsabilizando-se pelo conjunto complexo da vida dos sujeitos, que
inscrito no quadro do desvio psiquiátrico, sobretu- seguem completamente à margem da abordagem médico-psicológica; as internações psiquiátricas que
do quando afetadas as suas qualidades de auto- somente intervêm se “responsabilizando” pelos sujeitos pela via da tutela, e, para tal, os seqüestram

regulação, autonomia pessoal e/ou econômica ou da vida social por períodos longos, para, em seguida, devolvê-los a sua própria sorte, sem nenhum

de perturbação da ordem. Não que os elementos tipo de acompanhamento; as emergências psiquiátricas que respondem quase que exclusivamente

de alteração do funcionamento psíquico deixem pelo pico das situações de crise, sem nenhum compromisso com os casos que transcenda o mero

encaminhamento para os primeiros ou para os segundos.


de ser relevantes na definição da gravidade dos

41
Loucura, Cultura, Instituição e Sociedade1
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*

H oje, graças aos estudos de alguns autores da


história social da loucura, do manicômio e
da psiquiatria, tais como Foucault, Rosen e Cas-
nejados socialmente através de práticas institucio-
nalizadas vinculadas a diferentes aspectos da vida
social: jurídicos, artísticos, religiosos, etc. (Rosen,
tel, pelo menos no plano teórico, está solidamente 1968; Pelbart, 1989).
estabelecida a compreensão de que os transtor- Aparentemente trans-histórica, trans-cultural, a
nos mentais e emocionais sempre estiveram asso- percepção da loucura, do transtorno como alteri-
ciados à noção de doença mental de forma tão dade que chama atenção do grupo social no qual
exclusiva como ocorre contemporaneamente. se insere parece ser uma constante. Como afirma
Rosen:
A antiguidade judaica e greco-romana, por
exemplo, parece ter construído uma interpreta- “cada sociedad identifica ciertas formas de
ção complexa desses fenômenos, relacionados conducta aberrante o extrema, como el transtorno
às condutas impulsivas, desordenadas, incomuns, mental o locura. Em otras palabras, em la línea de
irracionais, que, reunidas sob o signo da loucu- la conducta humana, desde aquello que uma so-
ra, comportavam variadas explicações acerca de ciedad considera normal hasta lo que juzga anor-
suas origens e de suas significações. Tais sistemas mal, hay algun tramo em que surge uma critica
de signos e de significados eram, por sua vez, ma- social y el individuo comienza a ser considerado
loco... la valorizacion de tales indivíduos y de su
*Texto extraído da Dissertação de Mestrado do autor. “A emergência da cultura Psicologica na Bahia; conducta por parte de los miembros de la comu-
ISC/UFBA, 1995, Salvador, Bahia. nidad y su aceptacion como simplesmente excên-
2 - Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva ISC/UFBA, Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e
tricos dentro de los limites socialmente toler ables,
Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental do

Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Supervisor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos


dependerá de vários factores. Uno grupo de ellos
a Pacientes Psicóticos. incluye el estilo y la coherencia de tal comporta-

42
miento, su orientacion respecto de la realidad, y das Representações Sociais e que, de caracterís-
tambien la existência de instituiciones sociales que ticas simbólico-cognitivo-perceptuais, referem-se
hacen possible que esos indivíduos cumplan algu- à institucionalização de um conjunto de idéias,
na funcion acetable”. (Rosen, 1968, pg 162). signos e valores associados à loucura. Essa seria
Diferenciação! ... Alteridade frente a uma aquela dimensão do processo de institucionaliza-
norma social, em relação a qual ela é sempre ção da sociedade ao qual Castoriadis denomina
transbordante em algum aspecto: tal parece ser a em seu ensaio “A instituição Imaginária da Socie-
marca registrada da loucura! E é exatamente essa dade” como a dimensão de “LEGEIN”: um mo-
condição de alteridade frente à sociedade institu- mento fundamental do processo de instituição da
ída que “obriga” a mesma sociedade a reconhe- sociedade, âmbito das operações por meio das
cer o distúrbio mental enquanto tal, instituindo os quais o mundo social ordena-se através da lógica
signos e as práticas que deverão mediar o seu Conjuntista Identitária, protótipo das operações
relacionamento para com ele. Foucault comenta: lógicas mais comuns na estruturação do nosso
“Pareceria, sem dúvida, inicialmente que não pensamento ocidental, constituindo-se este lei-
existe cultura que não seja sensível, na conduta gein, segundo ele, em “uma dimensão essencial
e na linguagem dos homens, a certos fenômenos e ineliminável, não apenas da linguagem, mas de
com relação aos quais a sociedade toma uma toda a vida e de toda atividade social” (Castoria-
atitude particular: estes homens, nem completa- dis, 1986, pg 260).
mente como doentes, nem completamente como Tentemos, pois, esclarecer um pouco mais
criminosos, nem feiticeiros, nem inteiramente tam- essa dimensão. Segundo Castoriadis, é impossí-
bém pessoas comuns. Há algo neles que fala da vel pensarmos a nossa sociedade fora do refe-
diferença e chama a diferenciação...” (Foucault, rencial conjuntista que estrutura logicamente a
1975, pg 87). nossa percepção dos variados entes existentes no
Assim, a loucura e os loucos parecem colocar, mundo. E para podermos falar de um conjunto ou
de forma prática, uma série de questões a serem para pensarmos um conjunto, é preciso recorrer
“elaboradas” e “respondidas”, “na conduta e na às operações que, se hoje são distintas para nós,
linguagem”, pelas comunidades nas quais eles no grego antigo se incluíam na compreensão de
têm sua existência, derivando daí a possibilidade um único termo, no caso “leigein”, evidenciando
de distinguirmos dois níveis solidários entre si e um tipo de unidade perceptiva da realidade que
de perspectiva relativizadora no processo de ins- enfatiza sua dimensão descritiva:
titucionalização das relações entre sociedade e Distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-
loucura. dizer. Objetos, coisas, pessoas, tais são as ope-
Num deles, poderíamos agrupar aquele con- rações fundamentais e essenciais do “leigein”:
junto de questões que se inscrevem no campo “condição e ao mesmo tempo criação da socie-

43
dade, condição criada por aquilo mesmo que ela Limitados pelas necessidades próprias deste
condiciona. Para que a sociedade possa existir, texto a um aprofundamento na densa reflexão
para que uma linguagem possa ser instaurada e que esse autor propõe no seu projeto de com-
funcionar, para que uma prática refletida possa preensão acerca do modo pelo qual se institui a
desenvolver-se, para que os homens possam rela- sociedade humana, pensamos que evocá-la aqui
cionar-se uns com os outros de maneira que não ganha sentido, quando referido ao nosso interesse
no fantasma, é preciso que de uma forma ou de de pensarmos a institucionalização das relações
outra, em determinado nível, em determinada ca- entre sociedade e loucura, destacando a questão
mada ou extrato do fazer e do representar social das Representações Sociais que se constroem so-
tudo possa tornar-se congruente com o que a de- bre a mesma, enquanto um momento fundamen-
finição (de conjunto) de Cantor implica...” (Cas- tal de “ancoragem” dos elementos instituídos que
toriadis, opus cit). a referenciam.
Ou seja, a possibilidade da instituição da socie- Nesse sentido, ganha relevância a identifi-
dade humana tem como pressuposto um modelo cação dos signos utilizados para a definição do
lógico em que tudo seja consoante com a célebre que seja a loucura, as interpretações acerca das
definição de conjuntos proposta pelo eminente suas origens enquanto fenômeno que se destaca
filósofo-matemático: “um conjunto é uma cole- da normalidade social, a construção dos critérios
ção em um todo de objetos definidos e distintos de identificação dos “atingidos”, as definições
de nossa opinião ou de nosso pensamento. Es- das características e possibilidades que lhe são
ses elementos são denominados os elementos do associadas, dos vários códigos e regras relacio-
conjunto” (Castor, apud Castoriadis Opus. cit). nais com os loucos, a interação desses códigos
O que o autor pretende ressaltar daí é a im- e regras com os diversos planos da vida social
portância da idéia de que a instituição da socie- (moral, jurídico, religioso, profissionais, etc.) de-
dade, o ordenamento da sociedade como uma finindo pelo menos parcialmente, (nas palavras),
(singular), e não como outra qualquer, pressupõe um lugar para a loucura e os loucos no interior
as operações conjuntizadoras-distinguidoras-hie- da sociedade...
rarquizadoras, pois o fazer/representar social, Se partirmos das teorizações do sociólogo-psi-
base e suposto do processo de instituição da so- canalista E. Jaques acerca do papel das institui-
ciedade, pressupõe e se refere à existência de ob- ções enquanto “sistemas defensivos” contra as an-
jetos percebidos como distintos e definidos, que gústias persecutórias e as ansiedades depressivas
podem ser reunidos e formar todos, componíveis provocadas pelas incertezas referentes ao futuro,
e decomponíveis, definíveis por suas propriedades podemos pensar que a loucura, na sua essência,
determinadas e servindo de suporte à definição enquanto aquilo que transborda, enquanto regis-
dessas mesmas propriedades. tro de imprevisibilidade que foge a todas as nor-

44
mas sociais, coloca uma “exigência” de signos e do “leigein”: as do que seria possível/impossível,
práticas capazes de neutralizá-la enquanto ame- factível/não factível no âmbito dessa mesma so-
aça, estranhamento, diferenciação: nomeá-la e ciedade.
inscrevê-la em algum conjunto de fenômenos, Dessa forma, no plano do fazer social, a reali-
abrindo as portas para as definições operativas dade é instituída não apenas pelas suas possibili-
que se consubstanciam nas práticas instituídas dades “técnicas” de realização, mas também pela
para o seu manejo social enquanto uma exigên- própria inscrição do fazer social no âmbito do que
cia para a sua suportação e manejo social da sua é “admissível como possível” pela sociedade.
presença. (Elliot, Jaques, s/d). “Assim, sociedade e indivíduos vivem e funcio-
Tal seria, portanto, a outra dimensão em que nam toda vez na representação obrigatória de
poderíamos distinguir, na teorização de Castoria- ‘possíveis’ e de ‘impossíveis’ pré-constituídos, isto
dis, o segundo nível desse processo de institucio- é, no estabelecimento imaginário de uma realida-
nalização das relações sociedade/loucura, que de cujo seio a fronteira entre o ‘possível’ e ‘impos-
alude àquele grupo de questões que se inscrevem sível’ seria (mesmo que objetivamente assim não
exatamente no campo das “atitudes”, do “fazer o seja) rigorosamente delineada em definitivo; e
social” e referem-se à institucionalização das prá- desde sempre. O próprio possível é assim estabe-
ticas através das quais a sociedade deverá se re- lecido como o determinado (o que é, de cada vez,
lacionar com a loucura segundo as definições que possível e o que não o é, é definido e distinto); as-
ela tenha estabelecido para a mesma. sim como são estabelecidos como determinados
Mantendo-nos, por coerência, no mesmo re- os meios, instrumentos, procedimentos, formas de
gistro da teorização proposta pelo já citado filó- fazer que o transformam em atual efetivo...” (Cas-
sofo grego para a interpretação do processo de toriadis, opus cit. pg304s).
instituição da sociedade, encontraríamos para Dimensões inalienáveis uma da outra, o teukein
essa dimensão a denominação grega antiga de implica intrinsecamente o leigein, remetendo-se
“teukhein”: juntar-ajustar-fabricar-construir. (Cas- uma ao outro, reciprocamente, num movimento
toriadis, opus cit.). de circularidade, não cabendo uma discussão so-
“Fazer ser como... a partir de... de maneira bre a primazia de uma das dimensões sobre a
apropriada a... com vistas a...” se o “leigein” é outra. (Se a palavra, a designação precede o ins-
a dimensão conjuntista-conjuntizante do repre- trumento, a técnica ou o inverso).
sentar/dizer social, o theukein corresponde à di-
mensão conjuntista conjuntizante do fazer social. Para dar um exemplo, na nossa cultura baiana,
Divisão a partir da qual se instaura, mediante diante de uma manifestação paroxística em um
uma instituição da realidade, uma nova divisão, sujeito, marcada por espasmos, tremores, des-
além das do ser/não ser, valer/não valer própria controle motor, inconsciência, dentre outros, dois

45
signos, dentre outros, poderiam igualmente emer- a uma escolha definida pelo grau de evolução
gir interpretando-a e/ou nomeando-a com igual da técnica ou do conhecimento (ainda que obje-
propriedade: se o sujeito observador for vincula- tivamente também o possa ser) a uma definição
do ao universo da cultura médica, interpretará o do admitido como o possível para a loucura no
fato como “epilepsia”, mas caso já seja adepto do âmbito de uma dada sociedade.
candomblé, possivelmente diagnosticará como Posta tal reflexão, entendemos estar indicando
um efeito de “santo”, identificando uma situação um caminho para analisarmos numa ótica relati-
de possessão. E, em cada uma dessas situações, vizadora os processos sócio-históricos que, a par-
já estará incluída no ato da nomeação que faz tir do século XVIII, alteraram os modos instituídos
o observador a indicação de um tipo de ação a de relacionamento sociedade/loucura, criando as
ser desenvolvida, bem como os agentes, meios e condições para a emergência de um novo “para-
estabelecimentos capazes de oferecer-lhe respos- digma” estruturador dessa relação, que permane-
ta. Se a epilepsia, uma ação de caráter médico, ce até hoje como “matriz”, ditando as definições
com uso de fármacos, em um estabelecimento de sobre seu modo de ser.
saúde. Se santo, uma ação religiosa, via um sa-
cerdote afro, em uma casa de candomblé. A INVENÇÃO DO NOVO DISPOSITIVO
Nesse sentido, poderíamos dizer, retomando a
questão relativa à institucionalização das relações Vários esforços, alguns magníficos, têm estabe-
sociedade/loucura, que, ao mesmo tempo em lecido com riqueza de detalhes, a natureza desse
que a Sociedade conjuntiza-identifica a loucura e processo, as suas cronologias, seus momentos
os loucos, distinguindo-os/escolhendo-os/estabe- fundamentais. (Foucault, 1978; Castel, 1978; Ro-
lecendo-os/juntando-os/contando-os/dizendo- sen, 1974; Birman, 1978). Não se trata, portanto,
os; ela estabelece o conjunto das possibilidades de correr o risco de refazê-lo aqui apressadamen-
para que eles “sejam” no âmbito desta mesma te, empobrecendo a descrição já traçada.
sociedade, definindo as factibilidades da sua exis-
tência, em coerência com as definições já pré-de- Os vários pesquisadores que se debruçaram
finidas em algum momento inaugural, marcado sobre a tarefa de elucidação de uma história
pela criação social (Castoriadis, 1986r pg 225). social da loucura, mesmo diferenciando-se em
Patrocinar a Loucura no âmbito de uma valori- relação às bases teórico-metodológicas que fun-
zação ritual, buscar a reversão das suas manifes- damentam as suas pesquisas, são unânimes ao
tações através de encantamentos ou lobotomias, assinalarem as profundas transformações opera-
regular a sua presença ou controlá-la através de das nestas relações nos fins do Séc. XVIII, que cul-
tal ou qual instrumento, técnica ou instituição, minaram com o advento de uma Medicina Mental
corresponderia, nessa perspectiva, mais do que cujo florescimento teve como palco a sociedade

46
francesa pós-revolucionária e que lança os fun- à presença social da loucura que aí estivera até
damentos estruturais daquilo que viria a se consti- então, anonimamente inclusa e desapercebida.
tuir como a Psiquiatria Moderna (Foucault, 1978; Sintomaticamente, como registra ainda Foucault,
Castel, 1978). faz parte do discurso desse século um repetido
Significativamente, a partir do Séc. XVIII, em vir- alarme de que a loucura estivesse aumentando,
tude de certas condições historicamente estabele- mesmo que nenhuma evidência houvesse acerca
cidas, relativas ao processo de transformações so- de qualquer efetivo aumento dos loucos que fosse
ciais, econômicas e políticas que caracterizaram maior do que o aumento da população em geral
o advento da sociedade industrial, refletindo-se (Foucault, 1978, pg. 385).
num processo de “mercantilização da existência”, Aparentemente, muito antes que na pré-auro-
na questão constituída pela presença dos loucos ra do século XIX (1792), o gesto mítico de Pinel
na vida sócio-comunitária, ocorreria um deslo- viesse reivindicar uma separação dos loucos da-
camento que, empobrecendo a diversidade das quela corja sórdida que infestava os espaços da
representações sociais acerca da loucura vigentes internação, o desenvolvimento lento de uma nova
na época, iria beneficiar uma outra questão, que, sensibilidade frente à presença social da loucura
pragmaticamente, se colocou de forma proemi- já lhe vinha diferenciando durante todo o trans-
nente: o que fazer com os loucos? correr daquele século.
Vários são os indícios de que tal questão te- As razões do desenvolvimento da nova sensi-
nha estado implícita e explicitamente colocada. bilidade e das respectivas mudanças na atitude
A loucura que estivera silenciada desde os fins do social em relação à loucura, que tiveram lugar na
Séc XVI, submersa no oceano de miserabilidade Europa da época, podem ser analisadas e com-
que marcou o processo de constituição das gran- preendidas como resultantes de uma conjunção
des metrópoles européias, retorna nesse séc. XVIII de fatores sócio-econômicos, filosóficos e morais,
alguma coisa do tom trágico e ameaçador que que apenas rapidamente vamos situar.
caracterizava a percepção da mesma ao final da Sinteticamente, poderíamos dizer que esse sé-
Idade Média, início do Renascimento. culo gesta e prepara, ao lado da revolução nas
Algo como o prenúncio de que aquele movi- técnicas produtivas, uma nova definição social da
mento que Foucault descreve como “a grande in- realidade e do ser, que emergiriam como instin-
ternação” – dramática resposta social frente ao de- tuintes das significações fundamentais que ainda
sagregamento da ordem feudal e que se constitui, hoje orientam as nossas concepções acerca da
segundo esse autor, na multiplicação dos espaços sociedade. A idéia do trabalho como fonte de ri-
de acolhimento/internação da pobreza, da doen- queza, da razão como guia do conhecimento e
ça, do desvio e do crime – já não era capaz de re- do comportamento, do caráter laico do poder
solver, na indiferenciação, a problemática relativa político são, sem dúvida, algumas das mais sig-

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nificativas. um sub-conjunto de sujeitos sociais exclusos, que
A nova sociedade que se projetava e buscava colocariam um conjunto de exigências próprias,
instituir-se requeria uma nova representação dos diferenciadas, relativas à institucionalização de
seus membros. Assim, ela os “idealizava” com um um novo fazer social que pudesse dar conta da
novo dimensionamento da alteridade, ditada pelo sua condição. Não um fazer social qualquer, mas
desenvolvimento da noção da individualidade. um fazer social que oferecesse os meios e que to-
Como afirma Barbu: masse especificamente a loucura como seu objeto
“el individualismo económico y político, el in- privilegiado de intervenção, garantindo um lugar
dividualismo religioso a partir de la Reforma, así aceitável e admissível para ela, ao mesmo tempo
como el individualismo en el arte, que comenzó em que a neutralizasse em seus efeitos de alteri-
con el Renacimiento y culminó con el Romantis- dade radical, incômoda à nova ordem vigente.
mo, constituyen rasgos básicos en las pautas cul- Tal necessidade, entretanto, apesar de já vir
turales de las sociedades de Occidente (Barbu, sendo murmurada ao longo do séc. XVIII, sob a
1962, pg.10). forma de uma crítica que já distinguia e questiona-
Projetando os seus membros como indivíduos, va a presença da loucura no universo promíscuo
sujeitos da razão, previsíveis, regulares, agenciá- dos espaços de internação, nos quais ela se en-
veis e confiáveis enquanto agentes econômicos, contrava incluída, só ganharia contornos de uma
a nova sociedade que se inaugurava, fatalmente exigência clara e explícita na conjuntura sócio-
teve que se colocar a questão do “que fazer?” política característica do advento da Revolução
com aqueles seus membros que não poderiam ser Francesa, ambiente no qual tal situação receberia
“conjuntizáveis” a partir dessas características. O o seu equacionamento paradigmático.
que fazer com aqueles seus membros que, mar- Efetivamente, seria diante do valor da cidada-
cados por uma condição de imprevisibilidade, de nia, emergente no quadro revolucionário francês
incerteza não correspondiam às exigências formu- como a afirmação de uma nova possibilidade de
ladas para a pertinência ao conjunto de sujeitos representação dos sujeitos frente ao Estado, defi-
aos quais, nessa sociedade, poderia se dar uma nidora de um novo conjunto de direitos e deveres
“existência” plena? do cidadão, decorrentes do novo pacto político
Seria, portanto, em função de uma certa auto- que se instituía em torno do ideal da contratua-
representação que a sociedade projetava para si lidade, que a loucura teria definida para si uma
mesma, auto-representação, por sua vez, deriva- condição de exceção frente aos direitos e deveres
da daquelas significações imaginárias sociais a aí definidos, fazendo presente a exigência de um
partir das quais esta sociedade estava a instituir-se novo fazer social capaz de equacionar a sua pre-
a si mesma como sendo “esta” e não outra qual- sença enquanto uma situação política excepcio-
quer, que iria, portanto, se produzir, se delinear nal (Castel, 1978).

48
E seria como resposta a tal busca que, percor- fragilizando a posição instituinte do projeto de
rendo complexos caminhos nos quais se combi- poder dos revolucionários. Projeto de poder que
naram os termos da episteme racional-iluminista, se encontrava naquele momento onerado pela
certas exigências políticas estatais de gestão so- sua obrigação de demonstrar superioridade fren-
cial e a disponibilidade de certos agentes sociais te ao poder aristocrático ao qual se colocavam
para assumirem negociadamente a condição de como alternativa. Por outro lado, para resolver tal
operadores práticos de uma nova solução para problema, não se poderiam contrariar os demais
a questão da presença social da loucura, que a pressupostos ideológicos e jurídicos sobre os quais
solução médico-asilar se projetaria como a possi- se baseava esta nova sociedade política. Entre os
bilidade de tal equacionamento. quais, aqueles que garantiam, por exemplo, que
Racionalizadora, num momento em que a ninguém seria preso, senão por desobediência à
episteme Iluminista transpirava o ideal da razão lei, como figurava nos textos legais, representa-
enquanto projeto de ordenação da vida social, tivos desses mesmos pressupostos (Castel, 1978).
a solução manicomial proposta e executada pe- Como justificar, portanto, a manutenção da
los alienistas compatibilizava um conjunto de in- prática de internamento, odiada como represen-
teresses diversificados, ao mesmo tempo em que tação do poder absolutista contra o qual se insur-
oferecia mais segurança e garantias que as alter- gia a revolução, agora abolido para todos, mas
nativas pré-existentes na solução dos problemas excepcionalmente mantida como uma exclusivi-
representados pela presença dos loucos na vida dade para os loucos?
sócio-comunitária. Pela análise de Castel, em resposta a esta ques-
Encaixando-se perfeitamente nas exigências do tão, um grupo de higienistas e filantropos, dentre
emergente paradigma do direito contratual (subs- os quais a história reservou lugar especial para
tituto do direito real), tal solução respondia tam- Pinel, se ofereceram ao Estado, estabelecendo as
bém adequadamente às novas exigências econô- bases de um novo tipo de poder sobre a loucura,
micas, jurídicas, disciplinares, correlatas a este caracterizado pelas suas características periciais,
paradigma, a saber: a definição da capacidade fundado numa justificativa técnica e apoiado no
da auto-responsabilização individual frente ao poder da instituição médica. Converter os antigos
trabalho; a subsistência é a lei, como condição espaços na internação, local de amontoamento,
do gozo dos novos direitos conquistados. durante o século XVII, de toda ordem de desvian-
Como analisa Castel, a loucura e os loucos tes sociais (miseráveis, criminosos, vagabundos,
dificilmente podiam ser reduzidos a tal projeto de dissidentes políticos, loucos, etc.) em instituições
poder contratual e, ao ficarem fora dele, criavam de caráter médico, onde só os loucos restassem
questionamentos embaraçosos, relativos à univer- a título de uma exigência terapêutica - tal foi a
salização da igualdade enquanto direito político, tarefa à qual se propuseram.

49
Reuni-los em um mesmo lugar, neutralizados tão, condicionando através das suas enunciações
sob uma mesma ordem (agora terapêutica e não os conceitos de Saúde/Doença Mental.
mais policial), abaixo um mesmo poder (agora Legitimado socialmente pela sua filiação ao
técnico e não mais político), constituindo-se no prestigiado campo técnico científico e, de forma
projeto de alienismo, desencadeado pelo mítico prática, pelo rigor da exclusão da loucura por ele
gesto de Phillipe Pinel, considerado o patrono propiciada, legalizado precocemente pela astú-
criador da psiquiatria. cia política dos seus pioneiros, que garantiriam,
Segurança para a ordem pública, garantia já em 1838, no texto da lei, as prerrogativas da
de sossego para os familiares, racionalização de sua exclusividade, esse modelo médico-psiquiátri-
procedimentos para o administrador, desrespon- co impôs a sua hegemonia, estabelecendo como
sabilização para o legislador, desembaraço para subalternas todas as outras práticas, saberes,
a autoridade jurídica policial, tais são alguns ideologias pré-existentes, logrando identificar-se
elementos responsáveis pela ligeira aceitação e como a única forma reconhecidamente idônea de
institucionalização do modelo fundado na exclu- abordagem dos transtornos mentais.
são manicomial da loucura. E foi com base nessa Chancelado pelos critérios da racionalidade
oportuna conjugação de interesses que a emer- técnico-científica, este dispositivo médico-psiquiá-
gência da psiquiatria pôde criar não só o campo trico, desde então, não mais parou de se expandir
institucional (o campo das instituições psiquiátri- e de se inscrever nas mais diversas esferas da vida
cas), mas também um novo campo teórico técni- social, desde o seu surgimento, no início do século
co e sobretudo um novo falo sócio-cultural. XIX, até os dias atuais, ampliando e diversificando
A definição de exclusão manicomial inerente os seus espaços e objetivos de atuação: “primeiro
a este paradigma psiquiátrico, posto como mo- a loucura, depois a doença mental, os conflitos
dalidade fundamental de relacionamento social emocionais, a vida psíquica, a saúde mental, o
com a loucura, ao conceder-lhe um alto grau de comportamento humano, as inadaptações e insa-
eficiência prática como resposta à questão “do tisfações, etc, etc.” (Pinheiro, 1981).
que fazer com os loucos?”, iria produzir a sua le-
gitimação social, colocando-lhe como centro da
convergência de um amplo e diversificado leque Referências
de interesses sociais relativos à loucura, agora
1. Birman, Joel (1978) A psiquiatria como discurso da
convertida em doença mental. Pelo mesmo pro- moralidade. Edições Graal: Rio de Janeiro.
cesso, colocaria também os seus agentes e ins- 2. Castel, Robert (1978) O Psicanalismo. Edições Gra-
tituições numa posição privilegiada, enquanto al: Rio de Janeiro.
“emissores” de uma recodificação e ressignifica- 3. Castel, Robert (1978) A Ordem Psiquiátrica: A Idade
ção das percepções sociais que envolvem a ques- de Ouro do Alienismo. Edições Graal: Rio de Janeiro.

50
4. Castoriadis, Cornelius (1982) A Instituição Imaginária
da Sociedade. Ed Paz e Terra: Rio de Janeiro.
5. Foucaul, Michel (1975) Doença Mental e Psicologia.
Ed. Tempo Brasileiro Ltda: Rio de Janeiro
6. Foucaul, Michel (1978) História da Loucura. Ed. Pers-
pectiva: São Paulo
7. Jaques, Elliot (s/d) Os Sistemas sociais como defesa
contra a ansiedade persecutória e depressiva: uma contri-
buição para o estudo psicanalítico dos processos sociais IN
Temas de Psicanálise Aplicada. (xerox, s/d ed.)
8. Pelbart, Peter P. (1989) Da Clausura do Fora ao Fora
da Clausura: Loucura e Desrazão. Ed. Brasiliense: São Pau-
lo.
9. Rosen, George (1974) Loucura y Sociedad: Sociología
Histórica enfermedad Mental. Aliaza Editorial S/A, Madrid.
10. Pinheiro, Luiz H. Psiquiatra, Prof. Do departamento
de Neuropsiquiatria da FAMED/UFBA. Depoimento conce-
dido em 27/01/80, transcrição.

51
Psicose e ressonâncias sociais
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*1

V ocês se lembram que, lá no começo, nós fi-


zemos uma grande discussão que estabelecia
que o que, efetivamente, vai parar na porta da
do chegar... Isso nós já falamos lá no começo,
eu só estou retomando, porque essa é a primeira
dedução da psicose como questão social. Estou
emergência psiquiátrica decorre mais da crítica querendo dizer, inclusive, que, se a psicose não
social sobre aqueles comportamentos que pare- se apresentar sob esse formato disfuncional, ela
cem fora das regras pactuadas socialmente do não é problema para ninguém, a não ser talvez
que do sofrimento do sujeito ou da sua situação para o sujeito que vive essa estranha experiência.
psíquica? Lembram-se disso? O que é que vai pa- Então, a primeira dedução é essa, de que a psi-
rar na porta da emergência psiquiátrica? O que cose é uma questão fundamentalmente social e o
vem para nós como crise? O que aparece para que vai parar na porta da emergência psiquiátrica
nós como crise são aqueles aspectos que causam é, fundamentalmente, aquilo que corresponde a
alguma ordem de estranheza e uma perturbação uma perturbação psíquica que gera algum tipo de
social importante. ressonância social importante. É muito óbvio, não
é? Sem ressonância social, o fato psíquico deixa
Lembram-se que vimos que é quando o sujeito de ser relevante.
perde a sua autonomia, principalmente a autono- Mas, às vezes, é difícil lidar, assumir isso assim.
mia financeira, que ele vai criar uma perturbação Mas se pararmos para examinar qual é o obje-
à ordem? Vejam só onde é que eu estou queren- to que chega à porta da emergência do hospital
psiquiátrico, qual é o sujeito que trazem para a
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade gente, isso fica cristalino. Trazem o sujeito para a
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Super-
gente, porque ele está disfuncional psiquicamente
visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. ou porque a sua disfunção psíquica gera algum
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das
psicoses” set. 2005 Salvador - Ba
tipo de disfunção social? Então, o sujeito que che-

52
ga até nós é o sujeito que perdeu a funcionalida- ria o principal, mas o destacado deles é aquele
de social. Estou querendo dizer que não é o crivo constituído pelos sujeitos que ouvem vozes, que
estritamente psíquico, do modo de funcionamen- saem da ordem social, rompendo com o orde-
to psíquico, que gera a demanda psiquiátrica. O namento simbólico da cultura. Isso sim é imper-
que faz gerar a demanda psiquiátrica é basica- doável do ponto de vista da cultura... Agora, é
mente uma relação dessa falta de funcionamento verdade que existe uma série de outras perdas da
psíquico com uma reação social; é a perda da autonomia, outras formas de apresentação de fal-
funcionalidade que converte esse sujeito num su- ta de funcionamento social... Você trazia aquele
jeito-cliente para os serviços psiquiátricos. dia a questão dos orgânicos; isso é importante...
Essa primeira dedução é fácil de fazer; a nossa Eu fui a Camaragibe, em Pernambuco, fazer uma
prática cotidiana nos mostra isso o tempo todo: inspeção num hospital psiquiátrico que tinha 850
quando alguém chega a levar um outro alguém leitos e 100 pacientes neurológicos graves numa
para a emergência psiquiátrica é porque esse ou- ala. Aquilo é um impacto quando a gente entra
tro alguém entrou na esfera de atrito com a or- na ala. É um impacto, sobretudo porque se trata
dem social, com a perda da autonomia, com a de um mega hospital, um hospital muito grande,
capacidade do autogoverno, com a capacidade e essa ala é uma jaulinha dentro daquela jaula
da auto-responsabilização pelos seus atos. Isso grande. Qual é a questão desses sujeitos? Eles
é a questão central da constituição da demanda têm uma limitação para cuidar de si e da vida,
psiquiátrica, isso não é um detalhe a mais! para responderem por si mesmos diante de suas
Eu não estou querendo desconsiderar que exis- famílias e seu grupo social.
tem sofrimentos menores, que existe um conjunto Então é verdade que esses sujeitos, na medida
amplo de situações sociais que vão ser psiquiatri- em que existe o hospital psiquiátrico - vários deles
zadas, mas eu diria que o dispositivo psiquiátri- têm problema na esfera da autonomia - vão parar
co não se instituiu originalmente por causa des- no hospital psiquiátrico. Bem, o que é que eu estou
ses males menores. O dispositivo psiquiátrico se querendo com isso? Eu estou querendo com isso
instituiu para enfrentar o grande mal que tem a saber se é possível, com tranqüilidade, a gente
ver com a questão da governabilidade do sujeito. afirmar que efetivamente a chamada “questão so-
Isso também já discutimos bastante, já apresentei cial” é uma questão extremamente relevante para
para vocês essa tese de que a grande questão da a compreensão do fato cultural e comportamental
constituição desse espaço do campo de saberes da loucura. A crítica social, a percepção social,
e práticas em saúde mental está relacionada à o incômodo social é um elemento fundamental
questão da governabilidade social. para configurar as apresentações dos sujeitos que
Existem grupos de sujeitos que não são gover- nós recebemos como casos psiquiátricos. Será
náveis por si mesmos, e o principal deles, não di- que isso é passível de crença para nós? Será que

53
podemos aceitar isso com tranqüilidade? primeira dedução”, de que, efetivamente, é a crí-
Efetivamente, muitas vezes temos uma situação tica social, a perda de autonomia, a perturbação
em que um trabalhador experimenta grande sofri- da ordem os fatores que constituem a demanda
mento que o consome internamente, numa situa- ou uma parte significativa da demanda e dos pro-
ção de construção delirante que fica oculta, mas blemas que nós recebemos na emergência do
que lhe garante estabilidade para que ele esteja hospital psiquiátrico.
hígido para o trabalho, que ele esteja funcional Se essa foi a primeira dedução, a segunda
para o trabalho; e, sendo então essa uma produ- será aquela que eu trouxe para vocês no outro
ção sintomatológica perturbadora, essa questão encontro: a idéia da questão da psicose como
não será percebida socialmente e não será ob- profundamente associada à problemática da
jeto de uma intervenção, de uma movimentação, constituição do “eu” e do “outro” como base da
de um encaminhamento, de uma busca de ajuda organização psíquica e de todo o processo de
ou contenção do sofrimento... Então, eu preciso significação. A psicose estaria relacionada, en-
saber de vocês se isso é tranqüilo para vocês, se tão, a um evento que tem uma dinâmica psíquica
vocês têm dúvidas, comentários, para que possa- importante, independente de que nós possamos
mos prosseguir. Essa é a nossa primeira dedução descobrir no futuro que ela tem uma química ou
da psicose como um fato social relevante. tem uma falta química, que tem um componente
Por que estou chamando isso de “a primeira genético; enfim, independente disso, há um con-
dedução”? Porque estamos propondo um saber junto de teorizações que apostam que a psicose
clínico que leve em consideração as coisas que a tem uma coisa que envolve essa dinâmica, que é
gente encontra na vida, um saber clínico que se a dinâmica relacional que, ao sujeito psicótico,
relacione com as produções sociais tais quais elas corresponderia uma dimensão onde essa questão
chegam a nós. A crítica que nós fizemos há dois, do “eu” e do “outro” ficou estabelecida de uma
três encontros atrás, dizia: olha, o sujeito efeti- forma precária.
vamente se apresenta de forma perturbadora da Nós estamos englobando aí várias teorizações,
ordem, é a crítica social em relação a essa perda nós estamos pegando Winnicott, Melanie Klein,
de autonomia do sujeito; a crítica está localizada Bleger, Lacan... São várias teorizações no cam-
aí, é isso que faz efetivamente com que o sujeito po psicanalítico, mas há teorizações também no
seja objeto de uma preocupação social endere- campo da teoria sistêmica, que vão estabelecer
çada à emergência psiquiátrica. Isso não quer di- que a questão da psicose encontra-se localizada
zer que todos os sujeitos que têm problemas ou numa esfera relacional, derivada da questão de
dificuldades vão ter essa apresentação, mas era como esse sujeito estruturou o eu como uma fun-
importante afirmar essa hipótese. Tranqüilo para ção do outro. O “eu’ é uma significação mater,
vocês? Então, nós podemos chamar isso de “a primeira, matriz de toda a possibilidade da sig-

54
nificação. Significar é sempre significar para um os sujeitos se diferenciavam uns dos outros den-
determinado sujeito. Se não existe este lócus do tro da tribo como pertencentes a certos grupos,
sujeito instalado, então não haverá significação. através do ritual do navem, e ele chamou isso de
O que as teorias psicanalíticas nos trazem de sismogênese.
muito interessante é nos remeter a um raciocínio Posteriormente, ele foi para Palo Alto, onde es-
sobre como em cada sujeito este processo de tor- tudou, fundamentalmente, a questão dos esquizo-
nar-se um sujeito é singular e se produz como um frênicos e a relação da produção da esquizofrenia
arranjo psíquico derivado da questão da significa- como função das relações de significação estabe-
ção. Esse é o interesse de chamar essa teorização lecidas nas relações do grupo familiar. O que a
psicanalítica para compreender a psicose como sismogênese tem a ver com isso? Nós não pode-
um arranjo psíquico que se dá no processo mes- mos chamar tudo de sismogênese, mas essa idéia
mo da instauração do sujeito psíquico. Portanto a de separações, a castração inerente ao aprofun-
psicose seria uma forma de expressão do sujeito, damento da individuação, é uma boa idéia.
seria uma direção de organização do sujeito. Na história dessa idéia, nós a encontramos
Alguns sujeitos se organizam nessa direção, é também em Winnicott quando ele descreve as re-
um modo de se arranjar, fruto, fundamentalmen- lações do bebê com a mãe e a importância dessa
te, da questão da cesura, da questão da separa- experiência como estruturante para a organização
ção. Mesmo lá na teoria sistêmica, a questão da do processo de significado com base na definição
psicose aparece com a questão da separação. A do espaço psíquico, onde se organiza o sujeito e
teorização de Gregory Bateson, que é o pai da o espaço psíquico que, em contrapartida, estrutu-
teoria sistêmica, que, aliás, nasceu das pesqui- ra o outro; nós poderíamos estar falando da mes-
sas com pacientes esquizofrênicos, investigando ma coisa, de separação, de afetação recíproca
os padrões de comunicação familiar entre mães entre eu e o outro que nos produz psiquicamente
e filhos, toma esse tema da separação como re- e socialmente.
levante. É obvio, já falei com vocês disso, que não vale
É interessante porque, vejam só, não precisa se a pena ficar fixo numa teorização sobre esse pro-
fazer recurso só à psicanálise; tem aí uma outra cesso, já que o tratamos como uma mera hipó-
teorização que não tem nada a ver com a psi- tese que tem várias construções. Vários autores,
canálise, mas que também se desenvolveu nes- teóricos trabalham essa hipótese, é uma hipótese
sa direção. Eu já contei aqui para vocês sobre o muito boa, muito interessante para a gente pen-
Gregory Bateson, que foi um antropólogo e pai sar a questão da psicose, para a gente pensar
da teoria sistêmica. Ele estava trabalhando com num grupo de sujeitos que “vacila” ou que desliza
os Iatmul, uma tribo da Nova Guiné, nos anos na questão da significação, que produz uma or-
30, e lá descobriu um mecanismo através do qual dem de expressão de significados que são abso-

55
lutamente próprios e diferenciados. Então, se eu é aquela questão que eu disse para vocês, a da
chamar isso aqui de segunda dedução da psicose significação atribuível à condição de ser sócio da
como questão social, fica claro para vocês? sociedade.
Por que nós vamos entender isso aqui como Nós podemos pensar que a questão da psicose
uma questão social? Porque a produção da vida é uma problemática referente ao pertencimento
psíquica, a organização da vida psíquica se dá do sujeito psicótico na sociedade – e não ape-
numa relação que parece absolutamente íntima, nas quando ele se encontra em crise – ao invés
próxima, dual, mas é uma relação que, de cer- disso ser tratado como uma obviedade – que é
ta forma, reproduz o padrão da cultura, que é o como alguns de nós, normo-neuróticos vivemos
padrão da existência dos sujeitos para os quais a nossa presença no mundo, pois geralmente
os outros sujeitos representam alguma coisa, al- não botamos em questão o nosso pertencimento
guma alteridade, representam algo que não são à comunidade humana, o compartilhamento das
eles próprios, que são diferentes deles. Essa é a experiências, sentimentos, compreensões com os
condição da possibilidade de ser na cultura. demais humanos. Para o sujeito que traz a marca
Então, essas duas deduções estão claras? Des- da psicose, isso se coloca de uma forma muito
culpem por eu estar insistindo um pouco, mas é enigmática.
que, se isso não ficar claro, vai atrapalhar um Para o grupo de sujeitos psicóticos, isso não
pouco lá na frente, porque a idéia é de que toda se coloca dessa maneira. Isso produz um reba-
clínica deve dizer quais são as hipóteses que ela timento na percepção, na sensação de estar no
tem acerca do fenômeno com o qual trabalha. Eu mundo, na sensação de estar no mundo habitado
estou dizendo para vocês que essa clínica que nós pelos homens, na sensação de que há algo que
estamos discutindo aqui deve levar em considera- não flui, não oferece a sensação de compartilha-
ção essas duas deduções que localizam a psicose mento. Lembra de quando eu falei para vocês da
num eixo eminentemente social. ilusão do compartilhamento intersubjetivo como
Ela deve levar em consideração essa primei- traço fundamental para a gente pensar a questão
ra dedução de que quando alguma coisa apa- da psicose e da neurose? De que nós, neuróticos,
rece para mim, aparece como situação social, temos a sensação de que compreendemos per-
por mais que seja particular. Por mais que seja feitamente o que as palavras que vêm do outro
individual, é um efeito social, é uma ressonân- querem dizer, e que o outro, por sua vez, acha
cia social da perturbação que chega. E, por outro que nós compreendemos como ele compreende
lado, também do ponto de vista da dinâmica que aquilo que acabou de dizer? É a ilusão da comu-
produz o sujeito como uma subjetividade comple- nicação, da intersubjetividade.
xa, o arranjo psíquico complexo da psicose está Na neurose, a ilusão do compartilhamento
marcado por uma profunda questão social, que simbólico é algo tranqüilo. Nós até produzimos

56
desentendimentos – briga de casal, desavenças alguma coisa em comum, mas são dialetos dife-
– nós até podemos dizer radicalmente que a co- rentes. Dialetos na linguagem de sinais, isso não
municação é uma coisa impossível dentro dessa é muito interessante?
perspectiva que eu estou trazendo, mas a ilusão Estou, com isso, querendo chamar vocês a ima-
do compartilhamento está sempre aí para fazer ginarem outros mundos, para a possibilidade de
de conta que a comunicação é possível. No su- organização de outros mundos ou de outros regis-
jeito psicótico, a experiência prática, clínica, evi- tros da experiência de estar no mundo. A questão
dencia a estranheza total, tanto em relação ao na psicose, pelo menos no surto, é que o mundo
que falamos para ele, quanto aos efeitos que o é outro. O que as mães surdas selecionaram foi
discurso dele faz em nós, aquele mal-estar que é a condição de que o filho fosse sócio da surdez,
estar diante de um discurso delirante. E por quê? sócio desse mundo surdo, com compartilhamento
Porque não sentimos nele o rebatimento da nos- nesse mundo, inscrito nesse mundo. Para elas, o
sa própria subjetividade, que eu estou chamando que importa é que a sua filha se comunique com
de pertencimento, da condição de ser sócio da elas, que ela esteja integrada com a comunida-
sociedade. de surda. O mundo – diriam essas pessoas – nós
Isso é bom para a gente pensar numa série de não participamos do mundo, nós participamos
outras coisas. Eu me lembro que causou muita do mundo dos surdos e queremos que nosso filho
estranheza quando duas mulheres surdas, que nasça surdo para viver no nosso mundo. Quem
viviam juntas, quiseram ter um bebê de proveta. disse que viver no mundo dos ouvintes é a melhor
Prepararam geneticamente e fizeram uma seleção coisa? O mundo do surdo não é defeituoso, não
genética para a surdez, escolheram genes que é errado, é um outro mundo, uma outra forma de
oferecessem mais probabilidade de que a criança construir a sociedade, com importantes especifici-
nascesse surda. Isso causou uma polêmica geral, dades simbólicas.
e as duas explicaram que a comunicação surda Eu trouxe isso para comentar a questão da di-
é de outra ordem cultural, elas consideram que ferença, para pensar a psicose como registro de
não fazem parte da mesma cultura, elas acham diferença. É claro que a psicose guarda aí uma
que existe um mundo próprio da experiência da radicalidade, porque não tem a comunidade
surdez, com sua comunicação, suas expressões, dos psicóticos, não é? Não é assim: a sociedade
e, recentemente, eu estava fazendo um trabalho dos psicóticos contra a sociedade dos outros, os
em que manejei esse recurso, e o sujeito surdo neuróticos. É que cada psicótico organiza certos
que nós pegamos para conversar falava assim: registros de significação ou pode organizar, por-
você acha que linguagem de sinais é universal? que a maior parte do tempo, inclusive, eles vivem
Que nada! Os surdos do Rio de Janeiro conver- grudadinhos no registro da significação com uma
sam de um jeito; os de São Paulo, de outro. Há sensação de diferença, mas também não são des-

57
ligados desse registro não. Quem nos faz pensar a solidão geralmente é
Temos de fazer esse reparo, senão a gente co- o deprimido. A depressão nos impõe muito essa
meça a pensar que a psicose é permanentemen- questão. Vocês entendem porque o deprimido nos
te o delírio, e a psicose não é permanentemente impõe a questão da solidão? Porque o deprimido,
o delírio. O delírio é justamente a expressão do de certa forma, reconverte libidinalmente para
registro da diferença do arranjo psíquico no que dentro, o deprimido corta o sentimento para fora,
tange à questão da representação. Então, a isso por isso é muito difícil lidar com o deprimido, não
aqui eu estou chamando de “dedução”, dedução é? Porque, de alguma forma, ainda que o depri-
da questão social. A psicose, portanto, não só ela mido não tenha nenhuma questão de comparti-
apresenta-se para o outro social como um distúr- lhamento de significação, ele é tomado por uma
bio e perturbação, como ela se apresenta para o certa ordem em que a significação também cai,
próprio sujeito como distanciamento, como dife- não é? O sentido também cai; aí ele não conse-
rença, como alteridade; como divergência social. gue fazer um investimento, ele faz uma reconver-
Essas são as duas deduções que nos permitem são libidinal, por isso ele nos remete à questão da
introduzir o tema de hoje, que é uma questão ra- solidão. Talvez a expressão seja que o deprimido
dical na psicose, que deveria ser uma primeira problematiza a solidão.
questão que nós deveríamos levar em considera- Agora, o psicótico nem sempre problematiza
ção numa clínica psicossocial das psicoses. Estou a questão da solidão; o psicótico, efetivamente,
me referindo à questão da solidão psicótica. expressa a solidão, ele é a solidão. Insisto com
Toda vez que tomamos um caso, quando rece- vocês nas dezenas de falas desse tipo que colho
bemos um sujeito, quando vamos abordar, quan- no contato com os sujeitos psicóticos: “meu pro-
do vamos receber uma certa demanda social que blema é que eu sou muito sozinho”, “meu proble-
envolve o sujeito psicótico, eu acho que a gente ma é que não tenho ninguém”, “meu problema é
tem de pensar na hora, eu acho que a gente tem que eu não tenho amigo, apoio”. Essa percepção
de começar a pensar a psicose a partir da ques- do psicótico impacta muito, e achamos que ela é
tão da solidão. Não sei o quanto vocês são so- uma boa porta para a gente discutir o que é que
zinhos, o quanto refletem sobre a sua solidão, o isso tem a ver com nossa clínica.
quanto já pararam para pensar quão importante É muito curioso, porque nós nos produzimos
é a questão da solidão para a saúde mental. O numa sociedade contemporânea, pós-moderna,
psicótico não fala da solidão. Quer dizer, às vezes que tem como regime principal de direção da or-
fala, mas o psicótico é principalmente a solidão. ganização da vida social o individualismo narcísi-
O que impacta muitas vezes para nós é o quanto co. Nós vivemos numa sociedade – e nada disso
esse sujeito é a solidão, no sentido que nós vamos é totalidade, pois é óbvio que estou falando das
começar a refletir agora. pontas urbanas, regiões e geografias avançadas

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na sociedade, porque a gente não pode esquecer começar por considerar que esse sujeito se sente
que há lugares em que as coisas se passam ainda muito desconfortável no mundo e que sua soli-
do modo antigo, então há uma convivência entre dão deriva do seu profundo desconforto psíquico;
os modos antigos e os pós-modernos de expres- desconforto psíquico gerado, por um lado, pelos
são - mas, nos modos pós-modernos, nós pode- efeitos sintomáticos da sua condição, pela sua bi-
mos dizer que a expressão mais forte é a de um zarrice eventual, pelo seu retraimento, pelo cará-
individualismo narcísico, e que essa é a direção ter complexo do estabelecimento de relações, o
civilizatória que a vanguarda da sociedade nos caráter estudado, medido, avaliado do comporta-
tem apontado. mento para entrar em relação, o caráter travado
Então, a nossa questão é entender como é que para entrar em relação, e isso por si só gera uma
a solidão se coloca para o sujeito psicótico, por- crítica social, porque, de repente, a gente olha e
que, no caso do deprimido, o sujeito toma um fala: “que pessoa esquisita, que pessoa estranha
antidepressivo e deixa de ser deprimido, retoma que está convivendo entre nós”. Eles não chegam
seus vínculos sociais, retoma sua vida e volta a a produzir esse problema da autonomia, às vezes
viver no compartilhamento simbólico; e, no psi- eles conseguem se manter estabilizados, mas num
cótico, se ele toma um anti-psicotizante ou, even- registro de poucos amigos, de vínculos muito res-
tualmente, um antidepressivo associado, ele não tritos, talvez seja essa a melhor expressão: mais
volta a compartilhar, ele continua remetido a uma do que falar da solidão, falar em vínculos, já que
certa condição de impossibilidade. Talvez o que a questão da solidão é problemática. Os vínculos
nos interesse dizer nesse momento é que o que a são restritos.
psicose coloca para o sujeito é um registro radical E, por outro lado, a própria percepção do su-
da solidão. Como é que isso chega para nós? jeito sobre si mesmo, o rebatimento: “o outro me
Como é que nós nos relacionamos com isso? O percebe e me confirma num lugar de estranheza,
que é que isso implica para a nossa clínica? de dificuldade, e eu mesmo me percebo nesse
Porque, na sociedade do individualismo narcí- lugar de dificuldade, de impossibilidade”. Muitas
sico, é muito difícil, aliás, a questão do narcisismo vezes se diz: “o outro na psicose é um enigma”
atravessa tanto a questão da depressão como a porque, na medida em que essa relação não se
da psicose do ponto de vista da hipótese teórica estabeleceu bem, em seu momento constitutivo
que sustenta a construção desses estados; são es- das primeiras experiências quando do ingresso na
tados que, fundamentalmente, têm alguma ordem sociedade humana, se diz que o outro impera na
de perturbação na relação vincular com o outro, psicose, ele não consegue nunca se livrar dessa
um desinvestimento de um sentido e de uma pro- marca, dessa presença, dessa indistinção, razão
dução de significado na vida do sujeito. pela qual ele é avesso às relações, já tem “outros”
Uma clínica psicossocial das psicoses precisa demais na vida dele, alteridade demais na vida

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dele, e isso os perturba. grande generosidade social, entre aspas, porque
Na sociedade individualista narcísica, é res- todo sujeito criado pelos outros tem uma querela
ponsabilidade de cada individuo cultivar a sua lis- em relação a isso, de terem sido mais ou menos
ta do Orkut, produzir a sua lista pessoal do Orkut, amados, mas existiam enjeitados sociais que eram
cada um tem de dar conta de angariar seus afe- albergados na família. E o que chama atenção é
tos, os seus amores; cada um tem de construir a que são pessoas pobres, não têm isso de adoção,
sua região vincular para se sentir confortável. Eu de ir ao juiz, de pedir guarda. É simplesmente ver
perguntei isso para vocês outro dia e repito por- um ser vivente que está abandonado, que nin-
que acho interessante: quem são os sujeitos que guém quer, e colocar dentro de casa, começar a
compõem o meu sociograma? – que é um recur- tratar... Um tipo genuíno de solidariedade. Ob-
so técnico proposto por Moreno. Quais são os viamente que aí entram as queixas. Qual o grau
sujeitos que estão na esfera das minhas relações, de incorporação que esse sujeito recebe pelo gru-
dos mais próximos aos mais distantes, mas cujas po que o acolhe?
existências estabelecem para mim sentido e signi- Mas a idéia é afirmar que a questão vincular
ficado para a minha própria existência? Quem para as classes populares está colocada de uma
são então estes meus “outros” tão importantes forma muito diferente que nas camadas médias
que me dão sustentação no mundo, sendo eu o urbanas. Nós, das camadas médias urbanas da
sujeito que eu sou? É interessante pensar isso, Bahia, estamos aprendendo a cultivar a impesso-
porque essa teia de relação é fundamental para alidade - e eu digo sempre “aprendendo”, porque
nos produzir como sujeitos que nós somos. Existe, acredito na hipótese da modernização tardia, per-
nesse momento histórico, uma tendência decli- cebo a tendência à impessoalidade, a morar nos
nante da família mononuclear burguesa, em favor condomínios e não falar com as pessoas, o que
dos modos individualistas, como outrora declinou era impossível e inadmissível há 30 anos porque
a família extensiva em prol da família privada e havia um registro da sociabilidade comunitária
mononuclear... Vejam como era a produção do muito imperativo.
sujeito no passado: a família extensiva era uma Estou trazendo isso para falar de um traço im-
benção para essa matéria vincular, concordam? portante da sociedade ocidental moderna que é
Entre as classes populares, inclusive - e nós essa tendência à privatização dos afetos, das re-
encontramos muitos casos desses tipos no nosso lações, à produção do individualismo narcísico,
programa de estágio - existem muitas situações questão que se coloca, portanto, para a psicose,
desse tipo, de dizer “fulano foi criado por sicra- como um problema a mais. Nessa direção nós
no”, que não eram seus pais e nem tinham laços estamos tornando o mundo cada vez mais difícil
de sangue, mas acolhiam uma criança abando- para os psicóticos.
nada ou que os pais morreram, vizinhos com Curiosamente, talvez nós estejamos nos apro-

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ximando cada vez mais dos modos de vida isola- olharmos para essa discussão do individualismo
dos, em que a gente é sócio, mas a gente continua narcísico numa perspectiva de tipo patologizan-
sendo sócio no simbólico, a gente está deixando te. Devemos fugir dessa forma de conversar sobre
de ser sócio da sociabilidade, estamos abrindo esse assunto, dizendo que o individualismo narcí-
mão da sociabilidade, estamos dizendo “eu não sico é uma doença. E por quê? Porque todo mun-
quero que meu vizinho me cumprimente, eu que- do que fala sobre doença, fala sobre remédio.
ro subir no meu elevador sem que ele me encha Então, tem uma pergunta que é: “qual o remé-
o saco, não quero que ele divida demais comigo, dio para isso e quem vai dar o remédio?” Uma
que ele se relacione demais comigo, não quero eleição social de valores morais que são sempre
intimidade demais”. É interessante para nós, sote- parciais e que, no limite, remetem à possibilidade
ropolitanos, vermos essa tendência cada vez mais da instauração de um fascismo.
aflorando. Nós vemos assim: “moderno não é Então, como é que nós devemos encarar isso?
esse negócio que interage demais, conversa com O Jurandir comenta que o individualismo narcísi-
todo mundo”. co é uma produção civilizatória que está na con-
Gente, isso são fragmentos... Eu estou fazendo tramão do vínculo social, da relação com essa
assim para a gente pensar sobre como é que nós matéria da filia, que é a matéria humana que
temos compreendido a questão da solidão, como produz coesão social. Psicanaliticamente, seria
é que a questão da solidão para nós vai deixan- uma comunhão libidinal, não é? Que é o com-
do de ser uma experiência de imposição social partilhamento dessas projeções que constroem a
e vai sendo uma experiência de eleição social. sociedade como um ente resultante dos vínculos
Nós estamos elegendo formas mais solitárias de entre os sujeitos.
viver. Olha, gente, para isso tem uma estatística Nós podemos dizer que o individualismo nar-
do IBGE que mostra o número de residências mo- císico agride, de certa forma, o conceito de so-
nodomiciliadas. ciedade? É uma idéia interessante. O individua-
No Brasil, já chega a 14% o numero de domi- lismo narcísico vai contra o próprio conceito da
cílios que são habitados por uma única pessoa. sociedade. O Jurandir, então, fala que tomar isso
Na França, dá 30%, e, nos Estados Unidos, 40%. como doença é uma perspectiva profundamente
É uma direção societária, é um rumo que estamos ameaçadora para a própria idéia de sociedade,
escolhendo na vida: é cada um por si e Deus por que coloca em questão o próprio conceito de so-
todos, é o rumo da privatização dos afetos e dos ciedade, em que a sociedade é cada vez mais um
espaços. É interessante isso como direção civili- mero habitat, um receptáculo para as individua-
zatória do ocidente, porque afronta fundamental- lidades narcísicas. O Louis Dumont fala de uma
mente a questão do vínculo. Jurandir Freire em situação em que os tijolos são mais importantes
uma fala dizia que devemos ser cuidadosos e não do que as paredes do edifício social; o valor do

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tijolo é mais importante que o valor do edifício do a gente fala da desfiliação, nós falamos da
que o conjunto de tijolos produz, que seria a so- curiosa e rara produção, poderia dizer até inusita-
ciedade, em que o valor principal não é ela, mas da produção, do sujeito sem vínculo. Então, essa
cada tijolo. é uma produção rara na história da humanidade.
É como se fosse a rebelião dos tijolos. Cada Só essa sociedade a qual eu estava me referindo
tijolo está mais preocupado consigo mesmo, e o anteriormente, que é essa sociedade moderna,
fato de que eles estejam ali superpostos é uma formata o sujeito social sob a égide da individua-
mera formalidade que produz a sociedade. En- lidade e permite essa experiência de uma radical
tão, ele chama atenção para o fato de que a au- desfiliação dos que são menos funcionais nessa
todestruição pode ser uma perspectiva civilizató- habilidade de organizar uma rede de relações.
ria. Ora, quantas civilizações acabaram assim? Eu diria que está ligado ao modelo da formata-
Se auto-destruíram, e a gente hoje não tem senão ção do sujeito moderno, que é absolutamente or-
notícias delas. gânico com o modo de produção capitalista, que,
Eu estava conversando com uma colega de na sua dinâmica, por exemplo, olha com interesse
vocês, no intervalo, sobre as crianças neurológi- o ideal das moradas unidomiciliares para todos.
cas, sobre as crianças e adolescentes com quadro Assim, cada sujeito, como consumidor terá que
neurológico importante que vivem lá no Hospital adquirir um fogão e uma geladeira, por exemplo.
das Obras da Irmã Dulce. Eu estava conversan- Tem uma indústria que vai adorar isso, porque
do exatamente que, de algum modo, todos eles multiplica os consumidores. E hoje, utensílios que
são sujeitos que têm problema de autonomia e de eram da casa de todos, como as televisões, são
como se poderia organizar o cuidado com eles, de uso pessoal, tem quatro televisões numa casa
no sentido da solidariedade humana, de garantir com quatro pessoas. Mas é muito mais interes-
as necessidades básicas da vida para esses su- sante morar sozinho; cada um, sozinho, precisa
jeitos e, ao mesmo tempo, o quanto isso parece de todo um aparato.
insuficiente como perspectiva. Agora, temos de ter cuidado para não parecer
Sem dúvida nenhuma, esses sujeitos precisarão uma relação de causa e efeito. Efetivamente, é
de cuidado para o resto da vida. O interessante uma sociedade individualista, narcísica e, obvia-
é que, ao estarem sob os cuidados institucionais, mente, competitiva, que faz cada lar, cada família
isso coloca uma questão muito interessantes, que cada vez menor... Os casais nos países europeus
é a questão dos vínculos, e eu acho que é esse o não conseguem se reproduzir numa mera taxa de
tema que nós devemos discutir, o tema da desfi- reposição, estão virando países de velhos, porque
liação, que é onde nós vamos nos interessar na não conseguem dois filhos por casal para a repo-
experiência psicótica. Já que nós podemos pensar sição social. Todos esses fenômenos estão vincu-
que filia é amizade, é vínculo, é o que atrai; quan- lados. O que nós temos de pensar é como, nessa

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sociedade, aqueles indivíduos que são mais frá- Esse grupo recebe um impacto desses processos e
geis na dinâmica da autonomia vão ser, de certa dessas dinâmicas sociais.
forma, excluídos socialmente. Se é que podemos afirmar, está ficando cada
E aí nós podemos pensar desde a exclusão do vez mais difícil viver como um psicótico social-
mundo do trabalho. Robert Castel traz isso com mente. As dinâmicas sociais vão ficando cada vez
muita ênfase, e ele fala sobre a produção de um mais restritivas, a disponibilidade social para pro-
homem, que não só não tem mais trabalho, mas dução vincular está cada vez mais restrita. Então,
não tem um outro conjunto de vínculo social que o temos de ter em foco, no caso das psicoses, a
sustente socialmente. Então, nós vamos começar questão vincular, que é onde sua destreza, sua
a produzir o homeless em grandes quantidades, habilidade social, suas capacidades, suas chan-
nós vamos começar a produzir essas populações ces, suas oportunidades vinculares já vêm com
que estão extremamente fragilizadas, vulneráveis um certo arranjo limitador.
do ponto de vista da sua questão vincular. O Cas- E nós produzimos uma dimensão de sociabili-
tel tem o mérito de chamar a atenção assim: não dade, uma dinâmica que tende a aprofundar to-
se trata só de pobreza, se trata de desvinculação dos esses elementos do ponto de vista da fragili-
sócio-afetiva. zação e limitação. Por quê? Porque está cada vez
Claro, essa coisa toda de individualidade é mais difícil viver nessa sociedade individualista.
uma tendência, é uma direção. O que chama a Para todos. Estou dizendo assim, não é o único
atenção é que, nessa tendência, tem um conjun- efeito, hein? Não é o único efeito que se produz
to de sujeitos que estão menos aparelhados para assim, não é? Por exemplo, o Rio de Janeiro tem
lidar com os desafios de situar relacionalmente, uma população de idosos de classe média mui-
certo? Que são vulneráveis para participarem da to grande que foi beneficiada pela ampliação da
sociabilidade dessa sociedade. Aquela sociedade expectativa de vida com qualidade de vida. Im-
que inventou o manicômio, porque era uma so- pressiona-me o número de estabelecimentos que
ciedade na direção da industrialização e que via existem no Rio de Janeiro para abrigos de terceira
que o louco perturbava a sociedade, perturbava idade, o comércio que existe no Rio de Janeiro
as dinâmicas do capital. Essa sociedade, ela, di- para a terceira idade.
gamos assim, aperfeiçoou em muito as exigên- Não é que os filhos do Rio de Janeiro são mais
cias para dizer quem é que cabe e quem é que cruéis, menos amorosos que os filhos de baianos,
não cabe, gerando um grupo de sujeitos que fica mas que, no Rio de Janeiro, é mais comum na
muito frágil, é um grupo que fica muito fragili- cultura que, chegando num determinado momen-
zado. Eu queria considerar que, óbvio, não são to, que cada um foi cuidar da sua vida, dos seus
apenas os psicóticos, mas nosso caso, que mais interesses, sobre ao idoso o lugar de elemento
de perto nos interessa, é o grupo dos psicóticos. de perturbação da vida, porque eles exigem cui-

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dados, e existe então a terceirização desses cui- do quando é o mesmo familiar que toma conta
dados em outros espaços que comercializam os do sujeito há muitos anos. Então, essa produção
serviços de asilo. impacta demais a clínica, se a gente for pensar no
Essa não é uma tendência forte aqui em Sal- paradigma do manicômio que é “eu delego cui-
vador. Há centenas de espaços desse tipo no Rio dado institucional”, e, basicamente, quando você
de Janeiro. Não estou falando de um ou dois; vai ver, os crônicos são os que foram sistematica-
são dezenas e centenas de lugares para agrupa- mente sendo limitados nessa relação de filia, ao
mento de pessoas que perderam a funcionalidade ponto que precisou que alguém se responsabili-
social. Estou falando desse caso para dar idéia zasse, e ouviu um “tchau, não tenho nada com
de que podemos pensar esse fenômeno nas vá- isso mais, deixei para trás”, que é a questão do
rias dimensões: das crianças de Irmã Dulce aos abandono.
idosos do Rio de Janeiro, aos pacientes psicóti- Essa é uma palavra dura dentro da instituição
cos, porque, de alguma forma, estou querendo psiquiátrica. Literalmente, ninguém mais os quer.
configurar para vocês uma percepção de que a Então, não sei se vocês estão percebendo, mas as
grande questão do manejo dessas situações não chances do paciente psicótico fazer uma trajetó-
é exatamente o distúrbio psíquico psicótico, mas ria, um caminho nessa direção é muito grande, e
é o difícil manejo da desfiliação psicótica numa se os outros sujeitos que não têm essa limitação,
sociedade muito individualista. essa restrição vincular com problemáticas psíqui-
É o difícil manejo de quem vai tomar conta, cas comuns, têm se colocado na vida dessa ma-
de quem vai se responsabilizar, quem vai assu- neira, imagine o sujeito psicótico. Ele é um sujeito
mir o encargo? Então, isso entra na clínica ba- vulnerável ao processo da desfiliação. Por isso
tendo muito forte. Ora, vocês devem saber disso eu estou trazendo para vocês o tema da solidão,
pelas experiências cotidianas. Nós não estamos como tema fundamental, porque a desfiliação diz
trabalhando no plano do significado, da sintoma- respeito ao estatuto social, e a solidão diz respeito
tologia psicológica; nós estamos, muitas vezes, ao sentimento e à percepção do sujeito em sua
administrando a limitação de um sujeito que per- posição.
deu a autonomia e que precisa de alguém para Essas coisas podem ou não estar juntas. O su-
se responsabilizar por ele, porque ele está numa jeito pode manter algum registro de filiação, de
condição de dependência. vínculo, e ainda assim se sentir profundamente só.
É interessante ver como é essa relação de de- E a sua condição de se sentir profundamente só é
pendência. É muito interessante quando se vê nas motor da produção da sua solidão e da sua des-
emergências... Ainda encontramos muita filia... filiação. Há algo na psicose que leva, que dirige
Podemos até achar um familiar contrariado, que a produção da desfiliação. Só assim nós pode-
já está aborrecido com aquela situação, sobretu- mos explicar os pacientes crônicos, que nascem

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de uma hora para outra, como cogumelos depois dessas pessoas é se elas são ou não são para
da chuva na manhã de sol. Cada um daqueles alguém, se elas representam ou não representam
sujeitos crônicos que têm vinte anos de internação algo para alguém, se elas fazem sentido ou não
resulta de histórico de desfiliação e abandono. Eu fazem sentido, se elas contam ou não contam
estive em Feira de Santana semana passada e es- para algum outro. O problema dessas pessoas
tava vendo os moradores que estão indo agora é que elas não contam, que elas não importam
para as residências terapêuticas que estão sendo para ninguém. Ninguém se importa com elas.
montadas na cidade. Entrei em contato com gen- É difícil pensar que o problema de algumas
te de 40 anos de internação. É uma vida inteira pessoas é derivado do fato de que não existe
de internação. quem com elas se importe suficientemente. Isso
Quem são esses sujeitos fundamentalmente? é um problema radical que nós vamos encontrar
Esses sujeitos não aparecem com 40 anos de em diversos grupos bastante frágeis. Eu trago
uma hora para outra. Quero dizer, assim, esses isso, gente, porque, na nossa clínica, nós temos
40 anos de internação foram construídos dia a de levar isso em consideração. Nós temos de or-
dia, num processo anterior que é o de produção ganizar um discurso desse tipo clínico que leve em
da desfiliação, da desresponsabilização social consideração que, além de um desarranjo psíqui-
até o seu processo de institucionalização, em que co, esses sujeitos são marcados por uma profun-
eles passam a ser considerados sujeitos que, para da desfiliação.
subsistirem socialmente, precisam da condição No caso da psicose, como eu disse, é uma
básica de serem institucionalizados. Quero dizer, desfiliação que tem vários rebatimentos, e para
assim, quem é o “outro” desse paciente institucio- tratar disso não tem fórmula, são inúmeras as
nalizado? Qual é a sociedade para esses pacien- possibilidades. Na verdade, não existe solução
tes institucionalizados? O outro para o paciente por atacado, entendeu? A única forma de traba-
institucionalizado é a instituição. O outro social lhar - eu sei que vocês ficam ansiosos em saber
para ele é a instituição; o outro não é o outro da como fazer – quando a gente reconhece que a
sociedade, o outro é o outro da instituição. questão do vínculo é uma questão fundamental,
Para esses sujeitos não há quem os ame su- a gente tem de trabalhar no lugar de tecelões ar-
ficientemente. Pode parecer piegas, mas veja, é tesanais do vínculo, então não tem modinha de
fazer uma aposta de que nós podemos substituir a C&A, só a prêt-à-porter. Um por um, cada caso é
filia pela técnica. Quando você traz essa perspec- um caso. E a gente vai dar conta do caso quando
tiva de racionalização do trabalho institucional, a gente conseguir refazer esse delicado caminho
nós estamos pensando que podemos substituir a de reconstrução dos vínculos sociais, e aí pode
filia pela técnica. A questão dessas pessoas não ser cooperativa ou não-cooperativa. Não é essa
é se elas produzem ou não produzem, a questão a questão, a questão é que cada sujeito possa

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produzir-se, de forma que ele signifique alguma profissionais do serviço psiquiátrico – sobretudo
coisa para alguém. os que são assistentes sociais, o máximo de social
Nada substitui essa possibilidade de que o su- que abordamos como técnicos é escutar na nossa
jeito signifique alguma coisa para alguém. É pre- sala um familiar, um amigo que veio interceder
ciso ter um outro social que referencie, que crie, pelo paciente. Mas, mesmo no caso do serviço
que multiplique, que sustente, que alavanque ou, social, a concepção de sociedade perde de vista
para dizer na expressão lacaniana, que secreta- a questão vincular como sendo eixo, como sendo
rie esse sujeito, que dê suporte, apoio, que este- estruturante, como central. É obvio que a gente
ja lado a lado para reconstruir os seus vínculos acaba trabalhando a questão vincular sem perce-
com a sociedade. Se for oficina, é oficina para ber a potência psíquica que ela tem.
reconstruir vínculo; se for passeio, é passeio para O fato é que a nossa concepção de sociedade
reconstruir vínculo; se for teatro, enfim... Enfim, exclui a dimensão vincular; a gente toma a socie-
não é essa a questão que nos impacta mais, essa dade como um conjunto de instituições. E o víncu-
de saber qual a fórmula. Qualquer forma que nós lo é psiquismo social, não é outra coisa. O vinculo
adotarmos, qualquer coisa que nós fizermos nes- é dinâmica psíquica, porque senão a gente acaba
sa clínica, nós temos de fazer nos dando conta de isolando e pensando que tudo é natureza intrapsí-
que combater a questão da desfiliação social é quica – estou, mais uma vez, discutindo a questão
fundamental nessa clínica. das teorias psicológicas e das outras teorias que
Não adianta tangenciar o fenômeno, a gente não são estritamente psicológicas, que pensam a
tem de olhar o fenômeno de frente, e olhando questão do vínculo como dinâmica psíquica. E aí
daí, nós veremos a dificuldade da vinculação so- vem a questão das intervenções na cidade.
cial, e nada substitui essa tarefa. Quando a gente Eu dei aula esses dias em Blumenau para uma
não cuida disso, fica uma clínica manca, que re- turma de trabalhadores de saúde mental, e fa-
cusa a evidência de que existe uma dinâmica so- lamos que lá é um município rico, dinheiro não
cial radical na questão da psicose. E aí eu cuido é um problema lá, a pobreza lá não é miserável
de tudo, mas não desenvolvo a tecnologia para a como a nossa, é remediada. Então eu perguntei
abordagem da questão social, não me preparo; a eles se já pensaram em experimentar colocar os
no máximo, delego para as assistentes sociais. pacientes ou uma parte deles dentro do ônibus
A questão que trago para vocês, então, é essa: da instituição e fazer uma grande excursão, pas-
não dá para avançar nessa clínica se não con- sando pelas casas de todos eles, fazê-los chegar,
siderarmos a dinâmica do vínculo. Por isso que todos eles, às suas casas. Estou dizendo assim,
aí vem a questão dos labirintos das cidades: nós “agora vamos conhecer a família de fulano de tal,
estamos muito pouco preparados para intervir na essa é a mãe, esse é o irmão”. “Quem são esses?
sociedade, na comunidade, e, nas nossas leituras, Esses são os colegas do tratamento”. Tomam um

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café, depois voltam pro ônibus e vão até à casa fazer é fundamental. Então, esse sujeito da socie-
de outro paciente. dade representa para esse adolescente que existe
Não nos passa pela cabeça que isso possa ser alguém na sociedade que está disposto a dar um
muito impactante, transformador nas relações, prego por ele.
nas percepções, na construção da significação, Isso tem uma potência, uma capacidade trans-
nas relações que ele estabelece com a comunida- formadora muito maior que a de dez psicólogos e
de e que a comunidade e a família estabelecem assistentes sociais juntos falando na cabeça dele,
com ele. Numa outra vez, eu discutia sobre a doutrinando para que ele volte para o caminho do
itinerância: tem um paciente perdido. Aí, ao in- bem. Isso porque é alguém que não tem nada a
vés de o técnico ir procurar fazer uma visita do- ver com ele, alguém classe média que se dispõe,
miciliar, por que não saírem todos os pacientes no final de semana, a ir buscá-lo longe, colocá-lo
procurando a família de fulano? Todo mundo ali no seu carro e ir passar o domingo com a família,
junto procurando o fulano de tal. Quando o cole- lanchando junto, indo ao clube, deixando claro
ga de vocês de lá de Irmã Dulce me perguntava, que isso tudo é mera solidariedade, sem querer
eu dizia que, por mais técnico que a instituição nada em troca. Esse é o espírito que impacta esse
tenha, há a necessidade de um projeto. Qual era menino.
o projeto? Eu estou trazendo esse exemplo para dar uma
Vá às escolas da psicologia, serviço social, e visualização de que a clínica é essa que estamos
avise que está procurando estagiários para tra- falando, da introdução da questão vincular como
balhar com reconstrução vincular. Cada estagiá- dispositivo regular, permanente e orientador de
rio cuidando de um paciente. Arranja gente que todo trabalho, para que esse sujeito possa pro-
queira levar um paciente desses para passar o fim duzir, reconstruir sociabilidade. Eu não estou di-
de semana em casa, arranje sociedade para esse zendo a ninguém que abandone a psicoterapia,
sujeito caber de alguma forma. a psicofarmacologia. Quero dizer que, ao lado
O programa de Liberdade Assistida de Belo desse arsenal que a gente adota, nós temos de ter
Horizonte colocou um anúncio no jornal: crianças o entendimento de que a filia que se produz na
em conflito com a lei – uma turma até três oitão, cidade, de que as soluções para qualquer coisa
14, 15 anos, mas já com história de infração à na cidade estão dentro da cidade.
lei. Procuramos cidadão que queira se co-respon- Eu, às vezes, comento no nosso programa de
sabilizar pelo cumprimento da medida de liber- estágio sobre o entendimento, o domínio da cida-
dade assistida de adolescentes infratores. Qual é de. O que é que nós sabemos da cidade? Quais
o espírito do programa? É introduzir a sociedade os recursos que existem na cidade? Eu comento
que não tem obrigação, porque o juiz, os técnicos sempre aquele caso da Engomadeira. O serviço
da prefeitura são o Estado. Não ter obrigação de social do Hospital Juliano Moreira, certa feita, fa-

67
zia uma reunião em torno da questão da família, portadores de transtorno mental do nosso bairro.
em que se trabalha muito a questão informativa. E aí o trabalho foi tendo um rendimento, pro-
Muitas vezes, eu dizia que não se produz víncu- duziram uma organização, fizeram passeios, reu-
los com a informação, não adianta dizer para o niões com a comunidade, e foram produzindo
sujeito se vincular, para produzir. Isso é outra tec- suporte social. E o mais interessante é que um
nologia, construção do vínculo é outro modo de dos lugares onde a turma mais chateava aquele
relação, de operação. paciente era uma loja de material de construção
Mas então tinha a reunião, e falavam com a onde ele ficava para carregar os materiais. E foi
família da necessidade de respeitar o paciente, feito um trabalho com o proprietário da loja de
de administrar as relações com o paciente, que material de construção, que criou uma proibição
é uma informação insuficiente, e, num dado mo- aos seus funcionários de molestarem os pacientes
mento, uma mãe levanta a mão e diz: “olha, eu da área. Criou-se uma conscientização, produziu-
não tenho problema nenhum com ele, meu pro- se um efeito psicossocial. Um dos trabalhadores
blema é que, na rua que eu moro, tem uma turma mais folgados insistiu na chateação, o dono da
lá que pega meu filho como saco de pancada, a loja mandou ele embora e contratou o doidinho
gente sai na rua e todos começam a debochar para ir trabalhar na loja de material de constru-
dele, e aí ele pira, porque não tem condição, e eu ção.
tenho que trazer ele aqui pro Juliano, porque ele Veja só que coisa interessante do ponto de vis-
fica muito mal”. O que é que ela está dizendo? ta de produção de resposta para uma certa dinâ-
Ela está dizendo que vive em uma comunidade mica. Quando foram atrás de um, encontraram
que construiu uma relação de hostilidade com seu vários. Ao encontrarem vários, produziu-se uma
filho e que o impede de produzir uma outra ordem articulação social na comunidade, produziu-se
de significação, senão aquela que está inscrita no suporte social, sustentação na comunidade, e
discurso social, que é extremamente agressiva e essa produção na comunidade gerou uma outra
negativa em relação a seu próprio sujeito. Mas possibilidade para aqueles sujeitos de estarem
ela, como mãe, diz que, por ela, não internaria presentes na comunidade. Então, nós cuidamos
nunca, que interna porque ele faz crise nessa cir- da psicose desse jeito? De algum modo, cuida-
cunstância. E aí duas estagiárias de serviço so- mos, porque, se o fator principal da internação
cial foram fazer um trabalho em torno do caso. era a intransigência, a intolerância social e o es-
Começaram a visitar a comunidade, identificando tigma, fomos ao local trabalhar isso.
as situações existentes lá, vendo outros pacien-
tes que moravam lá, atraindo as outras pessoas O nosso serviço tem muita dificuldade de circu-
da comunidade, as pessoas válidas, com algum lar pela cidade. É isso que nós estamos chaman-
tipo de presença, a se implicarem com o caso dos do de circular pela cidade, desvendar os labirin-

68
tos da cidade, construir ou reconstruir essa teia de
relação social. Eu costumo dizer que, para cada
paciente que a gente atende, a gente precisa ter a
lista dos sujeitos que se interessam pela vida dele,
o sociograma dele. Esse é o recurso que todo
CAPS deveria ter, todo técnico de referência tem
a obrigação de construir essa lista. Esses são os
sujeitos que a gente tem de acionar, esses são os
recursos que a gente tem... Para tratar das pesso-
as, é preciso conhecer as pessoas, conhecer seus
vínculos, como é que elas se colocam no mundo.
E eu não estou falando para deixar de fazer nada,
estou falando de incorporar uma outra prática no
serviço de saúde mental que não se restrinja a
trabalhar a questão vincular estritamente pelo re-
gistro simbólico.

69
A Família na Psicose
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*¹

H oje nós vamos trabalhar um pouco o tema


desse grupo social tão relevante para os su-
jeitos portadores de transtorno mental, que é o
Antes de entrarmos especificamente neste
tema, vou retomar a seqüência que tem orientado
esta idéia de uma clínica psicossocial. Quando
grupo familiar. Nesse sentido, possivelmente, nós se fala que a loucura representa um elemento de
teremos poucas novidades em relação ao que vai alteridade social, é exatamente no grupo familiar
ser trazido, já que é algo óbvio que a questão que isto vai realçar e aparecer. É o primeiro grupo
da família é muito importante para o portador de que entra em contato com a estranheza, com a
transtorno mental. bizarrice e que promove a sua resposta através
das internações psiquiátricas, depois que os su-
O que eu quero introduzir é uma problema- jeitos apresentam estados psíquicos alterados e
tização acerca das questões relacionadas à fa- complexos.
mília em nossa sociedade e sua relação com a Vamos pensar então que as nossas configura-
responsabilidade pelos cuidados com os loucos. ções vinculares estão na base das produções do
A ausência dessa abordagem tem sido limitadora que nós somos hoje como sujeitos, nos nossos as-
do entendimento e da proposta de inscrição que pectos saudáveis e nos nossos aspectos bizarros,
esse grupo tem recebido em nossos serviços de problemáticos, estranhos, singulares e que estas
saúde mental. se relacionam com certas experiências adquiridas
por nós, nos grupos originários, a partir dos quais
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade nós nos constituímos como sujeitos sociais.
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos Eu participei de um trabalho proposto pelo
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Super-
visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
professor Luiz Fernando Duarte durante o meu
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das doutorado, e foi muito interessante, em que ele
psicoses” set. 2005 Salvador - Ba

70
solicitava aos alunos que fizessem uma rememo- Vamos passar, então, para a outra parte, que
ração, reconstituíssem um mapa dos sujeitos sig- diz respeito ao texto que vocês têm como referên-
nificativos do ponto de vista de cada aluno, das cia para o nosso trabalho de hoje, que é o texto
pessoas significativas para as nossas vidas, dessas do Jonas Melman, “Família e Doença Mental”.
pessoas que ficam perdidas na memória; desta- Talvez a questão desse texto seja a de pensar essa
cando quem foram as pessoas fortes, que foram família – não que ele faça essa crítica que acabei
balizadores para o avanço das nossas existências de fazer aqui – como uma aliada fundamental na
como sujeitos sociais. Foi muito interessante per- abordagem psicossocial das psicoses.
ceber a ampliação significativa das pessoas que Geralmente, nos serviços de Saúde mental, tra-
merecem esta qualificação em contraste com a dicionalmente, existem dois lugares possíveis para
ilusão autobiográfica centrada na família imedia- a família: culpada e responsável ou culpada e ir-
ta, que é como a psicanálise, por exemplo, a so- responsável. Só existem esses dois lugares para a
bre valoriza. Isso questiona que o nosso quadro família se localizar nessa abordagem tradicional
identificatório estaria dado estritamente pelo nú- da saúde mental. O primeiro é o de culpado: “se
cleo familiar em si. São dezenas os sujeitos signi- ele – o paciente – é assim, deve ser porque al-
ficativos que interferiram nas nossas vidas de uma guma coisa errada se passou nesse arranjo que
forma forte para sermos quem somos. E mesmo produziu o sujeito dessa maneira; logo essa famí-
que estejam acobertados pelo esquecimento, fo- lia já está, a priori, sob suspeita”. Como culpada,
ram eles, e de certo modo são ainda, que hoje, ela pode ser responsável e colaboradora ou cul-
identificatoriamente, nos dão sustentação para pada e irresponsável. Entendem o absurdo disso?
nos situarmos no mundo como o sujeito que nós É como se fosse possível aos sujeitos elegerem as
somos. tramas que levam à produção dos males psíqui-
E se trago isso, é porque acho interessante cos dos membros da família. Essa questão nos
pensar, no caso da psicose, sobre quais são as remete a um juízo moral sobre a família, que é
configurações relacionais que nós efetivamente algo extremamente problemático, é uma interpre-
podemos conceber como significativas para a or- tação da família a partir de uma perspectiva do
ganização destes sujeitos no mundo. Psíquica e julgamento moral.
socialmente falando. Será que imaginamos que E digo a vocês: de modo geral, os profissionais
isso está restrito ao papai e à mamãe, irmãos...? de saúde mental são muito moralizantes em re-
Ainda que as relações parentais possam ser ex- lação à família. Mesmo em contextos um pouco
tremamente significativas, elas não resumem os mais avançados da teorização, o modo de olhar
sujeitos. As afetações dos sujeitos que ofereceram da família é um modo moralizante, o paradigma
os elementos que nos constituem são múltiplas. é um paradigma moral. Tem um livro da Maud
Mannonni, creio que é “A criança retardada e sua

71
mãe”, em que ela nos chama atenção sobre isso. temos de interpretá-los como atores que são tam-
Ela diz que é frustrante, narcisicamente, para a bém dotados de psiquismo e que é a dinâmica da
mãe perceber que algo que é seu, que foi pro- interação psíquica desse sujeito com o paciente
duzido por ela – no caso aqui, algo que a família que produz a maior parte dos fatores que nós te-
produziu – foi produzido com defeitos ou errada- mos de cuidar. As situações que nós temos de cui-
mente. Essa percepção é uma derivação da re- dar não surgem aleatoriamente, são derivadas de
lação privatizante que hoje assume o modo de certos modos de relação, e é interessante que nós
compreensão da família como um grupo privado não queiramos abordar esses modos de relação,
no interior da sociedade e que tem de se respon- é interessante que não nos interesse aprofundar.
sabilizar pelos sujeitos “errados” que, nas suas A nossa modalidade hegemônica de aborda-
tramas psíquicas, ela produziu. gem privilegia a esfera do intra-psíquico. Nós
A questão da privatização das relações sociais achamos que é mobilizando primeiro as dinâmi-
afeta a questão da atribuição de responsabilida- cas intra-psíquicas que nós vamos produzir efeitos,
de acerca dos sujeitos que apresentam limitações que nós vamos alterar as produções dos sujeitos.
na sua autonomia. É um entendimento de que há É porque nós valorizamos isso, que toda a nossa
uma obrigação estritamente familiar. As alternati- arquitetura institucional de cuidados está voltada
vas, neste caso, se radicalizam: ou é a institucio- para a abordagem do sujeito como uma subjetivi-
nalização total ou a sobrecarga do cuidado priva- dade em si mesma, para sua individualidade. Não
do para a família. No caso da psicose, se interna estou dizendo que não se deva fazer isso. Mas o
na crise e depois se devolve para a família, sob a que não se pode é destinar toda a nossa energia
forma de responsabilidade total, dizendo: isso é para isso. Estou dizendo que a nossa arquitetura
problema privado seu. Quem pariu Mateus que o institucional de cuidados não prevê a possibilida-
embale! Vocês têm de fazer a guarda, fazer a pro- de de tomar uma outra dinâmica que trabalhe na
teção social, fazer o gerenciamento desse sujeito perspectiva vincular, que trabalhe a questão da
que perdeu a funcionalidade e depende do seu configuração desse fenômeno como associado
grupo. Por isso digo, em tom de reprovação, que às dinâmicas amplas das relações concretas que
nós, da saúde mental, quando queremos saber sustentam a presença desses sujeitos no mundo.
quem é a família geralmente é para mandar a Às vezes, parece que não nos lembramos, não
conta, para depositar a responsabilidade. nos importamos e nem queremos saber o que
Penso que essa é a perspectiva dominante do é que está acontecendo na vida concreta dessas
nosso olhar na saúde mental, e acho que o Jonas, pessoas. As tomamos exclusivamente a partir do
de certa forma, alerta sobre este ponto e apon- discurso, das representações simbólicas que nos
ta porque é que nós temos de mudar esse olhar chegam através da comunicação verbal que elas
que temos hoje sobre esses atores. Primeiro, nós nos trazem em suas consultas.

72
No programa de estágio que ora realizamos pessoa que tem problemas mentais graves, en-
no Hospital Mário Leal, temos nos especializa- tão ficam esses dois sujeitos coabitando um es-
do em ir às casas das pessoas, ou seja, tem sido paço insalubre, com uma relação extremamente
possível desenvolver essa perspectiva, testar essa conflituosa. E, no estágio, percebíamos como
hipótese. Nós estamos no começo, mas isso já essa irmã, aos poucos, foi também se tornando
nos indica que é possível fazer uma arquitetura de paciente do programa. E como também os dois,
cuidados que prevê outra abordagem. Está aí o efetivamente, passam a estabelecer uma nova re-
Programa de Saúde da Família indo às casas dos lação, como a gente tem trabalhado uma relação
cidadãos para levar cuidados na atenção básica vincular entre os dois e destes com seus vizinhos;
à saúde. O que a gente precisa é de um PSF assim, artesanato puro, indo lá toda semana, ou-
Mental. Quero dizer que os nossos CAPS preci- vindo, apoiando, acompanhando.
sam ter um PSFM, nossos CAPS deveriam ter uma Esse caso ilustra bem como a nossa tecnologia
abordagem regular, um Programa de Saúde da de cuidados pode fazer isso. A família dele, nesse
Família Mental, com ênfase na atenção domici- momento, passa a ser a irmã, quem sabe o irmão
liar. Não nas visitas domiciliares esparsas, mas na também não entra para a família, entenderam?
atenção domiciliar. Aí tem um pai lá em Alagoinhas, e a dúvida dos
Então, nós deveríamos ter uma perspectiva estagiários era se deveriam ou não ir até lá, se en-
que oferecesse uma abordagem dessa dinâmica travam em contato com o pai para sensibilizá-lo e
como uma atividade, uma responsabilidade re- ver se ele também entra para a família. Quer dizer,
gular dos nossos serviços de saúde mental. De a família vai estar dada pela relação vincular que
certa forma, é essa a nossa tese atual no trabalho o sujeito construir. A responsabilidade da família
de intensificação de cuidados: é preciso produzir vai ser dada na medida em que se reconstruam
uma tecnologia que seja capaz de lidar com essa as relações vinculares. Se não se reconstroem as
dinâmica como uma atividade regular do servi- relações vinculares, não adianta falar que o outro
ço, atendendo aos pacientes mais graves de uma é responsável, “eu não sou responsável por quem
forma personalizada que inclui tomar o domicílio eu não me sinto vinculado”.
como setting. Então, é necessário operar sobre as relações
Hoje mesmo, na supervisão do estágio, nós es- vinculares para instalar responsabilidades. Estão
távamos falando do caso de alguém que mora entendendo o que eu estou falando? Os serviços,
numa caverna, num buraco, e, em cima, mora geralmente, estão operando num conceito nor-
um irmão normal, que parece ser normal e que mativo da responsabilidade, temos operado numa
diz que não tem nada a ver com isso aí. A pes- perspectiva meramente institucional e burocrática
soa que mora com o sujeito também é sua irmã, de atribuição de responsabilidade a alguns sujei-
uma pessoa também gravemente enferma, é uma tos familiares, a partir dos elementos formais das

73
relações sociais supostas como tal. em relação aos “outros outros” que se colocam
É preciso parar de buscar um canal de cone- no mundo, algumas idéias sobre essa dinâmica
xão institucional para que nós possamos depositar vincular e a possibilidade de abertura de novas
parte da responsabilidade que é da nossa institui- significações seja através da palavra ou do nosso
ção de cuidados, que é nossa, profissionalmente, olhar ou ação. Se formos analisar o que oferece-
nos mesmos atores de sempre. Não adianta ficar mos, é relativamente muito pouco, mas efetiva-
depositando sobre estes sujeitos do ponto de vista mente opera. Quando você coloca em situação
moral, “toma lá que o filho é seu”, do ponto de na atenção domiciliar, esse recurso opera.
vista normativo. E ainda tem mais: não é só esse Por último, eu queria comentar sobre a questão
lugar de familiar que temos como possibilidade da crise, que tem muito a ver com a questão da
para reconstruir os vínculos e a vida das pessoas. sua recepção. A recepção da crise é um momento
O que o Jonas Melman nos chama a atenção extremamente privilegiado para que estabeleça-
nesse texto, na página 99, é que ou você produz mos a confiabilidade dos agentes que vão intervir,
uma dinâmica nessa situação que seja subjetivan- e esse é um dos nossos problemas. Quando se
te, que produza um sentido e significação para os faz a recepção da crise, os agentes se apresentam
sujeitos envolvidos ou não vai funcionar. Não que absolutamente não confiáveis, o sujeito que apa-
aceitaremos que qualquer um possa simplesmen- rece como representante da instituição se coloca
te se desresponsabilizar, sem maiores problemas. numa perspectiva, nesse sentido, moralizante, “eu
Mas a responsabilização não é um dado derivado não sou responsável por esse sujeito estar assim
de relações formais, meramente jurídicas, ela é e sim vocês” e “tomem conta”, “o que eu pos-
um processo afetivo, emocional, vincular. so fazer por vocês é efetivamente oferecer uma
Então, é muito trabalho. E é trabalho forte, medicação, ficar aqui por alguns dias internado,
consistente, para colher frutos bastante salutares, mas, quando ele ficar minimamente funcional, ele
para interferir no processo. Vínculo não se pro- retorna pra vocês”.
duz instantaneamente, nós alcovitamos relações Então, isso é extremamente impossibilitante do
vinculares, nós acionamos possibilidades de con- ponto de vista de qualquer seguimento futuro,
tato, nós operamos sobre os enriquecimentos das porque essa hora é a hora da maximização de
significações, trabalhamos dissolvendo a cristali- todas as ansiedades dentro desse grupo familiar,
zação das identidades, dos lugares que as pré- é quando toda aquela produção que vem se ges-
fixam, uns na relação com os outros. Só o ato de tando se atualiza como angústia pura, como an-
alguém ir até ali, estar com os familiares no seu siedade em níveis excessivos, quando os sujeitos
ambiente de vida, produzirá transformação, modi- estão à flor da pele, emerge essa confusa configu-
ficação. Como agentes terapêuticos, carregamos ração. Tem um autor que fala como se fosse uma
como recursos a nossa presença – diferenciada dramatização esse momento da crise. É mais ou

74
menos como se ele dissesse que tudo que esteve A moeda da confiança na instituição, que se
na origem dessa produção se atualiza com a cri- mostra capaz de reconhecer o sujeito e que busca
se. Por um momento, o arranjo foi insuficiente, e fazer – não é garantia não – mas que busca fazer
aí toda a desorganização vem à tona. o melhor, que é visível para todos que ela está fa-
Eu acho que temos de construir – é o que eu zendo o possível para agilizar, para atender bem,
espero que vocês façam no NAC- Núcleo de para considerar, para respeitar, para abordar. Es-
Atenção à Crise - uma tecnologia de abordagem tou dizendo que a perspectiva é uma perspecti-
familiar na recepção de pacientes em surto. Nós va justa, e é essa a perspectiva que a gente tem
precisamos de um dispositivo que seja ágil, que de apresentar, é uma perspectiva que diga que a
tenha uma capacidade de intervenção técnica, na instituição faz a sua parte, que nós somos confiá-
expressão, na organização, no envolvimento, na veis e nós temos conseguido ser confiáveis. E sem
convocação, no chamamento do agrupamento construir essa confiança, dificilmente nós vamos
familiar para a questão da crise. Eu quero falar poder ter autoridade para interferir nessa relação
que nossos serviços têm de atender a crise com de convocação.
muita confiabilidade, de forma a dar autoridade Mas penso que temos de insistir, que temos de
ao chamamento de que importa colaborar para a enfrentar, porque é uma evidência dessa clínica
compreensão disso. fazer a convocação. Então, por favor, ‘quantos ir-
Estou dizendo assim: recebeu o paciente pela mãos são’, ‘o que fazem’, ‘em que trabalham’,
manhã? Na outra manhã tem de estar agenda- ‘quem é o pai’, ‘quem á mãe’, ‘quem é o tio’,
do, responsabilizado, depois de uma entrevista ‘quem é a família’, ‘quem é o vizinho’. Pronto,
familiar, quem é, qual é a pessoa da família, ou visto isso, ora, ‘para cuidarmos bem dele, nós
vizinho ou amigo que tem de vir ao nosso serviço precisamos que vocês estejam aqui amanhã às
de emergência para conversar conosco sobre o oito horas da manhã; façam um esforço, porque
futuro do caso e suas necessidades. Isso faz com é muito importante! Vocês querem que a gente
que fique uma promessa de que o caso não será trate ou não o sujeito? Se querem que tratemos, é
abandonado! Por isso é que eu estou dizendo que preciso que as pessoas venham’. E, na seqüência,
tem de se investir na vinculação, na sociabilidade; é preciso que nós possamos ir, ir até onde eles
no despertar da generosidade dessas pessoas já estão, nós temos de instaurar confiabilidade.
tão cansadas, que anos após anos lidam com a Então, o que é que eu estou falando? Estou fa-
condição trágica de ter um familiar portador de lando que é preciso fazer uma clínica que leve em
transtorno mental. E temos de ser agentes que consideração, e, dentre todas as abordagens, a
ponham fim a essa condição trágica e ofereçam abordagem desse núcleo é uma abordagem fun-
uma nova perspectiva para as suas vidas e o seu damental para que se transforme o modo de rela-
futuro. ção. Vocês podem pensar que isso é muito difícil,

75
mas eu vou dizer para vocês que não é. Sabem o que nós temos de fazer é pegar na mão deles e
por quê? Considerando o número de psicóticos, levá-lo de volta para casa.
se a gente tomasse conta deles direito e paras- Então, o serviço tem, ao receber o sujeito lou-
se de tratá-los dessa forma tão fragmentada, tão co, em surto, a obrigação de voltar com ele para
mequetrefe, talvez a gente não tivesse esse pro- casa. Então nós temos de ser um serviço que, efe-
blema. Se a gente construísse uma tradição de tivamente, seja uma referência para o sujeito. Se
dar seguimento aos casos de psicose e não espo- não for assim, é porque a gente quer fazer de
radicamente, teríamos um número absolutamente outro jeito, uma outra clínica, paliativa, sintomá-
administrável, se a gente tratasse adequadamen- tica. O Jonas Melman nos fala dos familiares que
te. parece que não querem nada com a gente, mas
Eu estou dizendo que todos os serviços de saúde quando eles são acolhidos, ouvidos, apoiados,
mental têm de ter uma divisão de atenção familiar, quando eles são convidados por um serviço que
nós temos de criar essa divisão com um protocolo já é de sua confiança, eles se desenvolvem como
que defina a sua presença na emergência, que grupo, como conjunto, eles multiplicam as suas
defina a sua presença no acompanhamento do- possibilidades, fazem intervenções culturais, se
miciliar e que, se nós tivermos isso aí, nós vamos tornam protagonistas das suas próprias vidas.
economizar dinheiro, nós vamos economizar uma O trabalho com o grupo primeiro originário do
porção de coisas. Fazer as coisas de um jeito bem sujeito não é um detalhe, uma opção; não é alter-
feito é muito mais barato do que fazer as coisas nativo. Ele deve ser eixo no trabalho psicossocial.
de um jeito mal feito. Por quê? Porque do jeito Da outra vez, nós trabalhamos aqui que, se jun-
mal feito a gente tem de refazer a vida toda. tarmos psicóticos num grupo, estaremos criando a
Estou falando disso e me lembrando dos CAPS, possibilidade da movimentação de certas coisas,
porque os CAPS estão no território e têm a tarefa conteúdos, experiências, emoções, significações
de conhecer todos os pacientes que são atendi- cristalizadas e de estabilização de outras situações
dos pela instituição. E esse trabalho é um trabalho instáveis. Hoje, estou dizendo que, além desse es-
que pode, efetivamente, oferecer um descortina- paço próprio onde eles possam estar e exercer
mento. E isso não é o trabalho com família; o tra- essa sociabilidade, é preciso abordar o núcleo da
balho com família é o apelido disso. Na verdade, vida deles em torno desses personagens.
nós estamos trabalhando as relações vinculares Aliás, me referia antes ao fato de que as famí-
com os sujeitos significativos que estejam na es- lias são essas configurações confusas, lugar de
fera da relação desse sujeito, que sejam determi- possibilidade de identificações confusas, e lem-
nantes para a produção do seu sintoma psíquico brando de um caso de um adolescente muito jo-
e que sejam sujeitos-recursos para fazer a rever- vem que teve um filho com uma moça também jo-
são, porque, quando o sujeito sai da emergência, vem e depois foi embora e nunca mais apareceu.

76
Essa criança foi criada como irmã do pai, já que
a diferença de idade não era tão grande assim,
e foi criada por uns pais que não eram seus pais,
mas o padrasto do pai, mas que para ela, efetiva-
mente, era o sujeito que era o pai. Então, veja, é
difícil, não é? Aí ele tinha, na realidade, uma re-
lação transferencial muito forte não com o irmão
que era o pai, mas com um outro irmão que, na
verdade, não era irmão, era tio e acabou se regis-
trando uma situação trágica – esse tio-irmão-pai
foi assassinado, e ele psicotizou. Então, na hora
que fazemos o raciocínio freudiano clássico sobre
o Édipo, a gente pira, não é? Porque, na verdade,
existe uma questão identificatória super complexa,
e essas configurações podem gerar isso e outras
coisas mais. É família?
É, mas não exatamente nas posições, e, se es-
sas configurações afetam os sujeitos do ponto de
vista de produzir o efeito nefasto e de impossibili-
dade do sujeito se expressar ou se organizar psi-
quicamente, é esse grupo a potência com a qual
nós temos de trabalhar, porque é esse o grupo
mais sensível. Pode ser que a gente desista des-
se grupo depois de anos trabalhando, chegando
à conclusão de que não vai sair nenhum coelho
desse mato, mas, antes de desistir, nós precisa-
mos investir, e, se não tiver jeito, a gente passa
para outras configurações, porque sabemos que,
na nossa sociedade, ninguém vive sozinho, e nós
dependemos fundamentalmente dessas relações
vinculares para nos sustentarmos no mundo.

77
Psiquismo e Sociedade: a psicose e os grupos
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*

O psiquismo tem uma dimensão que se expres-


sa no grupo, nas instituições e na multidão.
Essas são as mediações principais: o grupo, as
mesmo quando sozinhos, carregando nossas di-
ferenças e nossos pertencimentos que dão base
para a nossa existência.
instituições e a multidão. Essas são as três uni-
dades principais de organização da sociabilidade Bleger nos ensina que, quando a gente entra
que nós temos. É o grupo que pode ser a família; em contato com alguém, com o desconhecido,
o grupo que é uma pequena reunião de pessoas quando a gente entra num coletivo desconheci-
que interagem entre si, em que a instituição já é do, nosso movimento psíquico é o de produzir
uma mediadora – percebam como a instituição um certo fechamento, nós produzimos uma certa
opera mediando, porque vocês vieram aqui, não adequação paranóide. Na medida em que nós
porque já se conhecem, mas porque vocês se co- vamos interagindo com os outros, que vamos ad-
nhecem da instituição que é a Universidade, en- quirindo confiança, nós vamos afrouxando e nós
tão, de alguma forma, aqui está um grupo do Ju- vamos admitindo o outro. O que é o afrouxar? É
liano Moreira, ali está um grupo dos estagiários, incorporar o outro na dinâmica do meu psiquis-
algumas pessoas talvez não se sintam pertencen- mo, é, de certa forma, neutralizá-lo como agen-
do a nenhum dos grupos. Permanentemente, esse te potencial de uma agressão, de uma ofensa. E
tipo de processo está acontecendo. Não existe quando a gente se acostuma com uma pessoa,
a possibilidade de nós estarmos no mundo fora a inscreve com uma identidade e valor em nossa
desses registros. Nós estamos imaginariamente, coleção psíquica, a gente não percebe, mas as
pessoas viram suportes de nossas vidas.
* Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade Então, a gente vai fazer um trabalho agora
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do Laboratório de Estudos com um texto, e eu queria que vocês notassem
Vinculares e Saúde Mental do Departamento de psicologia da UFBA, Criador e Super-
visor do PIC - Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos. que vocês estavam num enquadre que não obri-
1- Transcrições da aula de curso “Elementos teóricos para uma clinica psicosocial das gava vocês a interagirem entre si. Ora, um regi-
psicoses” set. 2005 Salvador - Ba

78
me de contato já estabelecido é uma dinâmica É que esse movimento de regulação, de incorpo-
psíquica, é você funcionando psiquicamente na ração do outro compartilhado, de avaliação, de
relação com os demais humanos que compõem administração, para nós todos normo-neuróticos,
um quadro no qual você se localiza. A instituição tem referência numa experiência centralizada,
era o quadro que mediava a relação entre vocês, numa experiência egóica que nos sustenta como
mas agora eu os estou mobilizando para uma uma ficção unificada diante do outro e a ilusão
interação produtiva com um forte elemento rela- do compartilhamento intersubjetivo. É a partir do
cional. Então vocês todos agora estarão menos ego que nós fazemos os nossos mecanismos de
confortáveis do que estavam, pela iminência que projeção, de introjeção, dentre aqueles que Freud
eu estou apontando agora, para vocês coopera- chamou de mecanismos de defesa. Então, é nes-
rem com pessoas que vocês não têm intimidade, se movimento de administração do incômodo do
que não eram da relação imediata de vocês. Os “outro” – o que eu falei para vocês da última vez
mais “tímidos”, os mais “introvertidos”, os mais e é bom retomar isso - nós temos uma verdadeira
“sociáveis” o farão com um estilo próprio de inte- condenação ao “outro”. Essa é uma idéia impor-
ração que está relacionado com vários aspectos, tante que deduzimos do Freud: nós estamos con-
alguns exteriores e outros interiores, que envolve denados ao “outro”. Não sei se vocês já pensa-
o treino que cada um teve para o exercício da ram nessa perspectiva: nós estamos condenados
sociabilidade, a familiaridade com o contexto em ao “outro” é uma perspectiva muito radical. Nós
que a mesma se dá – no sentido de conhecimento não temos alternativa: o “outro” se impõe para
prévio das regras do jogo – e também de acordo nós como condição inevitável para nossa existên-
com uma estrutura egóica e com os respectivos cia.
mecanismos defensivos que esta estrutura egóica Nós podemos falar em dois tipos de solidão:
comporta. positiva e negativa. Quando eu falo da solidão
Estou trazendo isso, porque, na questão da psi- positiva, é da possibilidade de qualquer um de
cose, esse fenômeno tem uma característica muito nós poder se recolher na sua condição solitária,
particular. Durante muito tempo, acreditou-se que com o outro, é óbvio, atravessando o imaginário;
a psicose não fazia laço social. A psicose vivia mas quando eu falo da solidão negativa, é do
num regime de relação tão própria, tão singular, fato de poder se recolher para uma certa intros-
tão num mundo de significações particulares, que pecção, para um acerto de contas acerca de uma
o psicótico não faria laço social; o psicótico, en- percepção de mim mesmo, uma certa ruminação
tão, não seria um sujeito que teria a sua disposi- mental, é um movimento que nós fazemos na di-
ção essa característica que é uma característica reção de nos restabelecermos do ponto de vista
de todos nós humanos. desta condição egóica.
O que seria então essa experiência na psicose? Se isso, para nós, é dessa maneira, na psico-

79
se, isso é muito mais problemático. É isso que é Então, nós podemos pensar o delírio como
problemático na psicose, é o controle desse mo- uma desorganização benéfica e necessária, que
vimento que é muito problemático na psicose. En- suspende o regime das significações e libera o su-
tão, durante muito tempo, a psicanálise afirmou jeito dos sentidos mortíferos em que havia se apri-
que o psicótico não fazia laço social. Qual era a sionado. Quando o Antonio Lancetti está falando,
idéia? É impossível analisar o paciente psicótico, nesse texto, da experiência da desorganização,
é impossível analisar a psicose. Por que é impos- nos ajuda a marcar que esta é uma experiência
sível analisar a psicose? Porque o psicótico não muito angustiante. A desorganização é acompa-
transfere. Vocês lembram que, da outra vez, eu fa- nhada por muita angústia, porque é como se fosse
lei para vocês da questão da transferência. Então, um sem fio, sem rumo, sem direção, sem parâme-
essa é a dinâmica que é complexa na psicose, é tro. O sujeito vive a desorganização movida por
esse movimento de poder fazer isso, de se desta- muita angústia, e o que o Lancetti está chamando
car, de andar no grupo, de estar exposto. a atenção é que essa angústia, às vezes, encontra
A idéia é que o delírio é um momento de muita umas palavras menos virulentas, que desmontam
desorganização. Aí temos de pensar por que é que a ameaça, que criam miraculosamente, podemos
alguém delira. O que é o delírio? Nós podemos dizer nesse sentido, a repentina sensação de que
pensar que o delírio é uma saída, quando o lugar aquele delírio não é tão delírio, de que aquela
onde o sujeito está posto na significação imaginá- desordem não é tão desordenada, de que o mun-
ria, o lugar onde ele se põe na significação ima- do não vai acabar, de que tem solução.
ginária é insustentável, impossível e insuportável Então, creio que ele esteja falando em conti-
para ele. É como se o sujeito, não pelo que ele nência, nesse sentido de oferecer um referencial
é, mas pelo que ele constrói, o lugar de onde ele de alteridade. Então, ele diz assim, nada melhor
se projeta como sendo ele – porque nós estamos que alteridade – e não autoridade. Autoridade é
sempre nos projetando, a identidade, como quei- quando a gente diz assim: ‘pára de delirar, toma
ra chamar esse lugar imaginário onde a gente se conta, toma tenência, você já está passando do
projeta. E, eventualmente, quando o sujeito pro- limite; ô fulano, não fica assim não’. Isso aí é au-
jetado nessa condição imaginária ou, às vezes, toridade, é a tentativa de exercitar sobre o sujeito
fruto de uma equação real, de uma situação real um certo comando de poder. Autoridade pres-
de expressões muito tensas, esse lugar fica insus- supõe ordem, hierarquia, valor, lugar de quem
tentável. Então, como ele experimenta isso, como manda e de quem obedece.
ele vive isso? Ele vive com uma angústia radical, O sujeito está fora da ordem, então o que pode
impossibilidade de sustentar estar naquele lugar conter o sujeito? O que pode conter o sujeito é
que significa submeter-se a uma morte ou a uma algo que lhe inspire, de alguma forma, ordem;
destruição. que lhe inspire, não que lhe submeta; que lhe ins-

80
pire, que produza sentido, que produza significa- ao seu modo; se não entram ao modo como nós,
ção. Então, nós podemos pensar que, quando um neuróticos, estamos mais acostumados, não po-
psicótico fala pro outro: ‘olha, eu também já pas- demos desprezar o seu modo de entrar em re-
sei por isso e posso te afiançar que daqui a pouco lação. E a grupalidade, a grupalização dos psi-
o seu delírio vai passar’ , isso tem um efeito e um cóticos pode ser um passo fundamental para
poder. A verdade que essa fala carrega tem um sustentar essa coisa que responde à problemática
imenso poder de afetação do sujeito, diferente da da solidão, que é a de dizer assim: ‘ai, que bom,
fala do psiquiatra e do psicólogo que diz ‘ô fula- existe outro bizarro como eu’, ‘existe alguém tão
no, fique tranqüilo, vai ficar tudo bem’. Essa fala bizarro quanto eu’, ‘eu não controlo tudo do pon-
produz uma continência para a angústia, essa to de vista da estranheza. Como é que eu com-
fala ressoa pro sujeito. Essa palavra do outro que partilho com o outro a diferença que ele tem e
dá o testemunho de que isso já se passou com ele como é que ele compartilha a diferença que eu
é como se tivesse um poder de comunicação na- tenho. É que eu compartilho, de repente, que há
quele horizonte caótico, poder que a gente des- outras formas de existir, e que elas são legítimas,
preza muitas vezes. que elas têm direito de estar no mundo’. É isso
Poder de comunicação do compartilhamento que um psicótico, às vezes, oferece ao outro, essa
da experiência, porque a gente sabe que o tra- sensação de que existem outras formas, formas
balho com os Alcoólicos Anônimos e os demais bastante singulares de estar no mundo e que elas
grupos de auto-ajuda têm uma grande impor- podem se complementar.
tância, só que, normalmente, com o psicótico, a Nós, quando trabalhamos num grupo, acha-
gente diz que não vai funcionar, ‘ o que pode um mos que o grupo funciona porque um vai falar,
delírio dizer para outro delírio?’, ‘o que pode um outro vai falar, e as coisas vão se complementan-
delirante dizer para outro delirante?’ É como se do. Mas temos de valorizar o impacto da própria
houvesse um preconceito de que há uma sociabi- presença, por isso esse trabalho apresenta sempre
lidade, mas que não será uma sociabilidade ins- surpresas, porque trabalhamos no grupo como se
talada nos moldes que nós instalamos nos grupos ele fosse uma ferramenta para os “nossos” propó-
de neuróticos. sitos, os da instituição, queremos fazer grupo para
Esse regime regular de comunicação produz os interesses particulares, para o benefício de ofe-
algo, mas o que é que nós podemos aproveitar recer algo, para a nossa finalidade, nós estamos
quando reunimos sujeitos que são marcados por sempre pensando que essas pessoas poderão se
essa mesma condição? O que é que um ofere- encaixar através desse recurso. Então, penso que
ce para o outro do ponto de vista de suporte, de o Lancetti nos alerta como se dissesse assim: ‘gen-
sustentação? Como é que esses sujeitos também te, nós abusamos dos grupos, nós muitas vezes
entram nesse jogo? É claro que entram, e entram aviltamos os grupos’, porque, quando estamos

81
trabalhando com pacientes com essas caracterís- uma potência no vínculo e na sociabilidade, já
ticas, nós precisamos suportar o grupo que eles que eles é que sustentam a possibilidade de des-
são, precisamos dar conta desse grupo que é pos- lizamento da significação – as significações des-
sível e entender que, dentro desse grupo que é lizam a partir dos lugares concretos que o sujeito
possível, há um trabalho que não depende só da pode se colocar diante dos outros sujeitos. A ques-
nossa fala, de nós dizermos coisas para eles, e tão psicótica define-se pela questão do sujeito, da
que o que eles se dizem dentro de uma dinâmica posição que o sujeito imagina que está colocado
grupal, muitas vezes, tem muita potência. diante do outro.
E uma das potências que está em jogo é a po- Ora, o grupo é esse espaço onde coisas po-
tência da continência, de que isso produz con- dem acontecer para o sujeito, muitas coisas po-
tinência, de que isso produz um alívio por parte dem acontecer para o sujeito no grupo. O grupo
do sujeito que encontra um referencial para sua é um espaço de aproximação, de trocas bilate-
presença na companhia dos demais, um sentido rais. Por que, em um grupo, temos de estar todos
na companhia dos demais, e é esse sentido que centrados em um mesmo lugar? É isso que pira
nós chamamos de continência. os coordenadores de grupo. Quantas interações
Mas a enfermaria do hospital psiquiátrico não transversais se produzem no grupo? O que é que
produz essa possibilidade, apesar de lá encontrar- vai fazer sentido para alguém? A que horas al-
mos muitos pacientes. Talvez a questão seja a de guma coisa vai fazer sentido? Nós nunca sabe-
que nós não patrocinamos, porque isso não é es- mos exatamente; agora, estar em grupo é muito
pontâneo, não é da relação de um psicótico com confortante. É uma coisa muito poderosa, a roda
outro psicótico; pelo contrário, o que nós vemos grupal é uma coisa muito poderosa, talvez vocês
é um dar cadeirada na cabeça do outro. É que é não percebam, porque já estão muito acostuma-
preciso unir um mínimo de técnica, um mínimo de dos com isso, mas há um poder nessa configura-
enquadre, mas é o mínimo, e aí, quando vamos ção em que todos estão diante de todos. Quando
lá, queremos botar o máximo de ordem, quere- alguém diz algo, ele está dizendo para todos, ele
mos enquadrar tudo. Será que suportaríamos, no é para todos.
manejo de grupo com psicóticos, essa questão do O samba de roda é lindo nesse sentido, essa
mínimo do enquadre, será que daríamos conta matriz afro-brasileira. É um belo dispositivo cul-
de entender que a nossa tarefa, o nosso papel, é tural de relacionar o particular com o universal,
um mínimo de enquadre, será que vamos supor- o direito à experiência narcísica, a administração
tar assistir o grupo, secretariar o grupo, apoiar o do narcisismo. Faz-se uma roda – como se diz lá
grupo? na Pirajuía, cada um tem seu samba para mostrar
Se não atrapalhamos, já ajudamos muito. Ve- – e cada um vai lá mostrar o seu jeito de sambar.
jam, isso é importantíssimo. A idéia é de que há Aí todos os outros te apreciam, e o sujeito de-

82
pois volta para ser o apreciador, para oferecer a níveis de sociabilidade, e é o nível de sociabili-
especularidade, porque dançar sem ter ninguém dade organizada que passa pelo simbólico, que
para olhar não tem graça, não é, mesmo? Então, passa pela interação com o simbólico. Mas, ao
a roda, do ponto de vista de dispositivo, tem um mesmo tempo, existe uma dimensão que ele fala
poder muito grande. também que são os estados psicóticos da perso-
Toda vez que resolvemos colocar pacientes psi- nalidade. Isso serve para a gente pensar que nós,
cóticos na roda sem querer previamente que ela neuróticos, somos uma entidade ficcional organi-
tenha uma missão a cumprir com isso, vamos nos zada, em torno da idéia original do ego, um eixo
surpreender... É que nós somos muito produtivistas, de ordenamento simbólico. Mas nós não somos
e, muitas vezes, quando estamos atrás dessa certa somente ordenamento simbólico, e esse ordena-
produção, nós perdemos de vista o que está se mento sob o regime do ego, tem um poder de
produzindo nas transversalidades, nessas formas manter submetidas as forças disruptivas, as forças
vinculares. Trata-se de uma relação especial com desorganizadoras, a dimensão desorganizada do
o grupo, de sustentação. Então, podemos pensar nosso psiquismo.
que não há grupalidade entre psicóticos - se, por Gosto de pensar que é um iceberg, uma pon-
grupalidade, entendermos essas formulações ge- tinha organizada para fora e um monte de desor-
néricas e alegóricas que se enunciaram sobre os ganização profunda. Este seria o estado estável
grupos. Mas os humanos se tornam humanos em da organização neurótica. No psicótico, às vezes,
grupo, e a produção de subjetividade não pode é o contrário, e essa pontinha fica de ponta ca-
acontecer sem um processo coletivo. Essa é uma beça, e a desorganização emerge como um todo
idéia que precisamos considerar, pois, de modo visível. Mas o que vale a pena ressaltar é que
geral, somos muito descrentes na ordem de socia- uma dimensão de desorganização é constitutiva
bilidade que se produz na experiência psicótica. da condição humana, e que a desorganização
A nossa clínica tem de se aportar nisso. Não é não é uma ilha, e sim um continente, submetido
que a clínica psicossocial negue as outras coisas, à potência da organização simbólica do ego. Se
mas ela fala: ‘olha, tem um poder aí, um poder o ego falha, toda a desorganização emerge. É
inexplicável, um poder curioso que se estabelece fácil perceber isso no cotidiano: diante de situa-
na relação vincular, produzindo um deslizamento ções inesperadas muito invasivas e ou violentas,
das relações de significação’. na maioria dos sujeitos se produz uma perda do
Tem um texto, no módulo de vocês, que se controle, e a desorganização emerge, numa rup-
chama “O grupo como instituição e a instituição tura com o quadro simbólico. Os sujeitos se tor-
como grupo”, do Bleger, que traz conceitos muito nam irracionais e imprevisíveis.
interessantes, que são o de sociabilidade organi- Podemos pensar também que a sociabilidade
zada e sociabilidade sincrética. Nós temos dois sincrética estabelece um certo estar no mundo

83
que se estabiliza depositando certas dimensões do do capaz de recebê-las. A desorganização não
psiquismo no outro, que deposita psiquismo nas pode nos atingir ameaçadoramente, a ponto de
coisas e no ambiente, através de uma projeção de ouriçarem os estados desorganizados que mante-
matéria psíquica investida. Um exemplo curioso mos guardados à pena de muita energia dispen-
disso diz respeito às dificuldades de se produzirem dida para garantir que a apresentação individual
mudanças nas instituições: nas repartições públi- diante do mundo pareça o de uma pessoa orga-
cas, quando você quer mudar uma mesa do lugar, nizada. Muitas vezes, custa, para alguns de nós,
o funcionário resiste. O que é a resistência? Quer manter a sua dimensão organizada sob seu pró-
dizer assim, a mesa não é só uma mesa, ela está prio controle. Aí quando o sujeito se desorganiza
ali segurando uma identidade, uma vida, uma ex- na sua frente, é como se fosse uma convocação
periência, um sentido no mundo, uma certa lo- aos seus estados desorganizados.
calização psíquica, espacial e identitária. Por isso Nós podemos pensar isso em todas as situa-
que as instituições não gostam de mudar, porque ções de crise, não só de crise psicótica, mas nós
se extrai segurança dessas depositações psíquicas podemos pensar em situações que se caracteri-
no ambiente, se estabiliza psiquicamente fazendo zam como sendo de crise do ponto de vista do
essas depositações no ambiente e nas pessoas. psiquismo e da subjetividade. A leitura sobre a
Por isso que se procuram sempre os mesmos gru- multidão, sobre o fenômeno da multidão, é muito
pos e pessoas; as pessoas têm esse poder de nos interessante nesse sentido do contágio da turba.
garantir uma certa estabilidade para nos referen- A turba é um conceito interessante para a gente
ciar. pensar esse funcionamento psíquico: o linchamen-
Mas, ao lado disso, existe uma sociabilidade to, a destruição das torcidas, essa força disrupti-
organizada. E a questão no grupo de psicóticos va desorganizada que, de repente, é convocada
é que essa dimensão tem vindo à tona, ela sur- toda para fora e toma completamente o estrato
ge muito, ela não está sob controle, ela explode organizado, domina o estrato organizado.
muito como desorganização, e isso, para nós que Então, essa é uma forma interessante; o Bleger
coordenamos o grupo, é extremamente inquie- fala em clivagem, esse movimento que nós temos
tante. Então, podemos pensar que, para coorde- de submeter o estrato desorganizado do psiquis-
nar um grupo de psicóticos, devemos desenvolver mo a uma certa subordinação, e como, muitas
uma atitude muito plástica, de uma plasticidade vezes, diante da experiência de desorganização
mental. do sujeito, isso convoca que nós reajamos de-
fensivamente. Então, nós podemos pensar que,
Cada vez que fizermos a atividade, isso signifi- na lida com psicóticos, nós temos de levar em
cará acolher esse conjunto de produções, de ex- consideração sempre a possibilidade de que nós
pressões, sem nos afetarmos muito com ela, sen- atrapalhamos, porque reagimos defensivamente

84
frente à produção, nós, muitas vezes, termina- que os subestimamos, que, se a gente juntar um
mos por resolver os nossos problemas, as nossas bando de doido, a confusão vai pegar, e a gente
ansiedades, tentando dar conta delas e, de certa acaba por colocar certas exigências formais que
forma, impedindo a expressão do próprio sujeito, acabam oprimindo a expressão desses sujeitos.
a verdade dele. De qualquer forma, é isso, coordenar grupo não
Então, por isso é difícil coordenar o grupo ou é fácil. Até que ponto coordenação de grupo cor-
o coletivo de psicótico. É preciso ser plástico para responde ao que nós aprendemos como coorde-
coordenar. Eu acho que nós precisamos, todos, nação de grupo?
desenvolver essa capacidade. E falo disso a partir Nós temos um fascínio em descobrir significa-
de um tipo de experiência que tenho comparti- dos. Coordenar grupos, nesse caso, não é dessa
lhado com outros colegas, nos últimos anos, de ordem. Nós somos fascinados em significados,
produzir eventos que reúnem quatrocentos, qui- achamos que, se pegarmos o fio da meada do
nhentos usuários do serviço de saúde mental nos delírio, se escutarmos aquelas palavrinhas todas
dispositivos políticos chamados de reunião das que vêm do delírio e fizermos um esforço, nós va-
“assembléias”. É muito interessante, antropologi- mos compreender, nós vamos entender o que é
camente falando. Quando você reúne duzentos, que o paciente está falando, que, efetivamente,
trezentos sujeitos que têm essa condição de, às ve- o que o paciente está falando não está dito nas
zes, sair fora e desorganizar, as coisas que acon- palavras que ele diz, é como tradução da experi-
tecem, os esforços para manter a organização, os ência da impossibilidade, e aí fazemos o caminho
tipos de enunciação, os métodos de participação, de buscar o sentido e a significação.
as formas de expressão desses sujeitos são muito A questão da interpretação é importante, mas
interessantes e proporcionam uma grande opor- tem seus limites, porque não se interpreta o vín-
tunidade de aprendizagem. culo, não se interpreta sociabilidade. “Fulano está
Trago essa informação para dizer assim, que, bem com sicrano”, o máximo que eu posso dizer
com o passar do tempo, talvez esse tipo de ex- é: vejam, que interessante, hoje o fulano está tão
periência traga para nós uma posição um pouco bem com o sicrano. Vejam, o que eu estou fazen-
mais, de fato, não é contemplativa; mas assim, do é sendo um speaker, um crooner da corrida de
de abertura para a experiência com a novidade cavalos, do futebol; estou narrando um conjunto
desse tipo de sociabilidade, e que seja de mais de eventos que está colocado nessa esfera, do
confiança também, de uma aposta mais decidida que está colocado, sem profundidade nenhuma.
de que a ameaça de que vai tudo se desorgani- Fazer essa narrativa do que está acontecendo na
zar tem mais a ver com uma fantasia nossa do superfície é, muitas vezes, emprestar à narrativa o
que com as limitações dos sujeitos psicóticos para papel de sustentadora do vínculo entre os sujeitos,
estarem juntos em grupos e em coletivos. Acho é uma forma de noticiar para o sujeito aquilo que

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está se dando com ele e que é visível para todos, Então, nosso desafio é, em todos os grupos,
que é assimilável por todos. em todos os momentos de reunião, todos os ins-
Então, retomando o texto do Lancetti, vemos tantes em que o sujeito se agrega ou é agregado
que o grupo produz a possibilidade de uma maté- à dinâmica institucional em que é proposta algu-
ria inventiva, o grupo produz algo de novo como ma coisa, em todos esses momentos, nós estamos
experiência. E aí ele diz: “vai inteirando uma rede escutando a produção do inconsciente do sujei-
vincular, os componentes dos grupos vão sendo to. Em todos os momentos, o inconsciente está se
atraídos pelos seus companheiros por gestos, por produzindo, é um presente para o analista, você
expressões verbais e por atitudes, as mais varia- não sabe exatamente quando é que algo signi-
das, a que denominamos elementos massa”. É ficativo vai ser despertado, será trazido à tona,
óbvio que nós temos de enfrentar a questão do você não sabe qual evento, qual palavra de outro
mutismo, da destrutividade, do narcisismo que paciente vai desencadear, como um sinal, para o
emerge, da centralidade que um paciente assume outro sujeito na produção profundamente reve-
na cena grupal. Mas nós não interpretamos, nós ladora de um conjunto de experiências que são
enfrentamos como questões que estão se dando marcantes na experiência psíquica desse sujeito.
ali. Então, esse chamado ‘outro’ não é uma inter- Então, todos nós que estamos acompanhando
pretação, mas uma constatação, e isso tem um esses sujeitos, somos ouvidos, olhos, percepção.
grande efeito nessa rede vincular. Então, permanentemente, deve estar havendo
Há um dado interessante que temos desenvol- um trabalho clínico de conexão das preciosas
vido na nossa clínica no programa de Intensifica- informações que nós precisamos para estruturar
ção de Cuidados, que gostaria de compartilhar a compreensão do caso. Nós não somos aquele
com vocês: a constatação de que o psiquismo se que vai para a anamnese e fica ali escutando o
produz incessantemente e nós podemos escutá- sujeito falar sobre si naquele momento. Eu estou
lo o tempo todo, e não apenas nos settings que o tempo todo sabendo da relação dele com a
convencionamos! Alguns acham que só se escuta mãe, com os irmãos, das vivências, dos aconteci-
quando se marca uma hora, um momento parti- mentos, do dia anterior, de dez anos atrás, da sua
cular que o sujeito vai até ali para ser atendido memória mais remota... Essas coisas vêm! Nós
e o outro para atendê-lo. Não estamos negando precisamos todos, independente da formação
que essa demanda se instaure no paciente psicó- profissional, seja psicanalista, assistente social, ter
tico. Eventualmente, ela se instaura mesmo. Mas uma leitura e interpretação da psicofarmacologia,
o tempo todo que os sujeitos estão nas mais diver- da psicodinâmica da psicose, da compreensão da
sas modalidades grupais, eles estão produzindo psicose enquanto um efeito. Então precisamos to-
psiquicamente, a psicose está produzindo psiqui- dos também desenvolver uma certa interpretação
camente. dos efeitos sociais do psiquismo psicótico. Eu fico

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pensando que vemos acontecer muito as pesso- vamos nos defender – isso seria impossível - mas
as falarem diante de uma agitação, de um surto: essa é uma interpretação interessante, sobretudo
‘leva pra enfermaria, leva pra emergência’. É in- se nós recorrermos à receita técnica. Mas temos
teressante essa relação que, diante da agitação, a obrigação de colocar em análise as nossas de-
manda levar para a emergência. É curioso esse fesas. Toda vez que a gente deixa de entrar em
modo de operar com os fenômenos com os quais contato com o fenômeno para prescrever o que o
a gente lida. A agitação também deve e pode ser fenômeno é a partir de um construto qualquer que
escutada. a gente traga mentalmente, a diferença é muito
Todos nós precisamos ter uma apropriação e sutil. A diferença é que, quando você entra em
uma compreensão do que significa essa posição contato com o fenômeno e vai buscar uma fórmu-
psíquica da psicose, todos que vão trabalhar nes- la dentro do saber organizado que você tem para
sa clínica; pois é tendo uma compreensão orga- interpretar o fenômeno ou se você, ao entrar em
nizada, que nós vamos poder pensar em como in- contato com o fenômeno, impõe ao fenômeno,
tervir nele, saber que sentido tem essa produção, antes de entrar em contato com ele, pela mera
para ver que possibilidade nós temos de interven- aparência do mesmo, você já o destacou como
ção. Eu estou trazendo isso, porque os grupos de uma hipótese.
trabalho, os passeios, as praias, em todos esses E, toda vez que a gente trabalha com hipóte-
lugares, os sujeitos estão produzindo psiquica- ses, a gente está fazendo a tentativa de se apro-
mente. O que nós precisamos é aprender a co- ximar do fenômeno e exercer domínio sobre ele,
lher os dados para fazer uma compreensão do controlá-lo, porque isso afasta a angústia da ig-
que está acontecendo com estes sujeitos nesses norância. Uma atitude mais interrogativa é mais
diversos eventos. adequada do que uma atitude que tem certezas.
Uma outra coisa relevante seria a coisa do pre- O que será isso aqui? O que é que está aconte-
paro possível para o trabalho com a coisa mental, cendo aqui? Essa curiosidade sincera de saber o
o quanto nós somos humanamente defendidos em que quer dizer aquilo que o sujeito fala. O que
relação à desordem da coisa mental, e aí a gente ele está vivendo, o que está experimentando des-
tem de entender que a defesa que nós temos são perta a empatia. E muito rapidamente, antes de
as nossas mediações identitárias. O Franco Ba- fazer esse movimento, você diz “é um delírio”, “é
saglia falava disso. Todo recurso que façamos às uma histeria”. E isso vai te dar segurança. Isso é
identidades corporativas profissionais significa um muito sutil, óbvio, porque envolve uma questão
esforço defensivo. Defensivo de que e para quê? de atitude, de abertura, de disponibilidade, e isso
Defensivos da desordem e para criar organização envolve outra questão que é a nossa relação com
e se proteger através dela. a ignorância.
Não estou querendo dizer aqui que não de- Nós temos um problema, já que não podemos

87
ser ignorantes. As nossas profissões e o exercício vista da criatividade psicótica. Nós aprendemos
delas está baseado na pressuposição de termos com a psicose o seu grande poder de reinventar a
um saber. Quanto mais as instituições são compe- forma da vida para o sujeito, recriar a vida do su-
titivas, menos nós podemos ser ignorantes. Como jeito de uma forma que possa ser viável para ele.
é que eu posso, diante do outro que quer me des- Nós já estamos na metade do curso, então,
truir, me abrir e dizer “desculpa, eu não sei”. Vão não vou mais enganar vocês: não tem nenhuma
me dizer que eu sou um estúpido, que não sei. novidade nesse assunto de clínica psicossocial da
Não estou querendo dizer para entrarmos no re- psicose. O que tem de novo é que, em tudo o
gistro do gozo da ignorância, mas de poder ter que nós formos fazer, nós vamos considerar que a
uma relação tranqüila com a ignorância, porque, questão da sociabilidade e a questão do vínculo
no gozo da ignorância, não se quer saber, se quer são questões fundamentais para o sujeito psicóti-
ficar seguro naquele lugar e pronto; é uma posi- co, e a clínica não pode seguir ignorando-as.
ção que não possibilita muita coisa. Falo de reve-
renciar esse outro tipo de ignorância e construir
uma cultura em torno dela, de poder compartilhar
com o coletivo o não saber, de poder construir
interpretações coletivas sobre o que está aconte-
cendo, poder perguntar como é que o outro está
vendo, admitir que está com dificuldade.
Então, no fundo, nós estamos falando que a
nossa relação com a ignorância depende da nos-
sa relação com o poder, tem a ver com o poder
que nós atribuímos ao saber. Se nós acharmos
que o saber é a coisa mais importante do mundo,
nós não vamos conseguir admitir que não sabe-
mos, mas aí nós estamos colocando o saber num
lugar de falo, e aí, o grupo de psicóticos não de-
cola.

O grupo pode ser um lugar de profundas


aprendizagens, em todos os sentidos, de aprender
a coordenar, de ter de dar conta da ansiedade,
de se perguntar por que aquilo que acontece me
mobiliza tanto e é uma escola e tanto do ponto de

88
A psicose e as relações vinculares:
um esforço de referenciação teórica
Marcus Vinicius de Oliveira Silva*

T omada como a significação mater, raiz da pos-


sibilidade de toda e qualquer significação, a
significação de cada sujeito como um “eu” só
da significação original do “eu” que se identifica
como uma porção diferenciada nessa mescla in-
distinta e básica recortaria imaginariamente uma
pode ser estabelecida na trama complexa das re- porção da angustiante experiência possível – mar-
lações humanas, ensejadas desde a sua aparição cada pelas características singulares da sua pro-
num mundo pré-existente, organizado simbolica- to-história como sujeito – para criar, ao mesmo
mente, no qual ela emerge como uma função do tempo, o ser, o sentido do ser e o próprio regime
“outro”. da significação.
A aquisição do recurso psíquico da simboliza- A contra parte da qual o sujeito se descolou – o
ção, condição de uma construção interna do “eu”, domínio do, a partir daí, definido como “outro”
derivaria, nesse caso, da operação original de e “distinto do si” – e os sentidos e significações
ruptura com o patamar da experiência especular que receberá como “outro”, encerrará, portanto,
e fusional, onde, ilusoriamente, este sujeito, sem sempre uma dimensão de arbítrio, resultante do
consciência própria dessa condição, se plasmava modo como essa operação de censura buscou
como extensão ou contigüidade dos organismos ser eficiente para enfrentar a questão da angús-
adultos que lhe emprestavam sustentação tanto tia, mola propulsora da individuação e condição
material como emocional pela via das impressões fundamental de instauração do registro psíquico.
e sensações. (Lacan, Escritos) A fundação da sociedade se produz e se re-
A operação de censura psíquica fundadora produz na experiência singular através da qual as
crias humanas, movidas pela angústia, são im-
*Psicólogo, Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ, Professor Adjunto da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, Coordenador do LEV - Laboratório de pulsionadas a instaurar uma clivagem entre o seu
Estudos Vinculares e Saúde Mental do Departamento de Psicologia da UFBA, Criador organismo biológico vitalmente autônomo e os
e Supervisor do PIC – Programa de Cuidados Intensivos a Pacientes Psicóticos.
organismos biologicamente autônomos, cultural-

89
mente estabelecidos, que lhe oferecem suporte e Ao mesmo tempo, tal condição explicaria cer-
cuidados para viabilizar o seu desenvolvimento. tos modos ou direções do “arranjamento psíqui-
Entretanto, mais do que uma direção biolo- co” dos sujeitos, a partir do caráter melhor ou pior
gicamente apontada e dada como inevitável, a sucedido dessa operação, sucesso compreendido
individuação psíquica seria uma resultante das como uma eficiência no enfrentamento da an-
dinâmicas do trabalho singular operado pela gústia através da aquisição do registro simbólico.
angústia que se instala pelo descompasso entre O recurso à simbolização seria percebido, desse
a autonomia biológica de dois organismos, de- modo, como um mecanismo de defesa contra as
sigualmente autônomos, colocados em relação, ansiedades persecutórias através de uma opera-
sendo que o mais autônomo deles se localiza em ção de controle do mundo pela via da sua incor-
relação ao menos, a partir de um regime de sig- poração interna como significação1.
nificações que, além de indisponível para esse, in- Tal seria a marca distintiva da estrutura existen-
clui uma significação própria para cada um para cial que caracterizaria os sujeitos designados ge-
o conjunto formado por ambos e instrui e orienta nericamente como “psicóticos”: um modo singu-
a ação do primeiro em relação ao segundo. lar de arranjamento psíquico em que se evidencia
Assim, seria o descompasso entre as expectati- o caráter precário dessa operação fundamental
vas brutas – biologicamente orientadas - do orga- em que se estabelece a possibilidade da instau-
nismo indistinto e as resultantes da movimentação ração de um psiquismo compreendido como uma
culturalmente orientada do adulto o que oferece- delimitação ficcional da existência de um “eu”
ria a base experiencial da angústia geradora do que guarda em si um registro do “outro” e que
movimento da individuação psíquica, marcada pressupõe nos outros empíricos a possibilidade de
por uma profunda especificidade em cada situ- que contenham algo do “eu próprio” como lócus
ação, responsável pelos modos absolutamente identitário, base da organização simbólica e inter-
singulares de como cada indivíduo se significa na do mundo.
no mundo, bem como, ao mesmo tempo, esta- A precariedade estaria dada pela descompen-
belece certas possibilidades para a existência do sada construção do “outro” como instância inte-
“outro”. rior (introjeção) ao psiquismo ou como possibili-

1 - Tal hipótese, de extração psicanalítica, oferece interessantes possibilidades para portanto, numa operação social em todos os sentidos: porque o pressupõe – o social
pensar a instauração do psiquismo como instauração orgânica do regime social da – como sua condição radical; porque resulta das primeiras relações de “socialização”
vida humana, rompendo com a dicotomia indivíduo /sociedade. A instauração do do candidato a sujeito com os outros humanos da cultura; porque estabelece as con-
psiquismo individual converte a cria humana em “sujeito social”, ao estabelecer, dições básicas da identidade por diferenciação, etc. Tornar-se “sócio” da sociedade
concomitantemente, o acesso ao registro simbólico da cultura pela via singular da é, portanto, realizar a operação de censura imaginária, num certo estágio do
demarcação do “eu” e do “outro”, como matriz ou base de apoio de toda a suces- desenvolvimento, permitindo a instalação de uma instância do “eu” como uma
são de significações que a partir daí se tornam viáveis. A aquisição individual do função derivada da imposição da existência autônoma do “outro”.
psiquismo, baseada na aquisição do registro matriz do “eu” e do “outro” constitui-se,

90
dade da pressuposição no “outro” (projeção) dos interior e no exterior; e é por isso que qualquer
registros que seriam próprios do “eu”, condição equilíbrio puramente imaginário com o outro sem-
básica da regulação das relações vinculares me- pre é atacado por uma espécie de instabilidade
diadas simbolicamente. fundamental” (Lacan, Seminário de 18 de janeiro
Dessa forma, o efeito de alienação, que pres- de 1956, apud Mannoni, M. , 1967)
supõe a ilusão da intersubjetividade, é constituído Ainda seguindo a mesma construção, podería-
na condição do bem sucedido arranjo psíquico mos dizer que tal jogo oscilatório instalado no psi-
ao modo da neurose: quismo humano seria a condição de produção da
“É assim que, em toda esta relação com o ou- própria vida social, como um registro possibilita-
tro, haverá essa ambigüidade para o indivíduo, dor das trocas, em diversos níveis, entre os sócios
que se trata de alguma maneira de escolher, ele neuróticos da sociedade. Na psicose, os arranjos
ou eu, que em toda relação com o outro, mesmo psíquicos disponíveis, resultantes das construções
erótica, haverá algo do eco que se produzirá des- possibilitadas pelas interações dos sujeitos com o
ta relação de exclusão que se estabelece a partir ambiente – material e humano - instabilizariam
do momento em que o ser humano é um individuo radicalmente a posição do sujeito em relação ao
que, sobre o plano imaginário, é constituído de tal “outro”, posto ora na condição da proximidade
maneira que o outro é sempre prestes a retomar excessiva e fusional própria do registro simbiótico
este lugar de domínio em relação a ele, enquan- ora na condição de alteridade radical paranoi-
to que nele há um eu que é sempre, em parte, camente ameaçadora. Deste modo, enquanto o
alguma coisa que lhe parece de algum modo es- registro psíquico “normo-neurótico” do funcio-
tranho, que é uma espécie de senhor implantado namento da vida social2 pressupõe como con-
nele acima das tendências globais suas, dos seus dição a alienação vincular – colocado o vínculo
comportamentos, de suas pulsões... a síntese do como modo fundamental de ligação com o outro,
eu não se faz nunca, alguma coisa que talvez fos- “philia”3 – propiciadora da ilusão do comparti-
se melhor chamar de função de senhorio, de do- lhamento intersubjetivo; no registro da psicose, o
mínio. E este senhor, onde está ele? No interior? “outro” aparece como um elemento enigmático
No exterior? Está sempre, ao mesmo tempo, no diante do qual o psicótico titubeia, problematiza a

2 - O individualismo moderno, conforme anteriormente referido, veio problematizar pode prescindir de ser afetado por meio da noção de philia. Não se traduzem philia
sobremaneira a condição destes sujeitos com registros precários da instauração do e philos simplesmente como amizade e amigo. Philia inclui os variados vínculos, bem
psiquismo, conferindo-lhes a condição de baixa funcionalidade social, na medida como os mais afetivamente intensos. Os requisitos básicos para que haja autêntica
em que toda a avaliação e validação do sujeito social está baseada na competência philia: Reciprocidade - a philia exige compartilhar e devolver o benefício e o afeto.
performática dos indivíduos, medida sobretudo pela sua capacidade de interação Independência: o philos deve ser percebido como um ser totalmente independente,
com os outros indivíduos. dotado de um “bem próprio”, e o verdadeiro philos deseja o bem do outro por ele
3 - Aristóteles afirma que, como o homem é um ser social, não basta ser bom intrinse- mesmo, “a troco de nada”. Os philoi devem ser e perceber-se reciprocamente como
camente, mas sim atuar na comunidade como um ser político. Se ele deve atuar, não centros individuais de decisão e ação. A necessidade da convivência é fundamental

91
relação e encontra limitações relacionais. volvidos em iniciativas do tipo psicoterapêuticas
Poderíamos pensar, portanto, os psicóticos ou, como enunciamos, para o “preparo para
como uma dissidência vincular – “os arautos do o trabalho com a coisa mental” ou ainda para o
vínculo” – pois eles oferecem visibilidade para o trabalho com as dimensões da subjetividade.
mais elementar dos traços da vida social, estabele- Mais do que simplesmente estabelecer uma
cidos como condição mesma da própria, a saber, compreensão acerca do que hoje é possível de-
o fenômeno através do qual o compartilhamento nominar como fenômeno transferencial - dos mo-
simbólico se torna possível entre os sujeitos não dos de atualização de certos afetos originalmente
apenas a partir da aprendizagem vinculante de reprimidos, reeditados em certas circunstâncias
signos e significados como a partir da sua introje- específicas e direcionados a um agente estrategi-
ção tornada possível pela formatação psíquica de camente posicionado diante do sujeito – a noção
cada indivíduo como um sujeito da cultura. Dos de transferência, como um saber do agente sobre
embaraços vinculares da psicose, das estratégias si mesmo, inaugura novas possibilidades de que
organizadoras dos seus “arranjamentos”. este agente suporte certas cargas afetivas, que,
não fora esse o recurso, imprimiriam ao relacio-
Vínculo, fragilidades vinculares e tecnologias namento em questão destinações absolutamente
de gestão social imprevisíveis.
Saber de natureza originalmente intelectual
A descoberta da transferência ou a invenção da – como conceito que pode ser apreendido e que
noção de transferência por Freud pode ser con- incide sobre a subjetividade do agente - a noção
siderada como a matriz de toda a produção de de transferência opera por via de uma clivagem
tecnologias de intervenção relacional que reco- psíquica que, objetivamente, alarga as possibili-
nhecem a condição do “outro” - alvo de alguma dades da experiência do mesmo, permitindo-lhe
iniciativa intencionada de um agente especializa- um certo exercício de controle dos efeitos nele
do - como um sujeito. No advento da transfe- provocados pelos afetos que lhe são dirigidos
rência, podemos identificar também a condição pelo outro sujeito, ao separar a sua pessoa da-
inaugural que estabeleceu as bases dos processos quela identidade de agente da função exercida.
de uma “formação possível” para os agentes en- Ao modo do teatro, é possível ao agente sus-
tentar como personagem – a função analítica
para os philoi. “Não há nada tão característico do amor como a convivência”. Os pode ser pensada como uma interpretação de um
philoi devem conviver, compartilhar atividades intelectuais e sociais e o gozo, o prazer
pela companhia do outro. “A convivência é preferível a tudo”.
sofisticado papel – e não como a sua pessoa mes-
ma, certas cargas de afetos endereçados, sem se
deixar, imediatamente, afetar por isso, no sentido
reacional. Ao mesmo tempo em que se alarga a

92
possibilidade de suportar as expressões da afeti- ele destacou a diferença objetiva e subjetiva de
vidade alheia, pela via de uma desidentificação posição que permite a atribuição de autoridade
com a condição de sujeito originariamente des- a um dos pólos da relação, a demonstração de
tinatário da mesma, torna-se possível ao agente disponibilidade e interesse em relação às ques-
manejar essa relação afetiva no sentido de certos tões trazidas pelo outro pólo, a suposição de que,
objetivos pré-estabelecidos como terapêuticos. no pólo oposto, se encontraria alguém com um
Como conceito capaz de produzir um efeito saber capaz de atender a certas necessidades do
subjetivo no agente alargador da sua capacidade mesmo e a repetição regular do encontro entre os
de “suportar” a experiência do outro e sustentar dois, etc.
diante dela uma intervenção eticamente dirigida Como afirma Zigouris (2002) “Freud introdu-
a certas finalidades, a invenção da transferência ziu no ocidente um vínculo até então inédito en-
como um conceito operacional inaugura um novo tre duas pessoas, dois desconhecidos: chamou-
modo de relação entre teoria e prática, no que diz o “transferência”. No início de sua atividade,
respeito à clínica, edificando as bases de todo o referia-se à relação médico-doente, mas muito
preparo para lidar com a coisa mental. rapidamente esse novo conceito veio a designar
De algum modo, tal como ocorre mais explici- não mais o encontro médico-paciente, e sim um
tamente com o conceito de transferência, todos os vínculo específico em relação ao inconsciente, às
conceitos operativos da clínica mental deveriam pulsões e à repetição. No início, a transferência
colaborar para a produção de uma expansão, foi transferência de amor... e, para Lacan, “algu-
para uma ascese subjetiva, da condição prévia do ma coisa em relação ao amor”.
sujeito em treinamento para uma nova condição, Desde aí uma interrogação cultural não ces-
em que resultaria alargada a sua possibilidade sa de se produzir: o que desse campo relacio-
objetiva e subjetiva de suportar um conjunto de nal, definido originalmente como relativo a certas
fenômenos e expressões que lhe são dirigidas em relações de características específicas – médico-
função do seu trabalho pelos sujeitos atendidos paciente, professor-aluno, chefe-comandado –
e que, não fora tal recurso, impactar-lhe-iam de seria compartilhado e poderia nos informar sobre
modo absolutamente diverso. o conjunto das relações humanas “amorosas”,
Mas é de outra natureza a conseqüência que socialmente estabelecidas, em suas distintas ver-
achamos mais significativa e que devemos desta- sões, mesmo nos casos em que os sujeitos nos
car em relação à invenção freudiana do concei- parecessem neutros afetivamente ou revestidos de
to de transferência. Tal como ela foi postulada, “amorosidades” negativas ( desprezo, raiva, asco,
revela uma forma específica, no olhar de Freud, irritação).
de modo de vinculação entre dois sujeitos mar-
cados por certas características dentre as quais

93
Em que poderíamos articular essa noção de em esforços teóricos variados de esclarecimento,
transferência com as dinâmicas mais gerais do que constituem o campo do manejo das relações
modo de produção dos “afetos”, tomados transiti- vinculares, estabelecendo as bases das tecnolo-
vamente como os impactos ou efeitos produzidos gias de intervenção social, incluindo aí as tecno-
subjetivamente em um sujeito a partir da presen- logias do tipo psicoterapêuticas ou sócio-terapêu-
ça real ou imaginada de um outro sujeito ou de ticas.
símbolos, objetos ou coisas ligados a outro sujeito De alguma maneira, a invenção da transferên-
ou sujeitos? E como derivar daí uma abrangência cia veio introduzir um suporte teórico para o ma-
extensiva para a noção de vínculo como uma no- nejo técnico de relações interpessoais no interior
ção central para a compreensão das dinâmicas dos quadros institucionais reguladores do gover-
psiquismo/sociedade? no da pessoa, encontrando-se presentes nos mais
Aí se torna necessário introduzir a questão da variados projetos de gestão social, tanto como re-
significação como uma questão referida ao víncu- curso para a reprodução disciplinar da sociedade
lo. A relação entre dois ou mais sujeitos encontra- quanto como recurso de administração dos seus
se sempre antecedida pela significação que cada elos mais frágeis.
um deles atribui a si mesmo e pela significação
adquirida pelo(s) outro(s) para o sujeito que com
ele interage. Isso fica reforçado pela idéia de que
as relações de dependência são básicas em todas
as relações sociais: dependência real, simbólica
e/ou imaginária. É impossível existir fora das rela-
ções de dependência.
De algum modo, podemos formular que to-
das as relações humanas sejam entre humanos e
lugares, entre humanos e objetos de sentido hu-
mano, pressupondo, portanto, a presença desse
elemento vincular, pois o campo da significação,
o campo simbólico da cultura, se constitui a partir
das relações do tipo vincular. O sentido é a forma
mais elementar do vínculo: vínculo entre um signo
e um significado mediado pela experiência singu-
lar do sujeito promotor dessas articulações.
Tais temas derivados dessa apreensão tão ori-
ginal da obra freudiana vêm sendo desdobrados

94
Fazendo o PIC acontecer

*Todos os nomes dos pacientes citados nos artigos a seguir são fictícios.
A Clínica Psicossocial da Psicose:
Aprendizagem, Cuidado Intensificado
e Reinserção Social
Adriana Bittencourt Nunes*
Ana Luísa Marques Fagundes**
Isadora de Andrade Pinheiro***
Lucineide Santiago de Souza****
Milena Silva Lisboa*****

Resumo: O presente artigo objetiva relatar a Introdução


experiência de um ano vivida por estudantes de
Psicologia e Terapia Ocupacional, atuando como A busca de uma atuação em saúde mental que
acompanhantes terapêuticos de pacientes com respeite a integridade e autonomia dos psicóticos
transtorno mental e desenvolvendo trabalhos de e seja capaz de oferecer o suporte necessário aos
cunho biopsicossocial. As atividades foram reali- pacientes e familiares de maneira menos invasiva
zadas com o apoio de uma instituição psiquiátrica é um desafio constante para todos os profissionais
(Hospital Especializado Mário Leal) tendo como da área. Desde meados do século passado, vêm
premissa básica promover a reinserção social e o sendo propostas, no Brasil e no mundo, alternati-
estreitamento de vínculos dos pacientes. Para tal, vas terapêuticas que vão além do velho recurso da
foram utilizados, fundamentalmente, os pressupos- internação psiquiátrica. Na Bahia, tais propostas
tos teóricos da clínica psicossocial da psicose que ainda se encontram muito pouco desenvolvidas,
contribui para um novo olhar sobre o fazer clínico de modo que merecem uma atenção especial os
e sobre o fenômeno da psicose. Ademais, esta ex- esforços empreendidos nessa perspectiva.
periência de estágio curricular contribuiu para a O programa de estágio implantado pela Uni-
formação profissional e acadêmica dos estudan- versidade Federal da Bahia, em parceria com a
tes, demonstrando a possibilidade de construção Fundação Bahiana para o Desenvolvimento dsa
de novas formas de intervenção, pensamento e Ciências (FBDC) e a Secretaria de Saúde do Esta-
reflexão acerca do fenômeno em questão. do da Bahia, vem inaugurar uma nova forma de

* Estudante de Psicologia da UFBA e ex-estagiária do PIC ***** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
*** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**** Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC

97
atuação e formação em saúde mental em Salva- à própria doença, anulando o papel do portador
dor. O Programa de Intensificação de Cuidados de sofrimento psíquico enquanto agente e sujeito;
a Pacientes Psicóticos (PIC), implementado em ja- rompe-se, assim, com os direitos humanos e civis
neiro de 2004, insere-se na perspectiva de uma (GOFFMAN, 1985).
clínica psicossocial da psicose e objetiva oferecer Diante disso, uma reforma psiquiátrica
cuidados intensivos a alguns pacientes atendidos pautada na necessidade de reestruturar esse mo-
pelo Hospital Especializado Mário Leal (HEML), delo de dominação e domesticação dos pacientes
situado no bairro do IAPI, em Salvador, Bahia. A caminha na direção de promover modelos alter-
equipe inicial contou com a participação de sete nativos que tomem como centro da discussão e
estudantes de graduação de Psicologia da UFBA foco de atuação a comunidade e suas redes so-
e cinco de Terapia Ocupacional da FBDC, su- ciais. A Declaração de Caracas (1990), enquanto
pervisionados por dois professores das referidas um documento que expressa essa necessidade de
áreas de saber. Dentre os principais objetivos do uma reforma psiquiátrica, propõe que a legisla-
programa destacam-se o fortalecimento das re- ção em saúde mental garanta os direitos huma-
des de suporte social dos pacientes e a promoção nos e civis dos usuários, descentralize a assistên-
de discussões acerca das novas formas de atua- cia através da promoção de serviços comunitários
ção em saúde mental no ambiente acadêmico, e aloque a assistência a emergências psiquiátricas
contribuindo para uma prática profissional mais em hospitais gerais.
competente e ética. A lei n˚ 10.216, de seis de abril de 2001, pro-
A proposta do Programa coaduna-se com tege os direitos humanos e civis dos “portadores
as reflexões da reforma psiquiátrica e com as di- de transtorno mental”, sem qualquer tipo de discri-
retrizes da nova legislação em saúde mental. A minação. São listados nove direitos: melhor trata-
reforma psiquiátrica, ao analisar os fundamentos mento referente às suas necessidades; tratamento
do modelo assistencial do hospital psiquiátrico, com humanidade e respeito; proteção contra ex-
constata sua incapacidade para a atenção à saú- ploração ou abuso; sigilo de informações; acesso
de mental, no que diz respeito à promoção do aos meios de comunicação; assistência médica;
bem-estar físico, mental e social dos seus usuá- conhecimento sobre a doença; tratamento com
rios. O modelo centrado na instituição do hospital os meios menos invasivos possíveis e, preferen-
psiquiátrico não permite a participação da comu- cialmente, em serviços comunitários. Além de
nidade, já que centraliza as decisões e dificulta garantir os direitos fundamentais para um trata-
a participação dos pacientes e de seus familiares mento mais humano, a lei prevê a criação de po-
na gestão do tratamento de uma forma integral líticas em saúde mental pelo Estado, oferecendo
e preventiva. Ademais, promove a exclusão dos a possibilidade de participação da comunidade.
pacientes, o estigma social e a alienação quanto Atendendo à necessidade de descentralização, a

98
lei também incentiva a reinserção social do doen- a partir de uma espécie de retorno aos padrões de
te e desestimula a internação psiquiátrica. comportamento vivenciados no desenvolvimento
A reforma psiquiátrica e a nova legislação vêm infantil. Os conceitos de depositante, depositado e
lançar um novo olhar sobre a loucura, abordada depositário de Pichon Rivière (apud Bleger, 1977,
tradicionalmente de forma excludente devido a p.20) contribuem para a compreensão da psicose
uma série de fatores. Em primeiro lugar, a loucu- enquanto fenômeno intrapsíquico. Esta teoria es-
ra reflete um mal-estar social, denuncia que algo tabelece um tripé, no qual o sujeito (depositante)
está funcionando mal. Em nossa cultura, a única projeta determinado conteúdo (material deposita-
forma de existência que a loucura encontra é sob do) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma
a forma de doença. A vida do sujeito fica limitada vez que a introjeção do mesmo pode causar de-
ao tratamento, sendo que o projeto-doença, de sestabilização psíquica (BLEGER, 1977).
fato, é a única forma de se ter o sofrimento reco- O sujeito psicótico utiliza a transferência autis-
nhecido; sofrimento que, na verdade, é social. O ta e simbiótica para relacionar-se com o outro e o
louco funciona como porta-voz de um mal estar mundo externo; o autismo e a simbiose como for-
que diz respeito a toda sociedade, e sua diferen- mas de vinculação remetem às relações narcísicas,
ça representa uma ameaça ao modus vivendti da pois estas se dão com objetos internos (material
mesma. O modo de abordar a alteridade da lou- depositado, mente, corpo). Autismo e simbiose
cura é, conseqüentemente, a exclusão. (CARRE- coexistem, o que permite compreender o caráter
TEIRO, apud GARFUNKEL, sd). paradoxal das relações objetais de psicóticos, a
A exclusão denuncia a falta de recursos da so- alternância entre relações de profunda dependên-
ciedade para lidar com o psicótico e acaba por cia e outras de isolamento/distanciamento. Tanto
fragilizar as suas redes sociais. Qualquer atuação a simbiose quanto o autismo são expressões dos
que vislumbre a inserção social deve debruçar- conflitos de dependência/independência, que têm
se sobre a questão vincular, passando a valorizar por base uma cisão entre o projetado e o intro-
os laços sociais. Na psicose, uma dificuldade na jetado. No autismo, o sujeito deposita conteúdos
formação de vínculos coloca essas pessoas numa sobre parte de seu próprio corpo e/ou mente,
posição diferente no mundo; qualquer abalo na distanciando-se do mundo externo, enquanto na
sua estrutura de vínculos pode significar uma difi- simbiose, há uma interdependência entre duas ou
culdade na sua experiência subjetiva compartilha- mais pessoas, com o objetivo de satisfazer as ne-
da e individual. cessidades da parte mais primitiva (imatura) da
A vulnerabilidade relacional do psicótico está personalidade, mantendo-a imobilizada. A depo-
calcada na forma de estruturação psíquica do su- sitação simbiótica maciça e frágil ocorre sobre o
jeito. A dificuldade de inserir-se no mundo e criar mundo externo (outro). Não obstante, ambas as
instâncias de significações relevantes configura-se maneiras de vinculação funcionam como meca-

99
nismos que visam a conservação do estado psí- primitiva e depositada no mundo externo de ma-
quico (certo grau de organização) através da não neira intensa (simbiose) ou sobre o próprio indiví-
intervenção do mundo externo e conservação do duo (autismo), já que sua reintrojeção ameaçaria
princípio do prazer. Na simbiose, embora o víncu- a parte mais organizada do ego (parte neurótica
lo pareça muito intenso, há um empobrecimento da personalidade) (BLEGER, 1977).
do depositário, que funciona como mero locus de Em grupos narcísicos ou simbióticos, as pes-
depositação. É com o material depositado que o soas não se vinculam de forma objetiva. Cada
psicótico se relaciona, não com o outro propria- uma delas representa para as demais mero de-
mente. positário de suas tensões. Por outro lado, cada
Estes padrões narcísicos de vinculação podem sujeito internaliza e atua papéis correspondentes
ser compreendidos sob a luz da teoria Kleiniana. às tensões dos demais (BLEGER, 1977). Tal tipo
M. Klein (apud BLEGER, 1977) denomina estado de organização grupal é freqüentemente encon-
esquizoparanóide à fase do desenvolvimento in- trada em famílias de psicóticos, especialmente na
fantil na qual a criança começa a distinguir carac- relação entre os pacientes e seus cuidadores pri-
terísticas contraditórias presentes em um mesmo mários. Constantemente, ocorre uma fusão entre
objeto. É o estágio em que a diferenciação está o material depositado e o depositário, de modo
presente e se faz necessário dividir, separar, para que o depositário acaba assumindo o papel que
que, posteriormente, o ego possa se estruturar so- foi nele projetado, contribuindo para a não distin-
lidamente. ção entre o mundo interno e o mundo externo do
O retorno ao autismo e simbiose como padrões psicótico.
de relacionamento remetem à fase desenvolvimen- Assim, a partir do entendimento da estrutura-
tal anterior, ao estado esquizoparanóide. Nesta ção psíquica pertinente à psicose, pode-se com-
fase, a criança encontra-se em um processo de preender a outra face deste fenômeno (além das
indiferenciação. Não há clivagem entre eu e não- questões de cunho sócio-histórico) que contribui
eu. Os aspectos contraditórios e divergentes fa- com o processo de estreitamento e ruptura dos
zem parte de um todo e não são percebidos como laços sociais e com a dificuldade de inscrição do
tais pelo sujeito. É uma fase caracteristicamente sujeito no mundo.
ambígua e contribui para a formação da parte A partir da compreensão de tal dificuldade vin-
psicótica da personalidade ou núcleo aglutinado, cular dos psicóticos, a qual freqüentemente é for-
esfera mais desorganizada, densa e complexa. talecida pela exclusão social da loucura, as novas
Esta, como um amálgama fusional, permanece atuações em saúde mental se direcionam para a
separada do ego na vida adulta. É exatamente a inclusão através de uma atuação biopsicossocial.
parte psicótica da personalidade que é projetada Novas formas de cuidado começaram a ser
pelo paciente, como uma espécie de organização pensadas como alternativas à exclusão dos muros

100
do manicômio: Centros e Núcleos de Atenção Psi- de compartilhar o sofrimento e estar presente. Tra-
cossocial (CAPS e NAPS), Lares Abrigados, Casas ta-se não de piedade, mas de reconhecimento da
de Acolhimento e hospitais gerais. A psicologia sua própria fragilidade para a compreensão da
aparece aqui como uma abordagem que aten- fragilidade do outro. Cuidado implica uma aten-
ta para a questão dos sujeitos psíquicos em suas ção especial aos aspectos que podem estar sendo
dimensões familiares, sociais, políticas e econô- negligenciados para uma aproximação do sofri-
micas. A direção da mudança caminha do isola- mento do outro. Isso requer uma apreciação do
mento para a convivência social da loucura, por sujeito de uma maneira mais integral, para além
mais difícil e paradoxal que possa parecer. Fazer das especificidades das áreas do saber.
caber a loucura no seio da sociedade de origem Os espaços considerados terapêuticos foram
passa a ser o objetivo quando se acredita serem organizados em diferentes categorias: encontros
os vínculos sociais os suportes para o convívio. O semanais no hospital, visitas domiciliares regula-
caminho da ressocialização da loucura tira das res, encontros com cuidadores, passeios terapêu-
mãos da psiquiatria a tarefa de compreender e ticos, acompanhamento a consultas, contribui-
tratar o louco em asilos de exclusões, e coloca a ções no encaminhamento de documentações e
comunidade em contato mais direto com a lou- benefícios, além de atendimentos psicoterápicos
cura, criando novas formas de relacionamento e de caráter individual ou participação em oficinas
novos recursos interacionais e institucionais. terapêuticas, quando se detectavam estas necessi-
É dentro dessa perspectiva que o Programa de dades. Essas atividades podem estar inseridas nos
Intensificação de Cuidados se insere. A partir da modos de atuação conhecidos como grupos tera-
criação de espaços terapêuticos pouco conven- pêuticos e acompanhamento terapêutico (AT).
cionais, o Programa foi sendo pensado e constru- A noção de manejo aparece, no campo do AT,
ído para atender em torno de 30 pacientes divi- como técnica privilegiada de atuação, partindo
didos em dois grupos, em sua maioria, psicóticos do princípio winnicottiano (apud Barretto, 1998)
jovens provenientes da internação ou ambulatório de que o indivíduo se desenvolverá caso encontre
do HEML. Em diversos contextos de atuação, que condições favoráveis, cabendo ao acompanhante
ultrapassam os serviços oferecidos pelo HEML, a terapêutico (at) suprir as falhas ambientais. “(...)
escuta de suas subjetividades foi realizada, am- o manejo se refere a uma intervenção no setting
pliando a própria noção de clínica e fortalecendo (enquadre) e/ou no cotidiano do sujeito, levando
uma atitude transdisciplinar que gira em torno da em conta suas necessidades, sua história e a cul-
noção de cuidado. tura na qual está inserido, a fim de promover seu
A noção de cuidado, segundo Roselló (1998) desenvolvimento psíquico. É através dessa técnica
é uma derivação da idéia de fragilidade humana. que se exercerão as diversas funções ambientais
Não se trata de querer solucionar a tragédia, mas que são fundamentais na constituição do self de

101
um sujeito” (BARRETTO, 1998, p.196-197). viar as ansiedades persecutórias (objetiva permitir
Barretto (1998) descreve onze funções do at, as que o indivíduo estabeleça uma troca enriquece-
quais foram referenciais para a prática do estágio: dora consigo e com a vida, já que intensificadas,
Holding (função de amparo, apoio, sustentação, as angústias paralisam o mundo psíquico do su-
estar junto com, fornecendo à pessoa a experi- jeito); Modelo de identificação (o at pode auxi-
ência de continuidade, constância); Continência liar no desenvolvimento de diversas funções psí-
(envolve a compreensão da situação angustiante quicas, como responsabilidade, cuidado pessoal,
por um outro significativo e discriminação desta, além de, muitas vezes, servir para resgatar algum
de modo que se possa, através da imaginação, aspecto da história do sujeito).
transformar as experiências do sujeito); Apresen- Tais funções foram exercidas nos diversos es-
tação do objeto (possibilitar a vivência de uma paços de atuação do PIC. Os encontros semanais
experiência completa em que o sujeito se interes- dos dois grupos foram realizados no ambulatório
se por um objeto, ouse usá-lo e, por fim, possa do HEML (às segundas e quintas-feiras) e tinham o
separar-se dele); Handling (função de manipula- objetivo de estimular e fortalecer a sociabilidade.
ção corporal e contato com as necessidades cor- Tarefas e temáticas que dizem respeito a algumas
porais); Desilusão (capacidade de discriminação questões que ressoam diferentemente no modo de
entre a realidade subjetiva e a realidade compar- viver psicótico (como a vivência do corpo, a au-
tilhada); Interdição (associada à função paterna, tonomia, os projetos de vida) foram trabalhadas,
ao terceiro objeto que interfere na relação simbi- sempre relacionadas com a criação e o fortaleci-
ótica mãe-bebê. A interdição só é enriquecedora mento de suas redes sociais. O grupo tornou-se,
se o sujeito tiver vivenciado anteriormente a expe- ao longo do tempo, um espaço de troca de expe-
riência de satisfação); Interlocução dos desejos e riências, onde amizades foram construídas junto
angústias (não se trata de interpretar o paciente, com o sentido de cuidado e atenção.
mas sim de atentar para suas questões psíquicas É essencial observar a relação do sujeito com
relacionadas aos desejos e necessidades que são a família, visto que esta representa o grupo pri-
expressas por preocupações, angústias, dúvidas mário, o qual, geralmente, funciona como de-
através de conversas cotidianas); Discriminação positário no núcleo aglutinado. Desse modo,
de campos semânticos (apreender as significa- constata-se que o paciente comporta-se de ma-
ções do discurso para ampliar o campo da expe- neiras divergentes, estando na presença do gru-
riência, oferecendo novos olhares, novos recortes po primário ou de grupos secundários. É comum
do fenômeno); Função especular e emergência a sensação de perda de sentido da realidade na
da função estética (ocorre a partir do encontro presença do grupo primário, justamente porque
com o outro ou com um objeto da cultura que o sujeito entra em contato com a parte da perso-
revela um aspecto do próprio self); Função de ali- nalidade que foi projetada, ou seja, a primitiva e

102
imatura. As visitas domiciliares proporcionaram o controle do sujeito.
entendimento dessa dinâmica, já que foi possível Dentro dessa perspectiva, o Programa de In-
entrar em contato mais direto com o cotidiano dos tensificação de Cuidados realizou encontros com
participantes do programa, compreender suas di- os cuidadores. Essas reuniões configuraram-se
nâmicas familiares, suas redes de apoio locais e como trocas de experiências em um espaço onde
como transitam, vinculam-se e se colocam diante dúvidas, medos, preocupações, crenças, idéias e
do outro. Cada paciente era visitado regularmen- sugestões foram ouvidas e compartilhadas, onde
te por uma dupla de estagiários que cuidava de o sofrimento e a alegria daqueles que convivem
forma mais próxima e intensa das peculiaridades cotidianamente com a psicose puderam ser escu-
de cada caso. Essa aproximação possibilitou in- tados e validados.
tervenções mais fundamentadas nas interações Uma vez que as atividades externas mostra-
desses pacientes junto a seus familiares, amigos e ram-se de cunho terapêutico, por se tratarem de
cuidadores. Assim, pôde-se interferir nos padrões iniciativas legitimadoras do convívio social e do
de relacionamento objetais que poderiam estar exercício dos direitos e deveres que os pacientes
trazendo dificuldades à sociabilidade. Foi possível merecem dispor, alguns pacientes com dificulda-
também uma apreciação dos recursos sociais e de de sair do ambiente familiar puderam, com os
institucionais acionados pelos seus cuidadores em passeios, sentir-se mais seguros para transitar em
momentos de crise. outros espaços, o que viabilizou o aumento da
Segundo Melman (2001), algumas teorias autonomia. Os vínculos estabelecidos com pa-
psicológicas contribuíram para a instauração da cientes e estagiários ofereceram a continência ne-
idéia da família como causa de doença mental, cessária para que o sentimento de pertença gru-
a exemplo da psicanálise e da teoria do duplo pal garantisse segurança e confiança.
vínculo. Pode-se ir além dessa concepção, con- Acompanhamentos a consultas psiquiátricas e
siderando a família como um contexto, retirando neurológicas possibilitaram uma maior compre-
a culpabilização materna do seio da cultura e do ensão do fenômeno da psicose em seu aspecto
técnico de saúde mental o papel de juiz. Ou seja, fisioquímico, auxiliando na lida diária com os be-
não se trata de considerar o sujeito inocente e nefícios e dificuldades trazidas pelas medicações
o entorno familiar culpado, mas sim de compre- psiquiátricas. O acompanhamento concomitante
ender o sujeito para buscar facilitar os vínculos. dos pacientes junto a psiquiatras ambulatoriais
Pode-se ir ainda mais além, pensando a família trouxe importantes benefícios para uma clínica
não como causa ou contexto, mas como recurso. que acredita na não internação, mas que se be-
Família passa a ser a solução ao invés de pro- neficia do saber psiquiátrico medicamentoso, o
blema. Isso implica a escuta, o acolhimento, de que contribui para o diálogo entre os diversos sa-
fato, da família, sem limitá-la apenas ao papel de beres que atuam na saúde mental.

103
meios acadêmicos tradicionais. Além disso, o ca-
Tarefas como tirar documentos, dar entrada ao ráter inovador e transitório deste tipo de atuação
benefício de aposentadoria, denunciar abandono é cerceado por algumas questões de ordem ma-
ao Ministério Público, acompanhar consultas clíni- cro. O enquadramento de atuação calcado na
cas, podem não se configurar como uma atuação psiquiatria tradicional dificulta a viabilização de
propriamente de cunho psicológico, mas através propostas que ultrapassem este molde. O Esta-
delas foi possível abordar questões centrais nas do, os serviços de saúde e a própria cidade não
vidas dos pacientes (às vezes questões emergen- estão preparados para lidar e dar suporte a um
ciais) tornando-se mais um meio de aproximação portador de transtornos psíquicos que seja mais
de suas subjetividades. São atitudes transdiscipli- autônomo, mais cidadão. A internação como re-
nares como estas que devem permear o modo de curso terapêutico é largamente utilizada, destarte
atuação dos profissionais de saúde que querem os esforços que convergem para o oposto des-
cuidar da psicose numa perspectiva ampliada em ta situação. O paciente ainda não tem um lugar
favor da ressocialização. genuíno de escuta nestas instituições tradicionais,
Após mais de um ano do início das ativida- o que pode ser confirmado nas consultas médi-
des do Programa de Intensificação de Cuidados, cas de curta duração. Também ocorre, freqüen-
observa-se uma melhora significativa no quadro temente, a falta de medicação nas farmácias,
clínico da maioria dos pacientes, merecendo des- que prejudica o andamento do tratamento. No
taque a redução das reinternações e o aumento entanto, alguns espaços como o promovido pelo
da autonomia e dos laços sociais dos mesmos. As PIC têm surgido, com uma visão mais integrada
recaídas e pioras que aconteceram durante o ano e abrangente. Trata-se de uma visão psicossocial
foram abordadas pelos cuidadores de uma forma que compreende o tratamento não só do ponto
mais compreensiva e cuidadosa, surgindo outros de vista médico (através do uso de medicações)
recursos sociais e institucionais, como a procura como também envolve a família e a comunidade,
pela emergência psiquiátrica, a ida a uma igre- com o intuito de resgatar laços sociais. A predo-
ja, a conversa mais estimulada e a escuta mais minância do modelo médico em detrimento de
atenta. O recurso da internação começou a ser uma abordagem mais flexível dificulta muito a
questionado pelos pacientes e seus cuidadores; prática das mudanças preconizadas pela Reforma
alternativas mais acolhedoras trouxeram as crises Psiquiátrica. Muitas barreiras hão de ser enfrenta-
psicóticas para mais perto do convívio social e das pelos profissionais engajados nessa luta, mas
mais longe da exclusão do manicômio. as conquistas alcançadas, ainda que longe do
Percebe-se também um amadurecimento pro- considerado “ideal”, podem ser encaradas como
fissional dos estudantes dentro de uma perspecti- vitórias e estímulos para os que desejam que seja
va de atuação, em geral, pouco trabalhada nos destinada uma outra posição para o “louco” em

104
nossa sociedade.
Referências

BARRETTO, K. D. Ética e Técnica no Acompanhamento


Terapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança.
São Paulo, UNIMARCO, 2000.
BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Rio de Janeiro, Ed.
Francisco Alves, 1977.
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lidades desse conceito. São Paulo, Instituto de Psicologia
PUC – SP, p. 9 – 26, s/d.
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312, 1985.
Lei n˚ 10.216, de 6 de abril de 2001.
MELMAN, J. Família e Doença Mental. São Paulo, Escri-
turas, 2001.
ROSELLÓ, F.T. Antropologia Del Cuidar. Cap. 8: La radi-
cal vulnerabilidad del ser humano. Institut Borja de Bioética.
Fundación MAPFRE Medicina. Espanha, 1998.

105
Programa de Intensificação de Cuidados: Um Caminho para
a Qualidade de Vida
Fernanda Abreu R. Nascimento*

Resumo: O presente artigo é um resumo de Introdução


monografia do curso de Terapia Ocupacional da
Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ci-
ências (FBDC) / 2005, que tem como título “Pro- A o longo da história, a forma de ver e tratar
o doente mental tem sido transformada e
reconstruída. O Programa de Intensificação de
grama de Intensificação de Cuidados: Um Cami-
nho para a Qualidade de Vida”. O Programa de Cuidados (PIC) para psicóticos do Hospital Espe-
Intensificação de Cuidados (PIC) é um trabalho de cializado Mário Leal é um trabalho de acompa-
acompanhamento de cunho biopsicossocial desti- nhamento de cunho biopsicossocial desenvolvido
nado a portadores de transtornos mentais desen- por estudantes da Universidade Federal da Bahia
volvido por professores e estudantes de psicolo- e da Fundação Bahiana para Desenvolvimento
gia e medicina da Universidade Federal da Bahia das Ciências, sob a supervisão de professores que
(UFBA) e de Terapia Ocupacional da FBDC em idealizaram o programa. A partir de uma lógica de
parceria com Hospital Especializado Mário Leal trabalho que tenta transpor as barreiras manico-
(HEML). Este trabalho consistiu numa pesquisa miais, o PIC, compartilhando com os pensamen-
de campo, onde buscou-se avaliar as mudanças tos da Reforma Psiquiátrica, vem questionando o
que podem ter ocorrido na Qualidade de Vida dos saber clínico da psiquiatria clássica e construindo
usuários inscritos no programa. um novo olhar e fazer clínico no cuidado aos por-
tadores de transtornos mentais.
Reconhecendo que a psicose é um fenômeno
de intensas ressonâncias sociais que fragilizam as
*Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC relações interpessoais do sujeito, o PIC dispensa
uma atenção intensiva aos aspectos das vincula-

106
ções sociais com vistas à melhoria da continên- divíduo frente a todas as dimensões de sua vida.
cia social e qualidade de vida do paciente. Para
atingir tais objetivos, os estudantes do programa Metodologia
realizam um trabalho de acompanhamento tera-
pêutico a esses pacientes, que inclui visitas domi- Para a realização da pesquisa, foi aplicado um
ciliares, encontros grupais e familiares, passeios, questionário com dez pacientes inscritos no PIC
assessoramento e outros. que foram escolhidos através dos seguintes cri-
Foi realizado um estudo, onde se buscou ava- térios: não estar institucionalizado e estar partici-
liar se o programa tem sido um dispositivo que pando há mais de um ano do programa.
promove a Qualidade de Vida dos usuários inscri- A elaboração do questionário foi baseada no
tos no mesmo e a repercussão na vida daqueles. Instrumento de Qualidade de Vida da WHO-
Tal pesquisa foi apresentada no trabalho de con- QOL-100, considerando os aspectos que mais se
clusão de curso do curso de Terapia Ocupacional relacionam aos objetivos do PIC e ao cotidiano
da FBDC no ano de 2005, que tem como título dos portadores de transtornos mentais, buscando
“Programa de Intensificação de Cuidados: Um avaliar as mudanças que podem ter ocorrido na
Caminho para a Qualidade de Vida”. qualidade de vida dos pacientes pela participa-
O impacto da doença mental repercute imen- ção no PIC.
samente na qualidade de vida dos portadores de O questionário é composto de 24 itens, que
transtornos mentais. Um estudo feito pelo The podem ser agrupados em categorias, conforme
Global Burden Disease (OMS / Banco Mundial / segue: Relacionamentos Sociais (averigua as re-
Harvard) revelou que das dez doenças mais inca- lações com familiares e amigos do sujeito), Ativi-
pacitantes no mundo, cinco são de natureza psi- dades Sociais (averigua as atividades que o indi-
quiátrica. (PITTA, 2000). víduo tem realizado), Estado de Saúde (averigua a
A OMS definiu qualidade de vida (QV) em um saúde do indivíduo quanto à freqüência de inter-
conceito amplo que inter-relaciona o meio am- nações, bem como sua dependência de terceiros
biente com aspectos físicos, psicológicos, nível de e utilização de medicações), Auto-estima (averi-
independência, relações sociais e crenças sociais. gua sentimentos positivos em relação a si mesmo)
Essa organização define qualidade de vida como e Projeto de Vida.
“a percepção do indivíduo de sua posição na Dos dez pacientes participantes da pesquisa,
vida no contexto da cultura e sistema de valores sete são do sexo masculino e três do sexo femini-
nos quais ele vive e em relação aos seus objeti- no, sendo que as idades variaram entre 20 e 43
vos, expectativas, padrões e preocupações” (The anos. Cinco possuíam o primeiro grau incomple-
WHOQOL Group, 1995, apud FLECK, 2000). to, um tinha o primeiro grau completo, três com
Esse conceito valoriza a percepção própria do in- segundo grau incompleto e apenas um com se-

107
gundo grau completo. Nove eram solteiros e um realizar essas atividades. Dentre os motivos para
casado. Apenas um entrevistado possuía emprego isso, alguns responderam não ter vontade, não
remunerado, dois dependiam da renda familiar e ter oportunidade ou a confiança da família para
sete recebiam benefício do INSS. sair mais de casa. Os dados apresentaram que
30% dos pacientes passaram a se sentir mais se-
Resultados guros para sair de casa sozinhos, enquanto 30%
ainda não se sentem confiantes. A maioria dos
Segundo os dados obtidos referentes à catego- pacientes - 80%, disseram sempre ter feitos coisas
ria de Relacionamentos Sociais, percebeu-se uma para se divertir. Os dados mostraram que mais da
mudança significativa quanto ao sentimento de metade dos pacientes – 60% – voltou ou passou
solidão. Os dados mostraram que a maior por- a realizar atividades fora de casa. Dentre essas
centagem de pacientes – 80% – passou a se sentir atividades, encontram-se: voltar aos estudos, fre-
menos sozinho. Verificou-se também que 80% dos qüentar a academia, dar aula de dança, freqüen-
pacientes conseguiram fazer novos amigos, ape- tar a igreja e vendas de produtos por encomenda.
nas 20% deles não conseguiram ampliar o nú- Apenas 20% não passaram ou voltaram a realizar
mero de amizades, continuando com os mesmos alguma atividade.
amigos de antes. O resultado mostrou que 60% Referente à categoria de Estado de Saúde, os
das pessoas afirmaram ter tido melhora na con- dados mostraram que a maioria dos pacientes já
vivência com as pessoas em casa, enquanto 20% estiveram internados, sendo que 30% já estiveram
delas disseram que continuou ruim a relação, e várias vezes e 30% já estiveram, porém poucas
os outros 20% disseram que a relação sempre foi vezes. Verificou-se que a maioria do pacientes -
boa. A maioria dos pacientes - 70% - passaram 70% - não se internaram nesse ultimo ano, 20%
a receber mais ajuda de outras pessoas. Metade foram internados poucas vezes e 10% foram inter-
respondeu haver mudança no quadro de ativi- nados, mas apenas uma vez. 40% dos pacientes
dades que realiza com outras pessoas, e a outra passaram a tomar sua medicação corretamente,
metade diz não ter havido mudança. 50% dos pa- sem precisar da ajuda de outra pessoa; 10% pas-
cientes disseram que sentimentos depressivos e de saram a tomar, mas ainda precisando de orien-
tristeza diminuíram, em 30% não mudaram esses tação; enquanto a maioria dos pacientes – 50%
sentimentos, enquanto que 20% disseram nunca – disseram sempre ter tomado corretamente. Os
se sentir assim. dados destacam que nenhum dos pacientes teve
Sobre a categoria de Atividades Sociais, 50% a quantidade de remédios aumentados, enquanto
dos pacientes disseram sempre ter saído de casa 70% pacientes tiveram a medicação diminuída. A
para passear ou fazer outras coisas, 30% disse- maioria dos pacientes – 80% – tiveram menos ne-
ram que não passaram a sair mais de casa para cessidade de ir ao médico, enquanto apenas 20%

108
não diminuíram a ida ao médico. Observou-se Discussão
que para 60% dos pacientes, houve uma melho-
ra no quadro de sono, enquanto para 20% deles De acordo com as questões referentes à cate-
nada mudou. Metade dos pacientes passou a ter goria de Relacionamentos Sociais, pode-se notar
bons sentimentos em relação a si mesmo, en- que houve uma mudança significativa para me-
quanto 20% disseram não haver mudança nesse lhor nesses aspectos. Os dados mostram que os
quadro, e 30% sempre se sentiram bem consigo pacientes passaram a se sentir menos sozinhos.
mesmos. Tais achados podem estar relacionados ao au-
Em relação à categoria de Auto-Estima, obser- mento do número de amizades, a um maior apoio
vou-se que metade dos pacientes disse achar que prestado pela família ou vizinhança, à realização
as pessoas passaram a se importar mais com eles, de atividades fora de casa junto com outras pes-
sendo que 20% responderam que não acham que soas, pela própria presença constante dos acom-
passaram a ser mais percebidas pelas outras pes- panhantes terapêuticos (ats). Logo, esses fatores
soas. Observou-se que 50% dos pacientes res- podem também ter influenciado na diminuição de
ponderam que sempre sentiram vontade de se sentimentos de tristeza e depressão.
cuidar e se arrumar, porém 30% disseram que As atividades realizadas pelo PIC, como o fun-
houve mudança nestas questões e 20% não têm cionamento do grupo com os pacientes, podem
sentido vontade de cuidar de si. Metade dos pa- ter contribuído para a formação de novos amigos,
cientes passou a acreditar mais na sua capacida- pois é um dispositivo que proporciona a eles um
de de realizar suas atividades, enquanto apenas espaço de construção de novas amizades, que al-
20% relataram não ter havido mudança quanto guns conseguem manter fora do ambiente institu-
ao sentimento de capacidade para fazer bem as cional. Para muitos, depois da doença, os amigos
coisas. se afastam, às vezes, até os próprios parentes. A
No que tange à categoria de Projeto de Vida, doença também causa um grande peso na es-
ficou bem destacado que a maioria dos pacientes trutura familiar, tornando a convivência doméstica
– 60% – sempre tiveram um sonho a ser realizado, ruim e conflituosa. Os ats atuam muito no sentido
20% passaram a ter um e 20% não possuíam um de intermediar as relações entre os pacientes e
projeto de vida. Dentre os projetos de vida relata- seus familiares que, em alguns casos, não com-
dos pelos pacientes estão: ter um carro, comprar preendem as dificuldades psíquicas do doente,
uma casa melhor, estudar, casar, ter filhos, dar orientando e conscientizando estes sobre a impor-
continuidade à carreira profissional e ficar bom. tância de assumirem a responsabilidade de se cui-
dar. Quando se consegue o apoio dos familiares
ou do cuidador, estes passam a melhor valorizar o
sujeito. Em algumas situações, quando os familia-

109
res se dão conta da atenção prestada ao doente zar qualquer tipo de atividade, desprestigiando-os
pelos ats, também acabam por mudar o trato com socialmente e diminuindo sua auto-estima.
estes. O grupo de familiares do PIC proporciona Esta questão pode ter ligação com o sentimen-
a troca de experiências. Todos esses são fatores to de capacidade para realização de certas ati-
que podem ajudar na convivência familiar, o que vidades. Segundo os dados, 20% dos pacientes
é de extrema importância para o sentimento de relataram não se sentirem capazes. Alguns se de-
acolhimento do psicótico. A intervenção na rede sestimulam facilmente e não se sentem seguros
social do paciente também é realizada, principal- frente às dificuldades, deixando de acreditar em
mente quando o paciente não possui uma família. si mesmos e na sua capacidade de fazer suas ati-
Muitas vezes, faz-se necessário fazer parceiros na vidades costumeiras. Por isso, desistem de conti-
comunidade do indivíduo que possam colaborar nuar essas atividades, seja o trabalho, os estudos,
com os objetivos do programa. algum curso, etc, e acabam também por diminuir
Na categoria relacionada às Atividades Sociais sua rede de relações sociais, já que muitos pas-
dos pacientes, destacou-se também um aumento sam a se isolar, ficando a maior parte do tempo
no quadro de pessoas que voltaram ou passaram em casa. Também é importante comentar que al-
a realizar atividades fora de casa. Segundo as re- guns pacientes se acomodam quando passam a
postas obtidas na pesquisa, voltar aos estudos, fre- receber o benefício pelo INSS e não acham mais
qüentar academia, dar aula de dança, freqüentar necessidade de fazer alguma atividade, como as
a igreja e vender produtos por encomenda foram discutidas anteriormente.
as atividades mencionadas por eles. Esses dados A mudança no quadro de atividades realizadas
são um bom sinal de mudança, na medida em pelos pacientes pode ter sido influenciada pela
que, quando estão estudando, estão ampliando intervenção dos ats junto ao paciente e a sua fa-
seu conhecimento, suas oportunidades e sua rede mília. Os ats incentivam o paciente, ajudando-o a
de relações, assim como quando realizam algu- encontrar segurança e desmistificar seus anseios.
ma atividade remunerada, que proporciona uma E, quando necessário, faz-se uma intervenção fa-
melhora de suas condições econômicas e sociais. miliar quando, em alguns casos, os parentes não
Muitos, quando ficam doentes, deixam de fazer são a favor que o indivíduo retorne a esses tipos
suas atividades costumeiras, principalmente os es- de atividades.
tudos e o trabalho, tornando-se ociosos. Existem De acordo com a categoria referente ao Esta-
famílias que não incentivam e até não permitem do de Saúde, percebe-se um bom resultado nas
que o doente volte ao trabalho ou estude, pois freqüências de internações psiquiátricas. Nota-se
considera que essas atividades podem provocar a que apenas 20% dos pacientes não tinham sido
recaída deles. O próprio estigma da doença men- internados antes do programa, sendo que, dos
tal leva-os a acreditar que são incapazes de reali- que já se internaram, apenas 30% relataram te-

110
rem sido internados várias vezes. Porém neste últi- Considerações finais
mo, a maioria – 70% – não ficou internada, 20%
ficaram poucas vezes e 10% uma única vez. Es- A convivência com os não iguais é o que se
ses dados são muito importantes, uma vez que se tem buscado nesta luta em prol daquelas pessoas
trata de um dos principais objetivos do PIC. Este que sofrem de algum transtorno psíquico. Num
programa pode ter contribuído para essa redução momento social em que se prega e valoriza os
do número de internações psiquiátricas, devido a direitos humanos, a cidadania e a democracia, o
um acompanhamento constante dos estagiários programa tem procurado oferecer um tratamento
aos pacientes, que estavam atentos aos sinais e que permita a esta clientela viver em liberdade,
sintomas da doença, intervenção familiar através respeito, dignidade e reconhecimento de seus pa-
de conversas e orientações quanto à experiência res, pois é essa condição desse sujeito no mundo,
que o sujeito passa na internação e continência como alguém que pertence, se relaciona, pensa,
nos momentos de crises. decide, escolhe e participa, que se encontra mais
Os dados referentes ao controle e freqüência afetada, refletindo na diminuição da sua qualida-
no uso de medicações mostraram que a metade de de vida.
dos pacientes sempre tomou corretamente as me- O PIC, aos poucos, tem conseguido alcançar
dicações, 40% passaram a tomar sem precisar de seus objetivos, promovendo mudanças significati-
ajuda e 10% passaram a tomar, mas ainda neces- vas na vida do paciente, atuando e mediando as
sitam do auxílio de outra pessoa. A correta medi- relações sociais destes. É imprescindível conhecer
cação é bastante importante para a estabilidade e fazer parte do cotidiano desses indivíduos para
psíquica do paciente, reduzindo o número de cri- ser colocado no lugar de depositário de confian-
ses e a probabilidade de futuras internações. É ta- ça e, conseqüentemente, estabelecer um vínculo
refa também dos ats orientar os pacientes quanto capaz de permitir as intervenções nas diversas si-
à importância de tomar os remédios corretamen- tuações de cada um.
te e também tornar os familiares parceiros nesta A maior repercussão da doença mental se dá
função quando se fizer necessário. Outro dado no campo dos relacionamentos sociais, razão
importante relacionado à saúde do doente apre- pela qual o programa procura mediar as relações
sentou que para 70% dos pacientes a medicação interpessoais dos pacientes, reconhecendo a im-
foi diminuída. Os pacientes se queixam que algu- portância desse convívio para a estabilidade psi-
mas medicações estimulam o sono e os deixam cossocial do indivíduo.
indispostos para fazer as atividades do dia-a-dia, De acordo com os resultados da pesquisa reali-
e estimulam o apetite, engordando-os. zada, podemos constatar que um bom número de
pacientes conseguiu formar novos vínculos e for-
talecer outros, passaram a estar menos isolados e

111
a receber mais apoio e ajuda familiar, tornando a partir dos casos mais graves, pois são estes os
a relação mais sustentável e tranqüila; amplia- que mais se encontram à margem da sociedade
ram o número de amizades, passaram a realizar e necessitam de um cuidado especial. Alguns de-
atividades externas, como retornar aos estudos, mandam maior atenção, requerendo tempo para
trabalho, saídas para passeios e outros, ativida- um acompanhamento mais constante. Muitas re-
des que ocupam o tempo e dão sentido à vida. sidências visitadas são distantes, implicando num
Merece destaque também a redução do número investimento financeiro significativo.
de internações psiquiátricas durante o ano, pois Outro grande desafio a ser vencido é o que diz
estas desestruturam e interferem na vida social e respeito à forma de pensar das pessoas na família
cotidiana do sujeito. e na comunidade acerca da doença mental que,
Este modelo de tratamento tem uma repercus- na maioria dos casos, está baseada fortemente
são positiva, pois não exclui e não interrompe a na exclusão e no preconceito. Isso se reflete numa
vida do sujeito, dá continuidade a ela no seu pró- resistência e falta de apoio ao modelo de trata-
prio meio social. O acompanhamento terapêutico mento proposto, pois a concepção de excluir para
dispensa uma atenção especial ao indivíduo e o tratar está arraigada na mente das pessoas, além
faz sentir valorizado, pois há espaço para escuta de ser, muitas vezes, uma condição cômoda para
de suas subjetividades, desejos, partilha de novos a família, a comunidade e a instituição.
vínculos e experiências que o ajudam a compre- Pode-se concluir, então, que, apesar das difi-
ender e dar sentido ao seu mundo de significa- culdades encontradas, o Programa de Intensifica-
ções. Essa prática se torna importante por levar ção de Cuidados é um dispositivo que, ao seu
em consideração aquilo que é de significado para tempo, tem promovido a qualidade de vida dos
o indivíduo: sua família, suas atividades, seu co- pacientes. Para o programa, esta busca da quali-
tidiano, seus desejos, projetos, etc., eles passam dade de vida não se limita a eliminar os sintomas
a perceber que a doença mental não invalida a que o indivíduo produz para, assim, normalizá-lo
capacidade das pessoas e que muitos podem ter e adequá-lo dentro da sociedade, mas antes de
uma vida ativa, trabalhando, estudando e se re- tudo, reconhecê-lo como um ser humano capaz
lacionando. de conviver no seio social com suas diferenças e
A despeito das respostas positivas que o pro- ampliar suas possibilidades sociais que propor-
grama vem alcançando, sua realização tem re- cionam uma melhora na sua qualidade de vida.
presentado um grande desafio para os estudantes,
que, ao longo de seu caminho, têm enfrentado al-
guns obstáculos. Este trabalho exige comprometi-
mento, disponibilidade de tempo e recursos finan-
ceiros. A maioria dos pacientes foi selecionada

112
Referências

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Programa de Intensificação de Cuidados: Uma Experiência de Intervenção
Psicossocial
Allann da Cunha Carneiro*
Lygia Silva Pedreira de Freitas**

Resumo: Este artigo objetiva descrever o Pro- quadro clínico dos pacientes, com aumento de sua
grama de Intensificação de Cuidados, vinculado autonomia e redução das internações e das crises;
ao Hospital Especializado Mário Leal. Esse progra- busca por outros recursos terapêuticos que não a
ma coaduna-se com as novas diretrizes políticas internação, fortalecimento dos vínculos sociais e
de atenção à saúde mental e atende pacientes ampliação das redes sociais de apoio, além de
psicóticos, em sua maioria, jovens, em casos de um significativo amadurecimento pessoal e profis-
primeira internação ou de internações recorren- sional dos estagiários.
tes sobretudo por motivações sociais. A clientela
é proveniente da internação e ambulatório do Introdução
HEML, selecionada e indicada pelos profissio-
nais destes setores, com base nos critérios supra-
citados. Parte-se da perspectiva teórica e prática
de uma clínica psicossocial da psicose, que visa
O Programa de Intensificação de Cuidados a
Pacientes Psicóticos (PIC) integra o progra-
ma de estágio supervisionado de Psicologia e Te-
proporcionar aos pacientes inscritos uma ação rapia Ocupacional, a partir de uma parceria entre
intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade a Universidade Federal da Bahia e a Fundação
e das vinculações sociais, com vistas à melhoria para o Desenvolvimento das Ciências com a Se-
da continência social e da qualidade de vida dos cretaria de Saúde do Estado da Bahia. Uma equi-
mesmos. Para tanto, são realizados encontros de pe multidisciplinar, composta por estudantes de
grupo semanais, visitas domiciliares, reuniões com Psicologia (UFBA) e Terapia Ocupacional (FBDC),
cuidadores, etc. Os resultados dessa experiência atende pacientes psicóticos que já utilizavam ser-
têm apontado para uma melhora significativa no viços tradicionais em saúde mental do SUS, como
*Picólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC internações, emergências e serviços ambulatoriais
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC psiquiátricos.
Este programa insere-se na perspectiva de uma
114
clínica psicossocial da psicose e tem por objetivo que entrou em vigor em seis de abril de 2001, o
proporcionar aos pacientes inscritos uma ação sistema de atendimento a pessoas com transtor-
intensiva dirigida aos aspectos da sociabilidade no mental passa a ter como princípio norteador
e das vinculações sociais, com vistas à melhoria a substituição progressiva dos hospitais psiquiá-
da continência social e da qualidade de vida dos tricos por recursos extra-hospitalares, tais como
mesmos. Busca-se, sob esta perspectiva, inter- os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e NAPS
ferir na dinâmica da “carreira manicomial” dos (Núcleo de Atenção Psicossocial), Lares Abriga-
pacientes, diminuindo a recorrência das reinter- dos, Casas de Acolhimento e Hospitais Gerais.
nações; fortalecer as redes sociais dos mesmos, Nesse sentido, busca-se oferecer aos pacientes
ampliando os suportes extra-assistenciais de base psiquiátricos um tratamento mais amplo e de me-
familiar e comunitária; colaborar com os objeti- lhor qualidade, em que a internação só ocorra
vos assistenciais da unidade por via da promoção quando os recursos extra-hospitalares se mos-
de discussões e seminários teóricos, bem como trarem insuficientes. Para tanto, é primordial um
ampliar os recursos humanos disponíveis por via maior investimento na rede de apoio social, no
do trabalho dos estagiários e supervisores; e, por intuito de que esta se implique no tratamento, já
fim, contribuir para a formação profissional dos que toda pessoa portadora de transtorno mental
estagiários no campo da clínica psicossocial, ofe- deve “ser tratada com humanidade e respeito e
recendo referências teóricas e técnicas compatí- no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, vi-
veis com as novas diretrizes políticas de atenção sando alcançar sua recuperação pela inserção na
à saúde mental. família, no trabalho e na comunidade” (Ministério
No campo da reforma psiquiátrica, onde se da Saúde, 2004, p. 17).
percebe a atuação de diversos saberes, encontra- Essa reorientação do modelo de assistência em
se a formulação de programas baseados no mo- saúde mental inaugura, dessa forma, um novo
delo de reabilitação psicossocial, em que são ofe- olhar sobre as abordagens dos transtornos men-
recidos aos indivíduos incapacitados e debilitados tais, marcado pela crítica ao reducionismo bio-
a “oportunidade de atingir o seu nível potencial logizante, em que a internação dos pacientes e
de funcionamento independente na comunidade. a utilização indiscriminada dos psicofármacos se
(...) Inclui assistência no desenvolvimento das ap- constituem na única estratégia terapêutica eficaz.
tidões sociais, interesses e atividades de lazer que Assim, o progresso das neurociências e da psico-
dão um senso de participação e de valor pessoal” farmacologia apontam para a importância de se
(Organização Mundial de Saúde, 2001, p. 94). demarcar um limite ético no questionamento das
De acordo com a nova legislação brasileira práticas que incidem sobre o sofrimento do pa-
de saúde mental, fundamentada na Lei 10.216, ciente psiquiátrico (Assad et all, 2003).
de autoria do deputado Paulo Delgado (PT-MG),

115
Vínculo social e psicose tem-se o surgimento de uma personalidade am-
bígua, com traços, simultaneamente, de simbiose
A abordagem psicossocial, nesse contexto, e autismo.
mostra-se como peça chave no trato com a lou- Para uma melhor compreensão desses dois fe-
cura, em virtude de uma das principais questões nômenos, faz-se necessário um breve comentário
que se colocam diante do sujeito psicótico dizer acerca dos conceitos de depositante, depositado
respeito à formação de vínculos e conseqüente ex- e depositário, oriundos dos estudos de Pichon Ri-
clusão social. Esse sujeito, por ter uma acentuada vière (apud Bleger, 1977). O tripé por ele formu-
dificuldade de estar no mundo com o outro, tende lado é composto por um sujeito (depositante) que
a formar vínculos sociais muito frágeis. Acrescido projeta determinado conteúdo (material deposita-
a isso, há a idéia de que “lugar de louco é no do) sobre o outro ou si mesmo (depositário), uma
hospício”, amplamente difundida e, sobretudo, o vez que a introjeção do mesmo pode causar de-
próprio embaraço do outro em lidar com ele, já sestabilização psíquica (BLEGER, 1977).
que o louco torna flagrante a loucura e a possibi- De acordo com Bleger (1977) por conside-
lidade de desorganização presente em cada um. rar o outro ou como um enigma ou como uma
Esses fatores favorecem a exclusão do psicótico extensão de si mesmo, o psicótico tem visíveis di-
através de sua internação em hospitais psiquiá- ficuldades vinculares, orientando-se ora por uma
tricos. Esse afastamento do convívio social e as postura autista ora por uma simbiótica. Ele pos-
precárias condições de tratamento, por sua vez, tula que a primeira caracteriza-se por um isola-
cronificam o quadro patológico, tornando o re- mento do ambiente externo e predomínio relativo
torno do paciente à sociedade ainda mais árduo. ou absoluto da vida interior, que reflete uma con-
A vulnerabilidade relacional do psicótico está duta defensiva diante de situações persecutórias.
alicerçada na forma de estruturação psíquica des- O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de
se sujeito. Bleger (1977) considera que o homem, caráter narcísico, pelo fato de predominar uma
no início de seu desenvolvimento enquanto sujei- relação com objetos internos.
to, passa por um período de indiferenciação pri- A conduta simbiótica, em contrapartida, é mar-
mitiva, em que não consegue estabelecer um limi- cada por um vínculo de dependência intensa com
te entre si e o mundo externo. Ainda que não haja um objeto externo, ocorrendo uma projeção de
essa distinção, cabe salientar que se trata não de parte do ego do indivíduo nesse objeto. Há, na
um estado de indiferenciação, mas de uma orga- realidade, uma identificação projetiva entre o psi-
nização particular que inclui, sempre, o sujeito e cótico e o objeto, que tem por finalidade manter
o meio que o circunda. Quando a personalida- um certo nível de organização e satisfazer as ne-
de adulta organiza-se a partir da persistência de cessidades do âmbito mais primitivo da personali-
núcleos dessa etapa inicial (núcleos aglutinados), dade do sujeito (Bleger, 1977).

116
Tanto a simbiose quanto o autismo são exem- guma função psíquica (Barretto, 2000, p. 17) por
plos de vínculos narcísicos e, portanto, constituem meio de uma intervenção que não se restrinja à
relações com objetos internos, que objetivam prática puramente clínica, alcançando um caráter
assegurar a satisfação do princípio do prazer e também social.
proteger tais objetos da intromissão da realidade O acompanhamento terapêutico constitui-se,
externa. Ambas coexistem no modo de funciona- portanto, numa peça fundamental à desinstitucio-
mento do sujeito psicótico, podendo haver três nalização dos pacientes, ao se utilizar dos espa-
formas de ascendência de uma sobre a outra: ços públicos como alargamento do campo possí-
ou há predomínio absoluto ou relativo, havendo vel de tratamento e, desse modo, dar visibilidade
ainda a possibilidade de ambas se alternarem no à doença mental, além de possibilitar a reorgani-
modo de funcionamento psíquico do sujeito (Ble- zação subjetiva e social dos pacientes através de
ger, 1977, p. 20). dispositivos e estratégias terapêuticas descentra-
Entendendo a psicose como um fenômeno psí- das de seu antigo aspecto assistencial (Pelliccioli,
quico de intensas ressonâncias sociais, em que a Guareschi & Bernardes, s.d.).
questão da vinculação dos sujeitos se coloca de Barretto (2000) descreve onze funções ineren-
forma crítica, considera-se a necessidade de inten- tes ao trabalho do acompanhante terapêutico:
sificação de cuidados direcionados a reforçar os holding, continência, apresentação de objeto,
laços sociais destes indivíduos em seus contextos handling, desilusão, interdição, interlocução dos
relacionais. A reconstrução da cidadania dessas desejos e angústias, discriminação de campos se-
pessoas visa assegurar-lhes uma participação ati- mânticos, função especular, função de aliviar as
va, digna e verdadeira, consistindo na tentativa de ansiedades persecutórias e função de servir de
criação de um espaço em que possam expressar modelo de identificação.
a dimensão política do seu discurso (Garfunkel, A função de holding refere-se ao apoio e am-
sd, p. 21). paro, tanto físicos quanto psíquicos, oferecidos
Para tanto, o trabalho do PIC é realizado com pelo acompanhante terapêutico (AT) como forma
base nos princípios do acompanhamento tera- de propiciar ao acompanhado a experiência de
pêutico, que consiste num novo modo de manejo constância e continuidade através de uma atitu-
clínico pautado nas reflexões de Winnicott acerca de empática. A continência, por sua vez, embora
das intervenções no campo da Psicanálise. Nessa guarde semelhanças com a função anteriormente
abordagem, a atuação do terapeuta se dá não só descrita, corresponde à capacidade de o AT aju-
através da palavra, mas também pela utilização dar a manter as experiências do sujeito dentro de
de objetos da cultura. O manejo clínico objetiva limites suportáveis, por lhe apresentar novas pos-
possibilitar ao sujeito a simbolização de alguma sibilidades de simbolização. Do contrário, corre-
questão existencial e/ou o desenvolvimento de al- se o risco de transbordamento de afetos, emoções

117
e impulsos, como se, por exemplo, o sujeito fosse seus conteúdos e questões subjetivas. Por meio da
possuído por sua ansiedade e não apenas a pos- discriminação de campos semânticos, o AT pode
suísse (Barretto, 2000). auxiliar o sujeito a ampliar sua consciência a res-
Outra função, a de apresentação de objeto, peito de si e do mundo, ao lhe apresentar novas
diz respeito ao oferecimento, por parte do AT, de categorias de significação. A função especular
possibilidades de que o acompanhado entre em efetiva-se no momento em que o acompanhado
contato com um dado objeto, permita-se utilizá-lo identifica no AT, ou em algum objeto da cultura,
e possa, por fim, separar-se dele sem que isso se algum aspecto de si mesmo. Já o apaziguamento
constitua numa experiência disruptiva. As experi- das ansiedades persecutórias consiste no aumen-
ências do sujeito passam, portanto, a ser vivencia- to, por parte do acompanhado, da percepção de
das de modo completo, isto é, passam a ter início, si e do mundo e conseqüente redução dos fenô-
meio e fim. Já a função de manipulação corporal menos alucinatórios. Por fim, a função do AT como
(handling) trata da leitura do corpo do acompa- modelo de identificação opera na ampliação dos
nhado a partir do próprio corpo, possibilitando repertórios de vinculação e dos mecanismos de
que ele vivencie suas necessidades corporais de defesa fornecendo ao acompanhado diferentes
modo a integrar psique e soma (Barretto, 2000). modos de atuar e reagir diante dos percalços que
A desilusão ou capacidade de discriminação permeiam seu cotidiano (Barretto, 2000).
relaciona-se à possibilidade de utilização de uma
situação potencialmente frustrante e desagrega- Metodologia
dora, como forma de enriquecer o campo de ex-
periências do acompanhado. Assim ele torna-se O PIC conta com a participação, preferencial-
capaz de suportar suas angústias e frustrações, ao mente, de pacientes psicóticos, em sua maioria,
tempo em que pode alcançar uma melhor noção jovens, em casos de primeira internação ou com
de realidade subjetiva e realidade compartilhada. histórico de reinternações freqüentes, sobretudo
Como auxiliar do processo anterior, existe a inter- por motivações sociais. A clientela é de baixa ren-
dição, que ocorre quando o AT exerce a função da e proveniente da internação e ambulatório do
paterna, barrando uma situação potencialmente HEML, selecionada e indicada pelos profissionais
satisfatória. Para que essa ação tenha o efeito destes setores, com base nos critérios acima de-
desejado, é necessário que o sujeito já tenha vi- finidos.
venciado uma experiência de satisfação anterior
(Barretto, 2000). O Programa de Intensificação de Cuidados efe-
A função de interlocução de desejos e angús- tiva-se por meio de algumas atividades tais como:
tias trata do processo por meio do qual, através visitas domiciliares, encontros grupais, reuniões
de conversas, o acompanhado pode elaborar com cuidadores, acompanhamento a consultas,

118
atividades externas, assessoria em questões de ci- criando, assim, um ambiente de acolhimento e
dadania e atendimentos individuais. cumplicidade que favorece sobremaneira o con-
As visitas domiciliares consistem em contatos vívio deles com os que estão sob seus cuidados.
sistemáticos com a dinâmica familiar e o entor- Ao mesmo tempo, viabiliza-se uma relativa des-
no social mais próximo dos pacientes. Cada um mistificação do transtorno mental e uma mudança
deles é visitado, regularmente, por uma dupla de na forma de lidar com o mesmo, já que os cui-
estagiários. Essa aproximação possibilita interven- dadores podem vislumbrar novas possibilidades
ções mais fundamentadas nas interações desses de interação e deixar de lado vícios adquiridos
pacientes junto a seus familiares, amigos e cuida- ao longo dos anos, muitas vezes nocivos ao de-
dores. Assim, torna-se possível interferir nos pa- senvolvimento da sociabilidade e autonomia do
drões de relacionamento objetais que podem estar paciente.
trazendo dificuldades à sociabilidade. Além disso, Nas atividades externas, são realizados, pe-
pode-se também constatar os recursos sociais e riodicamente, passeios terapêuticos em diversos
institucionais aos quais os cuidadores recorrem locais da cidade, iniciativas legitimadoras do
em momentos de crise e, dessa forma, intervir de convívio social e do exercício dos direitos e de-
modo mais eficaz no manejo destas situações. veres, que viabilizam o aumento da autonomia e
Outra atividade desenvolvida no programa diz o sentimento de pertença grupal dos pacientes.
respeito aos encontros grupais, que constituem Estas vivências objetivam ainda dar visibilidade à
espaços de troca de experiências semanais cujo psicose, possibilitando uma diminuição do estig-
objetivo é ampliar o espaço de convivência entre ma social que a envolve ao levá-la a espaços pú-
os participantes do programa, além de estimular blicos como shoppings, praias, museus, cinema,
e fortalecer sua sociabilidade. Para tanto, são rea- zoológico etc.
lizadas diversas atividades, que incluem vivências É realizado, igualmente, acompanhamento a
corporais através de dança e dramatizações, tra- consultas psiquiátricas, que se apresenta como
zendo à tona aspectos significativos do cotidiano um importante espaço de interlocução entre sa-
dos participantes; e discussões sobre temas varia- beres que atuam na saúde mental, possibilitando
dos, como autonomia, projetos de vida, relações uma maior compreensão do fenômeno da psico-
familiares, uso de medicações, dentre outros. se, por promover uma interação entre seus aspec-
Ainda são efetuadas reuniões mensais com cui- tos fisioquímico e psicossocial.
dadores, em que a troca de experiências abre es-
paço para o compartilhamento de dúvidas, preo- Devido às dificuldades enfrentadas pelos pa-
cupações, crenças e sugestões acerca do manejo cientes no manejo de questões relativas à cida-
da psicose. É muito freqüente familiares relatarem dania, também é prestado um auxílio nessa área.
vivências que são comuns a outros participantes, Os participantes do programa são acompanha-

119
dos pelos estagiários em tarefas como tirar docu- buscando outros recursos terapêuticos que não a
mentos, dar entrada a benefício e aposentadoria, internação. Passaram a procurar o auxílio de au-
além de serem realizadas denúncias ao Ministério toridades religiosas de referência, como pastores
Público em casos de abandono. e padres; vizinhos e parentes; dos próprios acom-
Por fim, ocorrem, excepcionalmente, atendi- panhantes terapêuticos; e da emergência psiquiá-
mentos individuais nos casos em que são perce- trica. Com isso, a recuperação dos pacientes tem
bidas demandas por este tipo de serviço, seja por se tornado mais rápida, e diminui não apenas o
meio de atendimentos psicoterápicos seja pela tempo em que ficam desestabilizados, como a in-
participação em oficinas terapêuticas ocupacio- tensidade das crises.
nais. Pode-se perceber também um gradual e rele-
Para dar suporte teórico às atividades desen- vante incremento na autonomia e inserção social
volvidas, acontece, semanalmente, durante três de muitos pacientes. Alguns, por exemplo, que
horas, supervisão coletiva com um Professor do não saíam de casa ou só saíam acompanha-
Departamento de Psicologia (UFBA) e uma Pro- dos, passaram a freqüentar lugares públicos com
fessora de Terapia Ocupacional (FBDC). Nesta maior regularidade e grau de ansiedade reduzi-
atividade, são apresentados, pelos estagiários, do. Como exemplo de ampliação da autonomia,
seminários teóricos acerca do tema da psicose, podemos citar um caso em que o paciente foi
acompanhamento terapêutico, encontros grupais, sozinho à formatura dos alunos do curso de psi-
etc, sendo realizadas discussões sobre o texto ex- cologia que haviam lhe acompanhado durante a
posto. Além disso, os casos atendidos pelo pro- atividade de estágio. Do mesmo modo, outra pa-
grama são apresentados e debatidos. ciente, cuja relação com a família e o ex-marido
era conflituosa em virtude da falta de compreen-
Resultados e Discussão são, por parte deles, dos problemas associados
ao seu transtorno; deu início a um processo de
No decorrer destes mais de dois anos de Pro- reconciliação, e hoje os visita, com freqüência, no
grama de Intensificação de Cuidados, pode-se interior da Bahia, onde residem.
observar uma relevante melhora no quadro clí- Também tem se tornado possível notar as re-
nico da maioria dos pacientes acompanhados, percussões positivas da atuação dos estagiários
merecendo destaque a redução das reinternações junto aos pacientes em questões relativas à cida-
e o aumento de sua autonomia, assim como o dania. Um determinado paciente, por exemplo,
fortalecimento de laços sociais. Mesmo nos casos recebia uma aposentadoria da Marinha, mas vi-
em que houve crises, os familiares, com a aju- via em situação precária, em razão de seu irmão,
da dos estagiários, puderam lidar com a situação responsável judicialmente pelo recebimento da
de uma forma mais compreensiva e acolhedora, quantia em questão, não arcar com as despesas

120
relativas às suas necessidades básicas. Os esta-
giários, então, entraram com uma ação no Mi- Conclusão
nistério Público, denunciando o abandono sofrido
pelo paciente e requerendo a substituição de seu Durante o desenvolvimento do Programa de
irmão por outro tutor legal. Embora não tenha Intensificação de Cuidados, a proximidade com
havido essa modificação de tutela, o irmão do a psicose, a precariedade do SUS na Bahia, o
paciente foi obrigado a repassar-lhe os recursos persistente predomínio da lógica manicomial e
necessários a sua sobrevivência digna. realidades sociais muito distintas possibilitou-nos
Ainda é digna de nota a experiência dos gru- um aprendizado único, não só em termos profis-
pos semanais, realizados no Hospital Especiali- sionais como pessoais.
zado Mário Leal, que evidenciou a importância O contato com pacientes, em sua maioria psi-
desses encontros na criação e fortalecimento de cóticos, gera um conhecimento desse fenômeno
laços sociais entre os pacientes, na promoção de psicossocial que ultrapassa em muito o obtido nos
discussões sobre temas, em geral, relacionados bancos da universidade. Afinal, por mais funda-
ao transtorno mental e suas repercussões na vida mentação teórica que se adquira sobre esse sa-
dos pacientes e familiares; e, por fim, na produ- ber, dificilmente ele será contemplado de modo
ção de continência, que constitui uma experiência tão vasto quanto o é com a convivência cotidiana
psíquica de contorno, limite, possibilitada pela junto à loucura.
alteridade, ajudando o sujeito a se sentir mais or- Em relação às novas diretrizes políticas de as-
ganizado. sistência aos portadores de transtorno mental,
Ademais, vale salientar que a atuação no Pro- vale dizer que, na Bahia, por mais boa vontade
grama de Intensificação de Cuidados permite aos que, eventualmente, se tenha, o modelo de aten-
estudantes um significativo amadurecimento pes- ção em saúde mental ainda deixa muito a dese-
soal e profissional, uma vez que é possível entrar jar, por não acompanhar, devidamente, as novas
em contato com diferentes realidades sociais e, regras. Os serviços substitutivos, na capital, espe-
sobretudo, subjetivas. Dessa forma, pode-se obter cificamente, estão longe de abarcar a população
um entendimento mais abrangente do ser huma- que necessita de atendimentos em saúde mental.
no e de suas idiossincrasias, o que enriquece mui- Não raro, os pacientes ficam sem os medicamen-
to a nossa formação, conferindo-lhe consistência tos, em virtude de estarem em falta na farmácia
e uma gama de conhecimentos mais coesa. Além do hospital; sem falar nas consultas psiquiátricas,
disso, é possível adquirir uma visão consonante cujo intervalo entre uma e outra é muito espaçado
com as novas diretrizes políticas de atuação em (em geral de quatro a cinco meses), todos esses
saúde mental e devidamente voltada para a influ- fatores contribuindo para dificultar a interação
ência dos aspectos sociais na vida dos sujeitos. entre o tratamento médico e o psicossocial e, em

121
conseqüência, o sucesso terapêutico. ASSAD et all. A Clínica da Psicose: Uma Articulação
Assim, fica clara a persistência da lógica mani- Necessária entre a Extensão Universitária, a Psicanálise e
a Reforma Psiquiátrica. Disponível em: www.prac.ufpb.br/
comial, pelo fato de, dadas as dificuldades de se anais/anais/saude/psicose.pdf. Acesso em: 10 de setembro
conseguir medicação e atendimento psiquiátrico, de 2005.
as crises psicóticas terem maior probabilidade de
acontecer, o que leva a família e os próprios hos- BARRETTO, K. Ética e Técnica no Acompanhamento Te-
pitais especializados a recorrerem em, primeira rapêutico: andanças com Dom Quixote e Sancho Pança.
São Paulo: Unimarco Editora, 1998. 210p.
instância, ao internamento como forma de conter
e tratar os pacientes em surto. BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Tradução de Maria
Ademais, cabe ressaltar a dificuldade de en- Luíza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977, 402
frentamento de situações em que a pobreza é p.
alarmante, impondo uma necessária flexibilização
BRASÍLIA. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à
e manejo por parte dos estagiários. Cabe citar, Saúde. Legislação em Saúde Mental. Brasília: Ministério da
por exemplo, situações nas quais alguns pacien- Saúde, 2004. 340p.
tes nos pediam dinheiro emprestado, porque não
tinham o que comer. Em outras, as circunstân- GARFUNKEL, J. L. Inclusão/Exclusão: Limites e Possibi-
cias eram tão graves que exigiam providências lidades desse Conceito. Instituto de Psicologia PUC, São
Paulo, p. 9 – 26, s/d.
urgentes, como quando uma paciente estava com
a casa com risco de desabamento, em razão das GUARESCHI, N. M. F. ; BERNARDES, Anita Guazzelli ;
fortes chuvas que assolavam a cidade. PELLICCIOLI, Eduardo C . O trabalhador da saúde mental
Esses casos denotam a importância de se leva- na rede pública: o acompanhamanto terapêutico na rede
rem em conta os aspectos sociais que constituem, pública. In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL: EDUCAÇÃO
INTERCULTURAL, GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS,
também, a subjetividade dos indivíduos quando 2003, Florianopólis. Identidade, Diferença e Mediação.
o que se pretende é o alcance de um tratamento Florianopólis : Rizoma, 2003.
diferenciado e de qualidade.
O Programa de Intensificação de Cuidados
funda, na Bahia, uma possibilidade de constru-
ção de novas formas de intervenção, pensamento
e reflexão acerca da assistência em saúde mental,
evidenciando a relevância de uma abordagem
psicossocial para a consecução deste objetivo.

Referências

122
Estratégias
A Assistência Domiciliar no Âmbito
do Cuidado à Saúde mental
Júlia Mignac dos Santos*
Wellington Carlos Moreira Júnior**

Resumo: A assistência domiciliar pode ser pen- nesse âmbito de práticas extra-institucionais como
sada como uma possível estratégia terapêutica co-autora da continuidade da assistência. As mú-
para os sujeitos afetados por desordens mentais. tuas relações entre a assistência domiciliar e as re-
Ela pode ser compreendida enquanto atendimen- des sociais são ressaltadas, porque se acredita ser
to, visita e internação domiciliar. Este artigo atém- imprescindível o apoio destas últimas como possi-
se às duas primeiras, que embasam as atividades bilitadoras de novas alternativas para os sujeitos.
do Programa de Intensificação de Cuidados a Psi- E, evidenciando-se um pouco da estranheza que
cóticos (PIC), vinculado ao Hospital Especializado a loucura ratifica, buscou-se ilustrar o texto com
Mário Leal, na cidade de Salvador/BA e que ob- expressivas citações de Clarice Lispector.
jetiva a clínica ampliada como proposta de cui-
dados para a saúde mental, entendendo que os Introdução
portadores de transtorno mental caracterizam-se,
particularmente, pela fragilidade nas formas de “... para os gregos não se esgotava aí seu sen-
vinculação. Deste modo, delineiam-se os estudos tido; na sua crença de que seu destino era coman-
de Lacan (1985) no que se refere à postura de se- dado pelos deuses, a loucura tinha um sentido de
cretariar o alienado e as teorizações propostas por místico, de revelação, sem nenhuma conotação
Barretto (1998) acerca do surgimento do acom- pejorativa. Os gregos não descartaram o sagra-
panhante terapêutico (AT) e da importância da do, presente em todas as manifestações huma-
função de holding neste processo. A família surge nas” (FOUCAULT, 1994).

A saúde mental, assim como tantos outros fe-


*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
**Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiário do PIC
nômenos sociais, pode ser apresentada como

125
um fenômeno composto, em seus domínios, por de um ‘sujeito da Razão’. A loucura, deste modo,
representações históricas e socialmente constru- se torna seu contraponto. O seu representante
ídas. O excerto supracitado condiz a uma pas- major – o louco – passa, desde então, a ser con-
sagem da obra de Foucault – Doença Mental e cebido como sujeito da desrazão.
Psicologia. Nesta, o autor faz ressaltar como as Por conseguinte, surge a criação de espaços
formas de exclusão e estigmatização desse con- para confinamento daqueles que conformam a
ceito se delineiam até a constituição do cerce- falha nas concepções quiméricas de ser huma-
amento social a que, por longos anos, esteve e no. Nesse modelo de terapêutica dispensado
ainda encontra-se refreada a loucura. ao cuidado da loucura, sobejam sentidos, ditos
O texto de Foucault (1994) aponta que é com científicos, de ordem marcadamente nosológica,
o advento da era clássica que a loucura vai esvair- que enquadram e representam a figura do louco
se das significações míticas que a ela estavam as- para a humanidade. De tal modo, assenta-se a
sociadas e passa a ser apreendida enquanto des- denominação de alienado, enquanto indiferente
vio. Não existia uma preocupação médica com ao universo de concepções compartilhadas pelos
o louco e muito menos com o seu isolamento. demais ‘indivíduos sociais’.
A exclusão, àquele momento, incidia sobre os “A alienação é entendida como um distúrbio
leprosos, que eram ao mesmo tempo temidos e das paixões humanas, que incapacita o sujeito de
sacralizados. A sua doença era símbolo da cólera partilhar do pacto social” (AMARANTE, 2001). Os
e da bondade de Deus, uma vez que simbolizava sentidos conferidos ao alienado expressam um es-
para o leproso o caminho à purificação e a sal- tar fora de si, fora da realidade, seria aquele in-
vação. divíduo que tem alterada a sua possibilidade de
Uma análise da forma da produção de saberes juízo. Como efeito da aplicação deste conceito,
e do exercício do poder se evidencia necessária delimita-se um modo particular de relação social
na compreensão dos fluxos conceituais que inci- com o sujeito representante da loucura. Destarte,
dem sobre esses sujeitos e que são fundantes do sendo o alienado incapaz do juízo, incapaz da
pensamento moderno. A história da loucura nos verdade, determina-se, por extensão, simbolizar
séculos XVIII e XIX é quase sinônimo da história perigo, para si e para os demais. Neste ponto,
do seu enlace pelos conceitos de alienação e, por funda-se uma lógica que circunda as justificativas
conseguinte, de doença mental. Esse desdobra- à implementação dos espaços de isolamento ins-
mento de conceitos encerra seu significado vincu- titucionais – o manicômio ou hospital psiquiátrico
lado à criação de um novo modelo de homem ou encontra deste modo, sua legitimidade.
de um novo sujeito na modernidade (AMARANTE, A proposta deste estudo é conferir sentidos à
2001). A emergência do valor aferido à razão à desinstitucionalização das práticas de cuidado
época do renascimento consentiu com surgimento dispensadas à saúde mental entendendo que uma

126
ressignificação da loucura mostra-se conexa nesta (pp. 235). Por conseguinte, ao desenvolver essa
caminhada. Para tanto, será desenvolvida a pro- noção de secretariar, ele ressalta, com metáforas,
posta da assistência domiciliar como estratégia formas de compreensão outras que escapariam a
de cuidado aos sujeitos que sofrem de desordens uma apreciação de investigação superficial. As-
psíquicas. sim, ele expõe a relevância de oferecer ao delírio
do psicótico uma escuta que permita significá-lo
A Clínica Ampliada como Terapêutica na sua linguagem. “Por que então, condenar de
à Saúde Mental antemão à caducidade o que se externa de um
sujeito que se presume estar na ordem do insen-
A Psicose pode ser pensada como um fenôme- sato, mas cujo testemunho é mais singular, e mes-
no psíquico de intensas ressonâncias sociais que mo inteiramente original?” (pp. 237).
fragilizam as relações interpessoais dos sujeitos Essa ‘condenação à caducidade’ de que nos
(NASCIMENTO, 2005). Desta maneira, atenta-se fala Lacan poderia ser elucidada na magnitude
à importância de novos modelos que proporcio- de estranheza que o fenômeno psicótico parece
nem à saúde mental um cuidado e atenção con- revelar. Esse real que fascina a uns tantos e expõe
tinuados. a outros encontra um caminho nas alíneas dis-
Lacan (1985) aponta as nuances imperativas a corridas por Clarice Lispector. No seu primoroso
serem alcançadas no momento de proporcionar texto ‘a paixão segundo GH’ ela torna evidente a
cuidado a um sujeito que apresenta uma forma sensação de estranhamento provocada diante da
de funcionamento diversa daquela compartilha- percepção do inusitado: “... mas só enquanto eu
da pelos neuróticos – que representam a grande não assustar ninguém por ter saído dos regula-
parcela dos cuidadores em saúde mental. “Mas, mentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que
contrariamente ao sujeito normal para quem a re- guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu
alidade lhe chega de bandeja, ele tem uma cer- der o grito de alarme de estar viva, em mudez e
teza, que é a de que aquilo de que se trata – da dureza me arrastarão, pois arrastam os que saem
alucinação à interpretação – lhe concerne. Não é para fora do mundo possível, o ser excepcional é
de realidade que se trata com ele, mas de certeza. arrastado, o ser gritante” (pp. 62-63). O ‘ser gri-
Mesmo quando ele se exprime no sentido de dizer tante’ caracteriza as desconexões representativas
que o que sente não é da ordem da realidade, isso da psicose. Secretariar esse indivíduo torna-se
não atinge a sua certeza, que lhe concerne. Essa uma possível maneira de experienciar estratégias
certeza é radical” (LACAN, 1985). Lacan ainda de cuidado que acresçam novas significâncias à
define o cuidador do sujeito psicótico como ‘se- loucura.
cretário do alienado’. “Vamos aparentemente nos Um novo modelo de pensar a saúde men-
contentar em passar por secretários do alienado” tal surge a partir das contribuições advindas do

127
movimento psiquiátrico inglês, da psiquiatria de- lo no conceito de secretariar esboçado por Lacan
mocrática italiana e da psicoterapia institucional no seu seminário do livro III – as psicoses. “A essa
francesa. Em torno dessa nova proposta, surgem função... Winnicott denominou holding” (BARRET-
algumas denominações conferidas àqueles que TO, 1998). Este autor define a função de holding
implementavam terapêuticas com os loucos. Ami- (a qual ele também chama de sustentação) como
go qualificado, atendente terapêutico, auxiliar psi- os múltiplos elementos que, encontrados no am-
quiátrico. Com os desdobramentos dessa ativida- biente, fornecerão a uma “pessoa a experiência
de de cuidar, surge o Acompanhante terapêutico, de uma continuidade, de uma constância tanto
à medida que o trabalho extrapolava as paredes física quanto psíquica” (BARRETTO, 1998).
das instituições psiquiátricas (BARRETTO, 1998). Essa experiência de holding seria delineada por
Dentre a totalidade de intervenções terapêuti- quaisquer objetos concretos que fornecessem aos
cas destinadas à saúde mental, o Acompanhante sujeitos possibilidades terapêuticas ou, de igual
Terapêutico (AT) despende um cuidado de amplo forma, pelo desejo de um indivíduo em acolher à
alcance de maneira que a subjetividade do sujeito demanda de um outro no percurso de sua traje-
possa ser acompanhada em suas constantes me- tória. Nos seus desenvolvimentos concernentes ao
tamorfoses. A figura do AT poderia ser pensada conceito de holding, Barretto fala da importância
como a de alguém que busca estar ao lado do da mãe cuidadora que dispensa atenção às ne-
seu acompanhante sem lhe imprimir formas de cessidades do bebê e lhe provê do que necessita.
conduta, mas constantemente atento aos possí- Winnicott a chama de mãe suficientemente boa,
veis acontecimentos expressos. Deste modo, o AT aquela que fornece cuidados e limites (BARRET-
surge como o fiel escudeiro que observa atenta- TO, 1998).
mente os passos do seu senhor. Barretto (1998) Nesse contexto de novas propostas que aten-
ressalta o valor da experiência do acompanha- tem à saúde mental, é que se implementou o Pro-
mento porque esta se processa não apenas pela grama de Intensificação de Cuidados para psicó-
existência de um corpo físico. Sua primazia resi- ticos (PIC) no Hospital Especializado Mário Leal,
de na crença de que esse corpo passa a ser “um fundando um novo molde de estágio interdisci-
corpo habitado, um corpo atento, um corpo que plinar que compreende a primazia das relações
carrega a história do próprio vínculo. Em outras vinculares no manejo e cuidado à psicose.
palavras, a experiência é integradora porque o
sujeito está sendo acompanhado por um corpo A reforma psiquiátrica e o Movimento Nacio-
simbólico (simbolizado e simbolizante), e não so- nal da Luta Antimanicomial defendem a negação
mente matéria física” (BARRETTO, 1998). do manicômio como forma de tratamento para a
A função de Holding desenvolvida por Winni- saúde mental. Deste modo, propõem novas al-
cott e retomada por Barretto encontra um parale- ternativas terapêuticas ao indivíduo portador de

128
transtornos psíquicos. Embasado nessa premissa, A Assistência Domiciliar
o PIC tem como objeto norteador de sua prática
o cuidado intensivo ao indivíduo em crise, de for- A assistência domiciliar é definida como um
ma que a internação seja evitada. Assim, como conjunto de procedimentos hospitalares possíveis
apontou Nascimento (2005) em seu estudo sobre de serem realizados na casa do paciente. Abran-
a qualidade de vida dos pacientes participantes gem ações de saúde desenvolvidas por equipe
desse programa, o mesmo reduziu em aproxima- interprofissional, baseadas em diagnóstico da re-
damente 70% as recorrências a internações psi- alidade em que o paciente está inserido, visando
quiátricas durante o seu decurso. à promoção, à manutenção e à reabilitação da
As atividades do programa compõem a im- saúde (FABRICIO & cols., 2004).
plementação de duplas de estagiários para o O histórico da prática de assistência domiciliar
acompanhamento de cada paciente. O trabalho localiza seus primórdios nos EUA, particularmente
acontece em dois momentos: encontros grupais no hospital de Boston com ‘as enfermeiras visita-
no supracitado hospital ou em recintos públicos doras’. Ainda ressaltam-se os possíveis desenvol-
da cidade; e as visitas domiciliares. Estas permi- vimentos dessa atividade na Europa, em virtude
tem aos acompanhantes uma compreensão do do incremento da população idosa (FABRICIO &
lócus que referenda cada sujeito e objetivam a cols., 2004). No Brasil, acredita-se que esta ati-
reinserção dos mesmos em suas originárias redes vidade tenha surgido com a implementação do
sociais. Barretto (1998) afirma que a função de Serviço de Enfermeiras Visitadoras no Rio de Ja-
holding poderia ser pensada como um ‘suporte’ neiro, na primeira metade do século passado, e
ao acompanhado. Assim, os encontros em locais com a criação do serviço de Assistência Médica
diversos daqueles já conhecidos pelos participan- Domiciliar e de Urgência (SAMDU).
tes possibilitariam a descoberta de novos espa- A promoção dessa nova prática surge priori-
ços. tariamente para dispensar cuidados a pacientes
Destacando-se a fragilidade das formas de com doenças crônicas que pudessem ser acom-
vinculação empreendidas pelos psicóticos em panhados no domicílio, pacientes convalescentes
suas redes sociais e familiares, faz-se mister a que não necessitassem de cuidados diários de
concepção de modelos que imponham um olhar médicos e enfermeiros, e ou portadores de en-
diferenciado a este sujeito, abarcando as inume- fermidades que exigiam repouso. Observa-se que
ráveis idiossincrasias a que este personagem en- a inclusão da doença mental nessa proposta de
contra-se arraigado. A assistência domiciliar, em cuidado parece também ter surgido em meados
concordância com o acompanhamento terapêu- do século passado com a criação dos atendentes
tico, revela-se uma promissora estratégia no per- psiquiátricos na cidade de Porto Alegre e a figura
curso desta prática. do auxiliar psiquiátrico na clínica Vila Pinheiros no

129
Rio de Janeiro (BARRETTO, 1998). ponsáveis pelo cuidado no domicílio, e a periodi-
A assistência domiciliar pode ser compreendida cidade do atendimento acontece de acordo com
enquanto três esferas de prestação de cuidados: a complexidade do cuidado requerido.
visita domiciliar, atendimento domiciliar e interna- A internação domiciliar também constituiria
ção domiciliar. Bellido (1998 citado por Rehem e um tipo de assistência especializada, exercida por
Trad, 2004) refere que esta diversa nomenclatu- profissionais da equipe de saúde na residência do
ra deriva das dificuldades históricas de expressar cliente, e diferencia-se das demais pela disponibi-
claramente as características dessa modalidade lidade de maiores recursos técnicos e humanos.
assistencial, diferenciando-a das outras formas de Como ela objetiva a criação de um ‘mini-hospital’
assistência. Dentre as denominações constituintes na residência do sujeito, ratifica-se a necessidade
dessa prática, enfoca-se, particularmente, a visi- da oferta de medicamentos e atenção de longa
ta e o atendimento domiciliar, pois constituem os permanência, o que caracterizaria um ambiente
tópicos que embasam a atividade de cuidados in- hospitalar.
tensivos à saúde mental ora em foco. Como já referido outrora, o programa de cui-
A visita domiciliar pode ser entendida como dados intensivos para pacientes psicóticos (PIC)
atendimento realizado por profissionais de saúde engloba as primeiras duas dimensões da assistên-
ou por uma equipe, que se desloca da institui- cia. No ínterim das visitas domiciliares, os estagi-
ção e vai à busca do paciente. A atividade almeja ários freqüentam as residências dos pacientes e
uma avaliação das necessidades do paciente, de buscam estabelecer hipóteses das formas de vin-
seus familiares e do ambiente adscrito em que vi- cular até então assumidas pelos sujeitos e demais
vem. Assim, visa estabelecer um plano assistencial membros integrantes de sua rede social. Por con-
voltado à recuperação e/ou reabilitação. As vi- seguinte, empreende-se uma atividade de ressig-
sitas são realizadas levando-se em consideração nificações das formas de pensar a saúde mental
a necessidade do cliente e a disponibilidade do naquele âmbito.
serviço de saúde. Ela abarca atividades de orien- Essa forma de cuidar da saúde implica no en-
tação às pessoas responsáveis pela continuidade contro com a família e demais constituintes da
do cuidado no domicílio – em grande parte a fa- rede social na qual o sujeito está imerso. Esta, a
mília. família, pode representar um entrave ao desenvol-
O Atendimento domiciliar abrange atividades vimento das práticas ou emergir como co-autora
assistenciais exercidas por profissionais e/ou equi- no processo de cuidado que lhe for dispensado.
pe de saúde na residência do cliente. Este objeti- De tal forma, evidencia-se a primazia em situar os
va a execução de procedimentos mais complexos, intercursos a que estão expostos, família e cliente,
que demandam formação técnica para tal. De nesta nova forma de trato.
igual forma, são realizadas orientações aos res- O desencadear da crise psicótica expõe senti-

130
mentos que, em muitos momentos, são avassala- des e para não falar dessas possíveis construções
dores para o familiar do doente mental. Melman delirantes. Neste caso, percebe-se que, embora
(2001) afirma que “o surto psicótico de um filho, o genitor da paciente pareça contribuir para que
de um irmão ou de um companheiro rompe e ocorra um bloqueio no seu discurso, “P” mostra
desorganiza a vida de muitas famílias. O evento que encontrou uma forma de escoamento para
representa, de certa forma, o colapso dos esfor- o mesmo, evitando o desencadeamento de situ-
ços, o atestado da incapacidade de cuidar ade- ações que, porventura, suscitassem sofrimento ao
quadamente do outro, o fracasso de um projeto seu núcleo familiar.
de vida, o desperdício de muitos anos de investi- Uma outra circunstância ocorrida no estágio
mento e dedicação”. Portanto, faz-se imprescindí- parece ser reveladora da função de holding exer-
vel atentar ao sofrimento da família em presença cida pela família – por um membro desta – na
das vivências traumáticas desses sujeitos, ainda estabilização dos sintomas. “R” é um paciente
que a mesma pareça revelá-lo de forma hostil. masculino, jovem, que residia com sua mãe e
É pertinente ressalvar que formas silenciosas no sua irmã, numa localidade próxima desta cidade.
trato com o sujeito psíquico afetado por distúrbios As visitas domiciliares eram realizadas quinzenal-
mentais, de igual modo, poderiam ser revelado- mente em virtude da distância. Contudo, quando
ras das dificuldades por que passa a família. “P”, preciso, os estagiários o visitavam semanalmente
paciente acompanhada no programa, (PIC) pare- ou ainda duas vezes por semana. “R” possuía um
cia encontrar diversas dificuldades em falar sobre relacionamento difícil com sua irmã, que havia
a sua doença. No trabalho de assistência que lhe se casado e aguardava a chegada de um bebê.
foi prestado, observou-se que o seu genitor refe- “R” mencionava constantemente as brigas e dis-
ria, continuamente, que sua filha não apresentava cussões travadas com sua irmã. Era o som, a te-
quaisquer comprometimentos psíquicos (“Minha levisão, o aparelho de DVD, sempre existia algo
filha não ouve vozes, ela está curada”). Assim, foi que os irritava. Durante as visitas, “R” falava sobre
possível aventar como se processava a circulação sua irmã e relatava suas desavenças e o respeito
do discurso entre esses sujeitos. Atendendo a um pela mesma. Demonstrava muito desejo em po-
desejo paterno, “P” parecia não expor as suas der ‘virar tio’, era algo que aguardava com muita
construções fantásticas. Ela afirmou para as es- expectativa. Barretto (1998) salienta que a fun-
tagiárias que a acompanhavam que elas seriam ção de holding pode ser estabelecida por diversos
as moças das vozes e lhes mostrou, em um outro elementos do ambiente que proporcionem uma
momento, seu guarda-roupa repleto de acessórios experiência terapêutica para o sujeito.
para bebê – evidenciando uma possível fantasia Deste modo, é possível supor que o nascimen-
de gravidez. Desta forma, “P” parece encontrar to desta criança na família de “R” alvitra-se como
um arranjo psíquico para lidar com suas dificulda- um objeto que lhe permite encontrar satisfação

131
e um lugar outro na estrutura familiar. “R” agora jeito que sofre de adoecimento psíquico novas
deixa de ser ‘o filho caçula, mimado, que tem pro- possibilidades diante das pessoas que compõem
blemas’, para figurar como o tio do bebê. Neste a sua rede social. Esta não se restringiria apenas
ponto, evidencia-se como o nascimento do sobri- à família “nuclear ou extensa, mas inclui todo o
nho de “R” emerge como um recurso terapêutico conjunto de vínculos interpessoais significativos
para a estabilização do seu sintoma. Retomando do sujeito: família, amigos, relações de trabalho,
as discussões empreendidas por Melman (2001), de estudo, vínculos na comunidade, vínculos co-
no que tange à esfera da família, depreende-se letivos, sociais e políticos” (MELMAN, 2001).
que existe uma dificuldade grande dos serviços Adentrando ao campo das relações mútuas
de saúde em “conseguirem reconhecer o fami- entre redes sociais e visita domiciliar é importante
liar como um importante recurso terapêutico a salientar passagens de dois casos acompanhados
ser mobilizado”. Portanto, a experiência da assis- no PIC. Ambos os pacientes são do sexo masculi-
tência domiciliar parece ser favorecedora de que no. Os chamaremos de “W” e “V”.
esse recurso seja validado e utilizado. A observa- “W” é um paciente morador de rua. Durante
ção dos sujeitos e familiares, aliada ao desenvol- as visitas e atendimentos domiciliares, o traba-
vimento de vínculos, possibilita a emergência de lho era desenvolvido sempre em algum local do
sentimentos de parceria e atenção àqueles indiví- bairro onde ele morava – que funcionava como
duos que estão sendo cuidados. a sua casa. Ele demonstrava sentir uma tristeza
No momento em que os estagiários freqüentam muito grande e, entre momentos de crise, expu-
as comunidades dos seus acompanhados, eles nha uma grande revolta pelo bairro e por todos
mostram que ali há um sujeito, há uma pessoa os seus moradores. Contudo, era nesses mesmos
com quem se pode preocupar e que é merece- momentos, precisamente quando “W” atentava
dora de cuidados. Imagina-se que possa ocorrer contra si, que os moradores intervinham. Eles o
nesta hora um processamento de novas acepções levaram ao hospital em um episódio em que “W”
diante da percepção daquele indivíduo para a utilizou uma cartela inteira de sua medicação. Es-
sua rede social. Melman (2001) afirma que “além ses mesmos moradores retiraram “W” do bueiro
dessa ampliação territorial do espaço terapêutico, de esgoto quando ele resolveu que iria morar lá
as intervenções na rede social podem mobilizar dentro. Destarte, percebe-se como é imprescindí-
importantes recursos internos e externos à famí- vel o apoio da rede social como possibilitadora
lia; muitas vezes recursos esquecidos, deixados à de novas alternativas aos sujeitos. Melman (2001)
margem, que podem ser acionados e ser de gran- observa que a presença de enfermidades crônicas
de utilidade no tratamento”. poderia comprometer a qualidade de suas intera-
Assim, poder-se-ia pensar que a função das ções sociais. E, dessa maneira, as visitas domici-
visitas domiciliares também seria fornecer ao su- liares atuariam como corroboradoras dos cuida-

132
dos dispensados àquele sujeito, evidenciando a e “V”. Apenas uma irmã dele morava próximo.
importância de que se busque tentar compreen- Contudo essa irmã trabalhava o dia todo, e era
dê-lo, ainda que o mesmo esboce comportamen- muito difícil encontrá-la. O bar de dona “J” tam-
tos de tamanha estranheza. bém funcionou como um outro ponto de supor-
Melman (2001) define a Rede Social de Sus- te para a continuidade do trabalho desenvolvido
tentação como “a soma de todas as relações que com “V”. Este fazia suas refeições naquele local
um indivíduo percebe como importantes ou dife- e as pagava mensalmente. Convidamos dona “J”
renciadas da massa anônima da sociedade”. Ele a nos auxiliar no cuidado com suas medicações.
ainda postula que essa rede alude a “um nicho “V” precisava tomar a medicação juntamente às
interpessoal, uma microecologia na qual a pes- refeições, e, dessa forma, a participação de dona
soa desenvolve um modo particular de expres- “J” se mostrava necessária porque ele sempre se
são de sua singularidade” (Sluski, 1997 pp. 42 esquecia dos horários. Os membros da igreja
citado por Melman, 2001). Assim sendo, durante evangélica que “V” freqüentava também foram
as visitas à “W” era importante a construção de promotores de uma assistência continuada. Per-
redes de referência que dessem continuidade ao cebendo as dificuldades encontradas por “V”,
trabalho desenvolvido pela dupla. A barraquinha contribuíam junto à comunidade, explicitando-lhe
de lanches de Dona “A”, a casa de Dona “T”, a as dificuldades por que ele passava.
banca de artesanato de “R”, todos esses – que De tal modo, salienta-se a importância do tra-
eram os locais em que combinávamos para nos balho de assistência domiciliar em continuidade
encontrarmos com “W” – figuravam como pontos com a formação de pontos de apoio nas redes
de apoio estratégicos na busca de ‘suportes’ tera- que referendam o sujeito para a comunidade. A
pêuticos para o paciente. presença dos acompanhantes terapêuticos dentro
O caso de “V” ressalta-se como ratificador dos da realidade social dessas pessoas possibilitaria,
resultados advindos da efetiva participação das portanto, a ressignificação de conceitos arrai-
redes sociais no trabalho de assistência domiciliar. gados sobre o portador do sofrimento psíquico.
“V” sempre referiu ser uma pessoa muito sozinha. Contiguamente, a edificação de novas redes de
Durante o período em que o acompanhamos não suporte contribuiria com o sustento do trabalho
chegamos nem mesmo a conhecer sua família nu- e a continuidade da assistência. A rede emerge
clear (“eles não querem saber de mim não”). Ele como ancoradouro para a prática do AT ou mes-
residia num quarto alugado. As visitas domicilia- mo da assistência domiciliar. Melman discorre
res primaram, inicialmente, pelo estabelecimento sobre as aquisições que o grupo poderia propor-
de vínculos com a dona e os moradores da casa cionar: “o poder grupal tem a função de proteger
onde ele residia. A senhora dona do estabeleci- seus integrantes das forças ameaçadoras” (Mel-
mento funcionava como elo entre os estagiários man, 2001).

133
Portanto, compreendendo que a saúde mental de significados e valores aos sujeitos em desordem
caracteriza-se por um mal-estar crônico na vida mental. Melman (2001) esboçou a importância
dos sujeitos, formas terapêuticas que dispensem de compreendê-la como um recurso terapêutico e
uma atenção global e continuada mostram-se ne- enfatizou o valor de que se atente a todas as pos-
cessárias. Dessa maneira, como apontam Andrade síveis representações condizentes à loucura que
e Vaitsman, “muitas vezes, o enfermo experimen- nela se encontram fixadas. A função de holding
ta fragilização da identidade, do próprio sentido ou suporte destacada por Barretto (1998) corro-
da vida e da capacidade de resolver problemas bora as formas de cuidar desses indivíduos, além
que o afetam, já que tudo aquilo que organiza- de incluir neste espaço a rede social que sustenta
va a identidade é alterado de forma brusca com e promove a vinculação.
a doença” (Gibson, 1991 citado por Andrade & No percurso deste artigo, constatou-se que a
Vaitsman, 2002). Esta fragilidade que permeia o disponibilidade do trabalho de atendimento (ou
vínculo na psicose fundamenta a implementação assistência) domiciliar ressalta-se como um pré-
desses novos modelos de práticas. requisito fundante para o trabalho com sujeitos
afetados por desordens mentais.
Considerações Finais A magnitude do estranhamento que as mani-
festações do sujeito psicótico desencadeiam no
A assistência domiciliar demonstra ser revela- outro semelhante poderia ser suscitada como um
dora da promoção de novos significantes dispen- dos elementos contributivos ao cerceamento do
sados à saúde mental. A inserção de práticas de louco. Freud salienta que ocorreria na psicose
cuidado que atentem às diversificadas demandas uma substituição da realidade – perdida, por ou-
expressas pelos sujeitos brotam como um possível tra. “Na psicose o que ocorreria é que um mundo
móbil de compreensão dos fenômenos psíquicos. novo seria recriado e colocado no lugar da reali-
Destaca-se que a assistência domiciliar pode dade perdida” (FREUD, 1915). Em meio a tantas
aferir ganhos diversos àqueles que se destinam teorizações concernentes ao que seria ‘esta reali-
desde que a sua implementação aconteça de for- dade’, o que se depreende é que a loucura não se
ma responsável, com competência e planejamen- confina a estes parcos critérios. Ela tão somente
to. Assim, o cuidado e a reconstrução das redes é: inconstante, exuberante e múltipla em suas ex-
podem ser realizados de forma mais segura e efi- pressões. “É que eu não estava mais me vendo,
caz, proporcionando um cuidado embasado na estava era vendo” (Lispector, 1998, pp. 63).
realidade social em que vive o sujeito a partir de
uma melhor compreensão da mesma.
A família surge, neste contexto da assistência
domiciliar, como peça fundamental na atribuição

134
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135
Atenção Domiciliar:
Uma tecnologia de cuidado em saúde mental
Allana Moreira*
Ana Paula M. da Hora**
Maria Clara Guimarães***

Resumo: Desde o surgimento dos debates em namento de pessoas em hospitais psiquiátricos e


saúde mental no Brasil, há dificuldades no desen- que hoje, pela legislação, é proposto como uma
volvimento de práticas mais eficazes e que tenham abordagem humanizada voltada para cidadania
um olhar mais humanizado segundo os princípios e ressocializacão, ainda encontra entraves e pos-
da Reforma Psiquiátrica. Neste terreno, a Atenção turas heterogêneas quando posto em prática, de-
Domiciliar surge como proposta de atuação, apos- vido a dois principais questionamentos:
tando na relação vincular como alicerce para a
construção de novos laços sociais para as pesso- 1) Os atuais profissionais em saúde mental
as em sofrimento psíquico. Algumas dificuldades estão realmente preparados para atuarem neste
operacionais são apontadas para a implementa- novo modelo de assistência preconizado pela Re-
ção desta tecnologia, bem como alguns caminhos forma Psiquiátrica Brasileira?
são vislumbrados.
2) Como vêm sendo democratizados os conhe-
Introdução cimentos em saúde mental, até então restritos aos
“profissionais psi”, para que todos possam se res-

D esde o surgimento dos primeiros debates em


saúde mental no Brasil, que culminou com a
Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei Paulo Del-
ponsabilizar por este cuidado?

A atual legislação em saúde mental, no Brasil,


gado, é trazido como discussão principal qual tem buscado progressivamente substituir os hos-
forma de cuidado deve ser prestado ao portador pitais psiquiátricos por outros serviços como os
de transtornos psiquiátricos. Este dito “cuidado” CAPS, NAPS, enfermarias psiquiátricas em Hos-
que, durante muito tempo, resumiu-se ao confi- pitais Gerais, Residências Terapêuticas e serviços
de saúde mental na rede de atenção básica e
*Estudante de Medicina (UFBA) e ex-estagiária do PIC Programa de Saúde da Família. Muitos destes ser-
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC viços substitutivos utilizam a estratégia de visitas
***Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC domiciliares, visando um acompanhamento mais
136
“humanizado” do paciente. Mas no que consiste e do profissional? Quem é ele que, mesmo quando
para que realmente serve a visita domiciliar? recluso, calado, absorto, mobiliza família, comu-
Sendo utilizada primeiramente pelo Programa nidade e trabalho? Ele tem nome? Tem desejos?
de Saúde da Família, a visita domiciliar assume, É cidadão?
muitas vezes, um caráter compulsório de atendi- Na perspectiva da abordagem do sujeito é que
mento em casa para pacientes impossibilitados de ampliamos a percepção da psicose para além de
irem ao Posto de Saúde (idosos, acamados, por- um conjunto de sintomas psicopatológicos, dos
tadores de alguma deficiência) ou para cumprir estigmas e medos da população de uma maneira
algum objetivo preestabelecido (reconhecimento geral, inaugurando uma nova forma de atuação
familiar, por exemplo) reproduzindo a lógica tra- e formação em saúde mental a qual prioriza as
dicional de consultório sob o pressuposto de hu- relações vinculares, responsabilização e quebra
manização. Seguindo lógica semelhante, os atu- do enquadre terapêutico. Propomos, desta forma,
ais serviços de saúde mental, a partir do momento um “ambulatório que verdadeiramente ambula” e
que buscam os seus pacientes em casa somente se preocupa com este grupo específico de pacien-
por conta de ausências repetidas nas atividades tes e sua relação com o meio em que vive.
propostas, situações de crise e não adesão a me-
dicação, acabam por não abarcar as reais ne- Da Atenção Domiciliar...
cessidades deste tipo de paciente que apresenta
especificidades em suas relações. Em contraposição à visita domiciliar, a atenção
O presente artigo visa contrapor a visita do- domiciliar apresenta-se como uma tecnologia
miciliar à atenção domiciliar, acreditando nesta que propõe cuidar integralmente do indivíduo,
como tecnologia fundamental no cuidado em preocupando-se em ampliar suas redes de apoio,
saúde mental, proposta-base do Programa de In- responsabilizando a família e apoiando-a, bus-
tensificação de Cuidados ao Paciente Psicótico, cando meios que melhorem a qualidade de vida
do qual as autoras participaram. do paciente.
Esta tecnologia busca ser sistemática e contí-
Do psicótico... nua. Os encontros com o paciente, a família e
a comunidade não pressupõem retirar uma in-
Singular, fragmentado, frágil, misterioso, im- formação, mas estabelecer relações vinculares
previsível, rindo e chorando de maneira peculiar... com finalidade de se aproximar e contribuir com
Será realmente inacessível o diferente? Temos nós eles, estando à disposição e secretariando a re-
alguma interferência na direção dos seus moinhos lação deste paciente com o meio. Neste aspecto,
de vento? Será que se depararão com a violência podemos ilustrar como um exemplo o holding,
do vizinho, o grito do parente ou a indiferença definição introduzida por Winnicott como sendo

137
“tudo que, no ambiente, fornecerá a uma pessoa trar isso com um caso do estágio em que, depois
a experiência de uma continuidade, de uma cons- de algum tempo de acompanhamento, quando
tância tanto física quanto psíquica” (BARRETTO, fomos visitar o paciente, encontramo-lo na frente
1998: 60). Estas atitudes favorecem mecanismos de casa com um pedaço de “pau” na mão le-
para que o paciente se movimente, se questione, vantado pro alto nos dizendo “ninguém entra em
se coloque no mundo, estabelecendo uma am- casa, só parente e amigo”; ou situações de mane-
pliação da troca de poder contratual. jo do vínculo de um paciente que se “apaixonou”
Por se propor a ocupar a função de um acom- pela acompanhante.
panhante dentro desta relação, o profissional Outro fator dificultador é o da disponibilida-
acaba transcendendo os protocolos técnicos exis- de, o estar disponível requer entrega afetiva bem
tentes hoje em dia, no que se refere às restrições como temporal. Combinar esses itens nem sem-
de acompanhar o paciente somente em situações pre é possível e viável, tornando-se umas das difi-
especiais e pré-estabelecidas, como os momentos culdades centrais do acompanhamento.
de crise. Amplia-se o atendimento, atuando nos Há também as dificuldades de âmbito opera-
espaços urbanos e rompendo com o enquadre e cional, como a falta de profissionais capacitados
a proteção que o setting proporciona. Este tipo de para lidar com situações “previstas” de atuação
atenção expõe o profissional ao afetamento com neste tipo de atenção, bem como a inexistência de
as questões do paciente, permitindo-se tocar com formação permanente. Dificuldade de um apoio
seus sentimentos. para este tipo de atendimento foi se estendendo
Haja vista suas características de funcionamen- ao longo dos anos, o que gera uma contratação
to, a tecnologia da atenção domiciliar se faz ne- defasada de profissionais na área, tanto pela falta
cessária e fundamental no atendimento da saúde de incentivo de contratação quanto pela falta de
mental dentro dos moldes da nova proposta psi- profissionais capacitados. Juntamente a isso, há a
quiátrica. falta de incentivo educacional, como a não-refor-
mulação dos currículos objetivando formação de
Das dificuldades... profissionais preparados para as reformas institu-
cionais como a reforma psiquiátrica.
Dentre as dificuldades do processo de trabalho,
podemos citar a exposição criada pela quebra do Considerações Finais
enquadre terapêutico, que pode ser exemplificada
não somente como exposição de afetos em que Com o advento da Reforma Psiquiátrica e a im-
há uma troca com a questão do outro, como tam- plementação da lei Paulo Delgado, foram preco-
bém nuances físicas ao se adentrar em um territó- nizados novos princípios para o cuidado em saú-
rio que até então é desconhecido. Podemos ilus- de mental. A Atenção Domiciliar é desenvolvida

138
neste contexto como uma tentativa de resposta ao Em contrapartida, iniciativas de inserção da
novo modelo de atuação que se faz necessário. saúde mental na Atenção Básica têm apontado
Esta nova tecnologia leva em consideração as- para direções possíveis quanto à implementação
pectos singulares do indivíduo, apostando na re- da Atenção Domiciliar. Tem-se observado que
lação vincular como base para intervenção. muitos agentes comunitários de saúde (ACSs), nos
A Atenção Domiciliar busca desenvolver a au- Programas de Saúde da Família (PSFs), possuem
tonomia do sujeito, oferecendo dispositivos para grande habilidade no trato com os usuários de
sua sociabilidade e formação de vínculos. O pro- saúde mental. Quando capacitados tecnicamen-
fissional atua como um secretário, gerenciando as te, esses trabalhadores adquirem um preparo, no
relações do paciente, negociando com familiares qual se combina sensibilidade, vínculo estabele-
e agentes da comunidade, ampliando suas redes cido e saberes teóricos e técnicos. Tal iniciativa
sociais e de apoio, de modo a oferecer-lhe maior apresenta-se como tentativa de aproveitamento
poder contratual na sociedade. dos recursos já existentes, mas não resolve o pro-
Não obstante a relevância desta tecnologia de blema da capacitação de novos profissionais que
cuidado, existem alguns entraves que precisam encontra na reformulação curricular e na mudan-
ser superados para fins de sua implementação. ça de posturas os seus principais desafios.
O primeiro deles é o preparo dos profissionais. Com a proposta da Atenção Domiciliar, vis-
Existe um descompasso entre a atuação desses lumbra-se um novo saber em saúde mental que
técnicos e as novas diretrizes para a reforma da pressupõe a socialização dos saberes até então
saúde mental. O lidar com pessoas em sofrimen- restritos às disciplinas. Ainda não há respostas
to psíquico, principalmente psicóticos, exige uma que atendam a todas as dificuldades para a im-
tecnologia de cuidado especial que vai além dos plementação desta tecnologia de cuidado. Portan-
conhecimentos técnicos e científicos. Corrobora to, fazem-se necessários maiores estudos e novas
para esta constatação a observação de pessoas estratégias para formação de recursos humanos
que, embora desprovidas desses conhecimentos com práticas consoantes aos princípios da Refor-
técnicos, possuem grande habilidade no manejo ma Psiquiátrica.
das relações com este público. Um outro obstá-
culo a ser superado é a burocracia dos serviços
públicos de saúde. A implementação desta nova
tecnologia de cuidado encontra dificuldades,
uma vez que exige recursos humanos e materiais
freqüentemente em falta nesses serviços, como
transporte, profissionais etc.

139
Referências

BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompa-


nhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998.

LANCETTI, Antônio. Saúde Mental nas entranhas da me-


trópole. In: Saúde Loucura, 7. São Paulo: Hucitec

MELMAN, Jonas. Família e Doença Mental: repensando


a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Pau-
lo: Escrituras, 2001.

PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Pau-


lo: Martins Fontes, 1992.

ROSA, Walisete; LABATE, Renata. A contribuição da saú-


de mental para o desenvolvimento do PSF. In:Rev. Bras. En-
ferm., Brasília (DF), vol 56(3): 230-235, maio/jun: 2003

TENÓRIO, Fernando. A reforma psiquátrica brasileira,


da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos.In:
História, Ciências, Saúde-Manguinhos-Rio de janeiro, vol
9(1): 25-59, jan-abr, 2002.

140
A Formação de Díades no Trato com a Loucura:
Acompanhando o acompanhante
Lorena Almeida*
Lygia Freitas**

Resumo: Este artigo enfoca o trabalho em du- pacientes, como deles entre si e consigo mesmos.
pla realizado durante os atendimentos em domi- A possibilidade de acompanhar um caso junto à
cílio, que constituem uma das estratégias do Pro- outra pessoa propicia uma observação muito mais
grama de Intensificação de Cuidados a Pacientes rica e fidedigna, em razão de ser feita durante o
Psicóticos (PIC). Faz-se uma tentativa de elabora- próprio acompanhamento, ampliando, assim, as
ção teórica sobre este tema por parte das auto- “versões dos acompanhamentos” que são apre-
ras, com subsídio de alguns depoimentos colhidos sentadas durante a supervisão grupal. Sem falar
junto a estagiários e ex-estagiários do PIC. Cada na possibilidade de auto-observação a partir do
paciente atendido pelo programa é acompanhado olhar do outro, fundamental nesse processo de
por uma dupla de estagiários (um de Psicologia e formação profissional. Desse modo, evidencia-se
outro de Terapia Ocupacional), numa freqüência que a experiência vivenciada pelos estagiários que
estabelecida de acordo com a demanda do caso. passam pelo PIC é não apenas informativa, como
O trabalho em dupla visa amenizar as dificulda- também, e essencialmente, formativa.
des encontradas nesse, em geral, primeiro contato
dos estagiários com a questão da loucura e de seu Introdução
manejo clínico. O compartilhamento de angústias,
sofrimentos e questionamentos é, sem dúvida, um
fator de grande destaque no andamento do está-
gio, na medida em que engendra o surgimento de
O Programa de Intensificação de Cuidados
a Pacientes Psicóticos (PIC) é efetivado por
diversas formas de trabalho: atenção domiciliar,
questões não só na relação dos estagiários com os encontros terapêuticos grupais entre pacientes e
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
estagiários/ extensionistas, atividades externas,
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
reuniões com cuidadores, atendimentos indivi-
duais, quando necessário; acompanhamento a

141
consultas médicas e psiquiátricas, supervisão em nharão os pacientes, tem início a passagem dos
grupo semanal, etc. casos, em que cada nova dupla realiza um con-
Neste artigo, será enfocado o trabalho em du- tato inicial com os mesmos, acompanhada dos
pla, realizado durante os atendimentos em domi- antigos estagiários. Num primeiro momento, con-
cílio. Será feita uma tentativa de elaboração teó- vém aos ingressantes no programa uma postura
rica sobre este tema por parte das autoras, com mais discreta e de observação, no intuito de irem
subsídio de alguns depoimentos colhidos junto a se familiarizando com a dinâmica de cada pa-
estagiários e ex-estagiários do PIC. ciente e, em contrapartida, serem reconhecidos
No Programa de Intensificação de Cuidados a como alguém de confiança, em que eles podem
Pacientes Psicóticos, cada paciente do programa depositar suas angústias, alegrias e sofrimentos.
é acompanhado por uma dupla de estagiários, Após esse primeiro contato, os novos responsá-
numa freqüência estabelecida de acordo com a veis pelo caso vão adotando um estilo mais ativo
demanda do caso. Há pacientes que são acom- e participativo, com intervenções sobre o que, na
panhados semanalmente; outros, quinzenalmen- etapa anterior, eles apenas observaram. Assim,
te e, em algumas situações, sobretudo quando o dá-se a despedida dos antigos estagiários, e uma
paciente está em crise, as visitas são realizadas nova relação vai se estabelecendo. Com a saída
todos os dias. deles, os iniciantes assumem o caso em definitivo,
Inicialmente, quando os estudantes são selecio- tendo respaldo técnico e teórico para suas con-
nados para o programa, é feita uma breve expla- dutas durante as supervisões. O aprimoramento
nação, por parte dos estagiários que estão saindo teórico, portanto, vai se dando simultaneamente
ou mesmo dos que vão permanecer no estágio, à ação propriamente dita, que é feita junto aos
acerca dos casos que compõem a clientela do casos.
PIC. Formam-se as duplas, buscando-se, sempre
que possível, que, em cada uma, haja um estagiá- 2 – Por que trabalhar em dupla?
rio de Psicologia e outro de Terapia Ocupacional,
no sentido de propiciar a troca de experiências Inicialmente, o trabalho em dupla pode ser
técnicas e teóricas que o trabalho multidisciplinar justificado como uma tentativa de amenizar as
possibilita. Além deste critério, que é o principal, dificuldades encontradas nesse, em geral, primei-
outro que fundamenta a formação das duplas é a ro momento em que os estagiários se defrontam
questão da empatia, interesse e/ou identificação com a questão da loucura e de seu manejo clí-
por cada caso apresentado, além, logicamente, nico. Tendo em vista que, geralmente, tanto os
da compatibilidade de dias e horários para a rea- estudantes do curso de Psicologia como os de Te-
lização dos atendimentos domiciliares. rapia Ocupacional só se deparam com essa pro-
Depois de formadas as díades que acompa- blemática já no fim da graduação, o trabalho em

142
dupla mostra-se um recurso de apoio àqueles que dar holding a alguém na medida em que já se
estão iniciando na prática em saúde mental que tenha experimentado tal vivência. “Na maior par-
complementa a supervisão. te das vezes, o profissional não consegue exercer
“Assim como os cavaleiros andantes saem à essa função, porque lhe é difícil aceitar e compre-
cata de emendar todas as situações que, porven- ender que ‘faz algo’ ao não fazer absolutamente
tura, carreguem algum erro ou injustiça e exijam nada – só estar presente”. (p. 64)
do seu exercício alguma intervenção ou media- Desse modo, fica claro que a função de hol-
ção, também os escudeiros os acompanham, a ding acaba sendo praticada tanto na relação dos
fim de poderem, igualmente, dar amparo a seus estagiários com os pacientes (e entorno social dos
senhores em ocasiões adversas”. mesmos) como na dupla de estagiários entre si.
Kleber Barretto (2000, p. 59) “Em um dos casos que acompanhei, a função
Embora, na situação ora focalizada, não se de holding foi exercida entre os próprios estagi-
trate de uma relação hierárquica, mas horizon- ários. O suporte e o apoio psíquico tão falados
tal entre os estagiários, essa citação de Barretto entre estagiário e usuário (ou acompanhante e
explicita bem a nuance de suporte exercida, mu- acompanhado), neste caso, foram também perce-
tuamente, durante o trabalho em dupla. O com- bidos entre estagiário e estagiário (acompanhante
partilhamento de angústias, sofrimentos e ques- e acompanhante). Um deu apoio ao outro tanto
tionamentos é, sem dúvida, um fator de grande na divisão como no revezamento do que precisa-
destaque no andamento do estágio, na medida va ser feito para evitar ou amenizar a sobrecarga
em que engendra o surgimento de questões não psíquica característica do caso.”
só na relação dos estagiários com os pacientes, Ana Cláudia Braga (estagiária de Terapia Ocu-
como deles entre si e consigo mesmos. pacional do PIC durante 1 ano)
Ademais, a possibilidade de discussão e de bus- Cabe salientar que não se trata de uma atitude
ca pela questão dos sujeitos que são acompanha- exclusivamente ativa, incluindo também, em cer-
dos pelos estagiários, por aquilo que deve nortear tos momentos, uma certa passividade, apenas um
o trabalho feito com eles, propicia a indispensável estar junto, estar presente.
experiência de “pensar em voz alta”. Esta, por sua Também é digna de nota a importância da tro-
vez, permite um melhor entendimento do caso e ca de conhecimentos e experiências que o traba-
conseqüente alcance das estratégias de manejo lho em duplas formadas por estudantes de Psico-
clínico mais adequadas a cada um deles. logia e Terapia Ocupacional possibilita. Esse tipo
Segundo Barretto (2000), para exercer a ativi- de experiência favorece a construção de um saber
dade de apoio (holding) aos pacientes, é necessá- teórico-prático comum às duas disciplinas, num
rio que o (futuro) profissional tenha vivido e inter- verdadeiro trabalho interdisciplinar.
nalizado essa função, uma vez que só é possível Em algumas situações, entretanto, pode-se ob-

143
servar certa dificuldade em se atingir esse compar- suportar uma a outra diante de situações inusi-
tilhamento de saberes, em virtude, muitas vezes, tadas, quando a força acabou -
de alguns estagiários se fecharem dentro das teo- as aulas eram puxadas, quando “bateu um
rias obtidas nos bancos da faculdade, não sendo branco” ou tomamos um susto ou uma
flexíveis a idéias que divirjam, em algum aspecto, surpresa. Sempre uma das duas encontrou uma
daquilo que acreditam ser terapêutico ou mesmo saída. Rimos muito juntas, o que
o mais adequado à dada circunstância. aliviou a ansiedade em algumas situações difí-
Vale assinalar que também há outras ocasiões ceis e dividimos também a
em que o trabalho a dois não funciona de modo responsabilidade”.
satisfatório, o que sugere que a dinâmica entre os Vera Hittel (estagiária de Psicologia do PIC du-
membros de cada díade precisa ser trabalhada, rante 1 ano)
de modo que se compreendam as diferenças de
estilo individual e mesmo de valores e concep- “Intensificar cuidados em dupla é interessante,
ções, que podem tanto contribuir como prejudicar na medida em que se torna possível compartilhar
o andamento dos casos. Em diversos períodos, foi as experiências vivenciadas com o sujeito acom-
possível perceber que um dado caso, que não se panhado. Compartilhar com um outro (a dupla) o
desenvolvia satisfatoriamente com determinada estranhamento diante da desorganização do dis-
dupla de estagiários, obteve avanço significativo curso de um paciente foi fundamental para refletir
quando houve a mudança dos responsáveis pelo sobre os desafios de se estar com o sujeito que
caso. possui um sofrimento mental e um arranjo psíqui-
“Na primeira experiência em dupla não pude co diferenciado”.
aproveitar muitos diálogos sobre a experiência
com os pacientes, o que empobreceu um pouco o Tatiana Medeiros (estagiária de Psicologia duran-
trabalho. Já nesta te 1 semestre)
segunda, está sendo ótimo. Acho que conse-
guimos, em várias oportunidades,
compartilhar, principalmente antes e depois das 3 – Considerações Finais
aulas de xadrez e dança,
muitas experiências, interpretar e discutí-las. As- Diante do exposto, fica claro que o trabalho
suntos como receios, do em duplas de estagiários, desenvolvido no Pro-
que poderia acontecer conosco e com o pa- grama de Intensificação de Cuidados a Pacientes
ciente, medos de um surto acontecer, Psicóticos, pode ter tanto aspectos positivos como
já que achamos nossa intervenção corporal, a obstaculizantes.
dança, um pouco ousada. Pudemos A possibilidade de acompanhar um caso junto

144
à outra pessoa propicia uma observação muito cansaço e desânimo causado pelo esforço ineren-
mais rica e fidedigna, em razão de ser feita du- te a essa prática clínica. O parceiro, muitas vezes,
rante o próprio acompanhamento, ampliando, pode constituir um terceiro na relação muitas vezes
assim, as “versões dos acompanhamentos” que dual com o paciente e, assim, diluir a depositação
são apresentadas durante a supervisão grupal. intensa direcionada ao estagiário. Para mim, a
Sem falar na possibilidade de auto-observa- importância de um companheiro na caminhada foi
ção a partir do olhar do outro, fundamental nesse essencial para conseguir planejar, organizar e dar
processo de formação profissional. Desse modo, continuidade nos momentos de angústias e triste-
evidencia-se que a experiência vivenciada pelos za e para poder continuar acreditando, enfren-
estagiários que passam pelo PIC é não apenas tando dificuldades e obstáculos. Como a relação
informativa, como também, e essencialmente, for- entre os estagiários é bastante intensa, acabamos
mativa. por constituir grandes amizades e até alguns de-
“Acho que o legal de trabalhar em dupla é po- safetos”.
der contar com um outro que sinaliza para algo
que você fez de errado, que dá suporte, que per- Mabel Jansen (estagiária de Terapia Ocupacio-
cebe coisas que você não vê. Intervém quando nal do PIC durante 1 ano e extensionista durante
faltam palavras, age quando você está falando 1 semestre)
demais. É um equilíbrio necessário e produtivo”.

Érica Coelho (estagiária de Psicologia do PIC,


durante 1 semestre)

Dividir anseios, expectativas, intervenções ade-


quadas e outras frustradas com um parceiro gera
um trabalho muito mais consistente do que se o
acompanhamento dos casos fosse feito de modo
individual. As contribuições obtidas com essa mo-
dalidade de trato da loucura favorecem, sem dú-
vida, tanto o âmbito do manejo clínico como o da
formação profissional de cada um.

“Um parceiro possibilita compartilhar dúvidas,


pensar em estratégias, como também dividir as
angústias, tristezas e alegrias. Um estímulo ao

145
Supervisão:
Espaço de continência, aprendizado e reflexões
Eduarda Mota*

N as terças à tarde, ocorre um momento crucial


do Programa de Intensificação de Cuidados
- a supervisão dos estagiários, que é coordenada
mes, e outro de discussão dos casos e da direção
dos atendimentos. Complementando o emba-
samento teórico, o Professor Dr. Marcus Vinícius
por uma dupla de supervisores, com formações (pesquisador e estudioso da psicose) oferece um
(psicólogo e terapeuta ocupacional), instituições seminário à parte – Elementos Teóricos para uma
(UFBA e FBDC) e estilos diferentes, mas comple- Clínica Psicossocial das Psicoses, como disciplina
mentares, que se esforçam para criar um espaço de extensão da UFBA.
ao mesmo tempo acolhedor das mobilizações dos
estagiários e gerador de uma tensão provocadora Trabalhamos com o princípio da autonomia e
que estimule o compromisso com o aprendizado do compromisso com os casos. Apesar de termos
e o cuidado intensivo. Essa parceria vem ocorren- alguns acordos de participação (grupo semanal
do há quatro anos com uma sintonia crescente; e visita domiciliar semanal), o tempo, a presença
as diferenças citadas enriquecem o trabalho con- dos estagiários é regulada pela necessidade de
junto, demarcando que a clinica psicossocial não cuidado com os casos. Quando o cuidado é in-
pertence a nenhuma categoria profissional, mas suficiente, aparece sob a forma de crise; o descui-
sim àqueles que se detêm em estar constantemen- do ou não implicação nos casos são trabalhados
te se preparando para trabalhar na área da saúde na supervisão dentro da clínica, e não somente
mental dentro de uma visão ampliada. como uma questão burocrática. Vale ressaltar que
A metodologia foi se consolidando ao longo os estagiários, de modo geral, nos surpreendem
da experiência. A supervisão é dividida em dois pela disponibilidade e investimento pessoal e pro-
momentos: um de discussão teórica, que pode ser fissional, indo muito além do esperado.
por explanação, leitura e discussão de textos, fil- Iniciamos com a constituição das duplas inter-
disciplinares de estagiários, que serão a referência
*Supervisora de Terapia Ocupacional do PIC para cada paciente e responsáveis pelo caso. Os
estagiários, tanto de terapia ocupacional quanto

146
de psicologia, chegam desprovidos de uma expe- devemos concordar quando um paciente recusa
riência significativa com relação à psicose. Acre- atendimento; o que fazer com o “investimento
ditamos que o maior aprendizado vem do contato amoroso” do paciente. Apesar das repetições,
com o psicótico. A orientação inicial é de expo- não existe regra ou respostas prontas. Cada caso
sição à psicose; estar com, escutar, olhar o pa- é ouvido e pensado a partir de sua história, con-
ciente de referência e tudo o que está a sua volta, texto e relações, analisado à luz de uma teoria
ler os registros das estagiárias e não atrapalhar que contribua para o entendimento da psicose,
o trabalho da psicose (partindo do pressuposto seja esta lacaniana, winnicottiana, rosellóniana ...
que a psicose trabalha em direção de retorno à No entanto, o que está por trás das questões tem
cultura). quase sempre a ver com a dificuldade do psicóti-
Os primeiros meses são dedicados à formação co na relação com o outro.
de vínculo, pois acreditamos que esta é a con- Surpreendentemente, não é o contato com o
dição necessária para que se dê alguma possi- discurso delirante ou a estranheza da experiência
bilidade real de intervenção. Nessa fase, as su- alucinatória, nem mesmo situações de crises onde
pervisões atuam como um suporte, recebendo e eles são chamados a intervir o que mais mobiliza
acolhendo as ansiedades e inseguranças comuns os estagiários, mas sim a miséria, a fome, a falta
nos primeiros encontros. Os contatos iniciais dos de condição básica para existência, a solidão, as
estagiários novos são acompanhados pelos que dificuldades institucionais até mesmo nos serviços
estão saindo do programa, fase conhecida como atuais de saúde mental.
passagem. A supervisão, segundo os próprios estagiários,
Paralelamente, vamos construindo um respal- é o local de organizar o pensamento e a ação.
do teórico, entrelaçando as teorias que tecem a Porém muitas vezes temos que desorganizar idéias
complexa teia da psicose. As temáticas teóricas preconcebidas, cristalizadas a respeito da loucu-
passam pela crítica ao modelo de internação ra, para que possa surgir um posicionamento di-
como forma de tratamento, pela clínica psicos- ferenciado diante do psicótico. Na saúde mental,
social, reforma psiquiátrica, estruturas psíquicas, não basta fazer, é preciso saber o porquê, para
simbiose, acompanhamento terapêutico, vínculo, quem e como fazer. E isso se constrói com experi-
redes sociais, família, grupos, interdição, solidão, ência, estudo, reflexão e delicadeza.
entre outras. Não é somente cada caso de paciente que
Tendo acompanhado até o momento oito gru- acompanhamos, e sim cada caso na ótica de
pos de estagiários, percebemos que algumas cada estagiário que o acompanhou, e isso é um
questões e situações são recorrentes – a desesta- repertório imenso de aprendizado e reflexão para
bilização de alguns pacientes no momento da tro- os supervisores, que também aprendem com cada
ca de estagiários; discussão a respeito de quando estagiário e com cada paciente.

147
Complexidades
A abordagem da Crise na Psicose
Fernanda Blanco Vidal*
Ana Claudia Silva Braga**
Adelly R. Orselli Moraes Sodré***

Resumo: Este artigo pretende tratar de uma for- é uma prática possibilitadora do manejo da preca-
ma de abordagem da crise na psicose à luz do cui- riedade dos recursos subjetivos e objetivos dos su-
dado integral e intensivo. O sujeito é aqui entendi- jeitos, uma tentativa de (re) significação da vida.
do como uma construção histórica, fundamentada
num projeto societal normo-neurótico que exige
autonomia e capacidade de produzir vínculos.
Os sujeitos psicóticos dispõem de poucos recur-
N este artigo, a partir do relato de algumas situ-
ações vividas como estagiárias do Programa
de Intensificação de Cuidados - PIC e de referen-
sos para tal. Sendo assim, a psicose se configura ciais teóricos que embasam esta prática, preten-
como um embaraço na ordenação da sociedade de-se justificar algumas das abordagens utilizadas
moderna, o colapso do modelo ideal de sujeito. A e, assim, estruturar elementos que possibilitem
crise, que emerge quando o sujeito é colocado em contestar outras. A experiência com o caso que
questão, representa a tentativa de lidar com o in- aqui será discutido levantou questões acerca das
sustentável, sendo um arranjo providencial que se formas de abordagem do sujeito em crise. Para
tem quando todos os recursos psíquicos já foram tal, faz-se importante apresentar, brevemente, a
utilizados. Por essa perspectiva, o que precisa ser proposta de ação deste programa, visto que, para
tratado é o sujeito, e não a crise. Nesse sentido, nós, constitui-se como uma referência importante
na proposta de cuidado apresentada, o acompa- no cuidado com pacientes psicóticos, e mais es-
nhamento terapêutico, cujo recurso básico é o es- pecificamente, no trato com situações de crise.
tabelecimento do vínculo acompanhante-usuário,
*Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
O Programa de Intensificação de Cuidados,
**Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC em conformidade com as diretrizes da Reforma
***Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC Psiquiátrica, tem como principal objetivo promo-

151
ver a qualidade de vida de pessoas com transtor- Nesse sentido, considerando o redireciona-
no mental, especificamente a psicose, por meio mento da atenção à saúde mental e a amplia-
do cuidado intensivo e do desenvolvimento das ção da oferta de serviços, é pertinente indagar
redes sociais de apoio. Nesse sentido, a atenção de que modo, na atual conjuntura, a crise vem
é dirigida para os diversos âmbitos da vida dos sendo abordada. Quais são os recursos aciona-
sujeitos, visando a (re) significação subjetiva, o dos? Lança-se mão de mecanismos terapêuticos
reconhecimento da alteridade, a construção e o flexíveis que estejam em consonância com as pro-
fortalecimento de vínculos sociais, a inclusão - postas de uma Clínica Integral ou ainda se repro-
na cultura, na escola, no trabalho, nos espaços duzem modos de intervenção descontextualizados
da cidade, etc. - a responsabilização da família, e segregadores?
comunidade, instituições e outros, no cuidado a Na tentativa de responder a tais questio-
essas pessoas, de modo a produzir a descoberta namentos, serão trazidas as vivências de estágio
de novas possibilidades de vida e, acima de tudo, documentadas em diário de campo. Essa experi-
a efetivação dos direitos humanos. ência proporcionou o contato direto com o sujeito
A prática dessa forma de cuidar integral, como e seu cotidiano, por meio do trânsito na sua fa-
aponta Silva (s/d, a), é possível através da noção mília, na sua comunidade e nas redes sociais de
de Intensificação de Cuidados, definida por ele suporte com as quais ele possui relação, como,
como: por exemplo, o CAPS de sua região.
“Um conjunto de procedimentos terapêuticos
e sociais direcionados ao indivíduo e/ou ao seu 1 – A Crise do Sujeito
grupo social mais próximo, visando o fortaleci-
mento dos vínculos e a potencialização das redes Convencionalmente, supõe-se que o sujeito é
sociais de sua relação, bem como o estabeleci- idêntico a si mesmo; (...). Ele é o centro da iden-
mento destas nos casos de desfiliação ou forte tidade, estável e inabalável(...).O sujeito é Um:
precarização dos vínculos que lhes dão sustenta- universal, indivisível e eterno. O sujeito é o sujei-
ção na sociedade (s/d, p.01”. to e, portanto, cumpre duas funções distintas na
Nessa proposta, a intensificação de cuida- topografia social: universalização e individuação.
dos se efetiva através do Acompanhamento Te- Por um lado, o sujeito é uma figura de univer-
rapêutico, em que o estabelecimento do vínculo salização na medida em que é o grau-zero da
acompanhante-usuário é o recurso básico por humanidade (...).Em suma, o re-conhecimento se
meio do qual este último pode “desenvolver e/ou transfere- por meio de corpos e faces individuais
(r)estabelecer funções psíquicas que na sua histó- (DOEL, 2001, p. 86 e 87)
ria de vida ficaram comprometidas” (BARRETTO,
1998, p.43).

152
Problematiza-se, nesta primeira parte do arti- cultural desenvolvem, nos diversos lugares e mo-
go, a noção de sujeito e, por conseqüência, a mentos da história, certos modos de estruturação
interpretação desta noção como uma produção e instauração do Psiquismo.
teórica e política datada no projeto social da re- O sujeito social, tal como conhecemos, não é
volução burguesa e que pressupõe a existência a-histórico. O que somos, portanto, deve ser to-
de seres humanos como seres iguais, universais, mado como uma forma de organização, um ar-
autônomos e racionais. ranjo particular de certo processo civilizatório que,
Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo em nosso caso, podemos considerar como parte
sexo, foi uma das precursoras na crítica ao su- do projeto da sociedade moderna ocidental. Em
jeito, desafiando sua presumida universalidade, cada sociedade, produzem-se os modos de for-
neutralidade e unidade, argumentando que, no matação dos sujeitos e as falhas desse projeto.
mundo social, existem aqueles que ocupam a Consideramos que o modo de apresentação da
posição não específica, sem marcações (sexual, loucura, na experiência da psicose, guarda íntima
racial, religiosa), “universal”; e aqueles que são relação com a produção humana na sociedade
definidos, reduzidos e marcados por sua “diferen- moderna (SILVA, 2006).
ça”, sempre aprisionados em suas especificida- Em nosso projeto civilizador mais atual, datado
des, designando o Outro. de cerca de 300 anos, produzimos um nível de
Essas críticas colocavam em evidência o fato individuação muito radical na história humana.
de que a noção de sujeito estava marcada por Mais do que nunca, a habilidade da individua-
particularidades que se pretendiam universais e, ção é requerida dos sujeitos para viver nesta so-
na medida em que pretendiam universalizar as es- ciedade. O êxito da vida humana nesta socieda-
pecificidades do homem branco, heterossexual e de é medido pela nossa capacidade de produzir
detentor de propriedades e “autônomo”, este su- vínculos. Essa sociedade exige dos sujeitos certa
jeito tornava-se uma categoria normativa e opres- competência para a autonomia radical. Se a so-
sora, para usarmos a definição de Judith Butler. ciedade está posta desta maneira, a relação com
(MARIANO, 2006) ela fica constrangida para os sujeitos psicóticos,
Tomando-se estas importantes problematiza- que dispõem de poucos recursos para o trato com
ções como pontos de partida, é preciso perceber as relações vinculares. Nesta perspectiva, a psico-
e conceber, além destas questões colocadas, o se se apresentaria como a expressão dos sujeitos
lugar do registro psíquico na fundação das so- embaraçados com o Outro e com a ordenação
ciedades humanas, a fundação simbólica do lu- societal moderna (SILVA, 2006).
gar do Eu e do Outro como etapa fundamental Além disto, é neste contexto, que pressupõe
para produção das organizações sociais. Neste a regulação social dos atos e comportamentos
sentido, as diversas formas de organização sócio- a partir de uma certa instância administrativa e

153
controladora no “interior” dos sujeitos, que os dição familiar, social e de saúde, a qual se confi-
psicóticos, enquanto sujeitos nos quais tais instân- gura como uma extrema situação de desfiliação/
cias são precárias, representam uma crise e a de- exclusão social. Na história dessa família, a perda
sordem deste projeto. É sob estas condições que a pode ser considerada uma palavra constitutiva,
sociedade ocidental moderna pode ser vista como visto que, na entrada de sua adolescência, a mãe
denominaremos aqui: Normo-neurótica. Ela tor- de Joaquim morre, e o pai abandona os filhos
na o modo de estruturação neurótica não só o quase que à própria sorte, deixando apenas uma
modo universal de produção humana necessária, pequena casa que hoje é disputada entre os ir-
mas também o modo regulador da existência em mãos. Joaquim e seus cinco irmãos foram criados
sociedade. Torna-se, portanto, uma normatização separados por senhoras da vizinhança e uma avó.
dos modos de registro psíquicos suportáveis no Um dos irmãos foi morto, não se sabe exatamente
interior desta organização social. Os psicóticos, como, mas aparentemente o motivo guarda rela-
neste processo, são uma crise, a crise dos projetos ção com a história de loucura que atravessa os
de sujeito. São a expressão da crise dos modelos membros dessa família. Dos outros quatro irmãos
de sujeito ideal de nossa sociedade. vivos, três possuem algum tipo de transtorno men-
A partir destas problematizações e tomando-as tal. Conforme informação do usuário e da irmã,
como pressupostos de análise, começaremos a ele apresentou a primeira crise, quando foi inter-
exposição da história de um sujeito em crise e da nado pela primeira vez, aos dezessete anos.
crise deste sujeito. Como será possível notar, este A situação da família é de extrema pobreza.
é um sujeito cuja individuação imposta é extrema- Quase todos têm renda muito baixa e vivem da
mente radical e torna-se um desafio constante e ajuda de poucos. Joaquim vive com uma irmã no
complexo, num contexto em que a competência térreo do prédio deixado pelo pai. Sua condição
para o gerenciamento e a autonomia da vida e social é precária. Serviços básicos como forneci-
de suas circunstâncias se colocam como única mento de água e energia elétrica estão cortados. A
opção para a sobrevivência. casa é um lugar extremamente escuro, onde mor-
O acompanhamento a Joaquim foi realiza- cegos, ratos e baratas encontram abrigo. A comi-
do em um período de dez meses pelas autoras da é pouca, episódica e não garantida. O pouco
do presente artigo. Ele faz parte do PIC há três que conseguem vem da doação de terceiros, da
anos, sempre sendo atendido semanalmente, por ajuda de alguns vizinhos mais compreensivos e
dois ou três acompanhantes. Joaquim (35 anos) é solidários e de algum dinheiro que conseguem
portador de esquizofrenia e tem um longo históri- catando papelão, ferro velho e lixo reciclável.
co de internações recorrentes desde a adolescên- Joaquim mora num bairro de baixa renda,
cia. É considerado um dos mais complexos casos muito violento, com ações comuns de grupos de
atendidos pelo programa, por sua precária con- extermínio e com convivência cotidiana com a

154
morte. O tráfico de drogas também é parte da 2 – O Sujeito em Crise
rotina, e a convivência com a vizinhança é marca-
da por conflitos e desentendimentos constantes. A ...que eu me organizando posso desorganizar
relação com os irmãos é quase uma não relação. que eu desorganizando posso me organizar...
Vivendo seus próprios problemas, ninguém se res- (Chico Science)
ponsabiliza por apoiá-lo, e as poucas interven-
ções que fazem são para interná-lo em momentos Durante os vários meses do atendimento a Jo-
mais críticos. Internando-o, não realizam visitas e aquim, o trio de acompanhantes pôde conhecer
reatualizam a história de abandono da família. não só sua história de vida e seus modos de rela-
Alfabetizado, Joaquim gosta de escrever histó- ção, mas também perceber os primeiros sinais de
rias com conteúdos diversos. As histórias têm re- sua crise. Essa foi uma crise longa e muito difícil.
lação com sua vida, com o convívio diário com Intensa e bastante angustiante tanto para Joaquim
a violência e com suas esperanças de, por exem- quanto para as estagiárias. Durou cerca de 60 e
plo, ser um grande escritor. Faz uso de medicação poucos dias e oscilou entre momentos de maior e
controlada e é usuário intensivo do CAPS de sua menor intensidade.
região. Devido à gravidade de seu caso, Joaquim Para o Programa de Intensificação de Cuida-
tem grande dificuldade em gerenciar e tomar as dos, a crise deve ser concebida na esfera da falta
medicações nos horários indicados e todos os de tratamento, como uma expressão do desacom-
dias, ficando longos períodos sem tomá-las. panhamento e, em certa medida, de uma série de
Outras dificuldades somam-se a estas tão ob- etapas de falta de cuidados que pode começar na
jetivas. A dificuldade no cuidado com o corpo, escassez de medicações no SUS (Sistema Único
consigo, com a higiene pessoal e alimentação de Saúde) e ser ratificado em outras esferas da
são algumas de suas peculiaridades. A precária vida caracterizadas por abandono e descuidado.
vinculação com a família, com a comunidade e É preciso, portanto, tratar o sujeito, não a crise. O
com o CAPS agrava sua condição. Joaquim está sujeito tem tratamento. A crise é um arranjo pro-
posto num lugar fora das normas sociais, sendo videncial que se tem à disposição quando todos
repudiado e pouco tolerado pelos que o cercam. os outros recursos psíquicos do sujeito já foram
O desamparo, por não achar esse lugar no mun- utilizados. A crise é ponto de corte. Ela representa
do, e a ausência de estrutura para lidar com essas a experiência de inconsistência subjetiva que se
situações - se é que se pode lidar com elas - lan- coloca para o sujeito quando este é colocado em
çam Joaquim para um estado de crise. A experi- questão.
ência da angústia e da destruição de si é parte Nem todo evento externo produz crise, e nem
dos sofrimentos envolvidos neste caso. sempre é com um evento objetivo e concreto que
estamos lidando, mas com aqueles que colocam

155
em questão as significações fundantes e consti- Para BARRETTO (1998), o homem necessita
tutivas dos sujeitos, aquelas que, em sua fragili- intermediar suas experiências – afetivas, pulsio-
dade, dão a consistência do que é o sujeito para nais, existenciais - do contrário estas podem ser
o sujeito. Tais significações são pontos de apoio disruptivas, pois o sujeito passa a viver o horror de
que o ajudam a SER-NO-MUNDO e, portanto, não mais sentir uma emoção ou sentimento, mas
ao colocá-las em xeque, produz-se a experiência transformar-se neles; não mais experimentar um
de Desmoronamento, a Angústia da Destruição, impulso, mas ser este impulso.
do Não-Eu, do que não é possível significar. Neste momento da experiência da destruição,
O vínculo é um importante sinalizador do uma possibilidade de lidar com tal sensação tor-
modo de estruturação e desestruturação dos su- na-se disponível para o psicótico, ele abre a porta
jeitos psicóticos. Entendemos que o psicótico de- de emergência e suspende a significação, desco-
tecta, registra permanentemente que é de nature- lando os signos dos significado. No delírio, os sig-
za vinculante a estruturação das relações sociais. nos deslizam sobre os significados, e as palavras
A alienação deste registro permanente do vínculo se descolam umas das outras (...). A crise é o fim
permite aos neuróticos a sensação de conforto da angústia, a angústia precede a organização.
diante do outro, o conforto de não se perceber em Quanto mais desorganizado, menor a experiência
relação continuamente. Na psicose, esta questão da destruição. Este afastamento de tal sofrimento,
vincular se coloca como um elemento problemá- entretanto produz um outro sofrimento: descone-
tico em sua experiência com o mundo, já que, xão com a cultura, o estranhamento do compar-
na relação com o Outro, existem poucos recursos tilhado e a perda da conexão de sentido com o
para uma mediação simbólica. O Outro como mundo. Diante da experiência da proximidade da
algo enigmático e invasivo em certos momentos morte, o psicótico faz um suicídio simbólico (SIL-
(SILVA, 2006). VA, 2006).
Outro ponto importante é que, diferentemente Tomando estes pressupostos como pontos de
dos neuróticos, que possuem recursos como os partida de nossas análises e intervenções, trare-
mecanismos de defesa do ego para mediar sim- mos um pouco da nossa leitura da entrada na cri-
bolicamente suas relações com o mundo e com o se de Joaquim. Sinalizaremos aqui alguns de seus
Outro, a psicose não possui tais recursos dispo- comportamentos que consideramos indícios desta
níveis, ou os tem em precariedade. Na psicose, entrada e apresentaremos algumas de nossas hi-
o “corte, portanto, é no real”. Há a experiência póteses, norteadas por estes pressupostos ante-
psíquica da morte, do Não-Ser, da destruição de riores. A seguir, traremos cerca de três ou quatro
si, quando certas condições insuportáveis para o relatos de episódios de nosso atendimento nos
sujeito colocam em questão sua capacidade de quais a crise era mais intensa e difícil e de como
permanecer como tal (SILVA, 2006). intervimos em tal situação, a fim de fornecermos

156
certas exemplificações que ajudem a compreen- Nas primeiras visitas em que a crise foi eviden-
der um tipo de manejo apropriado, mas não úni- ciada, fomos à casa de Joaquim, que estava mui-
co, para situações como esta. to agitado e agressivo. Ele gritava bastante, dizia
A ocorrência da crise pode ser conseqüência não querer nos ver e entrava e saia de casa diver-
de vários fatores. No caso de Joaquim, supõe-se sas vezes. Ficamos muito ansiosas com a agres-
que tenha ocorrido devido a algumas situações sividade até então não vivida. Conversamos um
insustentáveis em que ele mostrou-se inquieto e pouco, tentando compreender as motivações de
desorganizado. Consideramos estes fatores: a sa- seu comportamento tão diferente. Relembramos
ída de estagiárias anteriores com as quais tinha a questão do enquadre trazida por Thiago - an-
um forte vínculo, o falecimento de um tio próxi- tigo acompanhante de Joaquim - que o levava
mo, o aluguel de um ponto comercial que fica em para passear sempre que, chegando a sua casa,
sua casa pela irmã cujo valor também tem direito percebia-o inquieto e violento. Este local parece
a receber - e não recebe - e os recorrentes desen- ter grande efeito sobre Joaquim, e foi importante
tendimentos com esta, além da irregularidade no a percepção deste elemento para nossa interven-
uso da medicação. ção.
O riso imotivado, delírios freqüentes, compor- Joaquim repetia os gritos e tentativas de nos
tamento libidinoso e agressivo foram os sintomas agredir - importante ressaltar que eram sempre
apresentados de forma mais acentuada no perí- tentativas, nunca chegando a realizar o ato. Con-
odo anterior e durante a crise. Várias situações vidamo-lo a sair de sua casa para irmos a uma
desconfortantes decorriam deste momento, e o praça lá perto. Ele estava muito apreensivo e se
contato com Joaquim precisava ser cauteloso, comportava como se todos ao seu redor o esti-
preciso e cuidadoso. Ele recusava aproximação vessem olhando ou o invadindo. Sentamos em
de qualquer pessoa nos momentos em que não torno dele, fazendo uma espécie de proteção que
estava bem, sendo nossa permanência junto a ele o acalmava. Falávamos que estávamos com ele,
sempre algo cauteloso e cuidadoso, de tal ma- que nada deixaríamos ocorrer e que as pessoas
neira que, aos poucos, ele conseguia retomar o não o iriam machucar. Aos poucos, ele se acal-
contato conosco. A fala desorganizada, assuntos mou e começou a nos presentear. Interagiu conos-
íntimos como homossexualidade e orgias, convi- co de forma mais tranqüila e alegre, contando-
tes a práticas sexuais com as acompanhantes, de- nos de nossa importância em sua vida. Cantamos
lírios sempre voltados à morte e destruição, tanto algumas canções, e o clima ficou menos hostil e
de si e dos outros, além de agressões físicas se invasor. Imaginávamos o tipo de experiência que
tornaram freqüentes nesse período de 60 dias. ele devia estar vivendo e como o ambiente e as
Joaquim passou por sofrimentos intensos, e este pessoas (os Outros), em seu estado de crise, co-
sofrimento interferiu também nas estagiárias. locavam-se mais ameaçadores e devastadores do

157
que efetivamente eram. Tentamos, neste sentido, Chegamos às 9:15h na casa de Joaquim e
dialogar com a angústia que vivia, criar uma situ- batemos na porta, como sempre, chamando-o.
ação mais favorável, alterando o enquadre do lo- Ouvimos uma leve gritaria, quando, de repente,
cal e produzindo certo nível de proteção corporal Maria (sua irmã) abriu a porta e começou a gritar
a partir de nossa proximidade com ele. conosco, dizendo que devíamos levá-lo ao hos-
A elaboração de um discurso sobre morte se pício, pois ele estava maluco (...). Então Joaquim
fazia cada vez maior. Joaquim começou a falar do aparece com uma madeira enorme na mão e ten-
desejo de matar um vizinho, misturado a um delí- ta bater com bastante força na cabeça de Maria
rio de este ter tentado estuprar as antigas estagiá- que escapa e é empurrada por ele para fora da
rias que o acompanhavam. Ele detalhou, a cada casa. Imediatamente, e movidas pelo susto, saí-
visita, o desejo de matar diferentes pessoas, e nós, mos da frente da casa. Ele continua empurrando a
sempre que podíamos, pontuávamos, levemente, irmã, que se senta em casa mesmo, numa cadeira
que tal ato não resolveria seus problemas e que o na pequena salinha, e começa a rezar. Ele sai da
levaria para um lugar pior, coisa que não querí- casa transtornado e começa a nos procurar com
amos. Em certa etapa de elaboração das mortes os olhos, entrando em casa em seguida. Ficamos
de pessoas com quem convivia, Joaquim pensava distantes um tempo, por acharmos perigoso en-
em matar sua irmã - fonte de muitos conflitos no trar em contato com ele portando um pedaço de
dia a dia. Visita após visita, ele trazia dados mais madeira na mão.
reais de sua intenção, primeiramente, dizendo Este tempo em que permanecemos afastadas
que havia conseguido uma arma com um amigo foi utilizado para nos acalmarmos e pensarmos
“bicho-solto” chamado Bartolomeu; depois, que em como agir numa situação como aquela, visto
faltavam as munições, e por fim, que estava perto que nunca havíamos nos deparado com algo as-
de conseguir as balas com alguém. Este ponto é sim. Sabíamos que Joaquim não tomava as me-
importante, por nos ter trazido muitas angústias e dicações regularmente, e, em momentos de crise,
ser o discurso mais organizado e aparentemen- esta dificuldade se agravava. Discutimos um pou-
te mais real. Nossa agonia aumentava junto com co, nos acalmamos umas as outras e resolvemos
nossa preocupação e, buscando o amparo do levá-lo à emergência do Hospital Mário Leal para
CAPS, pouco conseguíamos evoluir na melhora que tomasse uma medicação e pudesse descan-
do quadro. No dia 14 de agosto, quando vamos sar um tempo e se reorganizar minimamente.
realizar uma nova visita, somos surpreendidas Ficamos num local em que podíamos ver a
por um momento ímpar e complexo de sua crise. casa, mas de onde não éramos vistas. Decidimos
Traremos aqui trechos de nosso diário de campo ligar para o SAMU para levá-lo ao hospital. O
para contar sobre este momento e sobre nossa SAMU nos informou que precisávamos de um fa-
intervenção. miliar ou comprovante de residência. Não havia

158
unidade disponível no momento. Neste intervalo mo-nos de nossas fantasias decididas a fazer o
começamos a perceber certa movimentação na que deveria ser feito e não o que, no fundo, mais
comunidade de pessoas com paus e pedaços de gostaríamos de fazer. Lembramos alguns elemen-
ferro em punho - cerca de cinco pessoas. Não tos teóricos importantes, como a importância da
tínhamos certeza se tinha relação com Joaquim, delicadeza para abordá-lo e a experiência de in-
mas, diante da tentativa de machucar a irmã - vi- vasão e destruição a que ele deveria estar subme-
sível para todos - e dos conflitos comuns na co- tido.
munidade, achamos que poderia ter relação com Após certo tempo, as pessoas se dispersa-
ele. Ligamos para a supervisão, buscando orien- ram, e o SAMU chegou. Fomos ao seu encontro
tação sobre como agir em relação à comunida- para combinar a estratégia. Combinamos com o
de. Nos orientaram a conversar com as pessoas SAMU que, caso o paciente não aceitasse ou esti-
que estavam armadas e a colaborar com o SAMU vesse agressivo, a policia não seria chamada. Ao
quando este chegasse.(...) chegarmos à casa, chamamos Joaquim, e Maria
Esperamos o SAMU por cerca de 20 a 30 abriu a porta com a bíblia na mão e com um
minutos, tempo utilizado para conversarmos so- amigo de sua igreja que estava dentro da casa
bre o que faríamos, como falaríamos com ele e rezando. Joaquim sai, ainda transtornado, e fala
como agiríamos em caso de violência contra nós. que irá conosco, mas apenas se for internado,
Era mais difícil lidar com nossas fantasias do que porque não agüentará chegar lá e retornar para
acreditar que tudo daria certo. Pensávamos que a casa novamente. Se isso ocorrer, prefere se jogar
situação ficaria impossível de ser controlada, que pela janela do SAMU e acabar com isso. Tenta-
a comunidade começaria a agredi-lo e também a mos acalmá-lo, e o escutamos. Ele continua di-
nós. Com a agressão da comunidade, ele ficaria zendo seguidamente que precisa ser internado e
mais desorganizado e violento e não agüentaría- que não vai conosco se for para tomar medicação
mos a pressão do conflito. Produzíamos fantasias e voltar. Falamos que vamos com o SAMU, e lá
tão destrutivas quanto as sensações que Joaquim conversaremos tudo com a médica. Ele vai buscar
devia viver. Pensávamos em ir embora, já que sua mochila, e ficamos fora, conversando com os
uma situação de violência nos colocaria em risco, atendentes do SAMU que não devemos falar de
e não deveríamos ir tão longe. Com esta racio- injeção, pois ele não ficou bem quando usou a
nalização, conseguíamos nos sentir mais calmas, injeção e está recusando bastante este procedi-
mas mais irresponsáveis também. Pensávamos na mento. Ele retorna, falando que o Diabo está em
importância de nossa permanência e auxílio num sua casa, e, num momento breve, sai da casa e
momento como aquele e que, como responsáveis fala “oh meu Deus porque esse Armagedon não
pelo caso, não devíamos deixá-lo entregue à pró- vem logo e acaba com tudo”. Há um pequeno
pria sorte como acontecia tantas vezes. Despedi- conflito entre ele e Maria , mas negociamos com

159
ele que pegue a mochila para irmos logo, pois diz que não mexa com ele ou lhe dará um murro.
precisava de cuidados. Maria se recusa a ir com Ana se cala, e ele continua o relato. Fala de uma
ele ou entregar qualquer documento. Ela pouco violência bastante confusa, ora em relação a ele
fala conosco. Ele retorna, e falamos que vamos ora dele em relação aos outros. Pergunta a Fer-
com ele. Joaquim fala que sabe que só se interna nanda se Maria pegou a arma que conseguiu e
com familiar e que nós não poderemos interná-lo guardou embaixo da cama numa caixa de sapato
e que, portanto, não vai. Falamos que ele deve e diz que pegará a munição logo. Ela responde
ir para tomar a medicação, e decidimos tudo lá que não sabe, mas que ele não deve ter arma, pois
(...). Enfim, entramos na ambulância e vamos. isso trará problemas e não resolverá o que quer,
Diferentemente de tudo que imaginávamos, que devemos agora cuidar dele e depois resolve-
Joaquim aceitou de imediato nossa ajuda e não mos outros problemas. Ele faz variadas perguntas.
tentou nos atacar ou agredir. Como é possível no- Pergunta sobre a arma. Pergunta sobre a interna-
tar em algumas falas dele, como a destruição do ção. Num dado momento, fala: “Fernanda, sabe
armagedon e algumas relacionadas à existência que eu tô com vontade de me matar aqui agora”.
de um diabo em sua casa, Joaquim vivia um mo- Pedimos que se tranqüilize, que estamos ali com
mento de enorme desespero misturado a um de- ele e que tudo ficará bem. Ele sacode a cabeça
sejo da destruição, de término da angústia, do fim positivamente. Pergunta se ficará com essa lou-
daquele mortífero sofrimento que estava vivendo cura para sempre. Fala que tem “ouvido vozes e
e que não conseguia mediar simbolicamente, vi- visto visões”. Diz que quer ver o pai para tentar
vendo como uma experiência que o tomava em conseguir o cartão da Coelba para se internar no
absoluto. Como Barretto afirma, é o sofrimento Bom Viver. Que pode ficar lá seis meses até me-
de não viver um sentimento de angústia, mas tor- lhorar um pouco e organizar a cabeça. Tentamos
nar-se a Angústia. Tentávamos dialogar e mediar acalmá-lo e falamos que vai melhorar e que tudo
o que imaginávamos estar vivendo, não nos refe- ficará bem. Falamos que é preciso cuidar do corte
rindo aos temas dos delírios, mas sim dialogando no pé e dele para que não fique pior. Ele conta
com as experiências que vivia e com as quais bus- sobre seus livros, diz ter terminado dois. Falamos
cávamos nos relacionar. que compramos um caderno e que traremos na
Joaquim está com alguns plásticos enrolados próxima visita. Ele se alegra, mas retorna para os
no pé, dizendo que foi um corte ocorrido na noite outros temas.
anterior por uma briga com o vizinho, que jogou Sobretudo no momento de crise, quando para
uma garrafa em seu pé, ocasionando um corte todos é difícil lidar com o sem sentido produzido
profundo. Na ambulância, ele fala que queria pelo sujeito, é preciso manter-se e suportar estar
matar seu irmão Pedro Sérgio. Ana pede que re- com este em sua estranheza, em sua bizarrice, de
pita, porque não escuta bem, e ele grita com ela e modo que possibilite certa posição de alteridade

160
diferente das alteridades comuns que o cercam
dendo pontualmente a suas falas. Não faláva-
e que se relacionam com sua estranheza como mos muito nem com frases extensas, visto que tal
se fosse apenas isso. Acreditamos que tudo que
ação não tinha nenhuma eficácia, sendo inclusive
está desorganizado busca se reorganizar. No mo-
pouco adequada para momentos críticos como
mento da crise, o sujeito faz um grande esforço
aquele. Dialogávamos apenas com os pontos que
para se reorganizar. É preciso, no acompanha-
nos articulavam com ele, no sentido da experiên-
mento destes momentos, estar atentos à angústia,
cia que vivia e do cuidado que buscávamos ter,
dialogando com esta e buscando uma reconexãolembrando-lhe sempre que precisava ser cuidado
do sujeito com o mundo e com a possibilidade de
e que estávamos ali para realizar este cuidado.
compartilhamento (SILVA, 2006). Sabíamos que não estava bem e estávamos com
Chegamos ao Mário Leal e entramos na emer-
ele no que precisasse.
gência. Ele só quer ficar e ser atendido se for ser
Após certo tempo, entramos na sala, e ele diz
internado, saindo algumas vezes do local e dizen-
à médica que quer se internar e que não tomará
do que estávamos armando para ele. Às vezes ri
injeção. Ela fala que injeção seria melhor e que,
sozinho. Fala sobre o corte, conta novamente a
como ele se internava sempre, estava acostuma-
situação (...). Falamos que cuidaremos disso tam-
do com este procedimento. Ele fica agressivo e
bém. Ele continua falando da arma para matarsai da emergência em direção à rua. Vamos atrás
Maria e que teme que ela a encontre e entregue
dele, alguns funcionários o chamam, e ele retor-
no módulo. Diz que conseguiu com um “bicho na. Fala que não quer injeção e que quer ser in-
solto ali de perto” e só falta a munição. Falamos
ternado. Ela fala que passará outra medicação
que não deve matar ninguém e que deve cuidare que deve tranqüilizar-se. Ele fica olhando para
de si e que os problemas tentaremos resolver de
a enfermeira que prepara a medicação para ver
outra maneira. Ele fala que tudo que está ocor-
se será injeção e fica muito inquieto e agressivo.
rendo com ele é culpa das antigas estagiárias que
A médica sai e chama os seguranças, que ficam
o tiraram do Hospital. O tiraram e o deixaram
com ela do lado de fora da sala. Ele fala que não
só. Pontuamos que estávamos ali com ele (...). Li-
tomará Haldol em gotas porque lhe faz mal, e
gamos para a supervisão por acharmos que eleela retruca, dizendo que ou toma isso ou injeção.
ficaria em observação um tempo e que podería-
Ele fala conosco que devemos impedir, e falamos
mos aproveitar para ir à comunidade e conversar
que deve tomar o remédio para melhorar e que
com Maria. A supervisão nos orienta a esperar ele
fique calmo, porque a dosagem é menor e não
tomar a medicação, acalmar-se e deixá-lo falar
lhe fará mal. Ele levanta, grita e se inquieta, mas
com a médica. depois toma a medicação. Ficamos com Joaquim
na sala o tempo todo. Após tomar medicação, a
Ficamos todo o tempo a seu lado e respon- médica faz a receita e diz que está liberado. Ele

161
quer falar com ela, que lhe diz que só poderá quando fala de internação, o que quer mesmo
fazer mais uma pergunta e sair. Ele pergunta se são cuidados e um tempo distante dos problemas,
ainda há vagas para se internar, ela diz que não. mas que não deve se preocupar, porque o aju-
Explica-lhe que os manicômios foram fechados. daremos a lidar com os problemas e cuidaremos
O paciente pega a receita, e vamos buscar sua dele lá fora. Ele quer voltar para casa. Falamos
medicação. que seria melhor que voltasse ao CAPS, para al-
Diante do quadro apresentado na emergência, moçar e ficar lá à tarde até melhorar. Ele prefere
acreditávamos que deveria permanecer um tem- voltar para casa. Pergunta que horas são, para
po deitado até o efeito da medicação acalmá-lo. esperar e ir para o grupo no Mário Leal . Falamos
Entretanto, para aqueles que o atendiam, era pre- que eram 11 horas e que talvez fosse melhor des-
ciso apenas receitar e pedir-lhe que se retirasse. cansar e ir ao CAPS perto de sua casa, por conta
Em nenhum momento a médica dialoga com suas da distância (achamos ele ainda muito agressivo
inquietações e por vezes usa de sua posição para e agoniado para retornar andando para o grupo).
questionar e interpelar o sujeito em sua exigência Vamos com ele pegar o ônibus para voltar para
por não tomar injetável. Sair da sala correndo e casa. O retorno no ônibus é difícil para Joaquim.
chamar seguranças foi o único procedimento en- Quando vamos entrar no ônibus, ele pega com
contrado pela equipe, que o tratava como se fos- força o braço de Ana e diz para não subirmos,
se um perigo para todos. Claro que suas atitudes que não tem dinheiro e depois pagará (...). Fa-
nos assustavam, mas sabíamos do enorme deses- lamos que deve se acalmar e que vamos pagar
pero que vivia e de como a posição invasiva dos sua passagem. Ele quer ir a pé, e falamos que a
médicos, por vezes exigindo que tomasse a inje- pé não podemos. Uma de nós senta a seu lado
ção, só agravavam o quadro. Permanecemos na e a outra em sua frente fazendo uma espécie de
sala todo o tempo, mediando o desejo da equipe muralha que o protege do contato com outros.
de livrar-se dele com o remédio mais eficaz e a (...) O caminho é longo, e Joaquim varia entre a
experiência de invasão do outro e do ambiente agressividade e a “normalidade”. Achamos que,
vivido por Joaquim. pelo tempo e pelo horário, deve estar com fome,
Vamos à farmácia buscar suas medicações (...) então lhe oferecemos uma barra de cereal. Che-
Explicamos como deve tomá-las. Ele pergunta gamos a sua casa às 12:15. Ele quer que entre-
constantemente se a médica mentiu, porque não mos, mas achamos melhor não. Nos despedimos
queria interná-lo ou se não tem mais vaga mesmo. e falamos para tomar medicação e descansar.
Falamos que não tem mais vaga. De tempos em Tentamos, durante esta longa intervenção,
tempos, ele retoma a pergunta. Explicamos como abordá-lo de uma forma tranqüila e delicada,
tomar a medicação e dizemos que deve tomá-la mediando as circunstâncias tão difíceis para ele
para ficar bem. Falamos que entendemos que, e para os outros. No momento da crise, é preciso

162
cuidar do tom. Ser delicado na presença e no uso significa bastante (...) o valor dessa experiência
sutil e leve das palavras. Num momento de crise, a não se dá somente por haver um corpo junto (...)
experiência de invasão e destruição de si, para os mas por ser um corpo habitado, um corpo atento,
sujeitos, é demasiado grande para que atuemos um corpo que carrega a história do próprio víncu-
de forma comum. É preciso mediar o insuportável lo(...) a experiência é integradora porque o sujeito
para o sujeito. Acalmar o em torno para que seu está sendo acompanhado por um corpo simbóli-
momento seja possível. Saber esperar e saber in- co e não apenas matéria física. Um outro capaz
tervir, dialogando com a angústia, e não com as de testemunhar e compartilhar as experiências do
frases em si. Dialogar com a comunidade em que acompanhado. A estabilidade e a constância nas
vive é também uma etapa importante. Acalmar atitudes do terapeuta também exerciam uma fun-
a família, acreditando que o sujeito irá melhorar. ção de Holding (BARRETTO, 1998 p. 64)
Tentar mediar a pressão que vem de fora, as fa- Durante os dias que se seguiram a essa se-
las e atos que se dirigem aos sujeitos, de modo mana, intensificamos as visitas e os cuidados,
a evitar as interpelações radicais que o atingem investindo naquilo que consideramos ser parte
de forma invasiva e destrutiva. A desorganização da expressão da crise: o descuidado. A vivência
do sujeito tem lógica. É preciso conhecer sua his- nessas situações novas e angustiantes interpelou-
tória, perceber o que lhe é ameaçador, hostil e nos psiquicamente, afetando inclusive o vínculo
destrutivo. O sujeito faz uma interpretação desta que estava sendo construído, visto que Joaquim
hostilidade e ameaça, derivando daí a importân- passava a ser temido. O apoio buscado junto ao
cia de se mediar as situações enquanto este busca CAPS foi insuficiente e precário, demonstrando a
se reestruturar. dificuldade na equipe em lidar com o caso. Foi
Da técnica do Acompanhamento Terapêutico, preciso aprender a lidar com este modo de estar
baseada nas teorias de Winnicott, utilizamos, ao e produzir uma presença suave, sem interpela-
longo desta intervenção, o conceito de Holding ções bruscas nem julgamentos, para restabelecer
como uma função importante no manejo da crise. e fortalecer o vínculo com ele, produzindo a ex-
O Holding é dado pelos aspectos invariantes do periência para Joaquim de um suporte psíquico
meio ambiente que tanto podem ser objetos con- necessário em momentos como este.
cretos de um lugar, quanto a disponibilidade de Os dias seguintes foram repetições deste rela-
outra pessoa estar junto de nós, atenta às nossas tado anteriormente. Após uma semana, sem ter-
necessidade ao longo do tempo (...). No Acom- minar a crise, Joaquim tem um primeiro momento
panhamento Terapêutico, em muitos momentos, de maior tranqüilidade e reelaboração dos mo-
essa função HOLD exerce papel marcante. São mentos vividos. Traremos aqui este dia pela rique-
momentos em que simplesmente estamos ali, jun- za de aprendizados que ele apresenta. Em outros
tos (...) o fato de estarmos ali, nossa presença, já momentos, ao longo dos 60 dias da crise, tivemos

163
dias de maior complexidade na abordagem e dias do trazida junto com o tema da internação, pela
de melhoria no quadro. Essas melhoras, entretan- sensação que tem destes momentos e por consi-
to, não permaneciam por muito tempo, visto que derarmos que está vivendo momentos difíceis em
a única intensificação de cuidados que o paciente sua relação familiar e comunitária. Consideramos
vivia era advinda de nossos encontros. que a dificuldade de lidar com tais circunstâncias,
As dificuldades com a irmã permaneciam, os bem como o não uso das medicações e a ausên-
conflitos com esta e com a comunidade também. cia no tratamento no CAPS têm contribuído na
Realizamos algumas visitas aos vizinhos, tentan- sua desorganização e crise. O discurso sobre a
do explicar o momento que vivia e a importância morte de Maria vem sendo mais e mais elabora-
em saber respeitar este momento, mas o cansaço do, deixando-nos preocupadas com a veracidade
visível da comunidade era claro e a lembrança dos dados: primeiro sinalizou que seria uma boa
da dificuldade em lidar com Joaquim era sempre idéia, depois que teria conseguido a arma com
convocada como justificativa dos comportamen- Bartolomeu, fuzileiro Naval que é seu amigo e
tos. O tratamento no CAPS não era particulariza- “bicho-solto”, faltando apenas a munição, e, em
do e ampliado neste momento. O gerenciamento seguida, que está tentando arranjar a grana para
da medicação continuava difícil. A vida continu- comprar a munição. Não conseguimos delimitar
ava a mesma, com pouca comida, pouco abrigo bem o que seria delírio e o que seria real, e, por-
e nenhum cuidado. A esperança era menor, para tanto, tememos que a arma pudesse existir, já que
ele e para nós, e, por tudo isto, a crise não ces- a idéia da morte da irmã vinha ocorrendo há três
sava mesmo quando havia momentos de signifi- semanas (...) Na ultima reunião do CAPS, eles nos
cativa melhora. O dia que se segue é exemplo de informaram que sua conclusão sobre o caso era
muitas aprendizagens compartilhadas, de trocas e de que Joaquim deveria ser internado e que deve-
de demonstrações de que o cuidado humano tem ríamos parar de nos arriscar tanto, demonstrando
efeito na vida e nas crises de usuários como este, assim a limitação da equipe e da instituição para
mas que sozinho e sem uma rede social real que lidar com momentos e pacientes como este.
signifique apoio e suporte, torna-se insuficiente e Nossa esperança estava diminuída, e as op-
limitado. Vejamos alguns trechos dos relatos da ções de trabalho no caso tornaram-se poucas.
semana seguinte: Vivemos o que, possivelmente, vivia Joaquim: a
Chegamos às 9:30h e conversamos antes de impossibilidade de encontrar meios para sobre-
adentrar ao CAPS e encontrarmos Joaquim. Con- viver e suportar a vida. Ele tentava, de maneiras
versamos sobre a melhor estratégia e sobre como variadas e divergentes, lidar com sua difícil condi-
estávamos compreendendo os acontecimentos. ção. A destruição de si e dos outros que o cercam
Consideramos que a ausência de Mabel e Lygia, parecia-lhe uma possibilidade sempre disponível.
antigas estagiárias que o atendiam, estava sen- Ele não lidava, ou lidava pouco, por meio de es-

164
tratégias simbólicas tais como a tentativa de com- uma carteirinha que estava em sua carteira dentre
preender ou conversar sobre estas questões que o os documentos. Era uma carteira de papelão que
angustiavam. Os conflitos freqüentes, a vida difícil ele mesmo havia feito onde estava escrito Passe-
ou as perdas que acabara de viver não encontra- Livre de Joaquim Souza Silva e tinha duas fotos
vam mecanismos relativizadores e simbólicos para de revistas de homens do exército. Ele nos diz que
que pudessem ser elaboradas. Diante do quadro um deles é Bartolomeu, seu amigo fuzileiro que
colocado, a autodestruição ou a destruição total serviu com ele no quartel e teria lhe dado à arma.
da situação e dos outros por meio da morte, do Perguntamos, bastante surpresas, se era ele mes-
assassinato ou de um “Armagedon” foram uma mo, e ele confirma novamente.
saída. Este foi, sem dúvida, um momento muito mági-
Encontramos Joaquim no CAPS às 10:00h co para nós, ver o desejo de tirar seu passe-livre
conforme havíamos combinado. Ele estava com num documento de papelão feito por ele mesmo
aparência abatida e inicialmente parecia forte- e descobrir, de forma tão simples, que tudo que
mente dopado. O segurança, que inúmeras vezes nos estava deixando ansiosas e amedrontadas era
nos ajuda a conversar com Joaquim, reclama que parte de um delírio. Por não ser tão irreal a pos-
ele tem dormido muito e participado pouco das sibilidade de conseguir a arma e por este delírio
atividades. Começamos a conversar com o pa- aparentar um discurso “normal”, linear, lógico e
ciente, que nos mostra seu braço engessado - te- bem elaborado, estávamos, por que não dizer,
ria brigado na rua e quebrado o braço (...). Após “delirando junto com ele” e fantasiando todas as
certo tempo, notamos que não estava com o pé formas de tentarmos resolver algo que, até então,
enfaixado ou com plástico cobrindo como antes, nos parecia real e iminente. Quando Joaquim nos
quando teriam lhe jogado uma garrafa e cortado mostrou parte de sua realidade num recorte de
seu pé. Olhamos discretamente, e não havia ne- revista, passamos a notar que não era mais tão
nhum corte. Parte da enorme confusão dos dias compartilhada a possibilidade da existência da
anteriores começava a ser dissipada. Após um arma. Foi balsâmico e mágico este momento, e
tempo conosco, começa a conversar animado. todas nós ficamos muito alegres e nos sentindo
Num dado momento, pergunta sobre o passe-li- “pegas pelo delírio” - como alguém que nos pre-
vre e os benefícios . Falamos que estamos pegan- ga uma peça e, no final, tudo se dissipa.
do o documento que atesta sua condição junto Fernanda entregou-lhe o caderno que havia
ao CAPS, para começarmos a tirar sua documen- comprado conforme tinha prometido (...) Ele en-
tação. Ele nos mostra alguns documentos, como tão buscou um de seus cadernos-livro e começou
um relatório de sua doença que, aparentemente, a mostrar algumas histórias. Algumas que fala-
recebeu quando tentou internação com seu irmão vam de uso de drogas e práticas sexuais que teria
semanas atrás. Após certo tempo, mostrou-nos participado numa “heavy” foram vetadas por ele.

165
Depois de um tempo, mostrou-nos um pequeno eu e do outro neste dia era imprecisa, confusa e
trecho em seu caderno que falava algo parecido fundida. Para ele, Maria teria lhe batido, ele teria
com isto: “e naquela noite de insônia e gritos, de- caído e batido com a cabeça, e não o contrário,
mônios e neblina, fez-se a guerra, muita guerra e como ocorreu. Como vimos em discussões iniciais
neblina e no meio da Neblina chegou Fernanda deste artigo, a produção da separação simbólica
e as Estagiárias trazendo a felicidade”. Pergun- do eu e do outro na psicose ocorre de forma pre-
tamos a ele sobre o que era esse trecho, e nos cária e imprecisa, de tal forma que, em momentos
disse que era sobre aquele dia que chegamos a de menor organização, este processo de viver a
sua casa, e Maria teria tentado bater com um pau relação com outro pode ser apreendida como se
em sua cabeça, o derrubando no chão onde ele o outro fosse um invasor, hostil, destruidor, que o
teria batido a cabeça. Diz ter saído de casa, cor- toma de seu lugar no próprio corpo.
rendo pela rua armado, quando chegou a polícia Continuando a leitura de seu caderno, Jo-
(viatura) e o liberou após a apresentação de seu aquim escreve sobre sua fama como escritor e
documento do exercito. Perguntamos se este foi como esta fama estava sendo conseguida graças
um momento de neblina. Fala que sim. Comenta a nossa ajuda na busca pela Editora abril, mais
sobre como é difícil viver com Maria. Fala que sua importante editora do Brasil, nas palavras dele,
irmã sempre mexia com ele, eles brigam há muito que lançaria seu livro. Esse trecho tem formato de
tempo, pois ela que tinha epilepsia e ficava cha- uma nota de jornal e fala dele e de outros gran-
mando ele de maluco. Diz então ter se desfeito des escritores como Saramago e Paulo Coelho.
da arma, pois Bartolomeu teria dito que poderia Após vermos esta nota, ele retorna ao tema das
machucar alguém. mortes e do desejo de matar algumas pessoas, e
Deste trecho, duas questões nos chamam aten- novamente falamos que não deveria fazer isso.
ção. A primeira diz respeito à primeira possibilida- Dialogamos com ele, dizendo que, como escritor,
de, depois de alguns dias, de viver e significar o não deve fazer isso, porque nunca vimos escri-
vivido a partir dos pequenos trechos de textos de tores famosos matando ninguém, e isso não era
seus cadernos. Após o dia de crise aguda, no qual bom para a história e futura carreira dele. Joa-
investiu contra a irmã e estava bastante desorga- quim sorri, fica pensativo e fala que é verdade,
nizado e delirante, Joaquim consegue mediar e que matar não é coisa de escritores.”
reviver simbolicamente o que houve e demonstrar, O desejo de tornar-se escritor é enorme para
por meio da escrita, a importância de nossa pre- Joaquim. Ao tentarmos esta intervenção, relacio-
sença para “dissipar a neblina e terminar com a nando seu desejo de ser um outro alguém com o
guerra”. Outro ponto importante é perceber, a par- desejo de cometer um ato que o afastaria deste
tir do que nos conta sobre os fatos do dia da crise, sonho, o toca de uma forma diferente de outros
como, para Joaquim, a percepção e vivência do momentos em que pontuávamos que não deveria

166
resolver seus problemas dessa forma. Desde en- despedimos alegres por esta nova etapa que se
tão, de tempos em tempos, quando há um retorno iniciava.
para este tema com muita intensidade, relembra-
mos o seu sonho e a importância de persistirmos “... a gente espera do mundo e o mundo es-
para que sua vida mude e torne-se melhor e mais pera de nós... um pouco mais de paciência...”
possível para ele. (Lenine)
Após um tempo, começa a nos presentear. Deu
um presente para cada uma de nós. Comentou Referências
que sua madrinha havia lhe dado aquelas coisas
BARRETTO, K. D. Ética e Técnica no Acompanhamen-
para ele dar a sua namorada, mas, como não to Terapêutico: andanças com D. Quixote e Sancho Pança.
tinha uma, quis dar o presente pra gente, pois São Paulo, UNIMARCO, 1998.
somos suas amigas. Fernanda ganha uma capa BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sergio
de celular, Ana ganha uma flor e uma bandeira Milliet. v.1, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
do Brasil para pôr na mesa e Adelly, uma bolsa BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. Departamento de Ações
e um Papai Noel. Fala que quer nos presentear, Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os
porque ajudamos muito ele. Ana pergunta se ele centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saú-
tem certeza que quer nos dar, já que sua tia tinha de, 2004.
dado para dar a namorada. Ele fala que sim, que BRASÍLIA. Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à
sabe que somos apenas suas amigas. Ele retoma Saúde. Legislação em Saúde Mental. Brasília: Ministério da
Saúde, 2004.
o tema de manter relações sexuais com as acom- CAMPOS, Gastão Wagner de S. & NICÁCIO, Fernanda.
panhantes, e, quando novamente falamos que Instituições de “portas abertas”: novas relações usuários-
não estamos lá para isso, ele, diferente de mo- equipes-contextos na atenção em saúde mental de base
mentos anteriores, diz que está brincando conos- comunitária/territorial. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, São
co e que resolverá isso num “brega”. Aproveita- Paulo, 16, n.1, p.40-46, jan./abr.,2005.
CASTRO, Helenice. Da urgência psiquiátrica à urgência
mos o assunto para falarmos sobre a importância do sujeito. Seminário: Dispositivos de tratamento em saúde
da higiene pessoal para arrumar uma namorada. mental na rede pública – construindo um projeto, CERSAM.
A importância de estar limpo, ter as unhas cor- s/d.
tadas e os dentes escovados para abraçar e bei- CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI. Da lama ao caos.
jar alguém. Ele concordou. Diz para Adelly que CD: Da Lama ao Caos, 1994.
DOEL, Marcus. Corpos sem órgãos: esquizoanálise e
ela lembra sua mãe, e então ela fala que deve desconstrução. In T. T. Silva (Org.), Nunca fomos humanos:
ser pelo cuidado que tem com ele e que por isso nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001,
acaba se lembrando dela. Ela sorri, e continua- p.76-110.
mos papeando até termos de ir. Antes, ele nos LENINE. Paciência. CD: Na Pressão, 1999.
pede para escutarmos uma música, e depois nos LOBOSQUE, Ana Marta. Princípios para uma clínica

167
antimanicomial. In: Princípios para uma clínica antimanico-
mial e outros escritos. Hucitec, s/d.
MARIANO, Silvana Aparecida. O sujeito do feminismo
e o pós-estruturalismo. Universidade Estadual de Londrina.
2006 Revista Estudos Feministas
SILVA, Marcus. Vinícius O. Deslocamentos no campo
das terapêuticas: ética e política. Texto apresentado no Nú-
cleo de Estudos pela Superação dos Manicômios – NESM.
Salvador: BA, (s/d, b).
SILVA, Marcus. Vinícius O. A clínica integral das psico-
ses: o paradigma psicossocial como uma exigência da clíni-
ca psicossocial. (s/d, a).
SILVA, Marcus. Vinícius O. Programa de Intensificação
de Cuidados – PIC. Supervisões de Estagio para os cursos
de Psicologia / UFBA e Terapia Ocupacional / EBMSP, Sal-
vador, 2006 (mimeo).
VIDAL, Fernanda B., BRAGA, Ana Claudia S. & SODRÉ,
Adelly R.O.M. Diário de Campo do Programa de Intensifi-
cação de Cuidados. 2006 (mimeo).

168
Dança e xadrez:
O papel da intensificação de cuidados no fortalecimento da autonomia de
Felipe
Luane Neves*
Vera Rittel**

A raposa calou-se e observou por muito tempo o Resumo: O presente artigo constitui-se num
pequeno príncipe: relato sobre o direcionamento clínico adotado
- Por favor... cativa-me! – disse ela. com um usuário do Programa de Intensificação de
- Eu até gostaria – disse o principezinho -, mas Cuidados a Pacientes Psicóticos do Hospital Espe-
não tenho muito tempo. (...) cializado Mário Leal, com vistas ao fortalecimen-
- A gente só conhece bem as coisas que cativou to da autonomia. Este paciente é acompanhado
– disse a raposa. – Os homens não têm mais tem- pelo programa há três anos e por nós há apro-
po de conhecer coisa alguma. Cativa-me! (...) ximadamente seis meses, por meio de visitas do-
- Que é preciso fazer? – perguntou o pequeno miciliares semanais. Um ponto central para o de-
príncipe. senvolvimento adotado neste caso foi o fato de a
- É preciso ser paciente – respondeu a raposa. intensificação de cuidados ser realizada em dupla.
– Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, Isso permitiu que pudéssemos tomar consciência,
assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho discutir e elaborar as questões em nós suscitadas
e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de pelo paciente e pelos direcionamentos que consi-
mal entendidos. Mas, cada dia, te sentarás um deramos mais adequados.
pouco mais perto...

Antoine de Saint-Exupéry em
“O Pequeno Prínipe”
O presente artigo constitui-se num relato so-
bre o direcionamento clínico adotado com
um dos usuários do Programa de Intensificação
de Cuidados a Pacientes Psicóticos no Hospital
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
Especializado Mário Leal (PIC), com vistas ao for-
**Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC talecimento da autonomia. Compreendemos que
a autonomia constitui eixo central na relação do
169
sujeito consigo e com o mundo externo e adota- multifacetado, em que a posição de dançarino se
mos a conceituação explicitada no Novo Dicio- sobressaiu à de doente mental.
nário Aurélio da Língua Portuguesa, pelo qual a Após algumas visitas da passagem, começa-
autonomia é definida como a “1. Faculdade de mos a juntar mais as peças do quebra-cabeça de
se governar por si mesmo. (...) 3. Liberdade ou sua biografia, inicialmente através de conversas e
independência moral ou intelectual. (...) 5. Pro- depois quando ele tirou alguns álbuns de fotogra-
priedade pela qual o homem pretende poder es- fias do baú para nos mostrar, o que ressuscitou
colher as leis que regem a sua conduta”. Desta- muitas memórias, principalmente sobre a época
ca-se ainda que o PIC, ao contrário do modelo em que ele trabalhava como dançarino de dan-
tradicional de atenção à saúde mental - baseado ça de salão. Felipe foi adotado quando criança,
no princípio normatizador psiquiátrico - considera numa família de oito irmãos. Sua mãe biológica
a extrema vulnerabilidade vincular do paciente e ainda está viva e mora na região litorânea acerca
por isso atua na intensificação de cuidados focan- de 30 km de Salvador. O paciente mantém um
do no desenvolvimento e fortalecimento do sujeito contato esporádico com ela e atualmente reside
e das redes sociais do mesmo, aumentando desta com sua família adotiva, numa casa de classe
forma sua qualidade de vida. Sendo assim, o PIC média baixa com dois cômodos e um pequeno
funda-se na clínica psicossocial, que ao invés de quintal, onde a mãe cria aves.
centrar sua atenção na pessoa doente, considera Há quatro anos, ele teve a primeira crise psi-
a “existência-sofrimento dos pacientes e sua re- cótica com internação por 26 dias. A partir de
lação com o espaço social” (Nascimento, 2005, então, toma medicação com antipsicóticos e já
p. 34). foi internado outra vez. Nessas ocasiões, o pron-
Este paciente é acompanhado por nós há apro- tuário médico destaca que o comportamento de
ximadamente seis meses. Vera o conheceu quan- Felipe era muito agressivo. Entretanto, sua forma
do ele fez uma apresentação de dança numa fes- de nos receber, sempre solícita e afetuosa, nos
ta de confraternização do estágio e depois o viu fez questionar onde foi parar sua raiva e agres-
apenas uma vez no grupo dos pacientes, quando sividade. Posteriormente, percebemos que essas
ele estava se queixando de dor de cabeça e per- nuances de sua personalidade se apresentam no
cebeu seu jeito gentil e muito calmo. Já Luane o delírio e nos momentos de crise. Considerando
conheceu a partir das passagens, momento em a perspectiva psicanalítica de que o homem se
que é feita a transição de estagiários. A dança é constrói a partir das relações que desenvolve com
um processo marcante na vida de Felipe e acre- o ambiente, é interessante refletir sobre o tipo de
ditamos ter sido significativo Vera o conhecer em ambiente a que ele estava exposto no período
uma de suas apresentações, pois fortaleceu diante de internação. Além disso, destaca-se também a
de nós a expressão dele como um sujeito psíquico condição psicológica precária da família para li-

170
dar com os desconfortos que uma crise psicótica até o carro. Além disso, ele não se apresentou
produz. disponível para trocar o dia e horário das visitas,
Embora conste que sua crise foi paranóica, a proposta feita por nós em um dos primeiros en-
família sempre se refere à sua doença como sen- contros.
do depressão, destacando que, nesses momen- Neste sentido, ganha relevo a constante apre-
tos, ele ficava em casa, sem vontade para fazer sentação de Felipe como uma pessoa gentil e
nada. Felipe era dançarino profissional (com for- solícita, aparentemente com pouca demanda de
mação em ballet), tendo feito cursos e algumas cuidado. Destaca-se ainda que a necessidade de
apresentações na região sudeste. Aparentemente, se apresentar socialmente conforme o suposto
foi o surgimento da doença mental, aliado a seus desejo do outro pode denotar pouca autonomia.
desdobramentos, que interromperam sua carrei- Segundo Tatossian (2006), a atitude de alegria
ra profissional. Apesar do relato de que, a partir constante não significa que a pessoa realmente
da crise, Felipe passou a não sair muito de casa esteja alegre, podendo refletir uma inautenticida-
devido a este suposto estado depressivo, nos mo- de não somente das expressões afetivas, mas dos
mentos em que ele nos acompanha até o carro, sentimentos mesmos; o que pode se traduzir em
no término da visita, podemos observar que, na alguns sintomas psiquiátricos.
vizinhança, tem muitos conhecidos com os quais Compreendemos que essa atitude, apesar de
ele conversa. Além disso, sua casa é bastante reforçada socialmente, nem sempre é positiva
movimentada, o que inicialmente não nos leva a para o desenvolvimento psíquico de Felipe, pois
pensar num quadro de isolamento social. pode cristalizá-lo no papel de buscar sempre
Visto que ele não se apresenta muito disponível sentir e atender as necessidades externas. Teori-
para realizar saídas de casa conosco, as primei- camente, essa questão é também abordada por
ras visitas a Felipe (período de transição de esta- Keleman (1992) que, ao analisar a estrutura do
giárias) seguiam sempre um mesmo padrão: nós sujeito, a partir de sua postura corporal emocio-
chegávamos e ficávamos na sala com ele e seu nal, observou traços de imaturidade em pessoas
pai, sempre com a televisão ligada. O diálogo que apresentam “estruturas corporais inchadas”
entre nós circunscrevia-se a questões do cotidia- (possível caso de Felipe, segundo nossa percep-
no, em geral, desenvolvidos a partir de comen- ção). De acordo com o referido autor, essas pes-
tários sobre programas televisivos. Vale ressaltar soas preocupam-se em ser aquilo que os outros
que Felipe mantinha rotinas bem estabelecidas querem que ela seja. Almeida (2006, p. 89) com-
em relação ao decorrer da visita: sempre nos re- plementa tal questão, ressaltando que “o psicóti-
cebia com alegria, sorriso no rosto, ficávamos na co goza de ser, ser o falo que completa o Outro,
sala quase sempre nas mesmas posições e, no fim o que equivale a dizer que o gozo está localizado
das visitas, ele nos acompanhava atenciosamente no Outro”.

171
Notamos, então, a necessidade de desenvolver rizar o saber do paciente e propiciar um espaço
outras atividades que favorecessem a Felipe apre- em que ele pôde atuar como sujeito no mundo.
sentar suas necessidades e desejos. Neste sentido, Considerando a noção de complementaridade
Barretto (1998) afirma que - para ser interlocutor ou reciprocidade exposta por Fumagalli (1995)
dos desejos e angústias do paciente - o terapeu- em concordância com a teoria de Pichon-Rivière
ta não deve se limitar a interpretações, mas sim - pela qual a constituição de um papel implica a
agir como pessoa real, por exemplo, num simples instituição do papel contrário - colocamo-nos no
bate papo. Outro ponto importante era estabele- lugar de alunas para propiciar um espaço em que
cer uma maior aproximação da família, para per- ele pudesse assumir a posição de professor. Além
ceber como Felipe inseria-se neste contexto. Para disso, sentimos que as aulas de dança fortalece-
tanto, demonstramos interesse por aquilo que sua ram o vínculo entre nós, o respeito no estar junto,
mãe gostava: a criação de galinhas e codornas e a alegria espontânea e a criatividade de Felipe
algumas pequenas plantações no quintal, o que ao planejar as aulas. Ressalta-se ainda que, no
propiciou alguns momentos de diálogo. Somen- caso dele, a escolha pelas aulas de dança ocor-
te a partir daí, fomos convidados a entrar mais reu por, aparentemente, constituir-se no elo capaz
no interior da casa. Destaca-se, entretanto, que de fortalecer mais sua rede social, engajando-o
a aproximação com a mãe de Felipe ficou estag- na cultura; uma vez que ele demonstrava interesse
nada na compra de ovos de codorna, que se tor- pela atividade e já possuía uma história vinculada
naram quase sempre semanais. Percebemo-nos, à mesma.
depois, neste sentido, submetidas tanto quanto Felipe aceitou prontamente a troca, e, a partir
Felipe à força do desejo de sua mãe. daí, começou dinamicamente a conduzir o plane-
Atentas para o surgimento de alguma neces- jamento de nossos encontros, alterando em dife-
sidade apresentada pelo paciente, ele nos reve- rentes momentos sua postura, da passividade para
lou que sempre quis aprender xadrez, após Vera a atividade e autonomia. Ele guiava a ordem das
lhe contar uma história, a “Novela de Xadrez”, de atividades nas visitas: primeiro a aula de xadrez,
Stefan Zweig, em que um preso político se defen- depois a aula de dança e, entre elas, assistir um
de de enlouquecer durante a tortura através da filme sobre dança. Isso foi marcante, pois Felipe
prática do jogo de xadrez na imaginação. Combi- anteriormente apresentava certa indefinição sobre
namos com ele, então, uma troca: nós lhe ensina- as coisas, por mais simples que fossem. E, a par-
ríamos xadrez e ele nos ensinaria dança de salão; tir deste processo, ele começou a se posicionar
forma por nós encontrada de incentivá-lo a voltar mais, expondo com antecedência o que queria
para sua antiga ocupação (a dança) e re-experi- fazer nas nossas visitas futuras.
mentar como se sente na posição de bailarino e
professor. Essa também foi uma forma de valo- A partir das visitas em que jogamos xadrez,

172
além de perceber sua iniciativa de organização, aulas de dança. Além disso, ele desmarcou duas
observamos também uma delimitação maior de visitas posteriores às aulas de dança. Acrescenta-
seu espaço através de palavras firmes em diver- se a isso que, no final do semestre, Felipe nos re-
sos momentos: a exemplo de quando uma amiga latou que vinha repensando se seu desejo e seus
bem próxima de sua família quis que Luane ficas- planos continuariam a incluir a dança e que sen-
se com ela conversando, enquanto ele precisava tia recorrer à televisão como uma fuga, utilizando
dela para apóiá-lo na partida de xadrez que joga- esse recurso às vezes na tentativa de entender o
va com Vera, e ele não permitiu. No jogo, obser- que acontecia com ele. Podemos perceber, assim,
vamos que Felipe aprendeu com rapidez o signifi- que Felipe desenvolveu conosco um “projeto”
cado de cada peça, bem como seus movimentos (termo utilizado por ele) que buscava novas ex-
específicos e, após certa hesitação, pôde também perimentações e que foi permeado também por
mostrar iniciativa e enfrentamento, “matando” as reflexões sobre o direcionamento que dará à sua
figuras do adversário para tentar ganhar. vida, a partir das vivências anteriores.
Um outro ponto que surgiu a partir desse semes- Quanto às aulas de dança, o resultado foi
tre foram as constantes desmarcações em nosso surpreendente. Na primeira visita que ele mar-
horário de visita, fixado em dia e hora específicos, cou para este fim, chegamos à sua casa e en-
por escolha do próprio paciente. Teve alguns mo- contramos um ambiente novo: ele já tinha esva-
mentos em que não sabíamos como interpretar ziado a pequena sala, elaborado um roteiro de
essas desmarcações no dia da visita, mas, através aula bem estruturado, posicionado o pai numa
de sua voz alegre ao telefone, confiamos em suas cadeira atrás da cortina que separa a cozinha da
explicações sobre saídas inadiáveis para aniversá- sala e desligado a TV; reconfigurando o espaço
rios e festas acompanhando sua antiga professora para sua necessidade naquele momento. Pode-
de dança e percebemos que ele também passou mos considerar, a partir das contribuições teóricas
a organizar, de certa forma, a freqüência de seus de Winnicott, retomadas por Safra (2006), que
encontros conosco. Além disso, compreendemos a atitude de Felipe modificando o ambiente se-
que o processo de mudanças em curso mobilizou gundo suas necessidades pode ser compreendida
o paciente de diversas maneiras, e seguindo um como um placement, que produziu novas tensões
dos princípios da clínica psicossocial, de tensionar no ambiente, além de proporcionar a revivência
e destensionar as questões, decidimos respeitar o de memórias. Quanto ao roteiro elaborado por
seu espaço. ele, as aulas iniciavam e terminavam com alon-
Refletindo posteriormente, percebemos tam- gamento, perpassando cerca de quatro estilos de
bém um outro ponto significativo neste contexto: dança de salão e, no fim ele nos trazia pipoca
as desmarcações de Felipe, em geral, referiam-se e suco para um relaxamento; destacando que o
às visitas marcadas para assistir filmes ou para as lanche foi feito por ele para nós. Esse momento

173
final foi especialmente importante, por propiciar da vida cotidiana. De maneira semelhante, acon-
um espaço em que ele pôde reviver algumas de teceu com o jogo de xadrez, em que a necessida-
suas lembranças da época de dançarino profis- de de avançar frente aos campos desconhecidos
sional e elaborá-las junto a nós. (campo do outro) constituiu-se em ato, ao invés
Durante as aulas, Felipe demonstrou bastan- de somente palavras. O autor supracitado acres-
te profissionalismo e paciência, feedback dado a centa ainda que o jogo de xadrez pode ser utiliza-
ele por nós também. Podemos compreender essa do também como espelho da vida.
vivência junto ao paciente como uma experiência Durante as aulas de dança, percebemos mais
estética e de satisfação. Segundo Safra (2005), vitalidade e graciosidade em seu corpo, resgatan-
nestes momentos, tanto o paciente quanto os do um pouco da flexibilidade e auto-regulação
terapeutas experienciam vivências de encanto, (Lowen, 1982), o que se refletiu, posteriormente,
de alegria ou de beleza. Winnicott (1967, apud em algumas intervenções na família e em suas
Safra, 2005) acrescenta que, nestas ocasiões, o ações e reações. Segundo Pitiá e Santos (2005),
reflexo especular fornecido pelo outro abre a pos- é possível inferir que a consciência do limite cor-
sibilidade do paciente encontrar a si mesmo e, ao poral proporcionada pelo toque constante, na
mesmo tempo, ao outro. dança de salão, pôde ajudar Felipe a delimitar
Uma grande questão trazida nos relatos das seu espaço dentro da família, fato observado na
estagiárias anteriores sobre Felipe e também per- prática. Além disso, os referidos autores destacam
cebido por nós nas primeiras visitas era que ele que o trabalho corporal proporciona mudanças
costumava fazer muitos planos, mas apresentava de pensamento e atitudes, ao facilitar uma maior
pouca iniciativa para realizá-los. Neste sentido, as integração mente-corpo; podendo ter como con-
aulas de dança funcionaram como oportunidade seqüência uma diminuição da ansiedade. Por
de reviver, na prática, essa posição antes ocupa- tudo isso, notamos que a inter-relação entre ofe-
da com orgulho, de ser um professor de dança. recermos as aulas de xadrez para Felipe e ele nos
Além disso, através de nossas dificuldades nas au- ofertar as aulas de dança permitiram uma alter-
las, pudemos lhe demonstrar como expressar e nância na posição de saberes (aquele que doa e
lidar com vulnerabilidades, erros, vergonhas e vi- aquele que recebe) e podemos perceber, então, o
venciamos algumas saídas possíveis. Rimos muito fortalecimento da autonomia de Felipe.
nesses momentos. Considerando as intervenções Em nossas visitas regulares, fornecemos hol-
e a convivência com a família, no caso de Feli- ding – processo pelo qual uma pessoa se dispo-
pe, retomamos as teorizações de Barretto (1998) nibiliza para outra, utilizando da presença do seu
ao esclarecer que, através do trabalho em nível corpo simbólico e habitado de forma constante,
dramático-vivencial, o paciente aprende modos tanto física quanto psíquica, com vistas a oferecer
diferentes de atuar e reagir frente às vicissitudes sustentação. Para tanto, são necessários tranqüi-

174
lidade e um referencial teórico bem integrado, no usuários de saúde mental, sendo inclusive difun-
caso de terapeutas (Barretto, 1998). No decorrer dida anteriormente pela psiquiatria.
do trabalho, sentimos que Felipe desenvolveu uma Devido a tais concepções, um de seus familia-
maior confiança no vínculo conosco e segurança res preocupa-se em delimitar o horário de Felipe
para, em ato, planejar seu futuro, conduzindo-se, voltar para casa, quando este sai, por exemplo.
agora, não somente em idéias, mas também em Ele destaca que Felipe tem de voltar a fazer as
ações: decidiu se matricular novamente no 3o ano coisas devagar e ter um tempo para “descansar
do Ensino Médio e, por isso, foi até a escola sa- a cabeça” (sic). De fato, o processo de mudan-
ber informações sobre a matrícula para o próximo ça de Felipe deve ser gradual para que ele possa
ano. Interessante que, nesta visita, ele passou um adaptar-se às mudanças de maneira saudável,
bom tempo falando, animadamente, sobre a es- contudo, o ritmo e o desejo dessa readaptação
cola que visitou e suas idéias para o próximo ano: só podem ser determinados pelo próprio pacien-
combinou com sua antiga professora de dança te, e não pelo ambiente externo. Considerando
de receber aulas pela manhã, ministrá-las com o surgimento de seu desejo de mudança, Felipe
ela pela tarde e estudar à noite. A partir desses avançou ao verbalizar que se percebe cristaliza-
fatos, inferimos que sua falta de reatividade rela- do e segregado na função de doente mental e
tada pelas estagiárias anteriores diminuiu. Desta- o quanto isto é doloroso; fazendo-o sentir-se in-
ca-se, também, que ele já consegue demonstrar compreendido. Neste sentido, compreendemos
para nós, de modo mais claro, seus sofrimentos e ter sido muito importante para o paciente poder
mágoas. constituir junto conosco um espaço de escuta, em
Notamos, contudo, que para a efetividade na que suas experiências puderam ser compartilha-
execução dos planos desenvolvidos por Felipe das, simbolizadas e elaboradas; fenômeno expos-
para sua própria vida, serão necessárias muitas to por Barretto (2005) como continência.
mudanças, as quais incluem desde um novo po- Em um de nossos últimos encontros em 2006,
sicionamento do paciente diante da vida até uma Felipe, pela primeira vez desde o seu ingresso
reformulação na visão da família sobre suas po- no programa, falou para nós de si e de maneira
tencialidades de se autogerir a partir das crises bastante mobilizada. Neste encontro, o ambiente
psicóticas; visto que o cuidado pode também se estava diferente, além das pessoas estarem deslo-
revestir em controle. Na tentativa de compreender cadas de suas posições habituais. Felipe parecia
e lidar melhor com o fenômeno da psicose, al- sentir-se oprimido e sufocado. Começou dizen-
guns de seus familiares explicam o surgimento da do que não queria mais ser acompanhado pelo
doença mental em decorrência da mente traba- programa e que não queria estagiárias novas,
lhar muito rápido e do excesso de atividades. Esta pois estava bem e existiam outros pacientes que
visão equivocada é comum a alguns familiares de precisavam mais de tratamento do que ele. Ele

175
retomou que entrou no programa por que quis tos para não se paralisar diante do preconceito
e agora queria sair, pois não queria lembrar das do outro. Neste sentido, Goffman (1982) postula
coisas que já passou. Sentimos que, por trás des- que, diante do estigma, expressões emocionais
sa fala de querer sair do programa, havia outras mais fortes ou atitudes menores (a exemplo de
coisas que ele precisava externalizar, mas não sa- uma briga na família) podem ser interpretados
bia como. Por isso, perguntamos-lhe o que estava de forma errônea, associando tais processos aos
sentindo e o porquê desse desejo de deixar de atributos diferenciais estigmatizados, neste caso,
participar do PIC, sinalizando que era importante a patologia mental. Enquanto isso, nas pessoas
para nós ouvir o que ele tinha a dizer. consideradas normais, não se interpreta tais acon-
Foi então que Felipe começou a falar várias tecimentos como expressão sintomática. Compre-
coisas, dizendo que iria abrir o jogo. Começou di- endemos também que, na postura diferenciada
zendo que ninguém sabe o que ele passou quan- do terapeuta, é possível aliviar os impactos que
do internado e que ele iria morrer sem aceitar o a visão estigmatizante produz. Segundo Barretto
que aconteceu com ele. Relatou que não gosta (1998), estar junto como pessoa real e não ape-
nem de passar pelo Mário Leal para não recor- nas como profissional ajuda a evitar um lugar
dar isso e que não queria mais ser acompanhado, excessivamente institucionalizado, embora exija
pois não queria mais este rótulo de doente men- bastante discriminação, capacidade de análise e
tal. Retomou sua mágoa, dizendo que sua família reflexão.
não soube apoiá-lo e, ao invés de dar as mãos Refletindo sobre as mudanças vivenciadas e
para juntos caminharem, o internou mais de uma aquelas que Felipe deseja empreender, reforçamos
vez. Esse momento foi muito rico, pois o fato de que tudo isso só foi possível por ele estar aberto
poder ter nos contado o que sentia quando foi e que a própria idéia do xadrez partiu dele. Neste
internado, traduzindo a experiência numa lingua- momento, ele nos disse que tem se questionado
gem, significou certa elaboração/simbolização sobre o que quer de fato, inclusive repensando
por parte do paciente e, conseqüentemente, de- a dança em sua vida. Vera falou um pouco de
senvolvimento psíquico. Ele destacou não querer como as mudanças, de modo geral, nos afetam
mais acordar e somente arrumar a casa, que ele e afetam os outros ao nosso redor, relatando sua
quer mais. Valorizamos muito seu desejo de mu- experiência ao sair da Alemanha para o Brasil, o
dar, destacando que ele tem muitos potenciais. que implicou no afastamento de sua tradição fa-
Discutimos bastante sobre o estigma da doen- miliar, e as dificuldades de sua família em aceitar
ça, temática trazida também em visitas anterio- as diversas quebras de padrões. Felipe concordou,
res, e sobre o desconforto que esse sentimento de e sentimos que ele se identificou com isso, repre-
ser taxado de “maluco” produz, destacando que sentando, de algum modo, o que também sente,
é preciso aprender a lidar com esses desconfor- diante de todas as diferenças que vivencia com a

176
sua família. Para Barretto (1998), nestas ocasiões, níveis para desenvolver novos projetos com ele,
o terapeuta age como pessoa real, inserido numa assim como as novas estagiárias, segundo suas
cultura em que elaborou suas experiências. necessidades. Felipe demonstrou bastante impli-
Referindo-se ao desejo de sair do programa, cação no processo, centrando nele a responsabi-
por não querer mais se ver como doente mental, lidade de mudar: falou da necessidade de perder
Felipe relatou que não está tomando a medica- peso, que somos os nossos maiores psicólogos e
ção psiquiátrica há cerca de cinco meses e não que ele precisava lutar contra si mesmo, para se
está sentindo nada. Foi muito importante estar- controlar.
mos atentas a esse caso, pensando clinicamente Barretto (1998) destaca que, uma vez estabe-
sobre o mesmo, para não cairmos na cilada de lecida a confiança, o paciente pode apresentar
priorizar os remédios ao invés do sujeito, pois, algo de sua realidade psíquica, sendo que, ao
neste sentido, perderíamos toda chance de dialo- compartilhar a angústia com o outro, esta se torna
gar com a experiência que ele estava vivenciando, suportável e humanizada. A experiência de inves-
que era justamente a de não se posicionar como tir confiança em Felipe e acreditar que ele pode
doente. Destaca-se, neste sentido, a importância ser capaz de dar conta de sua liberação dentro
de estabelecer junto ao paciente um lugar que e fora da família, respeitando seu desejo de ficar
sustenta ser depositário de suas angústias (Riviè- sem contato conosco durante o período de festas
re, 2000). Discutimos que a medicação, o pro- de final de ano e nas situações em que as visitas
grama, a psicoterapia, dentre outras coisas, são foram desmarcadas, nos trouxe muitas inseguran-
possibilidades, as quais ele pode ter acesso para ças. Contudo estamos conscientes de que, para
sentir-se bem e que poderia articular-se diante de- chegar a um certo grau de autonomia, é neces-
las de diversas maneiras. Ele acrescentou que não sário passar por desafios. Outro aspecto central
queria mais se consultar com os médicos, enfim, observado na situação do desabafo é que esta
rejeitou essa rotina que o faz sentir-se cristalizado proporcionou a oportunidade de Felipe direcionar
na posição de doente, ao invés de um sujeito com certas questões também para a família, e isso, de
potencialidades. algum modo, mobilizou a todos: fosse na maior
Destacamos para Felipe a necessidade de rea- movimentação de seu pai na cadeira, na saída de
lizar um processo de mudança gradual e que res- seu irmão de casa ou nas panelas que sua mãe
peite o seu ritmo interno, para não sentir o peso deixou cair.
de uma transição brusca; mas, na realidade, essa Ao final desta visita, fomos nos despedir da
mudança já vem ocorrendo há muito tempo den- mãe de Felipe, e ela já havia separado os ovos de
tro dele e agora eclodiu. Ele falou, também, da codorna para levarmos. Como combinado ante-
noção de projeto que nossos encontros tiveram riormente entre nós, dissemos-lhe que não leva-
e aproveitamos para falar que estávamos dispo- ríamos os ovos essa semana, ao que ela insistiu

177
enfaticamente. Felipe fez sinal para seguirmos, o do de outra forma a sua origem e ressignificando
que fortaleceu a nossa decisão de não cedermos, as circunstâncias de sua adoção, ele poderá se
com a intenção de modificar a relação com a localizar com mais sustentação no mundo, e, des-
mãe. Mais do que nunca, depois de tudo que ele sa forma, desenvolver mais segurança e autocon-
trouxe nessa visita, não podíamos nos submeter fiança. Ademais, Marinho (2006) destaca que o
à força do desejo de sua mãe; terapeuticamente psicótico apresenta dificuldade em achar o seu
precisávamos nos posicionar diante dela também. lugar diante da história familiar, necessitando re-
Percebemos a beleza deste encontro e como esta construir as origens de sua vida, o que se expres-
experiência foi capaz de liberar um acúmulo in- sa no delírio. Contudo, compreendemos que esta
terno de suas necessidades, aliviando a tensão e necessidade deve partir do próprio paciente, para
também o libertando de alguma forma das exi- que sejam as necessidades dele, e não as dos es-
gências externas. Keleman (1992, p. 140) abor- tagiários ou da família a serem trabalhadas.
da bem esta questão ao explicitar que “o corpo Um ponto central para o desenvolvimento
inchado grita para ser deixado em paz, sem ser adotado neste caso foi o fato de a intensificação
abandonado”. de cuidados ser realizada em dupla. Isso permi-
Segundo Safra (1995, apud Barretto, 1998), tiu que pudéssemos tomar consciência, discutir e
uma experiência, para ser integradora e consti- elaborar as questões em nós suscitadas pelo pa-
tutiva deve ter início, meio e fim, em que o ritmo ciente e também adotar os direcionamentos que
da criança (e da vida – nascimento, constituição consideramos mais adequados. Depararmo-nos
do sujeito – morte) deve ser respeitado até chegar com nossos pré-conceitos e imaginários sobre a
a um gesto espontâneo. Expandindo essa visão saúde mental e o investimento no fazer clínico foi
para o processo terapêutico, o paciente, após de fundamental importância para que pudésse-
uma fase de hesitação, começa a estabelecer um mos sustentar essa posição de troca, que exigia
vínculo de confiança com a figura e a pessoa real um grande envolvimento e disponibilidade, inclu-
do terapeuta. Depois, o setting terapêutico pre- sive física, para o processo. Neste sentido, revela-
cisaria ser destruído aos poucos pelo paciente, se não apenas o cuidado para com o paciente,
até que a relação dos dois (paciente – terapeuta) mas também entre as próprias estagiárias que,
possa se encerrar, construindo a possibilidade do no processo da clínica, formularam, para além
sujeito vir a exercer sua autonomia frente ao tera- de um conhecimento sobre o paciente, um maior
peuta. Será que Felipe agora expressou o gesto conhecimento sobre si mesmas.
espontâneo?
Muitas outras questões podem vir a ser traba-
lhadas nesse caso, a exemplo da relação do pa-
ciente com a mãe biológica, pois, compreenden-

178
Referências

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São Paulo: Escuta.

179
O solitário na multidão: a solidão da diferença
Ana Paula Miranda da Hora*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo


dar visibilidade a um sentimento de solidão pe-
culiar aos psicóticos a partir de uma reflexão so-
A
solidão é um fenômeno pungente em nossa
sociedade. Na Modernidade, análises sócio-
antropológicas já apontavam para uma tendência
bre o tema. Para tanto, utiliza-se da experiência à alienação e ao isolamento do indivíduo, prin-
de acompanhamento a um paciente inserido no cipalmente nas grandes metrópoles. A passagem
PIC (Programa de Intensificação de Cuidados a do modo de produção coletivo, sociedades holís-
pacientes psicóticos). A solidão psicótica é um as- ticas, para as sociedades de consumo, capitalistas
sunto de grande relevância clínica e social. Entre e individualistas trouxe o embrião para a experi-
os fatores que contribuem para a presença desse ência do sentir-se só de cada um. Nas grandes
sentimento estão o processo histórico de exclusão cidades, o sentimento de solidão se torna cada
do diferente do convívio social e a própria relação vez mais intenso.
frágil do psicótico com o outro. Durante a discus- Imersos na multidão indiferenciada, os indiví-
são do caso, são levantados pontos importantes, duos andam alheios uns aos outros, cada qual
assim como comentadas as intervenções realiza- em busca dos seus interesses particulares. Se vol-
das com vistas à criação e fortalecimento dos la- tarmos um pouco da atenção para o nosso com-
ços sociais do acompanhado. portamento durante o transcurso de um dia, não
raro nos flagraríamos a planejar o próximo com-
Quem é esse que perambula pela es- promisso, a pensar na discussão com o colega
trada sem rumo em meio à multidão? O de trabalho ou a fantasiar um possível encontro
que ele busca? O que deseja? É um so- amoroso para o final de semana. Ou seja, vive-
litário, absorto em seus delírios: a última
mos um tempo em que a nossa rotina tende a
chance de se livrar do insuportável senti-
nos levar para um ensimesmamento que não nos
mento de solidão.
permite olhar a nossa volta. Como Brentano tra-
duziu: “Todos os que eu via andavam na mesma
* psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC

180
rua, uns ao lado dos outros e, no entanto, cada Internet. E por que não dizer de uma certa conde-
um parecia seguir seu próprio caminho solitário, nação à solidão? O mundo das virtualidades, ao
ninguém se cumprimentava, cada um ia atrás de qual o homem contemporâneo se encontra sub-
seu interesse pessoal (...)” (BRENTANO apud TA- merso, de certa forma, anuncia a sua condena-
NIS, 2003, p.57). ção a ser solitário (KATZ, 1996, p.63).
Atualmente, observamos o fracasso da profun- De acordo com Katz (1996), a presença do
didade das relações, que estão cada vez mais su- outro é insuficiente para que a solidão se finde.
perficiais e fugazes. Estamos experimentando uma Esse autor afirma que é na busca pelo outro que
carência de substância que pode ser observada o homem se depara com a solidão. O “ir em bus-
nos padrões de comportamento das pessoas. Os ca”, para este autor, desvela a constatação do
relacionamentos virtuais ganham espaço e vão, “ser só” que não é sanado no encontro com o
passo a passo, substituindo o contato físico. Os outro. Ao contrário, “quando o indivíduo busca
encontros ficam a cargo da fatalidade ou coin- mais desesperadamente a procura do outro, é
cidência, e as promessas de reencontros, aos nesta procura que ele encontra a solidão” (KATZ,
poucos, vão sendo esquecidas com o passar dos 1996, p. 29). A concepção universalizante de que
dias. Não fazemos muita questão do outro, de es- o homem deve viver em sociedade faz com que a
tarmos com o outro, embora este outro seja fun- solidão seja vista como uma anormalidade, como
damental para nossa sobrevivência enquanto hu- um sentimento negativo que todos devem evitar
manos. Normalmente, quando este é procurado, (KATZ, 1996, p.29).
é por um motivo pontual, claro e objetivo. Seja Contudo há quem visualize uma positividade
como uma companhia para diversão seja como na experiência do sentir-se só. Katz (1996) fala
um confidente de nossas conquistas e desilusões. da solidão positiva, o que vai de encontro à nor-
A celebração do encontro e o prazer de estar com ma geral da solidão como algo negativo (KATZ,
o outro são cada vez mais raros na nossa cultura. 1996, p. 30). O autor defende que momentos de
As análises mais pessimistas (ou realistas?) diriam solidão podem nos permitir experiências inalcan-
que viver de forma isolada e alienada é uma ten- çáveis quando se está na vida social. Ele chega a
dência do homem urbano contemporâneo (TA- defender o asilamento como uma forma de estar
NIS, 2003, p. 55). com os seus pares, libertados das regras sociais
Para Tanis (2003), este comportamento tem a ou psíquicas ditas normais (KATZ, 1996, p.141).
ver com a atomização da sociedade, com a in- Para Tanis (2003), esta solidão diz algo sobre a
capacidade de comunicação e uma certa falên- capacidade de estar só e de usufruir a experiência
cia da linguagem (TANIS, 2003, p. 13). Podemos de agir apenas de acordo com o que nos manda
falar também do surgimento de um novo tipo de a nossa vontade. (TANIS, 2003, p. 151). É com-
comunicação e linguagem quando pensamos na preensível que, muitas vezes, queiramos nos isolar,

181
fugir da correria das cidades grandes, estarmos pensavam em abrir caminho na multidão.
sós com nós mesmos. No entanto esta decisão Outros, de faces coradas, também nume-
deve ser voluntária, não imposta pela sociedade. rosos, andavam com movimentos inquie-
De acordo com Tanis (2003), vivemos de for- tos (...), como se a densidade da massa
que os rodeava lhes fizesse sentir mais a
ma defensiva a todo instante. É que, para o autor,
própria solidão (TANIS, 2003, p. 68).
se configura como uma ameaça o contato com o
outro e com seus próprios conflitos internos, pois
Para Tanis (2003), há uma diferença entre
nos remete a nossos próprios conflitos. Isso leva o
“estar só” e “sentir-se só”. Esta solidão é expe-
indivíduo a voltar-se para si mesmo, a escapar do
rimentada mesmo na presença de muitas pesso-
contato com o mundo e a estar, permanentemen-
as. O sentir-se só é uma experiência próxima ao
te, alerta e precavido, embora não se saiba muito
desamparo em nossa sociedade. Para o autor, a
contra o quê. Esta é a solidão dos neuróticos, que
solidão resulta do “esvaziamento do papel do ou-
todos nós, ditos normais, vivemos (TANIS, 2003,
tro” e dos vínculos do sujeito com este. De acor-
p.99).
do com o autor, o que está nas bases da solidão
Desta forma, a solidão se faz presente como
são as relações entre o eu e o objeto. Para ele,
uma produção social da qual todos fazem parte. A
não existe solidão sem referência ao outro (TANIS,
solidão também pode desorganizar psiquicamen-
2003, p.168). Nesse sentido, merece destaque a
te o neurótico. O “sentir-se só” ou, simplesmen-
experiência vivida pelo psicótico, uma vez que sua
te, a ausência da presença do outro pode levar
relação com o outro é estabelecida de forma pre-
a uma desestruturação, podendo chegar a uma
cária, ou seja, a posição que este ocupa não está
alteração do estado de consciência, desorgani-
bem definida nas relações de objeto. A psicose
zação espaço-temporal e vivências alucinatórias
desenvolve uma relação especial com o objeto
(TANIS, 2003, p.139). O “sentir-se só” é denomi-
(TANIS, 2003, p. 123).
nado pelo mesmo autor como a solidão da dife-
O “louco” compõe um grupo específico, no
rença (TANIS, 2003, p.29). Esta solidão é engen-
qual a solidão existe de forma impactante e con-
drada pela exclusão da diferença. É a solidão do
creta. Esta é a solidão da exclusão, considerada
não pertencimento, freqüentemente experimenta-
aqui como imposta. Nossa sociedade exclui aque-
da pelos indivíduos à margem da sociedade. Esse
las pessoas que não teriam condições de compar-
sentimento se aproxima da sensação de estranha-
tilhar das mesmas regras sociais da maioria. No
mento do mundo no qual se está inserido, como
dizer de Katz (1996), são os solitários naturais,
nos conta Tanis (2003):
“pois não teriam condições naturais de se comu-
A maior parte tinha um modo de an-
nicar e conviver com outros de modo natural”.
dar satisfeito e prático e evidentemente só O ser “natural” significa, para o autor, possuir

182
a capacidade de atender às variadas exigências coerência do mundo da vida, uma expectativa de
produtivas dos grupos sociais. Para ele, o “louco” felicidade e harmonia” (KATZ, 1996, p.45). Desse
se expressa numa linguagem impossível de ser so- modo, esta solidão deve ser afastada da socieda-
cializada (KATZ, 1996, p. 43). Esta solidão tem de dos ditos normais sob risco de contaminá-la
um aspecto negativo, por ser marcada pela im- com a loucura que está em cada um de nós.
possibilidade do indivíduo de compartilhar algum O louco recusa-se a ficar sozinho. Angústia
projeto grupal ou social.Como se não bastasse desesperada do indivíduo na multidão solitária.
tamanho determinismo “natural”, o psicótico ain- Mesmo - o outro - não estando estruturado psi-
da se insere em um outro grupo: o grupo dos soli- quicamente para o psicótico, ele procura a sua
tários sociais. Neste grupo, estão aquelas pessoas presença. “A simples proximidade física parece
destinadas ao isolamento social, pois não conse- lhe conferir uma tênue sensação de pertinência”
guem acompanhar o sistema educacional, entrar (TANIS, 2003, p.72). Segundo o autor, seria uma
no mercado de trabalho, além de serem isoladas, forma de criar uma familiaridade, maneira con-
muitas vezes, pela própria família. creta de suportar a dor de sentir-se só.
Os “loucos” estão aí incluídos por possuírem A solidão como fenômeno psicótico “parece
características que os tornam incapazes perante referir-se a pessoas e objetos fragmentados, as-
as exigências sociais (KATZ, 1996, p. 45). Segun- sim como é a própria noção de si” (TANIS, 2003,
do Katz (1996), “a solidão desses grupos é da p.89). Na psicose, a formação de laços sociais
ordem geográfica ou física e corresponde mais é uma questão crítica, ou seja, esse sujeito não
estritamente a um isolamento” (KATZ, 1996, p. criou vínculos ou esses são muito frágeis. Assim
46). Essa idéia vem combater o isolamento como sendo, o psicótico precisa de alguém que geren-
algo voluntário, fruto de um desejo interno do ho- cie suas relações, pessoas que se importem com
mem. “A solidão que se recusa à inscrição social sua questão, proporcionando o fortalecimento de
é produzida pelos saberes socialmente organiza- suas redes sociais.
dos, vivida e pensada como um processo negati- Neste sentido, este artigo tem como objetivo
vo” (KATZ, 1996, p.111). refletir sobre a temática da solidão psicótica a
O psicótico vivencia a experiência da solidão partir da experiência de um acompanhamento te-
de forma muito particular. Este sujeito é a própria rapêutico a um paciente psicótico. A importância
solidão, uma vez que o outro, para ele, é sempre do tema pela sua presença na prática contrasta
um enigma. Essa forma particular de ser no mun- com a carência de estudos. Pretendemos dar vi-
do encontra a intolerância e indiferença das pes- sibilidade a um sentimento particular de solidão
soas que, perturbadas com a diferença, afastam a vivida pelos psicóticos o qual julgamos de extre-
loucura da sociedade, temendo modos de subje- ma relevância clínica e social. Não é fácil abordar
tividade que perturbem “uma dita continuidade e um tema que estamos vivenciando. Falar sobre

183
a solidão nos faz pensar sobre a nossa própria. de sua aposentadoria por invalidez. Foi deixado
Pessoas como nós, especificamente, que fazem num orfanato pela mãe aos três anos de idade,
do lidar com o sofrimento do outro seu trabalho, onde viveu até os nove. Para lá também foram
têm ainda a oportunidade de ver uma outra face suas duas irmãs.
da experiência do sentir-se só. Isso nos obriga a V. morou até os 19 anos com “sua patroa”,
não negligenciar ou camuflar a solidão através modo como se refere à mulher para quem traba-
dos nossos mecanismos de defesa. Ao contrário, lhou como servente, e suas irmãs como babá e
temos o compromisso ético de divulgá-la e assim cozinheira. Ele sofreu um acidente de carro, aos
tornar pública a dor, dor de que nenhum de nós 16 anos, em que estavam presentes sua patroa
está livre. com filha e genro. Sofreu princípio de traumatis-
mo craniano e, por conta disso, interrompeu os
Cenário da Solidão estudos na 6ª série do ensino fundamental. Mo-
rou por um período com sua irmã mais velha, aju-
A experiência de acompanhamento terapêutico dando-a nas despesas.
aqui relatada parte das atividades do Programa Nessa época, ele trabalhou em diversas fun-
de Intensificação de Cuidados a pacientes psicó- ções, entre elas, vigilante e vendedor de picolé,
ticos (PIC), o qual tem como foco a reinserção ocupação que tinha na época da primeira inter-
social do sujeito, ao lançar mão do recurso do nação, em abril de 1997. Na ocasião, alegou-se
acompanhamento terapêutico para formação de desgaste físico e mental. Depois desta internação,
redes do acompanhado. V. passou ainda por vários hospitais. Ao sair de
O PIC tem como objetivos a criação e o forta- alta, passou a morar sozinho numa casa alugada
lecimento de redes sociais dos pacientes median- pela irmã mais nova, responsável por sua última
te a intensificação de cuidados realizada pelas internação. Desta vez, os motivos alegados foram:
duplas de estagiários que ficam mais próximos de ausência do uso das medicações, falta de higiene
cada caso, podendo intervir nas interações desses pessoal, perambulação pelas ruas, dejeções em
pacientes junto a familiares, amigos e cuidado- público e risos imotivados. Em março de 2005, V.
res. passou a ser acompanhado pelos estagiários do
Caso V. Programa de Intensificação de cuidados.
A primeira visita das estagiárias a V. se deu em
V. tem 33 anos, é solteiro, natural de Feira de julho de 2005 num momento de passagem do
Santana-Ba, residente de um bairro popular da ci- caso. O encontro aconteceu num bar. Esse es-
dade de Salvador-Ba, mora sozinho, de aluguel. É tabelecimento se localizava numa residência da
responsável por todas as suas despesas, as quais qual a proprietária alugava quartos. Era num
arca com o salário mínimo que recebe por conta deles que morava V. Ele já tinha conhecimento

184
da mudança de duplas e, ao ser apresentado a sua condição psíquica. Ela - a solidão - estava
às novas estagiárias, voltou-se para o antigo e por toda parte: em seu discurso, em sua mora-
perguntou: “Você já passou tudo para elas?”. O dia, na disposição dos seus pertences domésticos.
acompanhamento das andanças de V. possibili- A presentificação desse sentimento foi produzida
tou a seus acompanhantes um entendimento da pelo processo de isolamento sofrido por V. por
questão desse sujeito. A atenção dispensada a V. parte dos seus vizinhos, família e comunidade.
era freqüente e contínua. A nossa insistente pre- O programa do qual fazíamos parte tinha
sença fez com que V. nos depositasse a confiança como objetivo reinserir o paciente socialmente,
necessária para que compartilhássemos dos seus bem como secretariá-lo nas suas ações, buscan-
conflitos, angústias e solidão. do pessoas dispostas a ajudá-lo. Afetamo-nos
com a presença e recorrência, no discurso de V.,
O homem só na multidão: da sua questão: “Morar sozinho e não fazer nada
a diferença excluída é muito enjoativo”, “Estou cansado de morar so-
zinho, quero uma mulher para me fazer compa-
Durante o período de um ano em que acompa- nhia”. Começamos, então, a suprir a solidão de
nhamos V., fomos observando o quanto era pun- V. com a nossa presença e atenção, ao mesmo
gente o seu sentimento de solidão. Sabemos que tempo em que nos sentíamos no dever de fazer
a experiência do sentir-se só parece ser uma ten- algo para mudar a sua situação. A solidão de V.
dência do homem contemporâneo. Contudo, na nos incomodou a ponto de utilizarmos, “incons-
psicose, esta solidão existe e insiste anteriormente cientemente”, de estratégias para saná-la. Ficá-
aos fatores que contribuíram para a emergência vamos horas em sua casa, passeando pelo bairro
da sociedade individualista. É evidente que se faz etc. Era angustiante e muitas vezes insuportável
necessário levar em consideração o fato de que a nos depararmos com tamanha sensação de estar
solidão do “louco”, nas grandes cidades, só ten- sozinho, uma vez que nos deparávamos com a
de a aumentar. Isto porque o homem urbano está nossa própria solidão.
muito voltado para si, para seus interesses pesso- V. era realmente só, não havia ninguém inte-
ais. Não há muito lugar para o outro em nossas ressado por ele. Só mais tarde percebemos, com
vidas, principalmente, quando esse outro se apre- a ajuda das supervisões e discussões, o quanto as
senta como diferença. V. é esta diferença. práticas que estávamos implementando eram as-
A sensação de estar só entre muita gente foi sistencialistas, ao irem de encontro ao objetivo do
experimentada por V. a todo instante. No decorrer nosso trabalho. Ou seja, o que precisávamos era
dos acompanhamentos, pudemos compreender encontrar formas, buscar pessoas que se sensibili-
como a solidão se impôs na vida do acompanha- zassem com a questão do nosso acompanhado e
do de uma maneira muito peculiar, tendo em vista se dispusessem a colaborar, ao trazê-lo para mais

185
próximo da convivência em sua comunidade. este diferente nos diz algo sobre a nossa própria
Na tentativa de buscar moradores do bairro in- fragilidade psíquica. Entre os fatores que contri-
teressados por V., vislumbramos D. Maria (nome buíam para a solidão de V. estava o incômodo
fictício), proprietária do quartinho alugado pelo gerado nas pessoas diante da sua presença e na
paciente. Em cada visita, a procurávamos para convivência com ele. V. desafiava o nosso equi-
conversar, no intuito de explicar a situação do líbrio, a nossa razão, questionava a nossa inte-
acompanhado e solicitar a sua colaboração. D. gridade psíquica com o seu modo particular de
Maria, sempre muito atenciosa, disponibilizava ser no mundo. Era expulso do convívio social, e,
seu telefone e seu bar para entrarmos em con- junto a isso, sua solidão se acentuava cada vez
tato com V. Era, até então, a única pessoa com mais com o freqüente afastamento das pessoas
que podíamos contar. Aos poucos, percebemos o da comunidade onde morava.
quanto a intolerância à convivência com o acom- A solidão de V. era a solidão da exclusão, im-
panhado se fazia presente. V. tinha um modo pe- posta pela sociedade. Primeiramente, pela sua
culiar de ser e de agir, o qual provocava muito condição psíquica, e, em segundo lugar, pela sua
incômodo nas pessoas. condição socioeconômica, a qual acentuava o
Em uma das visitas, fomos surpreendidas com o seu sentimento de solidão. V. era louco, pobre e
semblante preocupado de D. Maria, ao nos aler- negro, ou seja, reúnia características que só acen-
tar quanto à insatisfação do vizinho de quarto de tuavam a sua condição de solitário no mundo e
V. para com algumas de suas atitudes. Conversa- que o excluíam do mundo dos sócios da nossa
mos com Sr. José (nome fictício), o qual nos disse sociedade. Esta solidão tem um aspecto negativo,
que, se dependesse dele, o paciente já teria sido por ser marcada pela impossibilidade do indiví-
expulso de sua casa e internado. Sr. José se justi- duo de compartilhar algum projeto social e de se
ficou, afirmando não gostar do cheiro de V. nem enquadrar no repertório das exigências sociais.
do seu comportamento em relação a sua filha e V. era visto pelas pessoas como “o louco”,
esposa, aparecendo em trajes íntimos diante de- aquele indivíduo que nada entendia, nem era ca-
las. A proprietária, apesar de saber da existência, paz de entender. Era o incapaz, o doente, o de-
por parte de Sr. José, de uma intencionalidade sajuizado. Desse modo, ninguém lhe dava crédi-
em relação à saída de V., concordou com sua re- to ou lhe depositava confiança. V., devido a sua
tirada, alegando estar em atraso seu pagamento condição psíquica, não conseguia compartilhar
do aluguel. Isso nos mostra o engendramento da de projetos ou grupos sociais, ou, pelo menos,
solidão do acompanhado pelo seu afastamento era visto desse modo.
da sociedade. Da mesma forma, ele também era excluído por
Como vimos, é muito comum excluirmos o di- não conseguir seguir os padrões sociais exigidos.
ferente do nosso convívio, principalmente, quando Ou seja, não conseguia estudo, trabalho, o que

186
era reforçado pela sua situação social precária. que isso aconteceu, a mãe “precisou” mudar de
Chegou a se matricular numa escola do bairro casa. V. era completamente excluído do convívio
anterior, onde morava. Todavia não chegou a cur- da família. Ele foi rejeitado pela mãe e irmãos, os
sar, porque entrou em crise. Ele também procura- quais desveladamente disseram não querer estar
va trabalhar. Dizia-nos passar sempre pela oficina na sua presença e convivência. Essa rejeição só
mecânica do seu bairro e perguntar se havia tra- acentuou a condição de V. como um ser solitário,
balho para ele, mas a resposta era sempre ne- abandonado à própria sorte pela família, vizinhos
gativa. Quem daria trabalho a um louco? Quem e comunidade.
acreditaria que este poderia estudar e aprender? A solidão de V. estava presentificada em sua
Esses preconceitos arraigados em nossa socieda- vida. Sua casa era a moradia da solidão. Esta era
de aumentavam a condição solitária de V. sentida, até mesmo, na carência de objetos do-
A solidão de V. era amplificada ao ser excluído, mésticos, assim como na disposição dos mesmos.
também, pela família. Uma das irmãs do paciente O nosso acompanhado possuía apenas duas ca-
era moradora do seu bairro. Era o único mem- deiras, que ficavam dispostas em sua sala, a qual
bro da família com o qual o nosso acompanhado se tornava ampla pela carência de móveis. Quan-
mantinha contato, ainda que este fosse objetivo e do chegávamos, únicas visitas, esses objetos eram
esporádico. Sônia (nome fictício) funcionava como utilizados para sua verdadeira função, uma vez
uma espécie de fiadora do irmão, a exemplo da que, usualmente, serviam de guarda-roupas ou
casa alugada por V., a qual negociou, garantindo suporte para outros objetos.
honrar com o compromisso, caso ele não o fizes- V. comparava o isolamento no qual ficava em
se. O paciente quase não encontrava sua irmã e sua casa ao de um exílio. Dizia passar a maior
contava, ocasionalmente, que esta estava “sem- parte do tempo em sua residência, ouvindo rádio,
pre com pressa”, e o portão estava sempre fecha- afirmando estar esperando o tempo passar, sem
do quando ia visitá-la. trabalhar, sem estudar, só a comer uma refeição
Sônia nos contou que V. “é uma pessoa difícil ao dia e dormir. V. dizia não achar certo ficar em
de se conviver, é insuportável, é para viver sozi- casa o dia todo sem fazer nada. Ele utilizava um
nho”. Disse ter informado a todos do bairro sobre ditado popular, corriqueiramente, para referir-
a doença de seu irmão, a fim de lhe avisarem caso se a sua angústia: “mente parada é oficina do
acontecesse algo com ele. A irmã de V. acreditava diabo”. O paciente fez uma comparação da sua
ainda defendê-lo porque “o sangue ainda puxa”, casa à internação. Nela, V. sentia-se distanciado
mas recusava-se a abrigá-lo em sua casa, mesmo do mundo, das pessoas, assim como se sentia,
sabendo e dizendo entender a sua solidão. Sônia quando estava internado.
disse não levar V. à casa da sua mãe, para que Contudo, em alguns momentos, quando a so-
não aprendesse o caminho. Uma das vezes em lidão se fazia mais presente, V. referia o desejo de

187
voltar para o hospital. Ainda que os aspectos ne- medicações do acompanhado e dar-lhe nas ho-
gativos de uma internação fossem incontestáveis ras certas. É interessante notar o local emergen-
para o nosso acompanhado, ele a cogitava como cial que Celeste conseguiu para abrigar V. Era a
uma alternativa para livrar-se do sentimento in- casa do seu empregado que tinha uma leve de-
suportável de sentir-se só. O Hospital aparecia ficiência mental e morava só. Isso nos fez pensar
como último recurso, e não como um desejo de V. sobre a atitude histórica da humanidade de reunir
O paciente se justificava, ao dizer que lá encon- os diferentes e afastá-los do seu meio.
traria pessoas com as quais fez amizades, como o Por outro lado, Celeste, de certa forma, contri-
vigilante do hospital, o auxiliar de enfermagem, e buía para a manutenção do diferente na comuni-
conversaria com elas, passaria o tempo... dade, fazendo do seu bar um ambiente de sociali-
Entre uma andança e outra na busca de par- zação e inclusão. V. passava todas as tardes nesse
ceiros sensíveis à questão de V., encontramos Ce- estabelecimento. Lá ele conversava com alguns
leste, a proprietária do bar onde o acompanhado freqüentadores, enquanto outros diziam o que ele
almoçava. Ela surgiu em momentos conturbados devia ou não fazer. O paciente comentava com
da vida do nosso acompanhado e se mostrou impaciência que todos ficavam perguntando se
sensível a sua questão. Quando a intolerância ele havia tomado os remédios, até quem ele não
dos vizinhos se fez mais forte e concreta, V. não conhecia. Não obstante este contato de V. com
suportou e entrou em crise. Estava na iminência as pessoas, sua posição na comunidade era bem
de ser despejado, sem ter para onde ir, além de demarcada, visto sempre como aquele “louco”,
estar sendo pressionado pela proprietária para pois não se enquadrava nas normas sociais es-
pagar as contas em atraso. Antes disso, já vinha tabelecidas. Desta forma, V. continuava sozinho,
há algumas semanas sem tomar as medicações, marcado pela diferença.
alegando que queria descansar. Eram as ocasiões em que V. se encontrava em
crise os momentos em que a sua exclusão se fazia
Nestas condições, a rejeição do paciente pela mais evidente. O paciente em crise descuidava-
comunidade se fez ainda mais presente. Ninguém se da higiene pessoal, perambulava pelo bairro,
queria alugar uma casa para um “louco”. Celeste mexia com as mulheres na rua, dizia o que pen-
o abrigou na casa do seu empregado. Era, na sava. Desse modo, despertava o incômodo dos
verdade, um casebre situado um pouco afastado moradores do bairro, os quais queriam expulsá-lo
da área central do bairro. V. apenas dormia nesta da comunidade. Freqüentemente, eles se dirigiam
casa e fazia todas as suas refeições, apenas duas, a nós, acompanhantes, a fim de que tomássemos
no bar. Ele havia feito um acerto com Celeste de uma atitude: “tem que encher de remédio até o
pagar, mensalmente, pelas refeições. A dona do teto e internar”.
bar também resolveu, ela mesma, ficar com as Algumas vezes, flagramo-nos tomando partido

188
de V., ou seja, ficávamos intolerantes e indigna- te, a igreja, a escola, os vizinhos e, até mesmo, o
das com a atitude das pessoas. Percebemos, mais hospital. Sabemos que o psicótico tem uma forma
uma vez, mediante orientações dos supervisores, particular de estar no mundo e vincular-se às pes-
que oportunidades como estas deveriam ser apro- soas. Portanto entendemos as atitudes do acom-
veitadas para conquistar mais parceiros interessa- panhado como esta tentativa de busca, uma vez
dos em colaborar para a melhora da situação do que era freqüente o seu discurso de insatisfação
acompanhado. quanto a sua situação.
O paciente cumprimentava a maioria dos mo-
Busca pelo outro dilacerado: radores do seu bairro. Conversava com o pas-
encontro da solidão tor da igreja, com o rapaz da mercearia, com o
mecânico da oficina. Todos sabiam quem era V.,
A experiência do sentir-se só vivenciada por V. conheciam seus hábitos e sua condição de “do-
se fazia presente no seu encontro com o outro. A ente mental”, porém não passava disso. Para o
solidão vivida pelo paciente lhe era peculiar. Ele acompanhado, viver nesta aparente proximidade
era a própria solidão, uma vez que o outro não se parecia lhe abrandar o sentimento de completa
encontrava bem estabelecido psiquicamente para solidão. O paciente recusava-se a ficar sozinho,
ele. A solidão como fenômeno psicótico é a soli- não obstante a fragilidade vincular que lhe era
dão da ausência de algo que não se sabe bem o constitutiva. Devido a tal característica, seus vín-
que é. Todavia V. procurava a presença do outro, culos sociais, quando existiam, eram muito frá-
buscava estar próximo das pessoas, o que pare- geis, como a sua relação com a dona do bar e
cia lhe conferir uma certa familiaridade, ou seja, seu empregado.
uma sensação de pertencimento: única maneira Agimos em direção ao fortalecimento dos la-
de suportar a dor de sentir-se só. ços sociais de V. A sua situação econômica não
permitia que freqüentasse os grupos semanais re-
V. continua a sua solitária luta. Luta não se sabe alizados pelo programa, bem como participasse
bem contra o quê ou contra quem, mas que se faz de alguns passeios promovidos pelo mesmo. To-
incessante, pois deseja livrar-se do sentimento in- davia, constantemente, o paciente fazia pergun-
suportável da solidão. A experiência de sentir-se tas sobre tais atividades. V. nos perguntava quem
só do paciente nos disse muito sobre a sua capa- dos demais participantes havia comparecido,
cidade de ficar sozinho. Perguntávamos até onde que atividades haviam sido realizadas etc. Fre-
V. suportava sua solidão. Qual o seu limite? O qüentemente, buscávamos alternativas para que
que o fazia suportá-la? o acompanhado participasse das programações,
V., em sua busca por livrar-se do insuportável pedindo uma contribuição financeira junto a sua
sentimento de solidão, procurava o bar de Celes- irmã ou mesmo tirando do nosso próprio bolso.

189
No intuito de corroborar com esta busca de caminhamos a passos largos para um estado de
V., tentávamos sensibilizar as pessoas quanto a ensimesmamento, no qual o outro se torna pres-
sua situação, de modo a conseguirmos parceiros cindível para a nossa existência. Ou, pelo menos,
para a luta que nos propomos travar. Consegui- a sua presença, uma vez que os relacionamentos
mos aliados como Celeste, a dona do bar, que se virtuais dominam o nosso cotidiano e o aprisio-
configurou como a nossa principal aliada, pois namento da rotina não nos deixa tempo para os
era sensível à questão de V., e ele estabeleceu um encontros casuais, os quais são cada vez mais ra-
vínculo de confiança com a mesma. Outra pessoa ros.
importante foi o pastor da igreja, que se propôs a A concepção universalizante de que o “louco”
ajudar no que fosse necessário, inclusive disponi- não possui capacidade de compartilhar das re-
bilizando o espaço do centro comunitário do bair- gras sociais, aliada a idéia de ele ser detentor de
ro para realizarmos reuniões informativas sobre o uma linguagem impossível de ser socializada está
lidar com o “louco” na comunidade. nas bases do processo de exclusão da loucura em
Procuramos durante o período em que acom- nossa sociedade. Diante desse contexto, assisti-
panhamos o paciente criar uma rede social de mos à presença de um modo particular de solidão
apoio, a fim de reinserí-lo na comunidade e, des- que é anterior, embora amplificado, pelo proces-
sa forma, abrandar o seu sentimento de completa so vivido ao modo contemporâneo. É a solidão
solidão. Obtivemos alguns êxitos como expomos da diferença, solidão do não pertencimento ao
anteriormente. Ao término do acompanhamento, mundo dos sócios.
não deixamos de sentir com pesar a separação de A nossa experiência enquanto estagiárias do
V. Talvez esta tenha sido sentida muito mais forte PIC – Programa de Intensificação de Cuidados a
por nós que nos vinculamos ao paciente ao modo pacientes psicóticos – nos possibilitou entender
neurótico. Ele, em contrapartida, nos disse: “Foi o engendramento de uma solidão que tem suas
bom enquanto durou”. Disse-nos que sentiria sau- principais bases no processo histórico de exclusão
dades, ao mesmo tempo em que se preocupou do diferente do convívio entre os ditos normais. O
em passarmos tudo para as próximas estagiárias, “louco” como o diferente, o estranho, o incapaz,
o que nos diz algo sobre o lugar que ocupamos o alienado é colocado à margem da sociedade.
em sua vida. V. continua sendo acompanhado Tudo em função da preservação da homogenei-
pelo programa. dade do comportamento e do enquadramento do
psiquismo às exigências sociais.
Considerações Finais Compreender a solidão do psicótico só nos
foi possível mediante a ampliação do cenário da
A solidão é um sentimento negativo em nos- clínica tradicional, ou seja, acompanhamos o
sa cultura. Algo que todos devem evitar. Contudo paciente em outros âmbitos da sua vida, como

190
comunidade, família e pudemos observar como estudos fazem-se necessários, visando um apro-
pôde ser produzida a sua solidão, assim como fundamento do assunto. Sugerimos mais estudos
ter acesso a um discurso só possível a partir do que abordem a busca peculiar do psicótico, não
estabelecimento de uma relação de confiança en- obstante a sua fragilidade vincular, bem como tra-
tre acompanhante e acompanhado. Essa relação balhos que versem sobre intervenções sociais e
de confiança só foi estabelecida, porque insisti- comunitárias baseadas no manejo das relações
mos com a nossa presença na vida de V. A nossa com este público.
presença contínua e incondicional foi condição
fundamental para o estabelecimento do vínculo,
o que permitiu fazermos intervenções importantes Referências
em sua vida.
BARRETTO, Kleber Duarte. Ética e Técnica no acompa-
Neste trabalho, buscamos contribuir para dar nhamento terapêutico. São Paulo: Unimarco, 1998.
visibilidade ao tema da solidão psicótica, uma vez KATZ, C. H. O Coração Distante: ensaio sobre a solidão
que este é de grande relevância clínica e social, positiva. Rio de janeiro: Revan, 1996.
além de muito recorrente em nossa prática. Uma PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Teoria do Vínculo. São Pau-
segunda contribuição deste artigo reside na des- lo: Martins Fontes, 1992.
TANIS, B. Circuitos da Solidão: entre a clínica e a cultu-
mistificação da idéia do isolamento como algo ra. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003.
voluntário. Ao contrário, destacamos e buscamos
identificar o que está por trás da solidão na psi-
cose. Tal solidão também é chamada de solidão
imposta, produzida pelo processo de exclusão so-
frido pelo psicótico.
Este artigo trata de um tema muito caro à re-
forma psiquiátrica, uma vez que toca em ques-
tões relativas à reinserção social dos pacientes
psicóticos. A reflexão sobre a solidão imposta ao
dito louco leva a um entendimento sobre as bases
do processo de exclusão sofrido por este. Desse
modo, fazem-se necessárias mais intervenções clí-
nicas pautadas no acompanhamento do paciente
na família, comunidade, a fim de que o sentimen-
to de sentir-se só seja mais bem compreendido e
aliviado.
Tendo em vista tamanha importância, novos

191
Transbordamento psicótico:
Desafios e possibilidades de intervenção
Lygia Freitas*
Mabel Jansen**

Resumo: O presente estudo trata de um caso ser cuidado, o paciente pode e deve permanecer
desenvolvido durante o Programa de Intensifica- em sua comunidade, já que a reclusão em hospi-
ção de Cuidados a Pacientes Psicóticos, progra- tais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já
ma de extensão universitária que constitui parce- tão vulneráveis laços sociais desse sujeito. Outra
ria entre a UFBA, a FBDC e o HEML e efetiva-se questão relevante refere-se aos desafios impostos
por meio de atendimentos domiciliares, encontros pela aproximação com a pobreza e todas as re-
grupais com os pacientes, reuniões com cuida- percussões que ela pode gerar no psiquismo do
dores, acompanhamento a consultas, supervisão sujeito. Sem dúvida, os bancos das universidades
grupal, dentre outras atividades. Este texto busca ainda não preparam seus alunos para lidarem
descrever o acompanhamento realizado durante com as classes menos favorecidas e com as dife-
nove meses com um indivíduo do sexo mascu- renças culturais que a convivência com esse tipo
lino portador de transtorno mental, solteiro, 35 de clientela faz aflorarem. O sujeito psicótico não
anos, com longa carreira manicomial e precária “fica ou está em crise”, mas é a expressão da cri-
condição sócio-econômica. Durante o acompa- se do ideal, do ideal do homem contemporâneo,
nhamento do caso, pôde-se perceber que investir racional, autônomo, dono de si. E tratá-lo requer
ativamente na constituição e fortalecimento do muito mais do que sua mera inclusão em serviços
vínculo com o paciente ocasionou mudanças em de assistência ao portador de sofrimento psíquico.
suas formas de vinculação social. As internações, É premente que, ao tempo em que são constituí-
antes freqüentes, sofreram significativa redução. dos serviços substitutivos em saúde mental, sejam
Tornou-se flagrante a concepção de que, para construídas também novas formas de lidar com o
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC louco, que possibilitem seu cabimento no seio da
**Terapeuta ocupacional graduada pela FBDC e ex-estagiária do PIC
sociedade.

192
1- Introdução ambiente fornecer ao bebê uma experiência de
constância e continuidade, através da qual ele

O presente trabalho trata de um caso desenvol-


vido durante o Programa de Intensificação
de Cuidados a Pacientes Psicóticos (PIC). Com-
poderá, gradativamente, ir integrando os dife-
rentes núcleos de eu. Em outras palavras, a mãe
deve modular os períodos em que está ausente
preende a descrição da trajetória particular de de acordo com a capacidade de o recém-nascido
um indivíduo do sexo masculino (Emerson ) porta- suportá-los.
dor de transtorno mental, solteiro, 35 anos, com Quando a personalidade adulta organiza-se a
longa carreira manicomial. Busca ainda abordar partir da persistência de núcleos dessa fase ini-
os recursos terapêuticos disponíveis, bem como cial, tem-se o surgimento de uma personalidade
o processo de aprendizagem ocorrido durante os ambígua que inclui, ao mesmo tempo, traços de
nove meses em que o paciente foi acompanha- simbiose e autismo (BLEGER, 1977). Nesse sen-
do. tido, a postura autista caracteriza-se por um iso-
lamento do mundo externo e predomínio relativo
2- Fundamentação Teórica ou absoluto da vida interior, refletindo uma con-
duta defensiva diante de situações persecutórias.
2.1 – Sobre o desenvolvimento do sujeito O vínculo, nesse caso, é, fundamentalmente, de
caráter narcísico, visto que prevalece uma relação
A entrada do ser humano no mundo da cultura com objetos internos.
se dá, sempre, por intermédio de um outro, um A conduta simbiótica, por sua vez, é marcada
outro que cuida dele. Toda produção de significa- por um vínculo de dependência intensa com um
ção depende, num primeiro momento, de intro- objeto externo, ocorrendo uma projeção de parte
duzir o outro como ponto de referência . Segundo do ego do indivíduo nesse objeto. Há, em verda-
Winnicott (apud BARRETTO, 2000), o homem, no de, uma identificação projetiva entre o psicótico e
início de seu desenvolvimento enquanto sujeito, o objeto, cuja finalidade é manter um certo nível
passa por um período de indiferenciação primi- de organização e satisfazer as necessidades do
tiva, de não-integração com o mundo externo, âmbito mais primitivo da personalidade do sujeito
quando, a partir da convivência e experiências (BLEGER, 1977). Cabe salientar que tanto o au-
com a mãe, são constituídos núcleos de eu, mar- tismo quanto a simbiose coexistem no modo de
cas notadamente sensoriais, mas que guardam funcionamento psicótico, havendo constante va-
traços de alguma humanização por intermédio riação entre a ascendência de um sobre o outro.
justo desse contato com um ser da cultura.
A constituição do sujeito enquanto tal depen-
derá, fundamentalmente, da capacidade de o

193
2.2 – A questão do vínculo na psicose convívio social e afetivo.

Segundo Pichon-Rivière (2000) o vínculo pode


ser definido como uma relação particular com um 2.3 – Vulnerabilidade social e gestão do sujeito
objeto, que pressupõe uma “conduta mais ou me-
nos fixa com este objeto, formando um pattern, Do exposto, cabe ressaltar que a dificuldade
uma pauta de conduta que tende a se repetir au- vincular do sujeito psicótico se expressa como de-
tomaticamente, tanto na relação interna quanto sorganização psíquica, e, para enfrentar a vulne-
na relação externa com o objeto”. rabilidade social a que está exposto o portador de
Uma teorização útil para compreender melhor transtorno mental, algumas formas de intervenção
as nuances de relação vincular concernentes ao se fazem necessárias, dentre as quais podemos
sujeito psicótico diz respeito à que trata do tripé destacar a de continência e a de holding. Tais
formado pelos conceitos de depositante, deposi- funções foram desenvolvidas por Barretto (2000)
tado e depositário, formulados por Pichon Rivière como sendo inerentes ao trabalho de acompa-
(apud BLEGER, 1977). Essa tríade compõe-se de nhamento terapêutico.
um sujeito (depositante) que projeta determina-
do conteúdo (material depositado) sobre o outro 2.3.1. – Sobre a continência
ou si mesmo (depositário), já que a introjeção do
mesmo pode originar desestabilização psíquica O sujeito psicótico, por vivenciar, com freqüên-
(BLEGER, 1977). cia, situações de transbordamento psíquico que
Em se tratando do sujeito psicótico, pode-se podem traduzir ultrapassagem de limites, neces-
dizer que o vínculo é constituído de modo bas- sita de um intermediário para suas experiências
tante frágil, levando o indivíduo a se relacionar afetivas e pulsionais. Transformar as experiências
com o outro ora como se este fosse uma extensão de um sujeito por meio da imaginação – eis a
de si mesmo ora como se fosse uma ameaça na principal finalidade da função de continência.
iminência de invadi-lo. A promoção de acolhimento, permitindo que
Diante desse arranjo em que se sustenta o su- vivências notadamente marcadas pela sensoriali-
jeito psicótico, o outro é tido como implacável: dade possam ser passíveis de simbolização é, de
exige, prescreve, condena sem discussão, tornan- fato, o que melhor configura a continência. Ana-
do-se, dessa forma, o separado e o separante, logicamente, segundo Barretto (2000), essa situ-
papéis que o próprio psicótico acaba por realizar ação pode ser comparada à de um poeta, que
(CASTORIADIS, 1999). Isso, sem dúvida, contri- consegue expressar, por meio de palavras ou ima-
bui decisivamente para a visível dificuldade de gens, experiências e sentimentos que permeiam a
vinculação experimentada por esse indivíduo no vivência humana, mas os quais, muitas vezes, não

194
somos capazes de explicitar. Foram momentos em que simplesmente estivemos
Em meio a uma crise, a continência é o que se ali, situações em que percebemos que não ha-
impõe, a partir da alteridade representada pelo via o que fazer ou dizer, e o fato de estarmos ali,
técnico em saúde mental, como produtora de nossa presença já era muito importante. O valor
uma sensação de contorno, limite, possibilitando dessa experiência estava não só na aproximação
ao sujeito se sentir um pouco mais organizado e de dois corpos, um corpo junto ao do paciente,
integrado, ao inscrever suas vivências no universo mas por ser um corpo atento, capaz de testemu-
simbólico. nhar e compartilhar as experiências do portador
O lugar que o agenciador do caso passa a de transtorno psíquico.
ocupar em sua teia de significações, por inter-
médio do vínculo desenvolvido com o paciente, 3 - Introdução ao Caso
contribui, portanto, para uma aproximação maior
entre o mundo interno do sujeito e sua realidade Emerson tem 35 anos e uma história de recor-
circundante. rentes internações, iniciada aos 18, durante sua
É disso que irá se falar no decorrer do presente
entrada no Exército. Quando criança, morou com
artigo, da importância do vínculo como elemento os pais e os cinco irmãos, até que sua mãe veio
mediador da relação entre acompanhante tera- a falecer, ainda durante a infância do paciente, e
pêutico e acompanhado e favorecedor da possi- seu pai foi morar em outra cidade, deixando os
bilidade de se fazer continência. filhos aos cuidados da vizinhança.
Hoje o paciente mora com uma irmã, Joana
2.3.2 – Sobre o holding em condições precárias, numa casa dada pelo
pai. Não há nem luz nem água no recinto, e am-
O holding caracteriza-se como uma função de bos têm como fonte de renda o recolhimento de
amparo, suporte, um estar-junto que possibilita papelão e material reciclável.
ao acompanhado uma experiência de constân- No andar superior da casa, mora outro irmão,
cia, continuidade, tanto física quanto psíquica. Jonas . Casado, tem dois filhos e um relaciona-
Durante o acompanhamento de Emerson, essa mento bastante conturbado com Joana, demons-
função precisava ser “acionada” na maior parte trando indiferença aos problemas por que passam
do tempo, uma vez que, freqüentemente, o pa- os irmãos do andar inferior. Esse fato evidencia
ciente mostrava-se psiquicamente desorganizado, que, na questão da exclusão social, em sujeitos
carecendo de um suporte que favorecesse uma psicóticos, não se trata apenas de pobreza, mas
sensação de acolhimento e segurança. de desvinculação sócio-afetiva, uma vez que es-
Em muitos momentos do percurso com o pa- ses indivíduos possuem um arranjo psíquico que
ciente, essa função exerceu um papel marcante. restringe sua sociabilidade, suas possibilidades

195
de criarem vínculos sociais. Sem falar no difícil siva e hostil ora como se, de fato, necessitasse
manejo da desfiliação psicótica, no que tange à de sua presença, expressando, assim, a coexis-
questão de quem vai cuidar, quem vai se respon- tência de autismo e simbiose na relação vincular.
sabilizar por esses sujeitos. Ao mesmo tempo em que ele se mantinha dis-
Joana é portadora de epilepsia, e um terceiro tante, tentando impedir uma aproximação dos
irmão, Juvenal , que mora próximo à casa deles, responsáveis pelo caso, estabelecia outro tipo de
alcoolista. A relação dos três é bastante conflitu-
vínculo, em que fazia destes depositários de uma
osa, sobretudo a de Emerson com Joana, que é intensa projeção, visando um vínculo simbiótico
com quem ele tem maior contato e proximidade. que também lhe era necessário ou imprescindível
Os dois estão sempre às turras, e a situação pio- (BLEGER, 1977). Nesse sentido, vale salientar que
ra quando o paciente está na iminência de uma o papel de depositário exercido pelos estagiários
crise. Nesses momentos, invariavelmente, ele é aponta para a possibilidade de que o sujeito in-
encaminhado para internação por ela ou por Ju- tegre suas vivências no tempo e, desse modo, re-
venal, o que acabou se tornando algo freqüente signifique-as.
em seu cotidiano. Eram comuns as brigas e discussões entre
Por conta de todas essas questões ilustrativas Emerson e Joana, assim como ameaças à inte-
da grave precariedade social a que Emerson esta- gridade física dos estagiários, o que corroborava
va exposto, em meados de 2004, ele foi selecio- sua dificuldade de vinculação aos mesmos. Além
nado para participar das atividades desenvolvidas disso, outro obstáculo à aproximação dos esta-
pelo Programa de Intensificação de Cuidados a giários dizia respeito ao fato de Joana, quando
Pacientes Psicóticos. O acompanhamento do caso ia se ausentar de casa, manter sempre Emerson
durou cerca de cinco meses com uma dupla de trancado.
estagiários, até que os presentes estagiários assu- O paciente costumava escrever histórias com
missem o caso, dessa vez por aproximadamente temas dos mais diversificados possíveis: desde ter-
nove meses. ror e Segunda Guerra, que também serviam de
fonte inspiradora para seus delírios, até temáticas
4- O processo de vinculação de Emerson ao bucólicas e infantis. As construções delirantes gira-
Programa vam em torno de sentimentos de perseguição, em
geral, relacionados a soldados e policiais que o
No início do acompanhamento, a maior parte ameaçavam, bem como aos estagiários, demons-
das visitas a Emerson era feita em hospitais psi- trando que, para o sujeito psicótico, “a lei surge
quiátricos onde ele estava internado. Nos raros sempre como persecutória” (LOBOSQUE, 2001).
momentos em que o paciente era encontrado em Está presente de forma atormentadora, mas numa
casa, tratava os estagiários ora de forma agres- posição constante de exterioridade, visto que, na

196
própria estruturação de tal arranjo psíquico, a lei Desenvolver uma vinculação com Joana facilitou
não é inscrita no registro simbólico, permanecen- o estabelecimento de um vínculo com Emerson
do como uma presença exterior. que, no período inicial do acompanhamento,
Durante o período inicial de acompanhamen- também tratava os estagiários de forma agressiva
to, os diálogos entre os estagiários e Emerson e ameaçadora, questionando, a todo momento,
eram travados com a porta da casa servindo de o papel que ali ocupavam. A insistência da pre-
intermediária, o que dificultava uma maior apro- sença dos Ats sustentava-se na idéia de que era
ximação dele e do caso, de modo geral. Com o necessário entrar em contato com as angústias do
passar do tempo, houve a percepção de que era paciente, através de uma atitude empática, para
necessário estabelecer algum tipo de relação com que fosse possível uma efetiva aproximação, tanto
Joana, pois, do contrário, Emerson permaneceria física como afetivamente (BARRETTO, 2000).
trancado em casa quando ela estivesse ausente. Vale salientar que, mesmo tendo sido facilitado
Inicialmente, os contatos com Joana eram es- o acesso aos dois, as dificuldades com o caso
tabelecidos nas proximidades de onde morava. persistiram, visto que a crença de que o interna-
Ela sempre tratava os estagiários de forma seca mento era a única solução para seus problemas já
e hostil, questionando o porquê de estarem ali e estava enraizada na família. Sem falar que, para
se o trabalho que realizavam daria, de fato, al- Emerson, o hospital psiquiátrico constituía um re-
gum resultado. À medida que o tempo foi pas- fúgio. Lá, além da possibilidade de se alimentar e
sando, foi-se percebendo que era importante es- higienizar, ele se sentia útil, auxiliando os profis-
cutar mais Joana, compartilhar de seu sofrimento sionais do local em tarefas rotineiras como forrar
e suas angústias, não mais centrando a atenção as camas e limpar os banheiros. Também é digno
apenas em seu irmão, mas dividindo-a com ela. de nota o escambo realizado por Emerson com os
“Quando um membro de uma família enlouque- demais internos, que era mais um elemento sus-
ce, isto perturba seriamente o grupo familiar; com tentador de sua presença naquela instituição.
certeza, a família precisa de apoio e auxílio para Apesar de todas essas aparentes “vantagens”,
lidar com esta perturbação” (LOBOSQUE, 2001). não se pode fechar os olhos para as condições
Aos poucos, Joana foi se tornando mais flexível sub-humanas a que os pacientes psiquiátricos
não só na relação com os estagiários como em estão submetidos nos manicômios, locais de vio-
seu relacionamento com o irmão. lência, superlotação, abandono, desvalorização
Cuidar de Joana acabou se tornando uma es- do sujeito, que foram e continuam sendo alvo de
tratégia para cuidar do próprio Emerson, uma vez denúncias. No caso de Emerson, principalmente,
que as precárias condições que afetavam-no tam- as freqüentes internações contribuíam não ape-
bém eram prejudiciais a ela, e isso não poderia ser nas para intensificar seu isolamento social, como
ignorado durante o acompanhamento do caso. dificultavam seu posterior retorno à comunidade

197
e a criação de vias alternativas ao manicômio que passou-se a intensificar os cuidados com o pa-
dessem sentido a sua existência. ciente, por meio de um incremento na freqüência
das visitas domiciliares, uma vez que, para inse-
5- A ampliação das redes de suporte social ri-lo em tal serviço, seria preciso, primeiramente,
mantê-lo fora do hospital psiquiátrico.
No decorrer do acompanhamento, foi-se no- O trabalho de convencimento para a plena
tando que a forma mais eficaz de quebrar o ciclo capacidade de Emerson ter uma vida digna fora
de internações vivenciado por Emerson seria ofe- do internamento foi sendo desenvolvido grada-
recer a ele uma outra possibilidade de existência, tivamente, tanto com ele, como com Joana e o
longe dos hospitais psiquiátricos. Para tanto, co- entorno social em que viviam. O uso correto da
meçou-se a pensar em inseri-lo num CAPS. Esta medicação passou a ser incentivado, tendo em
idéia baseou-se na necessidade de que o pacien- vista que o paciente ou tomava os remédios de
te fosse acolhido em um espaço articulador de forma equivocada ou se desfazia deles na expec-
uma rede social de cuidados, que promovesse tativa de que fosse internado. Passou-se a orientar
sua integração comunitária e familiar, ao passo Joana quanto aos efeitos da ausência de medi-
que estimulasse suas iniciativas em busca de au- cação, fazendo-a discriminar os comportamentos
tonomia. que Emerson manifestava quando a usava corre-
Os CAPS constituem uma tentativa de substi- tamente daqueles que emitia quando não a usa-
tuição do modelo hospitalocêntrico, como com- va. Além disso, buscou-se trabalhar a relação dos
ponentes estratégicos de uma política destinada dois, uma vez que os desentendimentos entre eles
a diminuir a significativa lacuna assistencial que sempre haviam constituído motivos suficientes
ainda persiste no atendimento a pacientes com para Joana interná-lo.
transtornos mentais graves. As práticas realizadas Numa ocasião, saímos com ele para conver-
nessas instituições ocorrem em ambientes aber- sar com o dono de um estabelecimento no qual
tos e acolhedores, inseridos na cidade, no bairro. Emerson tinha demonstrado interesse em traba-
Seus projetos, muitas vezes, ultrapassam a pró- lhar. Tratava-se de uma ocupação de carregador
pria estrutura física, em busca da rede de suporte de sacos de arroz numa cerealista. Nessa opor-
social, potencializadora de suas ações, preocu- tunidade, pôde-se, a partir da posição que sus-
pando-se com o sujeito e sua singularidade, sua tentamos, dar validade ao desejo do paciente e
história, cultura e vida cotidiana (Ministério da amenizar o embaraço que a postura e expressão
Saúde, 2004). de Emerson causava no responsável pelo estabe-
Diante da identificação de que inserir Emerson lecimento e até em nós mesmas.
nessa perspectiva de serviço substitutivo seria fun- No decorrer do percurso, a idéia de encontrar
damental para ampliar sua rede de suporte social, um emprego para o paciente acabou não indo

198
avante, pois ele carecia de maior preparo para uma decisão quanto à melhor estratégia a ser
encarar um projeto de tal magnitude. Nesse perí- adotada naquela situação, levando em conta a
odo, as crises de Emerson não cessaram, e as vi- grande possibilidade de o paciente ser internado
sitas domiciliares passaram a ser diárias. A seguir, pela irmã ou mesmo por algum vizinho se fosse
serão detalhadas situações específicas, ocorridas encontrado naquele estado.
dentro do espaço de tempo de cerca de uma se- A primeira tática foi acionar o SAMU (Serviço
mana, que ilustram momentos de crise do pacien- de Atendimento Móvel de Urgência) para que
te e como se deu o manejo terapêutico do caso Emerson pudesse ser levado a alguma emergên-
nessa conjuntura. cia psiquiátrica e, então, medicado. Após mais
Numa ocasião específica, quando os estagi- de três horas de espera, os estagiários resolveram
ários chegaram, o paciente estava bastante agi- contatar a equipe do CAPS mais próximo, como
tado e agressivo. Mandou que fossem embora e forma também de diluir a depositação vincular
saiu andando pela rua. Os estagiários, após um maciça que o paciente estava realizando sobre
breve momento de indecisão, resolveram seguí-lo, eles. Além disso, buscava-se contribuir para que
chamando por seu nome. Quando, finalmente, o se formasse um elo inaugural com aquela insti-
paciente decidiu parar, pôde-se iniciar uma co- tuição, ampliando as redes de suporte social de
municação com ele. A disponibilidade e firmeza Emerson. Dois funcionários do CAPS, um auxiliar
demonstradas pelos estagiários fizeram com que, de serviços gerais e uma enfermeira, acompanha-
aos poucos, Emerson fosse ficando mais calmo e ram os estagiários à casa do paciente, levando
passasse a aceitar interagir com eles. Nesse epi- medicação injetável. Depois de muita insistência
sódio, ficou claro que um elo estava começando para que Emerson aceitasse tomar a medicação,
a ser constituído entre o paciente e os estagiários, os estagiários acabaram sendo vencidos pelo
ratificando o poder do vínculo social como ele- cansaço e decidiram, após mais uma “porta na
mento fundamental da continência psíquica. cara”, retornar no dia seguinte.
No dia seguinte, os responsáveis pelo caso re- Nessa nova tentativa, os profissionais do CAPS
tornaram à casa de Emerson, cujo quadro não acompanharam os estagiários levando a medica-
havia se alterado. Após vários chamamentos, o ção em forma de comprimido, pelo fato de se ter
paciente saiu, abruptamente, de casa, com um concluído que, assim, seria mais provável que o
grande pedaço de madeira nas mãos. Avançou paciente aceitasse tomá-la. Depois de muita ne-
contra um dos estagiários, empurrando-o e ame- gociação, Emerson cedeu.
açando-o e, em seguida, fez o mesmo com o ou- O CAPS ainda precisou ser acionado algumas
tro, retornando para dentro de casa e fechando vezes antes que o paciente passasse a freqüen-
a porta. Após se refazerem do susto, os estagi- tá-lo. Sua inserção naquele serviço foi dificultada
ários resolveram esperar um pouco para tomar não apenas por ele se opor a essa nova forma de

199
cuidado, mesmo antes de conhecê-la, como por investir ativamente na atenção ao paciente e ao
alguns entraves institucionais. caso, de modo geral, ocasionou mudanças nas
formas de vinculação social de Emerson. As in-
Era muito difícil fazer com que o paciente acei-
tasse ir ao CAPS, e, no dia em que se conseguiu ternações, antes freqüentes, sofreram significativa
levá-lo até lá, não havia profissionais disponíveisredução, ao passo que sua relação com a irmã
para fazer o acolhimento. Quando, finalmente, melhorou sensivelmente no que tange aos cuida-
Emerson foi entrevistado, outros obstáculos se so- dos que um passou a ter em relação ao outro e
brepuseram. A equipe da instituição não pôde se ao companheirismo que surgiu entre eles.
reunir na semana prevista para discutir os casos Evidencia-se, assim, a importância da intensifi-
que seriam admitidos, e o paciente não pôde fre- cação de cuidados como dispositivo essencial no
trato com o paciente psicótico, tendo em vista as
qüentar o CAPS antes que isso fosse feito. Tal fato,
de certo, contribuiu para a posterior dificuldade graves ressonâncias sociais que a loucura pode
de vinculação de Emerson àquele estabelecimen- gerar no seio da sociedade, comunidade, bairro,
to. núcleo familiar. É preciso, sem dúvida, apostar no
Além disso, havia uma espécie de mal-estar vínculo e, antes de qualquer coisa, trabalhar de
causado pela presença dos estagiários na insti- forma ativa para favorecer sua constituição e for-
tuição. Era como se houvesse uma disputa tácita talecimento. No caso apresentado, tornou-se fla-
pelo controle do cuidado com o paciente, que, grante a concepção de que, para ser cuidado, o
com o passar do tempo e as tentativas de esclare- paciente pode e deve permanecer imerso em sua
cimento dos papéis que cabiam a cada uma das comunidade, uma vez que a reclusão em hospi-
partes, foi sendo amenizada. tais psiquiátricos só contribui para fragilizar os já
Com a admissão de Emerson no CAPS, a atu- tão vulneráveis laços sociais desse sujeito.
ação dos estagiários passou a ser pautada na Outra questão que ficou patente durante o
tentativa de tornar aquela instituição um espaço acompanhamento do caso diz respeito aos desa-
fios impostos pela aproximação com a pobreza e
de referência para ele. As visitas domiciliares con-
tinuaram, e o acompanhamento paralelo à Joana todas as repercussões que ela pode gerar no psi-
também. quismo do sujeito. De fato, os bancos das univer-
sidades ainda não nos preparam para lidar com
6- Considerações finais as classes menos favorecidas e com as diferen-
ças culturais que a convivência com esse tipo de
Durante o acompanhamento do caso, pôde- clientela faz aflorarem. Afinal, “onde é que se re-
se perceber que, apesar de o vínculo de Emerson aliza a vida social do pessoal de classe baixa ? É
com o CAPS não ter sido tão fortalecido quanto na rua. Onde é que se dão as trocas, onde é que
necessário para sua continência psíquica e social, as pessoas enriquecem os seus conhecimentos ? É

200
na rua. A possibilidade de refúgio no privado, no Por fim, compete valorizar a atenção domi-
particular da classe baixa, é muito menor, muito ciliar como dispositivo essencial no trato com a
pequena” (Cesarino, 1991). loucura, principalmente quando se consideram as
Ao contrário do que se costuma dizer em al- grandes possibilidades de trocas sociais e afeti-
gumas situações, o sujeito psicótico não “fica ou vas que os profissionais de saúde mental podem
está em crise”, mas é a expressão da crise do ide- intermediar entre os pacientes e os membros da
al, do ideal do homem contemporâneo, racional, comunidade.
autônomo, dono de si. E tratar esse tipo de sujeito
requer muito mais do que sua mera inclusão em
serviços de assistência ao portador de sofrimento Referências
psíquico, que, da forma como vêm se configuran- BLEGER, J. Simbiose e Ambigüidade. Rio de Janeiro: F.
do, ao menos em algumas instituições do Estado Alves, 1977.
da Bahia, se constituem numa mera transferência CASTORIADIS, C. A construção do mundo na psicose.
de lugar, do hospital psiquiátrico, em que o pa- In: Feito e a ser Feito. Rio de Janeiro: DP & A, 1999.
ciente sofria maus tratos e era obrigado a ficar EQUIPE DO HOSPITAL DIA A CASA. A Rua como espa-
ço clínico. São Paulo: Escuta, 1991.
internado; para o serviço substitutivo, onde há li- LOBOSQUE, A.M. Experiências da Loucura. Rio de Ja-
berdade de ir e vir, mas o portador de transtorno neiro: Garamond, 2001.
mental continua excluído do convívio social preso PICHON – RIVIÉRE, E. Vínculo e teoria dos três D (depo-
às tão propaladas oficinas terapêuticas. É premen- sitante, depositário e depositado). Papel e Status. In: Teoria
te que, ao tempo em que são constituídos serviços do Vínculo. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
substitutivos em saúde mental, sejam construídas
também novas formas de lidar com o louco, que
possibilitem seu cabimento no seio da sociedade,
sua real inserção social.
Vale salientar, ainda, a importância da arti-
culação dos serviços de atendimento em saúde
mental como forma de ampliar as possibilidades
de cuidado e potencializar os vínculos que dão
sustentação ao sujeito na sociedade. A criação
de dispositivos coletivos de acolhimento e convi-
vência que “grupalizem” não apenas os sujeitos
como seus familiares contribui significativamente
para a auto-regulação e autonomia desses indi-
víduos.

201
Acompanhamento Terapêutico: Que relação é essa?
Maria Clara Guimarães*

Resumo: A Reforma Psiquiátrica possibilitou o


surgimento de novas clínicas que buscam aten-
dimento alternativo aos manicômios. O Acom-
D e acordo com as diretrizes da Reforma Psi-
quiátrica em busca de um atendimento mais
humanizado os pacientes psiquiátricos, especial-
panhamento Terapêutico (AT) é uma prática que mente psicóticos, novas clínicas se fazem neces-
coopera com essas diretrizes da reforma. Nesta sárias. Uma delas foi utilizada pela autora em sua
prática, exposições do profissional a afetações prática clínica – e serviu de base para a cons-
que ultrapassam o enquadre terapêutico produ- trução deste artigo – e engloba algumas técnicas
zem algumas questões entre o acompanhante e (acompanhamento terapêutico, visitas domicilia-
paciente, como “que relação é essa?”. A relação res, terapia ocupacional, formação de grupos,
se baseia no vínculo e coloca o profissional em etc.) com finalidade de oferecer um atendimento
situações intimistas de mão dupla, adquirindo teor integral, intensificando o cuidado e fornecendo
afetivo e profissional, como uma espécie de ami- uma nova forma de atendimento que não seja a
zade política. manicomial.

Dentro das técnicas utilizadas neste tipo de


atendimento, destaca-se a prática do Acompa-
nhamento Terapêutico (AT). Ela ocorre no espaço
extra-muros por meio de visitas domiciliares aos
pacientes, permitindo a entrada em contato com
seu meio particular, passeios com eles, interven-
ções nas relações familiares e atuação junto à co-
munidade.
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC

202
No formato desta prática, as relações vincu- Para conquistar essa confiança, o terapeuta
lares se estabelecem de forma particular, em que deve passar por esses testes e ter uma postura
profissional e paciente afetam-se mutuamente. “desapreensiva”, sendo capaz de aceitar qualquer
Diante disso, algumas dúvidas surgem: que tipo coisa que o paciente deposite nele “seja boa ou
de relação é essa que se estabelece com o pa- má, materna ou paterna, feminina ou masculina,
ciente? Até que ponto essa relação não ultrapassa etc.” (PICHON-RIVIERE, 1998, p. 110).
a relação terapêutico-profissional? Ela não pode Em alguns momentos, o AT não consegue apre-
se tornar uma relação de amizade? Não será um sentar esta postura, afetando-se com as transfe-
misto de profissionalismo e amizade? rências que são trazidas pelo paciente, tais como:
Questionamentos como esses atingem espe- as transferências maternas, de namoradas (os), de
cialmente iniciantes. Não há regra que direcione amigos (as) etc. Como lidar com elas? Como tor-
as ações de um acompanhante terapêutico. Ela ná-las terapêuticas?
parte de sua sensibilidade e olhar terapêutico. Dú- São questões que permeiam os iniciantes de AT
vidas como essas afetam a relação e o modo de e que abrem espaço para uma formação vincular
intervenção. Este artigo busca refletir e responder particularizada em cada caso de acordo com a
como essa questão pode ser gerada e afetar a in- transferência e a postura assumida pelo AT.
tervenção. No caso clínico que será apresentado,
a questão levantada tem um recorte que gira em Quanto à amizade: como se dá?
torno de uma relação profissional e de amizade.
Em muitos casos de Acompanhamento Tera-
Sobre relações vinculares: pêutico, observa-se o estabelecimento de uma
como se estabelecem? relação de “amizade”. Que amizade é essa? Será
uma relação de igualdade? Há trocas mútuas?
Dentro da relação AT e paciente, o mecanismo Terá um sentimento de “irmandade”? Como será
que viabiliza uma ação terapêutica é o vínculo. esta relação?
Uma vez constituído, o paciente torna-se aberto O AT é um profissional com uma equipe de
a intervenções, bem como passa a confiar no te- apoio que possui um suporte teórico sustentador
rapeuta. desta atividade e das propostas de intervenção.
O vínculo se estabelece com o tempo, após Há um objetivo nessa relação que direciona o
algumas provas de que o profissional é confiá- acompanhante. A relação oferecida pelo AT é
vel, de que não vai sumir da vida do paciente de assimétrica; é ele quem direciona as atividades
uma hora para outra, quando testes de seu amor apesar de acordar com o paciente as ações que
(interesse) por ele já foram realizados e compro- serão desenvolvidas.
vados. Quanto às trocas, elas existem, mas não são o

203
foco da relação entre AT e paciente. Elas ocorrem, relação.
independentemente, a partir das afetações ocorri- Resultados e discussões
das e das questões que paciente e acompanhan-
te provocam entre si. De qualquer forma, não é Caso: uma relação terapêutico-profissional e
uma troca igualitária, afinal a disponibilidade do de amizade.
AT para o paciente é o que existe; o contrário não Alguns pacientes do PIC foram acompanhados
se espera. pela autora. Dentre eles, um caso foi escolhido
Diante de aspectos da postura de um AT, não para ser discutido e refletido. Os demais também
parece estranho que os pacientes o tomem, mini- são igualmente importantes, contudo não são tão
mamente, como um “amigo”, como aquela pes- afins ao tema quanto este. É importante salientar
soa com quem podem contar, como um “irmão” que um recorte será dado, deixando para outro
para toda hora. momento informações que também mereceriam
No entanto não é apenas um sentimento frater- destaque. Portanto informações quanto ao víncu-
no que é gerado; a alteridade ocorre. É esperado lo e formação da amizade serão focadas e discu-
pelo AT que este sentimento seja despertado no tidas.
paciente independentemente do que ocorra na A dupla que atendia anteriormente este caso
relação. A alteridade é um mecanismo que se usa já havia comunicado da mudança de terapeutas.
na clínica como meio de intervenção e que não No dia marcado, meu colega e eu fomos apre-
pode ser controlado, ocorrendo espontaneamen- sentados a Carlos (nome fictício do paciente) e a
te. Afinal o acompanhante é uma pessoa diferente sua família. Foi afirmado que nós, a nova dupla,
do paciente; há uma estranheza que é causada iríamos atendê-lo a partir do próximo mês e que
reciprocamente. Quando o vínculo é estabeleci- nas semanas seguintes participaríamos das visitas
do, toda essa disparidade é aceita por ambos, os juntamente aos antigos terapeutas.
abalos e a desestruturação causados pelo dife- Conhecemos Carlos na casa de sua avó. Ape-
rente são acolhidos. sar de morar com a mãe, próximo dali, ele passa
Na relação entre AT e paciente, um misto de muitas tardes com a avó. “Ela [mãe] sempre larga
sentimentos pode ser gerado. A própria postura ele aqui pra ir à igreja.”, nos conta a avó. “Ela
do profissional promove muitos sentimentos, ques- não deixa ele lá, porque ele sai e deixa a casa
tões e abalos. As reações que o acompanhante sozinha e aberta ... É perigoso, né? Ladrão pode
assume diante de tais produções é o que configu- entrar ...”.
ra a relação. Dentre essas produções, observa-se
uma maior freqüência na construção da “amiza- Na casa da avó, moram um tio, duas tias com
de”, seja ela permeada por sentimentos fraternos os maridos e primos de Carlos. Ele também tem
seja pela alteridade em todos os envolvidos na um irmão e uma irmã que já são independentes

204
e moram próximos dali, cada um em sua casa. foi mais intensa e direta, recebendo-nos com um
Seu pai mora longe e tem outra família. A rede cabo de vassoura na mão levantado para o alto e
de apoio de Carlos se resume à avó, à mãe e ao gritando “aqui não entra ninguém não, só família
pai, eventualmente, quando Carlos vai visitá-lo. e amigo”. O clima ficou muito tenso, a família
No entanto a avó é muito idosa, “queria poder intervindo para que nossa entrada fosse permiti-
ajudar mais” conta ela, já a mãe vive ameaçando da, até que a avó, com autoridade, afirmou que
internar Carlos, dizendo para ele e todos ouvirem a casa era dela e permitiu nossa entrada. Mes-
“Não agüento mais Carlos!! Qualquer dia des- mo contra sua vontade, Carlos respeitou a deci-
ses, interno ele!”. A família o enxerga como um são. Não conseguimos nada além disso e fomos
peso que não querem ter. embora em seguida. Após isso, soubemos que o
Apesar de sua educação em nos receber, Car- paciente havia sido internado no sanatório São
los não interagia conosco. O diálogo era quase Paulo (próximo dali) devido a uma briga que tive-
inexistente, ele mostrava-se incomodado com a ra com a mãe no fim de semana.
nossa presença, demonstrando uma ansiedade Durante o período em que ficou internado,
bem evidente. Não parava um segundo, andando Carlos construiu o vínculo conosco. Este vínculo
de um lado para o outro da sala. Às vezes, saía ocorreu quando nos mostramos abertos a ele e
sem falar nada, sumindo por minutos ou meia dispostos a ajudá-lo no que ele precisava; mo-
hora, depois voltava com um cigarro na mão ou mento em que a família, inclusive a mãe dele,
pedindo um para alguém da família. Quando desapareceu. “Aí então vi que vocês eram meus
não conseguia cigarro e ninguém dava dinheiro amigos”, afirma Carlos. Foi o momento que o
para ele comprar, dava uns “tragos” no charuto apoiamos e, em seguida, cobramos esse papel
da avó. da família. Depois disso, ele gravou nossos no-
O nível de ansiedade foi aumentando com o mes e não mais esqueceu. Nossas figuras físicas
passar das visitas, até que chegou num ponto em passaram a ser semelhantes com outras que ele
que ele foi se tornando agressivo frente aos fami- conhecia. Ele passou a ter atenção quando falá-
liares e principalmente conosco. Um dia, Carlos vamos, interagindo conosco numa postura mais
não quis nos receber, pedindo para que a mãe afetiva do que meramente formal.
não abrisse a porta para a gente e ameaçando Carlos passou a confiar em nós, contando tudo
jogar água em nós. Conversamos com a mãe o que ele pensava: os delírios, as idéias de produ-
dele ali mesmo, na porta, com a grade fechada. ção artísticas (músicas e poesias) e de engenharia
Ouvimos suas queixas e intolerância com Carlos, (o design de skate, de biquíni, etc.) de objetos que
tentamos dar apoio a ela para que segurasse o passou a desenvolver e construir, entre outros as-
momento e não o internasse. suntos.
Na visita seguinte, a agressividade de Carlos Na relação dele com a mãe, Carlos adotou

205
uma postura mais crítica, menos dependente, riormente, houve uma aceitação dessas diferen-
questionando-a com relação ao dinheiro que ela ças. Aliado a isso, um sentimento de amizade se
recebe para sustentá-lo (recebe pensão do pai desenvolveu, afetando não somente a Carlos,
e do governo). Ele passou a exigir da mãe que mas a nós também. Nossos sentimentos para com
atendesse alguns desejos de consumo seus, como ele não foram num grau que poderia considerar
tênis e skate que queria. A criatividade dele impe- amizade fraterna, mas uma afetividade de cuida-
rava, e a crítica às relações interpessoais (princi- do desigual, como aquele que é responsável pela
palmente familiares) também. Considero que sua relação e bem estar do outro (em certa medida).
vida se tornou mais saudável e independente. A relação construída tinha um intuito terapêuti-
co, uma finalidade de promover qualidade de vida
Considerações Finais a Carlos. Após a construção do vínculo, nossas
intervenções passaram a surtir maior efeito, o pa-
Observa-se que, no AT, a relação entre profis- ciente tornou-se mais crítico e independente. Isso
sional e paciente é construída a partir dos senti- se deve não somente à amizade que se desenvol-
mentos e abalos produzidos por ambos. O vínculo veu, mas também à alteridade que foi produzida
é uma conquista do acompanhante que luta por nele pela nossa presença, nossas diferenças.
essa posição de depositário fiel de seu paciente, Passado esse momento de estabelecimento do
passando por todos os testes, inclusive os mais vínculo e de configuração do formato do relacio-
agressivos, desde esperar um balde d’água na namento, o profissional pode ficar confuso de que
cabeça até uma cadeirada ou paulada caso entre relação é essa. Afinal, ela torna-se extremamente
na casa sem ser convidado, justamente por não intimista. Não se deve nunca esquecer do pró-
ser da família nem amigo. prio papel, a fim de promover um avanço na vida
Tem-se de provar que essa posição de confian- do paciente, mantendo-se numa postura profis-
ça será sustentada independente das intempéries sional. No entanto não há como não se afetar
da vida, principalmente as provocadas pelo pró- com o paciente e sentir-se mais próximo, como
prio paciente. A partir do momento em que o AT um “cúmplice” dele.
conquista isso, a transferência afetiva do paciente Questionei-me se não era outro tipo de rela-
é inevitável, tornando-se amigo dele, como exem- ção que havia construído com Carlos, se era algo
plificado no caso, alguém com quem Carlos pas- além de profissionalismo, se éramos alguma es-
sou a esperar por considerar como um “irmão”, pécie de amigos, como uma amizade política que
contando para o que precisar. prevê assimetria e desigualdade, baseando-se
Apesar da psicose, o paciente teve ciência das na alteridade. Contudo observo que a alteridade
diferenças entre nós. Inicialmente, estranhamo- produzida tinha um fim, e era previsto que ocor-
nos em muitos aspectos e nos abalamos; poste- resse dentro dessa nova clínica, como também a

206
amizade, o carinho e cuidado que tenho por Car- em psicologia da UFRGS, orientadora Dra. Rosane Azevedo
los fazem parte da construção vincular que se dá Neves da Silva, Porto Alegre, 2005, 144 p.
numa mão dupla. A relação é profissional sim,
mas também tem uma afetividade que ultrapas-
sa os limites de um consultório, tendo um viés de
amizade, de cuidado, como uma relação profis-
sional e de amizade política (afetiva e desigual).

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mento terapêutico: o processo de constituição de uma clí-
nica. Dissertação de mestrado, área de concentração: Psi-
cologia Social e Institucional, Programa de Pós-Graduação

207
Derrubando Muros, Construindo Vínculos:
Intensificação de Cuidados no HCT/BA
Carolina Brandão Vieira Lima*
Larisa Andrade e Castro**
Tatiana Lacerda Medeiros***

Resumo: Este artigo visa promover um diálogo ciente, pudemos testemunhar a suposta forma de
entre as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e o sis- tratamento oferecida pela referida instituição que
tema prisional brasileiro. Em decorrência das ex- atua tendo em vista os princípios de alienação e
periências, ao longo do trabalho de intensificação exclusão dos portadores de sofrimento mental em
de cuidados a um paciente que se encontra no conflito com a lei. Por fim, discutiremos a impor-
Hospital de Custódia e Tratamento/BA, pudemos tância da intensificação de cuidados em relação
constatar a incompatibilidade entre os princípios aos pacientes em conflito com a lei, como propul-
propostos pela Lei 10.216, que vem assegurar os sora de novas possibilidades referentes a uma as-
direitos dos portadores de transtorno mental, e o sistência que priorize a cidadania e subjetividade,
atual modelo de assistência regido pelos saberes apontando para a impossibilidade de conciliar os
psiquiátricos e jurídicos nesta instituição. Serão princípios da Reforma Psiquiátrica e a permanên-
abordadas algumas conceituações da literatura cia dos loucos atrás dos muros. Esta proposta de
jurídica criminal que, ao longo do nosso percurso, cuidado intensivo aos loucos infratores aposta na
tornaram-se necessárias à compreensão e conse- substituição das barreiras (dos muros) pelo víncu-
qüente intervenção nesse caso. Além de discuti- lo, sendo este último aqui compreendido como
las, pretendemos apresentar a idéia de como estas uma ferramenta de trabalho que permite uma in-
colaboram para a manutenção do aparelhamento tervenção no cotidiano do sujeito, considerando
institucional que aprisiona os portadores de sofri- suas necessidades, sua história e a cultura na qual
mento mental, privando-os dos direitos de cida- está inserido.
dania e convívio social. Ao acompanhar este pa-
Uma Breve Apresentação
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC

O
**Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC

***Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC


objetivo deste artigo é promover um diá-
logo entre as diretrizes da Reforma Psiqui-

208
átrica e o sistema prisional brasileiro que aprisio- Por fim, discutiremos a importância da intensi-
na os portadores de sofrimento/transtorno mental ficação de cuidados em relação a estes sujeitos,
em conflito com a lei. Em decorrência das nossas como propulsora de novas possibilidades referen-
experiências, ao longo do trabalho de intensifica- tes a uma assistência que priorize a cidadania e
ção de cuidados a um paciente que se encontra a subjetividade; subjetividade compreendida aqui
“em tratamento” no Hospital de Custódia e Tra- enquanto um conceito que abarca a ordem dos
tamento, localizado na cidade de Salvador - BA, afetos, ou seja, o afetar e ser afetado. Assim, po-
pudemos constatar a incompatibilidade entre os deremos concluir, diante do exposto, a impossibi-
princípios propostos pela Lei 10.216, que vem as- lidade de conciliação entre tais perspectivas e a
segurar os direitos dos portadores de transtorno permanência dos loucos atrás dos muros.
mental, e o atual modelo de assistência regido
pelos saberes psiquiátricos e jurídicos. Quem está atrás dos muros...
Pretendemos abordar algumas conceituações
da literatura jurídica criminal que, ao longo do O paciente aqui referido vem sendo acompa-
nosso percurso, se tornaram necessárias à com- nhado desde 2004 pelo Programa de Intensifica-
preensão e conseqüente intervenção no caso. Os ção de Cuidados para psicóticos (PIC) enquanto
conceitos que serão desenvolvidos posteriormente ainda estava em liberdade, morando com a sua
- medida de segurança, periculosidade, imputa- avó materna. N. ingressou no PIC por ter sido
bilidade e inimputabilidade - colaboram para a internado três vezes em hospitais psiquiátricos e
manutenção do aparelhamento institucional que necessitar de cuidados intensivos. A família rela-
confina e segrega grande número de portadores ta que, ainda quando trabalhava, N. apresentou
de sofrimento mental infratores, privando-os dos comportamentos que provocaram a interrupção
direitos de cidadania e convívio social. de suas atividades. Com a permanência desta
Torna-se relevante trazer a nossa experiência condição, a mãe deu entrada na aposentadoria
enquanto cuidadoras de um sujeito que, desde a por invalidez junto ao INSS, buscando a curatela
sua entrada no HCT, vivencia situações cotidianas para o filho.
de opressão impostas pela normatização inerente Desde o início do acompanhamento, o PIC ti-
a este sistema manicomial. Assim, pudemos teste- nha conhecimento de que N., antes da mudança
munhar a suposta forma de tratamento oferecida de bairro, tinha sido surpreendido por policiais
pela instituição que, mesmo tendo o seu nome re- que o levaram a um módulo policial e posterior-
formulado de Manicômio Judiciário para Hospital mente para uma delegacia onde fora acusado de
de Custódia e Tratamento, segue atuando a partir ter cometido um crime pelo qual responde até o
dos mesmos princípios: alienação e exclusão dos presente momento. Durante o período que ante-
sujeitos. cedeu a sentença, a justiça solicitou um laudo psi-

209
quiátrico, realizado no manicômio judiciário, no “mais adequado”, nas atuais condições e dentro
qual o paciente não foi considerado um portador das possibilidades de assistência a estes sujeitos
de sofrimento mental, o que acarretou no seu jul- na cidade de Salvador, para acolher o paciente.
gamento como imputável – responsável pelos seus Desde agosto de 2005, ele está na referida
atos no momento do delito – sendo assim conde- instituição, sendo possível observar melhoras no
nado a uma pena privativa de liberdade. Após seu quadro clínico, em comparação ao tempo
o habeas-corpus, solicitado por uma advogada que permaneceu na penitenciária, ainda que te-
contratada pela família, N. foi solto e mudou-se nha passado por um período de desorganização
para outro bairro. No entanto, segundo a família psíquica quando completou um ano de interna-
e o próprio sujeito, a advogada não acompanhou mento no HCT.
devidamente o caso, tendo ocorrido o julgamento Atualmente, o paciente encontra-se “organiza-
à revelia. do” psiquicamente e recebe visitas constantes das
N. só teve conhecimento da sua sentença estagiárias e de sua mãe. O PIC tem trabalhado
quando foi abordado no mesmo dia em que ha- no sentido de possibilitar um acompanhamento
via ido ao Fórum para ser avaliado a respeito da deste paciente em liberdade, a partir do questio-
sua curatela. Nesta ocasião, foi levado à Polinter namento dos modelos de tratamento atuais para
e tratado como um fugitivo da justiça, mesmo sob os pacientes com sofrimento mental em conflito
as contestações da mãe que afirmava ter informa- com a lei. Recentemente, foi elaborado um novo
do a mudança de endereço. Após um período, laudo psiquiátrico pelo diretor do Manicômio Ju-
foi conduzido à Penitenciária Lemos Brito, onde diciário, atestando que N. é um portador de trans-
permaneceu por seis meses, sendo acompanhado torno mental que já deveria estar sendo assistido
ainda de forma mais intensiva pelas estagiárias. Ao em liberdade. O juiz da Vara de Execuções Penais
longo desses meses, observou-se o agravamento está com o processo em mãos e afirmou para as
do quadro psiquiátrico do paciente, necessitando estagiárias que a pena de N. será, então, conver-
uma intervenção ativa das estagiárias, família e tida para Medida de Segurança.
alguns funcionários da penitenciária mobilizados
com a situação. Estava evidente que aquele local Reforma Psiquiátrica e Medida de Segurança:
não era o mais adequado para um portador de é possível conciliar?
sofrimento mental cumprir sua pena, já que, nos
seus últimos dias neste local, o paciente, que es- Após tramitar durante 12 anos no Congresso
tava desorganizado, foi colocado em uma “soli- Nacional, no ano de 2001 a Lei Paulo Delgado
tária” com a justificativa institucional de proteger (Lei Federal 10.216) é sancionada no Brasil. Esta
N. e os outros detentos. Procurou-se uma trans- lei se caracteriza pelo redirecionamento da assis-
ferência imediata para o HCT, local considerado tência em saúde mental, propondo a construção

210
de uma rede de atenção substitutiva ao modelo to mental. Sendo assim, caso a internação, em
hospitalocêntrico – reforçador da internação em quaisquer de suas modalidades, se coloque como
leitos psiquiátricos. um recurso necessário em uma situação especí-
Com a promulgação da referida lei, um novo fica, não se deve perder de vista que esta deve
ritmo se impôs para o processo de Reforma Psi- ser encarada como uma medida excepcional,
quiátrica no Brasil, efetivando – a curtos passos temporária e de curta duração, no intuito de ga-
– a desinstitucionalização, que vem sendo coloca- rantir a continuidade do tratamento, tendo como
da em prática pelo desmonte do antigo aparato perspectiva não o isolamento, mas a permanente
institucional e pelo engendramento de um novo inserção social do portador de sofrimento mental
modelo de assistência de caráter extra-hospita- (NETTO & MATTOS, 2004).
lar e comunitário. A partir de então, lugares de Entretanto uma outra realidade se faz presente
grande tradição hospitalar vêm experimentando a nos Hospitais de Custódia e Tratamento, onde se
expansão significativa da rede de atenção diária encontram muitos ‘moradores’, com longo perí-
à saúde mental. No entanto, é possível constatar odo de permanência, extrapolando o tempo de
um abismo entre aquilo que foi proposto e o que cumprimento da pena. Na realidade, o louco in-
foi, de fato, efetivado a partir dos pressupostos da frator corre um grande risco de, ao ser considera-
Lei 10.216. do inimputável e conduzido ao Manicômio Judici-
No que se refere às instituições prisionais res- ário para realizar “tratamento”, cumprir pena em
ponsáveis pelo recolhimento dos loucos infratores caráter perpétuo – inconstitucional – e viver em
– rotuladas de Hospitais de Custódia e Tratamen- um regime de internação que, além de compul-
to – ainda é muito pouco o que se observa em re- sório, é, muitas vezes, sem fim. Entendemos que
lação ao princípio antimanicomial, disposto no § esta situação perversa tem sido explicada tanto
1º do art. 4º (Lei 10.216), em concordância com pela ausência de alguém que os acolha fora da
o direito assegurado ao portador de transtorno instituição (discurso largamente utilizado pela De-
mental no inciso II do Parágrafo Único do art. 2º, fensoria Pública), mas também através de entra-
que garante o tratamento visando, com finalidade ves impostos pelo caráter subjetivo do conceito de
permanente, a reinserção social do sujeito, com a periculosidade.
garantia de recuperação junto ao convívio fami- A periculosidade é compreendida no âmbito
liar, o trabalho e a livre circulação na comunida- da justiça penal como o equivalente da culpabi-
de. Diante de tal perspectiva, a internação só se lidade em relação às penas privativas de liberda-
torna admissível, em consonância com o art. 4º, de. Enquanto a culpabilidade recai sobre aquele
na medida em que os recursos extra-hospitalares que agiu por vontade própria, com capacidade e
se mostrarem insuficientes para prestação de as- consciência plena para reconhecer a ilicitude de
sistência integral à pessoa portadora de sofrimen- seu delito, a periculosidade compreende a pró-

211
pria natureza do agente, quando este não apre- da doença, por via de um internamento que, se
senta a referida capacidade ou não consegue se no discurso é não punitivo, na prática lhe arranca
desvencilhar da natureza que o conduz ao ato a liberdade e a voz. (...) Neste sentido, a medida
delituoso. de segurança, mais do que uma defesa social,
Dessa forma, apenas através da perícia psiqui- seria uma paradoxal defesa da pessoa portadora
átrica é possível determinar se o sujeito, plena ou de doença mental contra a sua própria loucura.
parcialmente, possui ou não capacidade de com- (p. 21 e 22).
preender a ilicitude de seu ato ou de praticá-lo Torna-se claro, então, que estes princípios (pe-
por sua livre vontade, ou seja, se ele é considera- riculosidade, medida de segurança, imputabilida-
do inimputável ou não. de e inimputabilidade) são manejados de forma
Portanto, a imputabilidade do sujeito pode ser a corroborar e legitimar a exclusão social da lou-
explicada através da compreensão do agente em cura, tanto por meio do discurso médico, como
perceber o caráter ilícito do ato praticado, sendo através do aparato jurídico. A Psiquiatria se inte-
considerado responsável pelo crime cometido e, ressou em trazer para si a responsabilidade pelos
só assim, submetido a uma pena. Já a inimputa- loucos, cerceando, assim, a liberdade dos que
bilidade é determinada quando o agente é inter- ela considera perigosos para a sociedade – afir-
pretado como incapaz de entendimento e de au- mando ser capaz de reconhecê-los. Esta institui-
todeterminação, no ato da prática delituosa, por ção emprestou seu modelo de tratamento como
conta de doença mental, desenvolvimento mental mecanismo de punição ao direito penal, uma vez
incompleto ou retardado, sendo considerado pe- que os portadores de sofrimento mental não de-
rigoso e irresponsável, e assim submetido a uma vem permanecer no manicômio judiciário tempo
medida de tratamento, ou seja, a Medida de Se- suficiente para serem “curados”, mas sim aquele
gurança. que a justiça e a psiquiatria impõem com base na
Esta última pode ser compreendida como re- sua periculosidade.
curso judicial em que o sujeito considerado inim- A definição do destino deste louco em confli-
putável fica detido ou recluso em instituições que to com a lei se dá através de parâmetros mui-
funcionam sob forma de regime fechado, por ofe- to questionáveis, já que avalia de forma objetiva
recer perigo a si mesmo e a outrem. Neste sen- ao desconsiderar a amplitude e a subjetividade
tido, a medida de segurança, segundo Jacobina relacionadas ao conceito de periculosidade. Afi-
(2003), pode ser pensada como: nal, é admissível definir quem oferece perigo ou
Um instituto que pune a loucura, sob o funda- não? Para a Psiquiatria é possível: basta avaliar a
mento, nem sempre explícito, de a desmascarar, condição de sanidade mental, baseando-se nos
arrancar do ser humano essa doença. E que, de seguintes quesitos encontrados nos laudos anexa-
resto, acaba restringindo a liberdade do portador dos aos processos:

212
O sujeito, ao tempo da ação, era portador denimo – priva o louco infrator de sua liberdade,
doença mental ou desenvolvimento mental in- afastando-o do convívio social.
completo ou retardado? No momento do delito Sentimo-nos aprisionadas, no que se refere
era capaz de discernir inteira ou parcialmente oàs possibilidades de proporcionar a este sujeito
caráter ilícito do fato? Sendo capaz, poderia seum contato diferenciado com o outro e com o
determinar de acordo com esse entendimento? mundo, já que através da intensificação de cuida-
Respondendo à pergunta que introduziu esta dos, possibilitada pelo estabelecimento do víncu-
seção, podemos afirmar que a Medida de Segu- lo ocasionado pelos “alicerces de uma presença,
rança e as diretrizes da Reforma Psiquiátrica não
alicerces de singularidades jamais generalizáveis”
podem caminhar de mãos dadas, na medida em (ZYGOURIS, 2002, p.11), é possível viabilizar,
que a primeira deslegitima a noção de cuidado, além de uma ressignificação subjetiva, a amplia-
inserção social, individualidade, livre-arbítrio,
ção da rede social junto com o sujeito.
etc., ou seja, os fundamentos norteadores da luta Os muros nos contêm, restringindo a nossa atu-
daqueles que vêm construindo uma nova forma ação enquanto acompanhantes de uma pessoa
de atenção e cuidado aos sujeitos com sofrimentoque está privada do direito de ir e vir, logo, este
mental. trabalho torna-se submetido às poucas possibili-
Em tempos de movimento antimanicomial, só dades oferecidas pelo manicômio. Sendo assim,
um louco defenderia a internação compulsória o nosso ponto de partida – presença enquanto
como terapia bastante e suficiente para a rein- alteridade – é o que prevalece como recurso tan-
tegração do inimputável. Não há como ocultar, to no que se refere ao sujeito objeto de cuidado
portanto, que essa medida não se dá em benefí- quanto aos profissionais que fazem parte desta
cio do portador de transtornos mentais, mas que instituição, no caso aqui tratado, o HCT.
se dá tão-somente em benefício da sociedade que Este sujeito supracitado passa a viver apenas
se considera agredida e ameaçada pelo inimpu- à mercê do cotidiano normatizador desta institui-
tável que cometeu um fato descrito pela lei comoção, tendo inclusive seu ritmo biológico alterado
típico. (JACOBINA, 2003, p.91). para se enquadrar na rotina imposta. Os horários
estabelecidos são seguidos de forma rígida por
As experiências do cuidar entre os muros todos, submetendo esses indivíduos a uma padro-
nização que os aliena enquanto sujeitos constran-
Ao nos dispormos a intensificar os cuidados gidos na sua organização singular da experiência
a um portador de sofrimento mental em conflito social. Tomamos como exemplo o horário fixado
com a lei, nos deparamos com as peculiaridades para o jantar: todos os pacientes são chamados
dessa atenção, que se torna limitada por estar para o refeitório às 16 horas, já que às 17 horas
sendo realizada em uma instituição que – no mí- eles são recolhidos para as suas respectivas alas,

213
onde são trancafiados e de onde só podem sair No meio deste “caos”, a família surgiria como
no dia seguinte. um sustentáculo para estas pessoas, ora permitin-
Há também, no que diz respeito ao uso da me- do a relação destas com a realidade extra-muro,
dicação, uma prescrição quase inquestionável, ora atualizando a sua condição de sujeito social.
pois, na relação com os profissionais de saúde, a Isto pode ser observado claramente no caso que
palavra do sujeito não é levada em consideração acompanhamos, onde a presença da família, prin-
(ou a ausência de palavras dos que estão dopa- cipalmente da figura materna, é essencial para
dos). No caso dos internos do HCT, a medicação que este indivíduo possa suportar a exposição a
receitada permanece inalterada por um longo pe- tais mecanismos que conduzem a sua anulação
ríodo de tempo, o que é questionável por se tra- enquanto sujeito. Em um lugar onde manter-se or-
tar de uma instituição com fins terapêuticos. Vale ganizado psiquicamente é um desafio permanen-
considerar que vivenciamos uma situação na qual te, a família exerce um papel primordial, porém
o indivíduo apresentava desconforto em relação no caso do HCT prevalece muito mais a ausência
ao uso da medicação injetável, o que só foi rea- do que a presença da mesma.
valiado pelas equipes de enfermagem e médica
após dez meses. É preciso ousar...
Outra situação que negligencia a condição de
sujeito é a forma de tratamento por parte de al- Diante da nossa experiência e do contato com
guns agentes penitenciários que destratam e mui- novos olhares sobre o louco infrator, entendemos
tas vezes humilham os internos, como tem sido que é necessário devolver-lhe a voz, combater a
presenciado por nós nas visitas. Entendemos que exclusão e conseqüentemente resgatar sua auto-
existem diversos fatores associados a esta falta nomia e dignidade - direito inalienável de todo
de cuidado como: as vivências subjetivas destes cidadão.
profissionais que estão imersos numa sociedade Contudo, ao expormos a realidade do HCT,
que julga e desumaniza o louco e, mais ainda, o constatamos que é preciso ousar: rompendo com
“louco criminoso”, o despreparo no que diz res- a lógica segregadora e violenta do manicômio
peito à formação para exercer uma atividade que que invoca com seus muros a ruptura dos laços
pressupõe uma delicadeza na relação com o ou- de convivência social. Um modelo que cria uma
tro e a desvalorização profissional, na medida em instituição para abrigar, em sua maioria, pesso-
que estes não são reconhecidos socialmente pelo as submetidas à medida de segurança: “(...) um
trabalho que realizam. No entanto, apesar desta tratamento cuja alta não se dá em razão pura e
situação ser facilmente observada no HCT, pouco simples da recuperação do paciente, mas pela
ou nada tem sido feito para transformar este mo- sua submissão à ‘perícia da cessação de pericu-
delo de atenção. losidade’(...)” (JACOBINA, 2003, p.90), precisa

214
ser urgentemente reformulado, tendo como nor- Referências
teadores os princípios propostos pela Reforma
JACOBINA, P. V. Saúde Mental e Direito: um diálogo
Psiquiátrica. entre a reforma psiquiátrica e o sistema penal. 2003. 99 f.
Tendo em vista que o isolamento social perdeu Monografia (Especialização em Direito Sanitário) - Faculda-
a sua legitimidade legal como uma possível forma de de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2003.
de tratamento destes sujeitos, torna-se imprescin- MENEZES, A. L. É possível conciliar as diretrizes da re-
dível que os profissionais envolvidos com os por- forma psiquiátrica ao cumprimento das medidas de segu-
rança? 2006. 109 f. Monografia (Graduação em Direito)
tadores de sofrimento mental em conflito com a - Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Sal-
lei estejam dispostos a transformar as práticas até vador, 2006.
então vigentes, em conformidade com um novo ZYGOURIS, R. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta,
modelo de atenção e cuidado, tendo em vista que 2002, 80 p.
cada sujeito é capaz de construir um projeto de
vida com cabimento na sociedade.
A partir da experiência proporcionada pela
participação no Programa de Intensificação de
Cuidados, onde acompanhamos um paciente que
se encontra no HCT, acreditamos que é possível
vislumbrar novos fazeres que partam das necessi-
dades concretas dos sujeitos sociais.
Com o fim dos muros, o cuidado intensivo a
estes pacientes torna-se uma alternativa interes-
sante, por apostar na substituição das barreiras,
que se sustentam por conferir proteção à socie-
dade, pelo vínculo, aqui entendido como uma
ferramenta de trabalho que permite uma inter-
venção no cotidiano do sujeito considerando suas
necessidades, sua história e a cultura na qual está
inserido.

215
Psicose Negra: A Imagem de si e a Recusa do Corpo
Gisele Vieira Dourado Oliveira Lopes*
Mônica Machado de Matos**

Resumo: A relação do sujeito com seu próprio A questão racial surgiu como foco de trabalho e
corpo inicia-se e sofre influência do outro que o projeto terapêutico apenas nos últimos meses do
toca e com quem se relaciona. É a partir do olhar acompanhamento, possivelmente, por dificuldades
do outro que o sujeito se percebe, relaciona-se e resistências pessoais terem ocasionado a acei-
consigo mesmo e com os outros. Na psicose, tação tardia do tema como foco do acompanha-
existe a impossibilidade de apropriar-se do corpo mento. Tais dificuldades estão relacionadas com a
com suas marcas singulares, de percebê-lo como questão da suposta neutralidade do branco. Para
formando certa unificação. Um aspecto que a clí- os indivíduos considerados brancos na sociedade
nica das psicoses evidencia é a freqüente relação brasileira, a cor nunca é algo a ser questionado e
de estranhamento que os psicóticos mantêm com não se constitui como fonte de discriminação; por-
seu corpo. Pacientes psicóticos muitas vezes vêem tanto, não é um empecilho para se relacionar.
o corpo de forma fragmentada, o que é revelado
inclusive por vontade de modificações físicas, uma “Vem você dizer que eu sou preta,
vez que, na sua percepção, seria possível modifi- que eu sou a macaca da sala”.
car a cor a partir de mudanças em partes do cor- “Eu pareço urubu é?...”.
po. Durante o acompanhamento de uma paciente “Eu não sou negra, quem é negra é
no Programa de Intensificações de Cuidados a aquela prostituta que se vendeu”.
Pacientes Psicóticos, pôde-se observar que esta
paciente psicótica expressava grande sofrimento

A
psíquico e angústia advindos do fato de ser negra, relação do sujeito com seu próprio corpo ini-
assim como revolta contra aquele ou aqueles que cia-se e sofre influência do outro que o toca
lhe impunham uma posição inferior devido à cor. e com quem se relaciona. É a partir do olhar do
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC
outro que o sujeito se percebe, relaciona-se con-
*Estudante de Psicologia (UFBA) e ex-estagiária do PIC sigo mesmo e com os outros.
O corpo humano se constitui a partir de um

216
processo de simbolização, da inscrição de marcas mento do sujeito negro, de sua subjetividade e de
deixadas por uma história, pela constante intera- sua identidade, é marcado por vivências sistemá-
ção com o Outro, por recortes do desejo. Na psi- ticas de discriminação e ofensa em relação a suas
cose, existe a impossibilidade de apropriar-se do características étnicas. Essa experiência, por sua
corpo com suas marcas singulares, de percebê-lo vez, gera uma série de questões identificatórias,
como formando uma certa unificação (Goidani- a partir das quais o sujeito não pode reconhecer
ch, 2003). a si próprio de forma serena e não conflituosa, o
De acordo com Goidanich (2003), um aspecto que permite produzir tanto o sofrimento quanto
que a clínica das psicoses evidencia é a freqüente constrangimento da sua expressão subjetiva.
relação de estranhamento que os psicóticos man- O primeiro surto de M. ocorreu no último ano
têm com seu corpo. Relacionam-se com ele como da escola. Fora desencadeado após uma apre-
se fosse um outro, um objeto estranho. sentação de trabalho, na qual ela teria que re-
No período de crise, os sujeitos psicóticos são presentar o papel principal numa dança sobre o
quase esmagados pela enxurrada de estímulos Ilê-Ayê, por ser negra. Entretanto, ela foi substitu-
que os aflige e sobre a qual não mantém controle ída por uma colega branca que, segundo M., era
- escutam vozes, vêem imagens, sentem empur- “mais bonita, prostituta e aidética”. Esta experiên-
rões, beliscões e puxões que os dominam total- cia foi muito marcante na vida da paciente.
mente. Evidencia-se que não há nenhum tipo de Andrade e Silva (2006) salientam que a vio-
barreira ou censura, nenhum amortecimento para lência racial e o sofrimento gerado por esta são
a torrente de sensações produzidas e percebidas frequentemente relatados por pacientes psiquiátri-
pelo sujeito. A alteridade o esmaga, o domina e cos negros, chegando, em alguns casos, a serem
aniquila a possibilidade de existir enquanto um centrais na construção do delírio. No caso de
sujeito que impõe algum tipo de corte separador M., o sofrimento psíquico advindo da sua cor está
(Goidanich, 2003). sempre presente nas suas falas, não só em mo-
As frases citadas no início deste trabalho são mentos de delírios ou em suas fantasias.
de M. – uma mulher negra, de 25 anos, classe A questão racial é bastante forte e presente na
média, estudante de administração hoteleira. Na vida da paciente. A cor é sempre fonte de ques-
presença de estagiárias do Programa de Intensi- tionamento sobre si mesma e lhe confere uma
ficação de Cuidados, durante um surto psicótico, aparência que ela rejeita. M. sente-se inferior, in-
M. expressa seu sofrimento psíquico e sua angús- clusive entre seus familiares, por acreditar que é
tia advindos do fato de ser negra, mas também mais “escura do que eles”. Isso pode interferir no
sua revolta contra aquele (ou aqueles) que lhe sentimento de pertença, de filiação e, portanto,
impõem uma posição inferior devido a sua cor. na relação com os outros e na sua auto-estima.
Segundo Andrade e Silva (2006), o desenvolvi- Não conseguindo negar sua cor e não poden-

217
do modificá-la, M. encontra meios para não res- Os meninos só achavam as brancas bonitas. As
saltá-la. Assim, restringe suas atividades – não vai morenas e as negras ninguém achava bonita.”
à praia, clube ou qualquer lugar que possa bron-
zear a sua pele, evita sair de casa a pé ou ficar em Nota-se uma percepção negativa de M. sobre
ponto de ônibus em horários em que o sol esteja seu corpo e uma busca constante de transforma-
muito forte. É possível afirmar que M. organiza ção. Ao ser questionada sobre seus desejos e pla-
sua vida em função da preocupação constante nos para o próximo ano, M. responde:
com a sua cor.
“Quero mudanças! Mudar de casa, de curso,
“Eu prefiro ficar assim... amarela”. fazer plástica no nariz, mudar meu cabelo,
meu corpo.”
Em quase todas as visitas, M. observa e nos
questiona sobre a nossa aparência. Comenta so- M. expressa, costumeiramente, o desejo de mu-
bre nosso cabelo, sobre nosso corpo, repara se dar. Desde mudar de curso até mudar a si mesma,
emagrecemos ou se estamos mais bronzeadas. naquilo que a incomoda: a cor e seus traços ét-
“Você foi à praia?... Você era mais branqui- nicos. Rejeitar em si o que o outros rejeitam nela
nha”. promove uma procura constante por meios que
possam torná-la mais aceita socialmente e, por-
Na relação da paciente com o próprio corpo, tanto, sofrer menos. A forma mais fácil, portanto,
os aspectos que lhe remetem a sua negritude lhes seria adaptar-se ao ideal de beleza branco, so-
são os mais inquietantes. cialmente mais aceito e até mesmo cultuado.
Carone (2002), discorrendo sobre o conceito
Estagiária: “Você está sempre preocupada com de ideologia do branqueamento, salienta que tal
sua aparência...”. conceito pode ser entendido, inicialmente, como
o ideal de “clareamento” da população brasileira
M.: “É, Sempre.” resultante da intensa miscigenação entre brancos
e negros no período colonial. Entretanto, ressalta
Estagiária: “O que mais lhe incomoda na sua que o branqueamento também pode ser entendi-
aparência?”. do como uma pressão cultural exercida pela he-
M.: “A cor” gemonia branca, para que o negro negasse a si
Estagiária: “Por quê?” mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma
espécie de condição para se “integrar” à nova
M.: “Porque eu sou negra, né? Na escola di- ordem social pós abolição.
ziam que eu era negra. Eu via que tinha diferença. Neste sentido, a maioria da população introje-

218
tou o ideal de branqueamento, o que deixou mar- relação à questão racial podem ter ocasionado a
cas invisíveis no imaginário e nas representações aceitação tardia do tema como foco do acompa-
coletivas. Inconscientemente, estas marcas interfe-nhamento.
rem no processo de construção da identidade do É importante ressaltar duas dificuldades encon-
negro, bem como na formação da auto-estima tradas por nós durante esse processo. Uma delas
geralmente baixa da população negra e na su- é o fato de sermos estagiárias brancas e como
pervalorização idealizada da população branca tais, termos herdado a neutralidade do branco.
(Munanga, 2002). A nossa cor nunca foi algo a ser questionada por
O ideal do branqueamento é constantemente nós, nunca se constituiu como fonte de discrimi-
percebido no discurso de M.: nação e, portanto, não é um empecilho para nos
relacionarmos.
“Eu vou fazer cirurgia no nariz, pra puxar a Silva Bento (2003) ressalta que o branco sem-
cor, quero ficar igual à Sandy”. pre aparece como modelo universal de humani-
dade, alvo de inveja e desejo dos outros grupos
Fazer cirurgia no nariz simboliza o desejo de raciais não brancos. Dessa forma, o foco de dis-
branqueamento de M. Na sua percepção, seria cussão é sempre o negro e há um silêncio sobre
possível modificar a cor a partir da modificação o branco. Para a autora, parece haver uma es-
de partes do corpo, o que revela uma fragmenta- pécie de pacto entre os brancos, de não se reco-
ção do mesmo e um dado real de preocupação nhecerem como parte essencial da permanência
com a sua identidade étnica. das desigualdades raciais no Brasil. Assim, evitar
De acordo com ela, as mudanças físicas (nariz focalizar o branco é evitar discutir as diferentes
e cabelo) promoveriam uma melhor auto-estima dimensões de privilégio simbólico da brancura.
uma vez que a aproximariam do ideal de beleza A outra dificuldade encontrada por nós é a de
branco. Assim, haveria também uma mudança de responder as perguntas que M. nos direciona. Ela
posição, sentida como inferior diante da sua con- nos convoca, costumeiramente, a opinar e dar
dição estética. respostas sobre ela que possam “solucionar” suas
Durante seis meses acompanhando M., a demandas, inclusive sobre sua cor.
questão racial surgiu para nós como foco de tra-
balho e projeto terapêutico apenas nos últimos M.: “Eu sou negra, não sou?
meses. A partir de então, realizou-se uma revisão
dos relatórios de estagiários anteriores que, ape- O que você acha?
sar de citarem o sofrimento psíquico de M., não
tiveram como objetivo de trabalho essa questão. Quero saber como as pessoas de fora, na rua,
As nossas dificuldades e resistências pessoais em me vêem.”

219
Esses questionamentos provocam em nós cer- dade brasileira, o preconceito é constitutivo das
to desconforto, pois nos levam a indagar sobre relações sociais.
nós mesmas e sobre nossa condição de brancas.
Além disso, M. constantemente se compara co- O mundo pesa sobre os sujeitos impondo seu
nosco e nos coloca em uma posição “superior” tempo, seu andamento, seu modo de funcionar,
a ela, devido a nossa cor, o que aumenta nosso e, com isso, marca o corpo, configurando gestos,
desconforto. velocidades, modos de se comportar. (Goidanich,
Aceitar nossa branquitude e as implicações 2003).
culturais, políticas e socioeconômicas de sermos
brancas é o primeiro passo para podermos de-
senvolver um bom trabalho com M. Referências
Implicar-nos em estudos e discussões sobre o
BENTO, MARIA APARECIDA SILVA, Branqueamento e
tema possibilita a construção de um arcabouço te- Branquitude no Brasil. Psicologia Social do Racismo, estu-
órico que possa embasar uma atuação mais ética dos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópo-
e próxima da realidade de M. Entretanto, é tam- les: Vozes, 2003.
bém uma dívida social, uma vez que “o problema
do negro é também o problema do branco”. CARONE, IRAY. Breve histórico de uma pesquisa psicos-
social sobre a questão racial. Psicologia Social do Racismo,
Bento (2003) aponta que foi a elite branca bra- estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Pe-
sileira quem criou o problema do negro brasilei- trópoles: Vozes, 2003.
ro. A primeira fez uma apropriação simbólica que
reforça o autoconceito do branco e sua (suposta) MUANGA, KABENGELE. Psicologia Social do Racismo,
supremacia econômica, política e social. Além estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Pe-
trópoles: Vozes, 2003.
disso, construiu um imaginário negativo sobre o
negro, o que solapa sua identidade racial, dani- GOIDANICH, MÁRCIA. Configurações do corpo nas
fica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação psicoses. Psicologia e Sociedade: 15 (2): 65-73, jul.dez.
que sofre e, por fim, justifica as desigualdades ra- 2003.
ciais (Santos, 2003, p. 32).
ANDRADE, N. C.; SILVA, M. V. O. Violência Racial: A
É importante salientar que os delírios de M. so- Subjetividade em discussão. In: Représentatiosn dês Noir(e)s
bre a questão racial são fundamentados em suas dans lês pratiques discursives et culturelles em Caraïbe.Ed.
experiências sociais e relações estabelecidas com Victorien Lavou Zoungbo, Marges 29, Université de Perpig-
o outro. Supõe-se que essas experiências pro- nan Via Domitia.
movam muito sofrimento psíquico para ela, bem
como para outros negros, uma vez que, na socie-

220
Ressonâncias
Ela não pode ser mãe!
Quando maternidade e loucura se cruzam
Mariana Carteado*

H avia cerca de quatro meses que nós acom-


panhávamos Alice. O vínculo vinha sendo
construído e reconstruído a duras penas: ela não
da de um terceiro filho. Essas foram as primeiras
informações que tive sobre a paciente e, no de-
correr do seu acompanhamento, pude perceber
conseguia compreender como duas pessoas po- o quanto a escolha desses dados pelos antigos
deriam estar ali disponíveis para ela sem nenhum estagiários para apresentá-la a mim foi revelado-
interesse escuso por trás. Sua trajetória de vida ra de como Alice se relaciona com o mundo e,
já havia lhe provado que não se deve confiar em principalmente, de como o mundo - nós, os ou-
ninguém. Antes de conhecê-la, as únicas informa- tros – se relaciona com ela.
ções que tínhamos era de que ela reagia sempre A simples presença de Alice nos espaços pelos
muito mal à presença dos estagiários, alegando quais ela transita já costuma ser o suficiente para
que iriam lá vigiá-la, investigar alguma coisa er- mobilizar as pessoas, no entanto o fato de ser
rada em sua vida para infligir-lhe algum tipo de mãe emerge sempre como uma espécie de pro-
punição. vocação, algo que gera perplexidade aos olhos
No entanto, ainda que essa recusa de Alice do outro. De fato, ao se impor ao mundo como
em participar do Programa de Intensificação de mulher e mãe, ela rompe com o contrato tácito
Cuidados já fosse motivo de tensão suficiente, a segundo o qual os papéis sociais que lhe são re-
informação que mais se destacava para as pes- servados devem respeitar os limites impostos pela
soas que me relataram o caso era o fato de ela sua condição de pobreza e de loucura.
ser mãe. Mãe de duas crianças pequenas e grávi- De acordo com a psicanalista argentina Ma-
rie Langer (1981), a sociedade atual se configu-
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC ra como anti-instintiva e anti-maternal, na qual o
nascimento de um filho tende a ser visto como

223
um estorvo econômico-social, e não uma alegria. à relação de Alice com a maternidade um triunfo
A maternidade é encarada como um empecilho do instinto maternal sobre as normas sociais, no
para a realização profissional da mulher, princi- entanto a complexidade do caso nos aponta ou-
palmente se essa quiser competir em paridade tras perspectivas de análise.
com os homens. Ser mãe implica sempre uma Desde muito cedo, Alice convive com experi-
disponibilidade para o cuidar do outro, o que ências radicais de desamparo e fragilidade vin-
muitas vezes está associado a uma dimensão de cular. Sua mãe, psicótica com extensa carreira
sacrifício pessoal. Isso, obviamente, se contrapõe manicomial, desapareceu por algumas semanas
ao discurso individualista, tão comum na socieda- e retornou para casa já grávida dela. Do seu nas-
de contemporânea, de que a mulher deve pensar cimento, não tivemos informações, mas sabemos
primordialmente nos seus projetos de sucesso e que sua avó assumiu os seus cuidados e a re-
bem-estar pessoais. gistrou legalmente como filha, contudo nunca a
Ainda que o ideal de mulher moderna, que considerou efetivamente como tal. O conceito de
subsidia as reflexões de Langer, esteja um tanto vínculo elucidado por Pichon-Riviére (1998) como
distante da realidade da nossa paciente, um olhar interjogo de papéis complementares adjudicados
mais apurado pode captar sinais de convergên- e assumidos numa relação permite-nos inferir
cia. Alice é percebida como alguém que precisa possíveis repercussões dessa circunstância em seu
de cuidados intensos de saúde, tanto física quanto processo de individuação: não sabendo ao certo
psíquica, além de viver numa situação sócio-eco- quem era a sua mãe, como poderia Alice reco-
nômica extremamente precária. Se o cuidar de si nhecer-se integralmente no papel de filha?
já é tão escasso, como ela conseguiria cuidar dos Os papéis subseqüentes ocupados pela pa-
filhos? E por que ela não recorre ao planejamento ciente na sua teia relacional vieram a reificá-la
familiar e vai cuidar de si mesma? numa posição social regida pelo imperativo
Certo dia, caminhávamos com ela perto de “NÃO SEJA”. De fato, desde a primeira infância,
sua casa, quando uma de suas vizinhas gritou quando foi diagnosticada como “doente mental”,
“Doutora, dá uma injeção em Alice pra ela parar qualquer expressão sua que escapasse (ou não)
de ter filho!”. Na mesma hora, veio a resposta à norma passou automaticamente a ser conside-
“A barriga é minha e se eu quiser ter dez filhos, rada como sintoma de sua “doença”. Também
você não tem nada com isso!”. Langer considera seu destino já estava traçado, pois, com o tempo,
que, em contraposição ao imperativo anti-mater- ela estaria fadada a assumir o papel que fora de
nal da sociedade, a biologia da mulher mantém sua mãe, de bode-expiatório da família e da co-
as suas funções de procriação em pleno exercício munidade. Os estigmas da loucura e da pobreza
e o instinto maternal prossegue influenciando o impendiam-na de assumir qualquer outro papel
comportamento feminino. Seria tentador atribuir social de valoração positiva.

224
Frente a uma realidade com recursos tão par- nosco que havia estado com a filha, pela manhã,
cos de construção identitária, a maternidade pode em uma organização do judiciário, para solicitar
ter-se tornado para ela o ponto de ancoragem um documento exigindo que o pai reconhecesse a
psíquica capaz de lhe garantir lugar minimamente paternidade da criança. Quando lá chegou, com
digno na cultura. Alice, ao gerar um filho, gera a menina nos braços, a assistente social pergun-
também um outro para quem ela é uma mãe. E tou-lhe como ela estava alimentando o bebê, ao
é a partir desse lugar de mãe que ela passa a que ela respondeu que estava preparando papas
circular pelas instituições que, de certa forma, a com leite em pó e arrozina. Segundo o relato de
confirmam nesse lugar: creche, escola, cartório, Alice, a assistente social lhe disse que ela não te-
pediatra, CAPS infantil. ria a menor condição de cuidar da criança e que
Assumir o papel de mãe e se relacionar com o melhor seria entregá-la a um abrigo. Tentamos
o mundo a partir desse papel talvez tenha sido a tranqüilizá-la esclarecendo que devia ter ocorrido
forma encontrada por Alice para escapar da po- um mal entendido, a assistente social só deve-
sição alienada que lhe foi imposta pelo estigma ria ter ficado preocupada porque arrozina é um
da loucura. Essa saída, entretanto, fez emergir alimento muito ‘forte’ para a criança. Alice disse
uma nova gama de tensões. O imperativo “NÃO que sabia da existência de um leite próprio para
SEJA” para pessoas como ela não admite exce- recém-nascidos, mas a lata custava quinze reais
ções. Quando se é louco e pobre, não se pode e ela não tinha condições de comprá-lo. Saímos
ser mais nada, muito menos mãe! de lá então com a incumbência de buscar meios
Como dizia no início do relato, fazia aproxi- para que ela conseguisse o leite apropriado ou
madamente quatro meses que acompanhávamos até mesmo o materno num banco de leite.
Alice, quando, certo dia, chegamos a sua casa e a No dia seguinte, ao chegarmos à casa da
encontramos com um bebê nos braços. A menina paciente, sua avó veio em nossa direção e me
havia nascido há apenas três dias e Alice estava abraçou chorando e dizendo que haviam levado
radiante e cumprimentava orgulhosa a caravana a menina. Alice apareceu em seguida e, muito
de vizinhos que iam ver a criança. Saímos de lá agitada, começou a mostrar o enxoval que havia
surpreendidas com sua reação diante da chegada feito para o bebê, as fraldas que comprou, e a ex-
da filha, pois estávamos apreensivas com a possi- plicar que sabia cuidar da sua filha, que “fervia a
bilidade de ela se desorganizar ou até entrar em água, passava os panos com ferro”, etc. Após esse
crise diante dos desafios que viria a enfrentar para primeiro momento de muita tensão, conseguimos
cuidar de um bebê. Pelo contrário, Alice, ainda acalmá-la para que ela nos contasse o que ha-
que meio desengonçada, nos parecia tranqüila e via ocorrido. Naquele dia, algumas horas antes,
confortável no lugar de mãe. representantes daquela organização do judiciário
Retornamos três dias depois e ela comentou co- Estadual estiveram em sua casa e “constataram”

225
que a criança se encontrava em situação de risco. breza em si não seria suficiente para justificar a
Sendo assim, alguém teria que assumir a respon- tal intervenção. Sobrepondo-se ao fato de ser po-
sabilidade pelos cuidados da criança ou ela seria bre, Alice também era louca, o que, por si só, já
levada a um abrigo. A solução encontrada para o se configurava como um risco à integridade da
impasse foi colocar a menina sob os cuidados de criança, percepção baseada no estereótipo que
uma vizinha, que também era madrinha da crian- associa loucura à violência.
ça. O clima na casa era tenso. A qualquer baru- Langer ajuda-nos a pensar um pouco sobre
lho de carro na rua, imaginava-se que poderia ser essa questão ao refletir sobre um mito argentino,
alguém da Justiça que, ao ver Alice próxima a sua uma espécie de lenda urbana, na qual a persona-
filha, iria levá-la ao tal abrigo. gem principal é uma “empregada má” que assas-
No dia seguinte, fomos a organização judici- sina as crianças. De acordo com a autora, todos
ária para tomar conhecimento do que estava de nós levamos em nosso psiquismo, junto à imagem
fato acontecendo. O relato de Alice remetia a da mãe boa e devotada, uma imagem da mãe
procedimentos que nos pareciam no mínimo ina- terrível, que destrói, mata e devora os seus filhos.
dequados para técnicos de um órgão público no Essas imagens, reminiscências da relação ambí-
trato direto com a população. Lá, em conversa gua que estabelecemos com as nossas próprias
com as assistentes sociais responsáveis pelo pro- mães nos primeiros anos de vida, tendem a ser
cesso, pudemos compreender alguns dos critérios projetadas no futuro de acordo com a valoração
utilizados na avaliação do caso. Um dos aspectos social da pessoa objeto da projeção. Para exem-
levantados com bastante ênfase referia-se à con- plificar a sua tese, Langer nos remete a uma es-
dição de extrema pobreza de Alice e sua família. pécie de arquétipo de seu país, no qual a faceta
A ausência de reboco na casa, a proximidade en- cruel e destruidora da mãe é projetada na figura
tre a cozinha e o banheiro, a sujeira, os insetos, a de uma “empregada má” que maltrata os filhos
alimentação incorreta do bebê, tudo corroborava da patroa. Certamente, essa reflexão elucidada
a constatação de que aquele não era o ambiente por Langer pode nos ajudar a pensar um pouco
adequado para se cuidar de uma criança recém- sobre as possíveis fantasias que povoam a mente
nascida. Diante dessa situação, a resolução ado- das pessoas que lidam diariamente com a noção
tada pelas autoridades foi a de retirar a criança de crianças em situação de risco.
da casa e entregá-la aos cuidados de outrem, o Com o intuito de dirimir possíveis preconceitos,
mais rápido possível, afastando-a assim da mãe. argumentamos que a maternidade não era uma
Estranho... Não seria mais justo e mais condizen- novidade na vida de Alice, que ela havia criado
te com o bem-estar da criança auxiliar essa mãe duas crianças saudáveis, mesmo com todas as di-
economicamente para que ela pudesse oferecer ficuldades impostas pela sua condição psíquica e
melhores condições à sua filha? De fato, a po- social. Além disso, sua qualidade de vida iria me-

226
lhorar significativamente quando ela recebesse o da loucura, resta apenas ser loucos, e mais nada.
Benefício de Prestação Continuada do INSS, pelo Alice, ao seu jeito, vem tentando escapar dessa
qual vinha esperando há alguns meses. Quan- posição alienante. Até hoje, o papel de mãe tal-
do toquei nesse ponto, para minha surpresa, a vez tenha sido o único que ela tenha encontrado
assistente social mencionou que o processo de para SER em sociedade. Esperamos, com a inten-
requerimento desse benefício, na verdade, vinha sificação de cuidados, poder acompanhá-la por
a corroborar a avaliação de que ela não tinha novos caminhos, experimentando novos papéis
condições de criar sua filha. Na verdade, um dos que, integrados à sua personalidade, lhe permi-
requisitos para a concessão do BPC consistia na tam SER no mundo com a dignidade que lhe é de
interdição judicial do requerente, ou seja, na de- direito.
claração pública de que o requerente não pos-
suía discernimento para reger os próprios atos, Referências
necessitando para isso de um curador. Sendo as-
LANGER,M. (1981). Maternidade e Sexo. Porto Alegre:
sim, como uma pessoa que não era responsável Artes Médicas
por si própria poderia se responsabilizar por três PICHON-RIVIÈRE, E. (1998). Teoria do Vinculo. São
menores? Tratava-se de uma armadilha legal. Ali- Paulo: Martins Fontes
ce estava prestes a abrir mão de todos os seus
direitos de cidadã em troca de um auxílio finan-
ceiro governamental. A ingerência do imperativo
“NÃO SEJA” em sua vida chegara a limites impen-
sáveis: a inacessibilidade a seus direitos civis es-
tava prestes a ser oficializada juridicamente. Essa
constatação incidiu significativamente sobre nós,
pois percebemos que, a partir daquele momento,
nossa intervenção clínica só faria sentido se as-
sumíssemos um posicionamento político ativo, no
sentido de exigir a garantia à cidadania plena dos
nossos pacientes.
A exigência da interdição judicial para a con-
cessão do Benefício de Prestação Continuada não
possui respaldo legal, ou seja, é baseada unica-
mente no estereótipo reducionista de que ser louco
implica necessariamente uma incapacidade total
para a vida civil. Àqueles tocados pelo estigma

227
Encontros e desencontros com a psicose
Lorena de Almeida Oliveira*
Thiago Lima Melo**

Resumo: Este artigo é fruto da experiência de que dormia numa cama debaixo da dele, acen-
Estágio Supervisionado no Programa de Intensi- deu a luz do quarto e o encontrou na cama, pro-
ficação de Cuidados a Pacientes Psicóticos. Pro- nunciando palavras em baixo som. Questionado
curamos desenvolver, neste texto, como o encon- sobre o que estava fazendo, João responde que
tro com o paciente psicótico pôde nos remeter a estava orando. Ele relata que, antes deste episó-
questionamentos sobre sua presença no mundo, dio, começou a se sentir “vazio por dentro, prag-
como sujeito em si ou como sujeito da própria psi- mático”.
cose. Os encontros, mais do que certeza acerca No dia 11 de junho de 1986, ainda aos de-
da psicose, remeteram-nos a questionamentos zoito anos, João é levado por uma de suas irmãs
sobre quem é o sujeito psicótico, seu estado de pela primeira vez a um sanatório. Segundo ela, o
isolamento, exclusão e solidão, o efeito de nome- paciente dizia que “via um navio, ficava lendo a
ação (diagnóstico) da psicose e as formas de inter- bíblia dia e noite, parecia que estava pregando”.
venção que podem ser delineadas a partir disso. João dizia não saber o que estava fazendo na-
Os encontros, muitas vezes, revelaram-se, então, quele local, que não sentia nada e nem entendia
“desencontros” com a psicose. o motivo de terem lhe aplicado uma injeção. É
provável que, neste mesmo dia, com uma “boa”

A os 18 anos, no ano de 1985, João acorda


no meio da noite agitado, dizendo que algo
havia caído em sua cabeça. Um dos seus irmãos,
anamnese e entrevista clínica, tenham sido iden-
tificados alguns sinais que indicavam a presença
não só de algo errado, mas de uma doença men-
tal. É provável que, neste dia, João tenha recebido
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC uma nomeação além daquela que já carregava
**Psicólogo graduado pela UFBA e ex-estagiário do PIC desde o dia de seu nascimento; João agora era

228
esquizofrênico e, como a maioria, sujeito a alu- se iniciam os nossos encontros, pela psicose.
cinações, delírios, discurso confuso, um compor- Eram encontros semanais, nas tardes de quin-
tamento também desorganizado, diminuição da ta-feira, em um município da região metropolita-
vontade, da fala e demonstrações de afeto con- na de Salvador. João se encontrava em regime de
comitantes com a perda de habilidades sociais e asilamento há quase um ano, em uma instituição
interpessoais. de cunho religioso que se propunha à recupera-
João, paciente do sexo masculino, 38 anos, ção de seus “alunos”. Nessa instituição, não ha-
diagnosticado como esquizofrênico, é residente via médicos, psicólogos, assistentes sociais, tera-
de um bairro popular da cidade do Salvador, o peutas ocupacionais ou qualquer indivíduo que se
último dos seis filhos de pais já falecidos. Em seu encaixasse na categoria de profissional de saúde
prontuário, há registros de hetero-agressividade, mental. Mas, assim como em outras instituições
delírios de perseguição, desinibição sexual e in- asilares, nesta, havia também a presença do ou-
quietude. Segundo informações de seus familia- tro que garante que a alienação é de alguns, e
res, ele era estudioso, inteligente, chegou a com- suas atribulações podem ser depósitos das mais
pletar os estudos do segundo grau e a realizar variadas atuações.
estágios como auxiliar em laboratórios de patolo- Guardadas as dificuldades próprias dos pri-
gia. Demorou a falar, (somente aos quatro anos meiros encontros com João, devido a suas res-
de idade), não tinha muitos amigos e sempre foi postas hostis à possibilidade de vinculação com
muito quieto; gostava de desenhar, escrever e ler. os acompanhantes terapêuticos, (afinal, é difícil
Não falava muito com as pessoas de sua casa, receber qualquer um propondo ajuda a males
gostava mais de ficar sozinho. Após ter sido iden- que nem ele mesmo suporta por inteiro), conse-
tificada a doença, a família constata que havia guimos, numa tarde desses encontros, mas não
algo errado desde o início. muito tarde ainda, sentarmos ao seu lado. Cada
No ínicio de julho de 2005, 20 anos após o um de nós sentado, em seus lugares, numa pe-
primeiro episódio que a psicopatologia denomi- quena calçada, onde batia sombra naquela tarde
na de “surto”, aos 37 anos, conhecemos João. quente. E, dentro de nós, não dele, procurávamos
Ele nos chega através do programa de estágio de em nossas histórias pregressas algo que garantis-
Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos, se um conforto maior e silenciasse nossos medos.
com 20 anos de “carreira” na esquizofrenia, na Refazíamos o caminho de nossa formação pelos
psicose, e é através dela que entramos em conta- corredores abertos da faculdade de psicologia
to com ele. Antes mesmo de conhecê-lo, de olhar procurando por informações claras, mas, mesmo
em seus olhos, já sabíamos que ele era psicótico; com o nome da psicose em nossas mãos, ainda
antes mesmo de nosso primeiro encontro, já tra- nos encontrávamos do outro lado de João.
zíamos em nós o nome “psicótico”. E é assim que Mesmo sentados tão próximos, sendo olhados

229
por aqueles olhos grandes, aquele olhar estranho bém real”.
que só os psicóticos (“os loucos”) possuem, olhos E, se assim se faz, “me responda uma pergun-
que parecem atravessar os corpos, desvelar as al- ta: o que é a esquizofrenia? Me responda uma
mas alheias, deixando trêmulos e assustados estes outra pergunta: se a psicologia não é igual à psi-
acompanhantes terapêuticos, João parecia guar- quiatria, o que é então a psicologia? Como surge
dar para si todo o impossível a ser descoberto por a esquizofrenia? E esses medicamentos anti-psi-
nós e nossa psicologia. Para nossa surpresa, ele cóticos, o que eles fazem?”, e por fim: “Por que
era mais que um psicótico e, sendo assim, escon- eu tenho que ficar aqui nesta instituição?”.
dia muito bem essa parte. Se João toca, balança e troca os lugares, profe-
O encontro estava dado, a psicose estava rindo seus questionamentos, decretando-os, jun-
dada, e todos os pré-requisitos para ser realizado tamo-nos a ele em seus questionamentos: como
o encontro entre nós, acompanhantes terapêuti- é este momento (como num efeito de magia) de
cos, e a psicose estavam ali presentes: as teorias nomeação da psicose? A psicose aparece como
esquecidas nas nossas memórias, alguns sinais efeito isolado, a partir de um episódio estranho
vagos e característicos do que seja a psicose (delí- de alucinações, delírios ou esvaziamento do su-
rios, alucinações...), o nome de João vinculado a jeito? E, num desconforto maior nosso: como é
um hospital especializado em atendimento a pes- essa “coisa” de, um dia, de repente, ter se torna-
soas acometidas por transtornos mentais e o Pro- do psicótico? A vida do sujeito é a psicose ou a
grama de Intensificação de Cuidados; os desejos experiência própria, radical e enigmática que é
individuais de cada acompanhante terapêutico, nomeada anos seguintes? “Por que tal evolução
o estado de asilamento, garantindo encontros de determinados sujeitos, conduzindo-os à psi-
“confortáveis”, e, finalmente, a disponibilidade cose?” (Castoriadis, 1999. p. 123 ) e por fim, a
ou indisponibilidade de alguns que permitem a quem pertence a psicose?
realização de tais encontros e o assentamento dos A partir desses questionamentos e de outros
lugares de psicótico e de acompanhante terapêu- que, certamente, surgirão, tentaremos apresen-
tico. tar um ensaio que tem como objetivo apreender,
Mas não sabemos se pela psicose ou por ser em algum nível, nossa gratificante experiência de
próprio de João, os lugares tinham de ser tocados encontros e desencontros com o sujeito João, to-
e apontados como denúncia na fala dele: “isso mando sua história como exemplo do que pode
que vocês chamam de transtorno mental, de de- acontecer com pessoas acometidas de algum tipo
lírio persecutório, de embotamento afetivo, esses de transtorno mental.
nomes que vocês dizem; isso na verdade sou eu,
sou eu que sinto; e isso que sinto, isso que vivo é
também realidade, o que vivo aqui dentro é tam-

230
Quem é o sujeito psicótico? mas dele; talvez para João esse incômodo fosse
sentido ou talvez não fizesse diferença para a vida
Pela história de vida de João, podem-se perce- dele enquanto um sujeito “normal”. Sim! João,
ber alguns indícios da dificuldade que ele apresen- antes de ter a nomeação de “psicótico”, era um
tava ao se relacionar com o “outro”, dificuldade sujeito normal; um pouco “estranho”, mas nor-
que se apresenta como um enigma para o sujeito mal. Então, o que, afinal, aconteceu para que ele
psicótico. Sempre tímido e quieto, João não ti- deixasse de pertencer à “categoria” da normali-
nha muitos amigos e, mesmo em casa, sempre dade e passasse a fazer parte de uma outra ca-
fora muito sozinho. Mas como essa “solidão” se tegoria, a dos “anormais”? Talvez se possa tomar
apresenta para ele? Indo mais além, como essa a questão do incômodo como determinante para
solidão é percebida e “nomeada” pelo “outro”? essa classificação; o incômodo que João passou
Na sociedade contemporânea, o homem soli- a sentir com mais intensidade ou que passou a
tário é visto como “anormal”; a solidão é conce- produzir nos outros.
bida como uma patologia, e, assim, o sujeito “so- Assim, existe uma aproximação entre o “su-
litário” é excluído de alguma forma das relações jeito solitário João” e o “sujeito psicótico João”.
com o outro. Segundo Katz (1996): Tanto a solidão quanto a psicose começam a ter
“... desde seus primeiros movimentos, o infante existência a partir do momento em que passam a
humano estaria sempre em sociedade, em situ- provocar algum incômodo no sujeito e no meio
ação de socius, existente apenas como necessi- em que vive. Voltando a Katz (1996):
dade dos outros. O que determinaria, para um “É verdade que, inúmeras vezes, especialmente
certo registro do pensamento, a impossibilidade para o homem burguês contemporâneo, a solidão
da solidão do humano; que, se manifesta, deve só se deixa escutar quando atinge um modo insu-
ser tratada, curada enquanto afastamento carente portável: quando, no ser humano, não encontra
de normalidade social.” (KATZ, 1996. p. 29) mais lugar para ela, eis o momento em que ela
Desse modo, atualmente, é impossível se con- emerge para a experiência, insiste em se afirmar.”
ceber a solidão como possibilidade intrínseca de (KATZ, 1996. p. 29)
um sujeito; mesmo cabendo à solidão um impor- Da mesma forma que a solidão, a psicose e
tante e essencial papel na constituição da sub- suas ”desorganizações psíquicas” só são percebi-
jetividade humana, sua existência se tornou uma das no momento em que “transbordam” do sujei-
patologia a ser tratada. Apesar da existência de to; aí passam a ter existência, quando não é mais
todos os conceitos explícitos ou não sobre a soli- possível administrá-las dentro dele.
dão, João não deixava de ser solitário, ou melhor, Assim como a solidão, a psicose é algo de difí-
ele não via essa possibilidade. Inicialmente, isso cil entendimento tanto para as pessoas ditas “nor-
não era visto como incômodo às pessoas próxi- mais” quanto para as “psicóticas”. Desse modo,

231
“... A loucura é uma experiência humana cujas nente, reclamos insistentes pela mera indicação
questões se colocam para os loucos ou não lou- da ausência de outra coisa, pela presença equi-
cos, situando problemas para a razão; (...) reco- vocada destes outros que se podem perder num
nhecemos as experiências da loucura não como momento ou de um só golpe. Aflições, recorda-
aberração ou déficit, mas como experiências le- ções de realidades nunca existentes, perdidas lem-
gítimas e pensáveis do corpo, da existência, do branças de uma memória a se criar, intervenções
pensamento. Experiências perturbadoras, sim, de pensamentos não-reclamados, não-esperados
porque podem rasgar o sentido; mas podem tam- pelo ‘pensador’, infiltração de idéias terríveis e
bém, em certos casos, imprimir ao sentido outros inesperadas (contra as quais nada se pode fazer,
cortes, possibilitando inimagináveis refazendas.” a não ser, no melhor dos casos, suportá-las com
(LOBOSQUE, 2001. p. 22) angústia).” (KATZ, 1996. p. 44). A partir disso,
Dada sua vida solitária, ocupando os espaços pode-se tomar a psicose a partir da complexidade
das sobras no silêncio dos diálogos de sua famí- que assume para todos, psicóticos ou não.
lia, na sua qualidade de “calado, quieto”, descrita Aquilo que era quietude durante anos seguidos
pelos seus, João se fazia; e tal quietude, tal soli- e construídos a fio lentamente, irrompe-se no es-
dão, tal monólogo de sensações pôde ser nome- tranho, na loucura, na doença mental. Não pre-
ado no agravamento de suas ações. É quando o tendemos afirmar que sua história, agora, justifica
estado de estranheza, de esvaziamento e angústia sua psicose, depois que João assim é nomeado,
desemboca numa completa loucura, que o mór- mas sim considerar, a título de reflexão, que ato
bido pode ser descrito e nomeado, neste caso, de “magia” é este que o nomeou como tal. O que
por psicose. O mundo privado que é revelado pe- parecia ser experiência de vida individual, restri-
los “devaneios” e, dessa forma, exposto aos olhos ta, solitária e talvez angustiante, parece ter sido
alheios está apto a ser analisado e classificado absorvido completamente pela doença, e tudo, a
como doença mental, sendo revelado então sua partir daquele fato de irrupção do estranho, se-
“história psicológica” (Foucault, 1984. p. 67-69) guido da nomeação (alucinações, delírios), fez
susceptível ao casuísmo e efeitos no presente e desaparecer o João de antigamente ou justificar
futuro. de vez aquele João. Agora as fronteiras entre João
Mas, enfim, o que é a psicose? O que a define e os outros estavam de vez alargadas, dito agora
enquanto tal? Tomadas as devidas dificuldades a qualquer um que passe na rua, apontado pe-
em se nomear essa “experiência desorganizado- los outros, justificando sua presença nos lugares
ra”, tentaremos defini-la, ainda que saibamos da de forma excluída. João agora sai de seu mundo
impossibilidade de apreendê-la em sua totalida- de solidão, de quietude, e adentra na estranheza
de. Tomando Katz (1996) como referência: “Irrup- da pura atuação concreta e vista até mesmo por
ções, cortes abruptos, violência psíquica perma- quem anda de olhos fechados.

232
Psicose: morte ou ressurgimento pensadas ou faladas. Tomando a aproximação
visível do sujeito? feita por Katz (1996): “... É que a loucura é a
presença da morte, morte feita a cada instante,
“A loucura é a ameaça e a presença viva da sem respeitar condições fisiológicas e biológicas,
morte, e os loucos são a morte aí, espreitando etárias e de saúde.” (KATZ, 1996. p. 44). Assim,
na sua disrupção não-anunciada mas esperada.” a aproximação entre a psicose e a morte talvez
(Chaim Samuel Katz) possa se dar pela imprevisibilidade: não se sabe
como serão os acontecimentos posteriores à “ins-
Voltando novamente à história de João, outros talação” da psicose, da mesma forma que a mor-
questionamentos surgem: por que ele teve de ser te é um grande enigma e, como tal, não tem lugar
isolado do seu meio? O que legitima essa forma dentro das relações cotidianas “normais”.
de “tratamento” dispensada a esse sujeito? Algu- Mas, assim como a morte, a psicose também
mas respostas podem aparecer. Analisemos, sob existe. Mesmo sendo afastada das relações coti-
o ponto de vista do social, deste social que ajuda dianas dessa família, a psicose está aí. Não há
a constituir, mas também “exclui” o sujeito. como ignorá-la. Então, por que não aceitá-la?
Segundo a família de João: “não havia outra Segundo os próprios familiares de João, “não
forma de lidar com ele, nossa mãe, que era quem sabemos como agir quando ele entra em crise.
cuidava dele em casa, tinha acabado de morrer. Temos a nossa própria vida, nossos trabalhos,
Não sabíamos o que fazer, a única alternativa foi não podemos nos dedicar exclusivamente ao cui-
interná-lo”. E assim João está privado de apro- dado dele. Ficamos mais tranqüilos com ele lá,
veitar sua vida em casa, de fazer as coisas que internado”. E, dessa forma, João continua insti-
sempre gostou, de estar próximo das pessoas co- tucionalizado; mesmo expressando claramente o
nhecidas e da sua família. desejo de voltar à sua casa, ao convívio com seus
Nota-se que a atitude de interná-lo por um pe- familiares e sua comunidade. A sua voz emude-
ríodo prolongado deu-se a partir da presença da ce, assim como seus desejos e planos são sempre
morte; da morte da mãe e “cuidadora” de João. postergados e vistos pelos familiares como sem
Antes de tudo, da morte de uma pessoa importan- importância. E, assim como a morte, são ignora-
te para a família, da morte presentificada. dos por eles.
Pensando de uma forma mais ampla, a psi-
cose, assim como a morte, é vista como algo a
ser afastado das discussões cotidianas e, dessa
forma, é excluída das relações entre as pessoas.
Não que não tenham existência; mas são fontes
de tão grandes sofrimentos, que não merecem ser

233
Por efeito de nomeação tal “a título de ilustração de um desarranjo, uti-
lizável para uma identificação diagnóstica, mas
Agora João é psicótico. Muitas vezes, fora não como material para seu próprio trabalho de
levado às pressas aos centros de internamentos cura” (Lobosque 2001, p. 50); enquanto que, na
psiquiátricos por seus familiares, quando se en- psicanálise, é devolvido ao sujeito psicótico o sen-
contrava em momentos de exasperação de sua tido dos seus atos, “a psicose, questão do sujeito”
angústia, quebrando todos os móveis de sua casa. responde, vamos dizer dessa forma: “(...) a po-
Lá, nestes centros, em suas salas e corredores, sição subjetiva do psicótico enquanto sujeito de
as estranhezas de João foram sendo descritas e um pensamento inconsciente que só pode ser o
classificadas. Devemos, então, ao isolamento de seu... mas que se apresenta a ele como fora de
pessoas como João o desenvolvimento de clas- si” (Lobosque 2001, p. 52). Então, no modelo psi-
sificações semiológicas daquilo que se concebe quiátrico, haveria a ruptura da cadeia do sentido
como doença mental, afinal são nas salas espe- a partir da entrada em suas manifestações sinto-
cializadas que se pode debruçar com mais visi- máticas, aliás, o indivíduo só aparece quando se
bilidade sobre as estranhezas comportamentais exaltam seus sintomas, e, neste momento, o sujei-
e estabelecer em seguida uma lógica (Lobosque to desaparece, pois perde sua lógica de sentido;
2001, pg. 56-57). enquanto na psicanálise, é ali onde parece não
Mas a qual lógica João e a sua psicose obe- haver mais sentido algum que o inconsciente se
decem? A lógica da desrazão e a perda do sen- enuncia; nas produções delirantes teríamos então
tido ou à lógica da produção de sentido através uma reconstrução do sentido .
de sua psicose? Vamos situar: quando João se Ficamos, então, com a discussão se houve um
torna psicótico, é nomeado como tal, suas de- rompimento na vida de João após o seu surto e
monstrações estranhas, ou seja, delírios e aluci- daí ele se fez psicótico ou se João continua com
nações, compõem um rompimento em sua vida, sua vida enigmática e agora radical após o epi-
e daí se faz sujeito a análises descritivas? Ou suas sódio. Tentamos responder a este questionamen-
demonstrações estranhas, acima de qualquer de- to, retirando da psicanálise a condição de lógica
lírio, são dotadas de um sentido que afirma seu na produção do sentido na psicose, pois é o que
caráter singular? temos de mais próximo que afirme uma continui-
Podemos referenciar este tipo de análise nos dade na vida de João após o episódio de surto,
textos de Lobosque (2001), pontuando a perspec- considerando que a teoria psicanalítica se alimen-
tiva psicanalítica e a psiquiatria clássica de Jas- ta de tal sentido nessa produção e se afirma aí
pers. Para a autora, este último modelo de análise onde se diz não haver sentido algum (Castoriadis,
tende a ressaltar as características do comporta- 1999. p. 119).
mento de pessoas que sofrem de transtorno men- Se os sintomas psicóticos são invasivos, vêm

234
de fora do sujeito conforme sua estruturação, tais alguma”. João, então, produz para si mesmo!
sintomas poderiam ser a justificativa radical de Antes da lógica “psi”, da lógica orgânica ou de
uma existência angustiante ou da própria expe- qualquer outra, ele produz, no final da história,
riência de João como sujeito. Poderíamos pensar para “si-mesmo” (Castoriadis, 1999).
assim, a partir dos questionamentos dele: “isso
que não compreendo, mas que me angustia e Então, de qual João estamos falando, daque-
me faz sofrer; essas coisas que tenho, que sinto, le de antes do surto e suas estranhezas ou deste
só pode ser por algum motivo. E este motivo só com suas peculiaridades? É possível considerar a
pode se encontrar nos outros, então são eles os existência de duas entidades diferentes numa só
responsáveis por tudo o que sinto, não eu”. E, pessoa, ou João sempre foi o mesmo, mas com
como confirmação máxima de tal certeza, vítima o nível de sofrimento bem mais intenso do que
e algoz, temos o internamento psiquiátrico ou o quando vivia calado dentre os seus irmãos? Con-
atual asilamento (isolamento) de João na institui- siderar sua vida como ruptura radical a partir de
ção. Com isso, ele constrói uma justificativa para seu adoecimento beira, para nós, uma incoerên-
esse fato, ainda que tal justificativa não seja reco- cia de análise, que se aproxima mais das catego-
nhecida pelo outro. Aquilo que parece ser falta de rias diagnósticas, sejam elas referentes à estrutura
sentido, através dos sintomas psicóticos, parece preconcebida ou à descrição do fenômeno, do
revelar ou exaltar a experiência subjetiva de João. que da experiência do sujeito João. E, se a nome-
Melhor ainda, os delírios e as alucinações são a ação por diagnóstico acaba confirmando de vez
forma de sua fala, e quem quiser entender ou dar a separação dele em relação a sua vida, parece
significado, assim o faça, ou o tranque de vez o que, neste âmbito, João é somente ele, como psi-
mais distante possível de sua própria vida. cótico, não como outro, e é assim que ele se faz
Consideramos a produção de sentido na psi- e é feito por ela, a psicose. Já considerando que,
cose como estritamente, ou estreitamente, impli- em sua produção psicótica, há sentido (como vis-
cada no valor representativo e singular do sujeito. lumbrado pela psicanálise), e que seu sentido só
A produção do sujeito psicótico apresenta, então, se dá agora, dessa forma, pela estranheza, não
por mais estranho que seja, coerência com sua haveria então dois viventes de João, um antes e
experiência e seu valor, sem compromisso visí- outro depois do surto; este é um só, que produz
vel com a representação do grupo social. Como realmente sentido, de forma singular, mas que as-
quando João, em um de seus dias, rasga suas sim o conhecemos como “João Psicótico”, conce-
roupas e resolve passear nu pela instituição, como bido por uma condição estruturante.
se avisasse: “a mim não interessa seus bens, sua Teríamos então de escolher entre duas opções:
categoria de possuidor de coisas; aliás, a mim conceber o João rompido, desfigurado, nomeado
não importa a condição de possuidor de coisa e justificado a partir do seu primeiro surto; ou o

235
João organizado, “arranjado”, nomeado e justi- ção da psicose.
ficado também a partir do seu primeiro surto, só Seja qual for o lugar de João, dele próprio ou
que agora com uma história pregressa desde o na “casa das psicoses”, este tende a ser um lugar
seu nascimento. Situando mais uma vez: psiquia- de isolamento e exclusão, pois assim nossa cul-
tria, psicanálise ou uma boa combinação entre tura determina: “a loucura (...) situa-se aí: neste
as duas? E João, em qual lugar se encontra? A nível de sedimentação nos fenômenos de cultura
quem pertenceria João ou a quem pertence João? (...)” (Foucault, 1984. p. 89). As estranhezas que
À psicose, aos pressupostos da psicose, ao “psi”, chegam ao seu limite no “surto” são, assim, consi-
ao orgânico, à técnica, aos técnicos, à desorgani- deradas como doença, como psicose, cumprindo
zação, aos muros fechados da instituição, ao pas- um papel social que lhe é próprio em nossa his-
tor, ao seu irmão (que o representa civilmente)? tória. Para se formarem muros, para se formarem
A quem pertence João, e, se à psicose, a quem quartos, varandas e lugares de psicótico, temos
pertence a psicose? de considerar para que finalidade se erigem as
“casas de psicótico”; e, no nosso mundo, mesmo
“A quem pertence a psicose?” que se derrubem os muros dos manicômios, ou
que os reforme, louco ainda é louco, e, por assim
Mas, se formos para bem distante de sua es- ser, “dá trabalho aos outros”, desvirtua a lógica
trutura ou para bem longe da descrição de seus racionalista do dia-a-dia das construções, e “(...)
sintomas, que João encontraríamos? Este que se dizer: este é um louco, não é um ato simples nem
apresentou a nós, negando que ele fosse qual- imediato. Repousa, de fato, num certo número de
quer destes que dizíamos que era em seus ques- operações prévias (...) segundo as linhas da valo-
tionamentos e replicações. Dessa forma, entre rização e da exclusão (Foucault, 1984. p. 89). E,
o João que nos chega e que nos é apresentado para que vivamos tranqüilos, para que sua família
pela instituição, existe uma distância considerável, viva tranqüila, para que o pastor e sua instituição
não sei se por nós, mas afirmada por ele próprio. vivam tranqüilos, para que as instituições vivam
Nessas dúvidas, nesses anseios daqueles encon- tranqüilas, para que a psicologia viva tranqüila e
tros que promovem, sempre, a dúvida, não sabe- para que João também viva tranqüilo, é melhor
mos então em qual lugar João se encontra, se do que ele continue sendo louco, ainda que louco
lado dos “alunos”, dos psicóticos e, dessa forma, seja apenas louco para alguns e próprio de inter-
também da psicologia, psiquiatria e psicanálise venções para outros.
ou em seu lugar ou em lugar algum. Enfim, qual é Consideramos que João é psicótico, e sua psi-
o lugar de João, quais são os lugares dos loucos? cose pertence a sua própria cultura. Então, quais
Os lugares dos loucos são na “casa das psicoses” são os espaços (lugares) que se renovam para
e, porventura, nas formas culturais de determina- abrigar os psicóticos? Os loucos retornarão para

236
suas casas quando não hospitalizar e absorver as atendido. Pensamos também que essa clínica aqui
peripécias da loucura em suas famílias passa a ser proposta tem o papel de reflexão sobre a socie-
a regra? E, se assim é, que tipo de técnicas sofisti- dade em que está inserida, de forma que a loucu-
cadas e “capilares” entrará no dia dos psicóticos, ra seja aceita socialmente; isso se dá através de
e como estas “comportarão” a loucura? Precisarí- profundas discussões sobre práticas clínicas que
amos delimitar, dessa forma, o que pretendemos têm, em sua base, a interlocução com variadas
com a loucura, com a psicose, com João? Quais espécies de práticas e pensamentos.
são as novas regras?
Assumindo o lugar de profissionais “psi”, nossa
argumentação sobre o modo de cuidado dispen-
sado aos portadores de transtorno mental se ba-
seia em uma clínica que leve em consideração o Referências
sujeito; sujeito que sofre que é excluído e rotulado
CASTORIADIS, Cornelius. A construção do mundo na
pela sociedade como incapaz, como “perturba- psicose. In: Feito e a ser feito. (pp. 117-131) Rio de Janeiro:
dor da ordem”. É exatamente esse sujeito “dife- DP & A, 1999.
rente” que nos interessa; e essa clínica deve ser
estruturada de modo a dar conta dessa diferença FOUCAULT, Michel. (1926) Doença mental e psicolo-
do outro, e mais além, deve ser capaz de fazer o gia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
sujeito sustentar sua diferença, sem aceitar sua ex- KATZ, Chaim Samuel. O coração distante: ensaio sobre
clusão social. Não se trata de propostas prontas, a solidão positiva. (pp. 27 - 63). Rio de Janeiro: Revan,
cabíveis a qualquer situação e utilizadas como se 1996.
fossem um “manual de técnicas” preconcebidas;
mas sim, de algo a ser construído cotidianamente LOBOSQUE, Ana Marta. A experiência da loucura: da
questão do sujeito à presença na cultura. In: Experiências
nas práticas de cada profissional. Esses sim, de- da Loucura. (pp. 13-35) Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
vem saber os propósitos de suas práticas; devem
procurar, nelas, meios que façam minimizar o __________. Neuroses X Psicoses: uma primeira aborda-
sofrimento dos sujeitos atendidos, além de os gem quanto ao diagnóstico diferencial. In: Experiências da
colocarem em primeiro plano. Loucura (pp. 54-70). Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
Entendemos que, no cuidado dispensado aos __________. A psicose, questão do sujeito. In: Experi-
psicóticos, eles devem ter a relevância, e não os ências da Loucura. (pp. 41-53) Rio de Janeiro: Garamond,
rótulos a eles atribuídos. Assim, a psicose, o trans- 2001.
torno mental ou qualquer outra designação dada,
deve ser apenas o pano de fundo de uma práti-
ca comprometida com a verdade de cada sujeito

237
O incrível poder do vínculo

Lygia Freitas*

D epois de muita insistência por parte de Marta


, resolvi acompanhar Thiago na visita domi-
ciliar que ele, costumeiramente, lhe fazia. Mar-
de os visitarmos com freqüência nos tornava meio
membros das comunidades em que estavam inse-
ridos: fomos assaltados.
ta fora “minha” paciente logo quando iniciei no Um homem nos seguiu na descida de uma
estágio, mas, com os freqüentes remanejamentos ladeira e, quando chegamos ao beco que nos
das duplas de estagiários, deixara de ser. Isso, levaria à casa da paciente, abordou-nos, supos-
contudo, não evitava que ela, sempre que ia aos tamente com uma arma escondida embaixo da
grupos que realizávamos no Mário Leal, questio- camisa, exigindo que lhe déssemos nossos per-
nasse quando eu iria a sua casa, alegando que tences, minha bolsa e a mochila de Thiago. Meu
seus pais sempre perguntavam por mim. parceiro ainda tentou dialogar com o rapaz, mas
Naquela tarde de sexta-feira, atendi seu pedi- ele não estava para conversa. Entregamos-lhe
do e fui visitá-la com o estagiário responsável por nossas coisas, e o rapaz mandou que voltássemos
seu caso. No caminho, fomos conversando; eu, por onde tínhamos vindo, sem olharmos pra trás.
à vontade como sempre, como se fora morado- E foi isso que fizemos.
ra daquele bairro; e Thiago, mais sério como de Fiquei descontrolada e comecei a chorar, não
costume, mas também relaxado. Foi então que sei se porque aquela era a primeira vez em que eu
aconteceu algo que nunca nos havia passado era assaltada, se pelo susto do inesperado ou se
pela cabeça acontecer, sobretudo quando íamos pelo fato de terem me roubado justo quando eu
visitar os pacientes do Programa, já que o fato ia fazer uma “boa ação”. Talvez pela conjunção
desses fatores!
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC Fomos para o Mário Leal, que ficava no topo
da ladeira que tínhamos descido para ir à casa de

238
Marta. Meu choro provocou uma comoção geral nervoso, mas atendeu ao pedido da vizinha e foi
entre os funcionários do HEML, e fomos condu- à casa dele recuperar minha bolsa e a mochila de
zidos para a diretoria da instituição. Ainda tive- Thiago. Chegando lá, mandou que o rapaz de-
mos de ouvir algumas críticas ao Programa, pois volvesse o que roubara, e o dito cujo jogou tudo
“era muito perigoso fazermos as visitas em bairros em cima da cama.
como os que os pacientes moravam, e ainda por No fim das contas, perdemos apenas nossos
cima sem seguro de vida!” (sic). celulares, pois o assaltante já tinha dado sumiço
E, em meio a essas sutis ressalvas ao funciona- neles antes que o herói da história chegasse a sua
mento do PIC, quando eu menos esperava, apa- casa.
rece Marta, trazendo nossos pertences de volta! E foi assim que vivi um dos dias mais emo-
Eu, que já estava mais calma, quando vi minha cionantes de minha vida, em que tive a certeza
bolsa, com a carteira e tudo que nela havia antes de que o trabalho que realizamos no Programa
do assalto, voltei a chorar. Marta, bastante emo- de Intensificação de Cuidados, propiciador da
cionada, pediu-me desculpas por haver insistido criação de vínculos com os pacientes, pode gerar
para que eu fosse visitá-la, o que acabou sendo bons frutos não apenas para eles, como para os
até bom para que eu me acalmasse, retomasse estagiários que os acompanham. Afinal de con-
a postura de estagiária e deixasse um pouco de tas, se o elo entre Thiago e Marta não houvesse
lado a emoção que me tomava naquele momen- sido bem estabelecido, ela jamais teria reconhe-
to. Disse-lhe que assaltos acontecem a toda hora cido sua mochila em mãos alheias e essa história
e em todo lugar, que não havia razão para ela se não teria o desfecho fantástico que teve! Até hoje,
sentir culpada, etc. quando lembro desse fato, fico impressionada ao
Saímos da sala da diretoria para conhecer o me dar conta de como as relações que cultivamos
benfeitor que havia recuperado nossas coisas. Era com os pacientes podem ir muito além do que
um homem alto, magro, negro, com “seios” de postulam as teorizações acerca dos “modos de
silicone e trejeitos bastante femininos, conhecido vinculação do sujeito psicótico”...
como Bida. Foi então que Marta nos contou que
havia visto o assaltante passar e reconhecera a
mochila de Thiago. Como já estava esperando
nossa visita, ligou as peças daquele quebra-cabe-
ça e concluiu que o rapaz, seu vizinho, havia nos
roubado. Foi, então, à casa de Bida e pediu que
ele fosse buscar o que nos havia sido tirado. Nos-
so herói nos disse que ficou com medo, pois o as-
saltante era viciado em drogas e parecia bastante

239
Entre amores, quase-amores e não-amores

Fernanda Rebouças*

Resumo: Este artigo tem como objetivo tecer sobre o qual se tem uma hipótese não exatamen-
uma discussão a respeito da transferência e do te de amor transferencial, mas ao menos de uma
vínculo no acompanhamento de pacientes em depositação mais maciça. A partir daí, discute-se
intensificação de cuidados. O artigo transcor- como manejar as relações vinculares, no caso do
re dentro de uma pequena revisão sobre o que paciente, e como lidar com o que ele adjudica a
pensava Freud quanto à relação com o paciente, quem o acompanha, reconhecendo que o cresci-
ao mesmo tempo que traz as idéias de Radmila mento dentro dessas vivências é recíproco.
Zygouris, em seu “O vínculo inédito”, onde ela se
nega a reduzir o vínculo estabelecido à repetição.
É a contraposição – e complementação – dessas
duas posições que permitirá compreender, ao lon-
P ontos de convergência. É sabido que há mi-
lhões deles entre a intensificação de cuidados
e a própria vida, embora, entre enlaces e entrela-
go do artigo, o conjunto das manifestações que se ces, ambos se misturem. Mas, então, arriscar-me-
inauguram - ao se repetirem - na relação com os ei a puxar pelas artes – que são tão vida quanto
pacientes. Assim, considerando o que é próprio de qualquer outra coisa - enquanto teço comentários
cada sujeito, os sentires, o sensível e a subjetivida- sobre o conjunto das manifestações que se inau-
de, é feita uma analogia entre a intensificação de guram - ao se repetirem - na relação com os pa-
cuidados e a dança, tomando-as ambas como arte cientes. Não aspiro novidades, strictu sensu, mas,
e como vida. O artigo, dentro dessa discussão, não menos audaciosa...
traz a análise de um caso em acompanhamento,

*Estudante de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC

240
“(...) Aquilo que revelo de experiência real, tornado possível por condi-
e o mais que segue oculto ções favoráveis. De certa forma, essa posição é
em vítreos alçapões concordante com Zygouris em seu “O vínculo iné-
são notícias humanas, dito” (2002), embora ele ainda se mantenha na
simples estar-no-mundo, idéia pouco abrangente de doença artificial.
e brincos de palavra, Zygouris vai mais além dessa posição ao falar
um não-estar estando “de um encontro, seja de duas estruturas, seja de
mas de tal jeito urdidos duas falhas, seja de duas demandas em abismo”,
o jogo e a confissão deixando a céu levemente mais aberto a subje-
que nem distingo eu mesmo tividade de ambos os dançarinos, bem como os
o vivido e o inventado. aspectos pessoais inconscientes (Santos, 2006);
Tudo vivido? Nada. ambos se apresentam nesse ínterim. A arte apare-
Nada vivido? Tudo.” ceu sem que eu decidisse o momento. Mas aí está
(Drummond, 1991) a dança, posta, como a música, que invade os
sentidos mesmo quando não fomos nós a ligar-
Freud anunciava nuances de nossos modos de mos a vitrola. Como a dança, essa “modalidade”
existir com as discussões sobre transferência, e sobre a qual falamos da intensificação de cuida-
inaugura uma nova possibilidade de fazer com a dos deixa à mostra que tipo de dançarinos somos
saúde mental, uma experiência inédita do ponto nós, que ritmo nos é mais confortável, que espé-
de vista social e subjetivo. Assim, em sua Confe- cime de parceiro nos faz bambearmos na pista,
rência XXVII (1916/1917), ele fala sobre o sujeito que momento vacilamos pedir para que a dança
transferir para a pessoa do médico intensos sen- se interrompa. Mas, enfim, como sujeitos que se
timentos de afeição ou de hostilidade, sendo que propõem a acompanhar e muito mais, tornamo-
estes não podem ser explicados pela conduta do nos também dançarinos dispostos a ouvir a mú-
profissional nem justificados pela situação que se sica em alto volume e a dançar, com o parceiro
criou durante o tratamento. Por isso é que Freud que vier, a música que nos convocar. Com muita
suspeitou de que esse arsenal de endereçamentos sorte (leia-se trabalho, implicação, arte e técnica),
proviesse de outro lugar, já estando preparado no na manhã seguinte, poderemos descansar os pés
paciente e pronto a emergir tão logo surgisse uma ao som de um cool jazz, até que a vitrola toque
oportunidade (Freud, 1916/1917). outra batida.
Parte das idéias de Radmila Zygouris já apa- Dessa forma, respeitando o que há de único
recia indiretamente nos escritos psicanalíticos de em cada dança e em cada parceiro, é que Zygou-
1914, quando Freud, em “Recordar, repetir, ela- ris se nega a reduzir o vínculo estabelecido à re-
borar”, fala da transferência como um fragmento petição, pois “a transferência remete também ao

241
novo em virtude de sua eterna falha”. Essa rela- tidos é tão incisiva que, à maioria dos acompa-
ção, para a autora, é feita de “sentires”, de emo- nhantes, não resta esta alternativa. O processo é
ções conscientes e inconscientes, da presença, do vivido a todo tempo conjuntamente e, para pensar
que é único em cada um, do que é próprio, das a relação usuário-estagiário, há de se estar aber-
“singularidades jamais generalizáveis” e que não to para olhar para o encontro que se estabelece,
podem exatamente se repetir. E como toda dan- para pensar a união no “entre” do que se cria e se
ça e encontro de corpos que desejamos ou não recria nessa “trama de tempo presente” (Barbosa,
manter, o vínculo, para Zygouris, é algo que pode 2006), que, como a dança, depois de formado o
durar ou não, é algo da vida. “Essa aceitação par, é impossível de ser sozinha. Quando se olha
do vínculo fundamental, ao mesmo tempo que a para um, já está olhando-se para o outro ou ou-
procura de um fim possível para a transferência, tros, e para ver de que dança se fala, não há ou-
constitui uma relação social e íntima verdadeira- tro jeito a não ser sentir o todo. Dança de dois, de
mente inédita em nossas sociedades.” (Zygouris, três, ou de grupo, os envolvidos são muitos.
2002). Problema está dado quando um dos dança-
Para fugir ao medo do inesperado e à inevita- rinos – nesse caso, o que acompanha – acaba
bilidade de que o incrível, o obscuro, o desconhe- tomando o palco, não por seus atributos pesso-
cido irrompa, profissionais da saúde mental pro- ais de leveza e graça, mas porque assim o pos-
curam ao máximo seguir enquadres específicos sibilitou a situação. E, para tanto, não falemos
e modelos de atuação pré-determinados e, para apenas de impulsos instintuais reprimidos, mas
tanto, se arriscam inadvertidamente, na tentativa do que contribui sendo próprio de cada um, do
de impedir que a complexidade das relações hu- que chama Zygouris de “plano do sensível”. Há
manas contamine o seu trabalho (Zygouris, 2002). uma maneira bem particular do dançarino se mo-
Tentativa vã e, muitas vezes, inconseqüente. Isso vimentar na pista, que não se sabe muito bem
porque o profissional, dessa forma, não estará de onde vem, mas que interfere de forma funda-
realizando sua tarefa terapêutica no sentido de, mental no vínculo que se cria entre os parceiros
através do manejo das situações transferenciais e e em como serão as danças a partir de então. É
vinculares, ajudar o sujeito a lidar posteriormente nesse paradoxo de lógica e imprevisibilidade que
com as relações na sua vida de uma forma geral. ficamos susceptíveis às surpresas que virão pela
Com suposta neutralidade ou não, há vida em frente, aos sentimentos que surgirão, ao amálga-
movimento, circularidade nas relações e emer- ma que encobrirá usuário e estagiário (Santos,
gência do que já existe. 2006). Este último, como o primeiro, “é posto em
A clínica da intensificação de cuidados não nos configurações transferenciais em que imperam os
permite almejar tal posição discutida acima. A ir- mais distintos e intensos conflitos e ansiedades”,
rupção do novo a que estamos sempre subme- algo que precisa ser cuidado, “pois o tratamento

242
seguirá após esse encontro e a crise que se en- do pensamento lacaniano, é condicionada pelo
frenta” (Santos, 2006). mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai, o
Falamos de crise, falemos de psicose, desses que, segundo Gilsa Tarré de Oliveira, “acarreta
sujeitos que “são” em crise, muito mais do que uma profunda perturbação da relação do sujeito
estão, para que ela não pareça por demais de- com o Outro, terceiro simbólico e suporte de nos-
savisada sobre as particularidades transferenciais. so pertencimento ao mundo humano”.
Lembremos também dos aspectos simbíoticos A não-discriminação entre eu e não-eu, mundo
e autísticos (Bleger, 1991), os quais existem in- externo e mundo interno, depositário e projetado,
dependentes da estrutura psíquica ser neurótica é decorrente da ausência da lei e característica
ou psicótica, para que assumamos que a mesma fundamental da parte psicótica da personalidade
matéria que constitui uma constitui a outra. Se- e da transferência psicótica. Ela faz com que o Ou-
gundo Gilsa Tarré de Oliveira, “a psicose exibe tro perca seu lugar de alteridade para este sujeito,
claramente como o rigor de uma lógica bivalente tornando-se opressor e não dando possibilidade
comanda uma relação inteiramente fusional com de que se inscreva a troca. Segundo Gilsa Tarré
o semelhante que fomenta o amoródio.”, poden- de Oliveira, “esse corpo a corpo mortal denun-
do o sujeito apresentar tanto condutas autísticas cia o quanto a relação topológica entre externo
quanto simbióticas alternadamente, bem como a e interno torna-se eminentemente problemática,
coexistência desses dois tipos (Bleger, 1977). Pi- provocando um apagamento do lugar subjetivo,
chon (apud Bleger, 1977) acrescenta que “a ten- pois obriga o sujeito a uma resposta no campo
dência a estabelecer contato com outras pessoas do real”.
é tão intensa quanto a tendência ao isolamento Mas, se estão os sujeitos psicóticos fora-do-dis-
como defesa”. curso, fora do simbólico e, portanto, fora do laço
Uma diferença crucial e estrutural, entretanto, social por estrutura (Quinet, 2006), poder-se-ia
é o fato de que essa experiência de ambivalência pensar numa impossibilidade lógica e estrutural
– simbiose e autismo – emerge, nos psicóticos, na de fazê-los circular por esses laços, com a hipó-
sua parte desorganizada, estando eles submeti- tese de que jamais entrariam em relação com um
dos a um controle menor quanto a uma instância outro sujeito. Entretanto, dando os devidos des-
de gestão, por ocuparem uma “posição menos contos pelas características da transferência psi-
estruturada” a partir das experiências como sujei- cótica, estudadas por Bion (apud Bleger, 1977)
tos que tiveram. Bleger (1977) propõe haver um – prematura, precipitada, maciça, tenaz e frágil
lado desorganizado em todos nós, uma “parte -, a vida cotidiana e a clínica com a psicose nos
psicótica da personalidade”, mais imatura e mais mostram que esses sujeitos têm as suas tentativas
primitiva e que “permaneceu segregada do ego particulares de laço social e de vínculo, pois, “em-
mais integrado e adaptado”. Essa parte, dentro bora fora do significado, o psicótico não está, de

243
modo algum, fora do sentido” (Juranville, 1987). algo estava caminhando, mesmo que a passos
E isso fica mais claro quando dividimos a dança. curtos. Mas, como em campos transferenciais es-
Passo então a fala para a parte de mim que tamos sempre sujeitos a shows abrilhantados e a
cuida dos casos clínicos e que se mistura a todo quedas bruscas, a nossa história não acaba aí. O
tempo com as outras partes. que venho relatar agora ainda constitui impres-
Falarei de V., 25 anos, usuário do Programa de sões muito iniciais e aparecerá mais a título de
Intensificação de Cuidados (PIC) desde o início ilustrar a nossa discussão do que de propriamente
deste. E, embora tudo tenha começado quando oferecer uma análise precisa do caso.
tenha começado, situarei o nosso início na super- Uma hora da manhã. V. liga para o meu ce-
visão em que eu mesma disse: “Ele sempre foi o lular, o que nunca havia ocorrido anteriormente
paciente que a gente pediu a Deus e, por isso, nesse horário. Isso me preocupa, não exatamente
sabíamos que havia algo errado”. O significante pelo caráter pouco convencional da situação em
soou forte, além de se repetir, e eu e minha dupla si – embora também - mas porque tal comporta-
fomos arrebatadas pela seguinte questão: “Não mento, extremamente comum em outros pacien-
teriam sido vocês as estagiárias que ele pediu a tes, fugia à maneira como ele vinha se portando
Deus?”. Engolindo seco, pensei em que medida conosco. Mais curioso ainda foi o motivo expres-
conseguimos ser Outro para esse sujeito. Isso so para a ligação: entre rodeios, segundos de
porque descobrimos que V. estava “encenando” silêncio e frases entrecortadas, ele disse-me que
todo o tempo para nós uma vida extremamente estava a fim de uma menina e que não tinha co-
equilibrada, camuflando uma série de desorga- ragem de contar, falar com ela. Soou, no mínimo,
nizações e conflitos. Confesso, deixamo-nos en- estranho, a ligação em plena madrugada para
ganar. Mas, cometida tal falha, nos apoderamos comunicar tal fato. Junto a isso, há as inúmeras
da posição de depositárias que descobrimos, de ligações de V. para mim diariamente (estas em
algum modo, já ocuparmos (principalmente pelo horário comercial), dentre as quais a maioria não
seu investimento e preparo pessoal para nos re- tinha um motivo específico ou dizia ele estar se
ceber), na tentativa de produzir a tão falada al- sentindo sozinho, bem como o seu comportamen-
teridade e, assim, viabilizar que ele também se to sempre muito observador sobre minhas roupas,
situasse no lugar de outro. cabelo, vida pessoal, seus olhares fixos para mim,
A partir desse momento, o comportamento de entre outras coisas. Enfim, o que se visa aqui não
V. foi sutilmente se modificando. Ele começou a é confirmar se a “menina” para a qual ele en-
nos confiar mais suas inquietações e a nos permitir dereçava seus sentimentos era, de fato, eu, mas
ir entrando, com muito cuidado, nos seus âmbitos colocar na pista a hipótese, esta mais embasada
mais profundos, para que pudéssemos ajudá-lo a em percepções sutis do cotidiano do acompanha-
dar sentido a suas experiências. Acho que, enfim, mento do que em declarações propriamente ditas.

244
Entretanto, ainda assim, tal suposição não indica tantas vezes quando ousamos escorregar. Píchon
exatamente um caso de amor transferencial, mas, (2000), em “Teoria do Vínculo”, nos auxilia bas-
pelo menos, uma depositação mais maciça. tante nessa empreitada ao falar sobre a teoria dos
Interessante notar que a intensificação de três D (depositante, depositário e depositado). Se-
comportamentos mais erotizados de V. em rela- gundo ele, a comunicação entre o usuário e o
ção a mim começou a surgir quando passamos acompanhante se produz na medida em que o
a caminhar no sentido de produzir continência; primeiro adjudica um papel ao segundo e este
provavelmente, o “ver-se contido” tenha sido o assume, sendo tal fenômeno fundamental para
complicado por demais para esse sujeito. Lem- que a clínica aconteça. Isso é especialmente im-
bramos novamente de Freud, quando em seu portante quando lembramos a ambigüidade que
texto “Observações sobre o amor transferencial” constitui tais sujeitos em sua relação conosco, em
(1914/1915), falou sobre as ocasiões nas quais um misto de repulsa e endereçamento, intros-
se está tentando levar o paciente a “admitir ou re- pecção e alienação. Acrescentamos à posição
cordar algum fragmento particularmente aflitivo e de Pichon a de Ferenczi (apud Zygouris, 2002)
pesadamente reprimido da história da sua vida”, que, analogamente, fala sobre a importância de
e, nesse sentido, remeto nossas reflexões, mais o estagiário participar da dança sugerida pelo
uma vez, à importância da delicadeza nas nossas usuário, enquanto parceiro “desapreensivo, com
intervenções. No que se refere a V., vê-se que, a pouca ansiedade e capaz de aceitar em depósi-
partir de um dado momento, ele estava entrando to qualquer coisa que o paciente queira colocar
em contato com conteúdos novos e que talvez isto nele”, “deve se colocar de um modo particular
estivesse sendo muito penoso, levando-o a fazer (...) disposto a controlar e cuidar daquilo que foi
uso da transferência como arma forte de resistên- depositado nele” (Pichon, 2000). Entretanto, não
cia. Dando-se conta de que “as deformações do fiquemos nessa posição unilateral. O próprio Pi-
material patogênico não podem, por si próprias, chon acrescenta: “Para que se estabeleça uma
oferecer qualquer proteção contra sua revelação” boa comunicação entre dois sujeitos, ambos de-
(1914/1915), a utilização de tal “artimanha” mu- vem assumir o papel que o outro lhe adjudica”,
daria o foco do tratamento e desviaria seu inte- o acompanhante sempre se questionando sobre
resse sobre o trabalho, concluindo Freud que, de estar ou não na posição devida de depositário,
fato, “a intensidade e persistência da transferên- sobre as afetações que estão permeando a rela-
cia constituem efeito e expressão da resistência” ção. Isso só será possível se não nos limitarmos
(1914/1915). à questão sobre “o que faço para produzir efeito
Perguntamo-nos então: “O que fazer com no outro”, colocando à mostra, ao menos para
isso tudo?”. Diria, a priori, que a palavra-chave si, a pergunta “quem sou eu?”, pois, é a partir
é suportar, palavra com a qual nos defrontamos disso, que se produz efeito no outro. Nós somos a

245
matéria-prima da nossa clínica. Assim, sabendo- importante inclusive para que a resistência não se
se necessário dialogar com a experiência psíquica torne do estagiário!
do sujeito, dando lugar à sua significação e es- Em relação a V., era muito pouco provável que
tando atento aos olhares e dizeres, aportamo-nos ele declarasse qualquer coisa palpável, caso a
no que há de arte e no que há de técnica dentro nossa hipótese sobre o amor transferencial esteja
da clínica; no que há de novo e no que há de correta. Isso porque, durante o acompanhamento,
repetido. percebemos que as situações com V. mantinham-
Não podemos negar que o manejo das rela- se muito no campo do não-dito, do enigmático,
ções vinculares representa grande dificuldade, e muitas informações que tínhamos sobre o caso
mas também excelente instrumento. Segundo eram provindas da sua família ou de suposições
Freud (1916/1917), seria impossível ceder às exi- nossas. Justamente por isso, não seria fácil - e
gências do paciente, decorrentes da transferên- nem deveríamos - exercer corte ou colocar limi-
cia, mas, ao mesmo tempo, “seria absurdo se as tes, mas sim produzir, dia após dia, através de
rejeitássemos de modo indelicado e, o que seria pequenas intervenções, a citada continência, já
pior, indignados com elas”. Dessa forma, seria que os limites, por serem externos, não costumam
tão desastroso para a clínica que os anseios do ser suficientes para surtir efeito em pacientes psi-
paciente fossem satisfeitos, quanto que fossem su- cóticos, por estes, geralmente, estarem totalmente
primidos; o estagiário deve se lembrar que está fora do registro simbólico e da experiência psí-
lidando com um vínculo inédito e que deve seguir quica que permite a normatização. Junto a isso,
“um caminho para o qual não há modelo na vida é importante pensar que efeito teria isso para o
real” (1914/1915). Ele precisa ter cuidado para sujeito a partir da maneira como seria feito, pois
não se afastar do vínculo que foi estabelecido, uma grande questão dos pacientes é como serão
nem repeli-lo ou torná-lo desagradável para o alguém no mundo, de que maneira poderão exis-
usuário, mas também deve recusar retribuição. tir, e uma intervenção inadequada pode prejudi-
Pensaremos agora, mais especificamente, so- car o sujeito com relação ao sentido que atribui
bre V., sobre o acompanhar a sua solidão, ao a si mesmo: “Ela rejeita meu amor porque sou
mesmo tempo em que movimentávamos sua imo- pobre, ou porque sou negro, ou porque uso dro-
bilidade (Barbosa, 2006). Em primeiro lugar, é gas, etc?’. Devemos tentar fazê-lo entender que o
preciso ter claro que não devemos “julgar se uma que ele endereça está sendo aceito, embora não
conduta é boa ou má (...), [observando] simples- correspondido, mas isso não se deve à falta de
mente qual é a finalidade da comunicação, cons- atributos pessoais.
cientes de que aquilo que o paciente está fazendo Iniciamos a nossa intervenção com V. dialogan-
é a única coisa que ele pode fazer nesse momento do sobre o telefonema da madrugada, no sentido
e nessa situação particular” (Pichon, 2000). Isso é de ir fazendo-o entender que não somos uma ex-

246
tensão dele mesmo. Nesse sentido, discorremos muito mais do que sabia antes sobre mim mes-
sobre a possibilidade de certos assuntos espera- ma. Os pacientes, a todo tempo, fazem com que
rem até a próxima visita ou até um horário mais nos “olhemos no espelho”, e o que vemos nada
viável, sem, com isso, invalidar a sua importância; mais é do que o reflexo do que já existe em nós. A
falamos também sobre o fato de termos outras ati- riqueza do encontro está justamente nas criações
vidades e vida pessoal, e, por isso, não estarmos e recriações que surgem a partir dele, “aquilo que
sempre aptas a atender os telefonemas. Apresen- lhes dará forma, contorno e a possibilidade de
tado dessa forma, talvez tenhamos a impressão movimento emocional, físico e psíquico” (Santos,
de termos sido rudes ou firmes em demasia, mas 2006). O vínculo este estará sempre a “desdo-
vale ressaltar que essas atitudes foram tomadas brar-se nos movimentos que produzimos e nos
com bastante cuidado e sutileza. O “a partir daí”, detemos a pensar, interpretar, compreender, en-
receio informar que não haverá como dar muitas carnar” (Santos, 2006).
informações, assim como os dançarinos se abstém A arte nos ensina que se dança para si mes-
de explicar as milhares de pequeninas movimen- mo e para a música, mas com o outro. É nes-
tações que formam um passo de dança. Primeiro, se momento que as pernas precisam ficar firmes
porque o caso está em andamento e os aconteci- para que se possa dançar no ritmo instalado. Não
mentos citados são muito recentes, não havendo, demore demais para não sair do compasso, não
de fato, grandes considerações a serem feitas so- se apresse demais para não acabar no chão! As-
bre atitudes tomadas. Segundo, porque, como já sim como a dança, a intensificação de cuidados
havia dito, este sujeito, como muitos outros, não sempre nos trará ambigüidade nos sentimentos,
pede exatamente como ferramenta intervenções a depender do contexto. Termino, por isso, com
enérgicas; quase tudo é construído na base da perguntas do Drummond (1991), que nos farão
delicadeza, de intervenções mínimas. Dessa for- contradição, que nos permitirão a complexidade
ma, pensar e agir através do vínculo constitui um e que nos trarão, possivelmente, nada mais do
desafio constante, pois não se trata de descobrir que respostas-perguntas.
como ocorre a depositação e não se preocupar
mais com isso; “ora estamos colocados aqui, ora “Que metro serve
ali” (Metzger, 2006); a luta é incessante, o show para medir-nos?
tem que continuar. Que forma é nossa
Ao final dessa discussão, mas certamente não e que conteúdo?
ao fim da dança, algumas considerações podem
ser feitas, talvez muito mais poéticas do que te- Contemos algo?
óricas. Confesso que, se sei um pouco sobre V. Somos contidos?
hoje através do que ele tem me mostrado, sei Dão-nos um nome?

247
Estamos vivos? e tessituras: no acompanhamento terapêutico. : Hucitec,
2006.
PICHON – RIVIÉRE, E. Vínculo e teoria dos três D (depo-
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METZGER, C. Um olhar sobre a transferência no acom-
panhamento terapêutico. In: R. G. Santos. Textos, texturas

248
Dados e eventos
O BPC e a Banalização
da Interdição Judicial: um exemplo de atuação clínico-política

Mariana Ferreira Santos Carteado*


Tatiana Lacerda Medeiros**

A Constituição Federal de 1988 introduziu um


novo patamar de cidadania para os brasilei-
ros. As mudanças na legislação propiciaram o
direitos dos portadores de transtorno mental fo-
ram reconhecidos legalmente.
Na experiência de acompanhamento de pa-
resgate da cidadania e a ampliação dos direitos cientes no Programa de Intensificação de Cui-
dos portadores de transtorno mental. Mais espe- dados (PIC) a psicóticos, cuja atuação está em
cificamente, o Art. 5º da Constituição que se re- conformidade com as novas diretrizes políticas de
fere aos Direitos e Garantias Fundamentais dos atenção à saúde mental, constatamos uma falta
cidadãos brasileiros, a Lei 10.216/01 e o Art. 3º de sensibilidade por parte de certos órgãos pú-
do Novo Código Civil produziram conseqüências blicos em incorporar à sua cultura institucional os
relativas à proteção dos direitos de cidadania paradigmas da Reforma Psiquiátrica. Diante disso,
destes sujeitos. Entretanto, apesar da força destas pode-se perceber que tais instituições, ao opera-
legislações, suas conseqüências não têm sido su- cionalizarem as políticas públicas relacionadas a
ficientemente apreendidas e operacionalizadas. esta parcela da população, tendem a interpretar
A partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, as leis sem ter em perspectiva tais paradigmas, já
a assistência em saúde mental no Brasil tem sido que as mesmas são passíveis de julgamento sub-
alvo de importantes transformações. Alguns seto- jetivo.
res da sociedade civil lutam por um novo modelo Tendo em vista o redirecionamento da atenção
de atenção que priorize a dignidade, autonomia e aos portadores de transtorno mental, a partir de
a reinserção na família, no trabalho e na comuni- uma concepção ampliada de clínica que impõe
dade dos usuários dos serviços de saúde mental. aos profissionais de saúde uma prática profissio-
Com a promulgação da Lei Federal 10.216, os nal comprometida com os aspectos psicossociais
destes sujeitos, faz-se urgente um debate em torno
*Psicóloga graduada pela UFBA e ex-estagiária do PIC
da mediação das práticas burocráticas por partes
** Estudante do curso de Psicologia (UFBA) e estagiária do PIC
dos mesmos, já que, ao modo tradicional de fazer

251
clínica, os diálogos com as instituições públicas de interdição. O Ministério Público, por sua vez,
e os trâmites burocráticos que as caracterizam e acata estes pedidos e os encaminha ao Judiciário,
que se apresentam eventualmente para os nossos que finaliza o processo, desabilitando a cidadania
pacientes são compreendidos como “extraclíni- do sujeito.
cos”. Diante de recursos tão escassos de sobrevivên-
No acompanhamento a psicóticos no referido cia, o psicótico facilmente abre mão da sua cida-
programa, uma situação específica envolvendo o dania em troca de um benefício financeiro, o que
requerimento de um benefício assistencial – o Be- se justifica pelo fato de que a discussão da cida-
nefício de Prestação Continuada, previsto na Lei dania e dos direitos humanos se apresenta para
Orgânica de Assistência Social (LOAS) – revelou- tais sujeitos de maneira muito sofisticada, contra-
se como uma questão de pouca visibilidade e ex- pondo-se à concretude das dificuldades financei-
trema relevância, devido à prática inconstitucional ras do cotidiano. Tendo em vista uma clínica psi-
de exigência, por parte de determinados órgãos cossocial das psicoses que opera no registro do
públicos, da declaração de que os requerentes respeito à autonomia e à dignidade do portador
são totalmente incapazes para o exercício dos de transtorno mental, faz-se urgente atentar para
atos da vida civil, o que acarreta a banalização as dinâmicas institucionais que vão de encontro a
da interdição judicial. Esse procedimento, indica- estes princípios e que impedem a evolução clínica
do apenas para casos em que haja prejuízo grave dos nossos pacientes. Assim, o profissional de psi-
da capacidade de discernimento para a prática cologia comprometido com o modelo assistencial
destes atos, ao ser imposto como condição para defendido pela Reforma Psiquiátrica deve assumir
o recebimento do benefício, traz como conseqüên- um posicionamento político ativo, manejando
cia a amputação desnecessária da cidadania de junto ao paciente as situações críticas emergentes
inúmeros portadores de sofrimento mental. O di- da sua relação com as instituições, assumindo um
reito a esta renda mínima, que poderia significar papel questionador dos paradigmas que norteiam
um avanço na conquista da autonomia por parte as ações dos atores institucionais e atuando em
destes sujeitos, torna-se assim uma “armadilha da consonância com a defesa dos direitos dos por-
pobreza”. tadores de transtorno mental previstos nas legis-
Com base na interpretação tendenciosa de um lações.
critério expresso na LOAS, que restringe a con- Tendo essa perspectiva em vista, o PIC, unido
cessão do benefício à comprovação de “incapa- à Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA,
cidade para a vida independente e para o traba- ao Conselho Regional de Psicologia e ao Con-
lho”, criou-se uma cultura no interior do INSS de selho Regional de Serviço Social, promoveu um
encaminhamento dos requerentes ao Ministério seminário com o tema “Direitos dos Portadores de
Público Estadual para darem entrada no processo Transtorno Mental: atualizações legais”, realizado

252
no dia 9 de Março de 2007 no auditório da OAB-
BA, contando com a participação de representan-
tes das instâncias envolvidas com a problemática
da banalização das interdições judiciais no Brasil:
Ministério Público Estadual, INSS, Defensoria Pú-
blica e Associação Psiquiátrica da Bahia. O de-
bate, além de lançar luz sobre o incremento da
Interdição Judicial e oferecer os devidos esclare-
cimentos acerca dos reais critérios para a con-
cessão do Benefício de Prestação Continuada aos
portadores de transtorno mental, teve como prin-
cipal intuito o comprometimento de cada um dos
envolvidos na interface desta temática, em ações
efetivas que visem à transformação da cultura e
das práticas institucionais.

253
O PIC em letra e número

O Programa de Intensificação de Cuidados a


Pacientes Psicóticos teve início em janeiro
de 2004 e, desde então, já atendeu cerca de 40
“Acompanhamento Terapêutico - uma tecnologia
na atenção psicossocial”.

pacientes e recebeu e preparou, entre estagiários • Monografia de conclusão de curso de Terapia


e extensionistas, 71 de Psicologia, 41 de Terapia Ocupacional de Larissa Figueiredo Santos, na
Ocupacional e 3 de Medicina, sendo que muitos época ainda estagiária do programa, que teve
em regime semestral; outros, anual e alguns, in- como tema “Redes sociais em saúde mental: uma
clusive, permanecendo por três semestres conse- experiência com o Programa de Intensificação de
cutivos. Cuidados a Pacientes Psicóticos”.

O PIC tem inspirado a realização de alguns O PIC também esteve presente, como progra-
trabalhos de conclusão de cursos de graduação e ma assistencial ou discutindo alguns dos seus as-
pós-graduação: pectos relevantes, através de apresentações orais
e pôsteres, em importantes eventos tais como:
• Monografia de conclusão de curso de Terapia
Ocupacional de Fernanda Abreu Rodrigues, na • Congresso Norte Nordeste de Psicologia (Sal-
época ainda estagiária do programa, que teve vador, 2005)
como tema “Programa de Intensificação de Cui-
dados – um caminho para a qualidade de vida”, • Congresso Latinoamericano de Extensão Uni-
versitária (Rio de Janeiro, 2005)
• Monografia da terapeuta ocupacional Noê-
mia de Aragão Casais para conclusão do curso • Oficina sobre Atenção Domiciliar no Encon-
de Especialização em Saúde Mental do Depto de tro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte,
Neuropsiquiatria da UFBA, que teve como tema 2006)

254
■ Curso de Extensão “Elementos Teóricos para
• Congresso Internacional de Direitos Humanos e uma Clínica Psicossocial das Psicoses”, realizado
Saúde Mental (Buenos Aires, 2006) nos períodos de setembro a dezembro de 2005
e março a junho de 2007, na UFBa, que contou
com 50 alunos na primeira turma e 40 na segun-
• V Congresso Norte-Nordeste de Psicologia da.
(Maceió, 2007), em que foram apresentados os
seguintes trabalhos: ■ Curso de Extensão “A ética e a técnica do Acom-
panhamento Terapêutico”, realizado em dois pe-
■ “Transbordamento psicótico: desafios e possibi- ríodos, novembro e dezembro de 2006, com 30
lidades de intervenção” alunos em cada turma, que contou com o Prof.
■ “A formação de díades no trato com a loucura: Kleber Barretto, prof. doutor da Unip, como mi-
acompanhando os acompanhantes” nistrante.
■ “Intensificação de cuidados a pacientes psicó- ■ Disciplina optativa: “Atenção Psicossocial em
ticos: uma clínica ampliada” Saude Mental.” Departamento de Psicologia UFBA,
■ “Interdição judicial de pacientes psicóticos: a 2007.2.
amputação da cidadania”
■ “Psicose, maternidade e papéis sociais”
■ “Dança e xadrez: o papel da intensificação de
cuidados no fortalecimento da autonomia de Fe-
lipe”
■ “A abordagem da crise na psicose”
■ “O vínculo e a transferência na clínica psicosso-
cial das psicoses”
■ II Fórum Internacional de Saúde Mental e D. H.
no Rio de Janeiro (maio,2008).

Também foram realizados cursos no formato


de atividades de extensão, visando oferecer aos
estagiários e ao público externo uma complemen-
tação dos aprofundamentos teóricos específicos Encontro Nacional de Saúde Mental (Belo Horizonte, 2006)
vinculados ao nosso universo de trabalho teóri-
co:

255
Relação de estagiários/extensionistas
treinados pelo PIC
Psicologia Gabriela Pena Cal
Gabriela Souza de O. Sampaio
Àdem Ramos
Gelly Costa
Adriana Bitencourt
Gisele Lopes
Aline Freire de Carvalho Frey
Isadora de Andrade Pinheiro
Allan Jeffrey Vidal Maia
Ivana Maciel Cangussu
Allann da Cunha Carneiro
Jaqueline Vitoriano
Amanda Muniz Caetité
Jamili Calixto
Amon Requião de Castro
João Batista Pereira Neto
Ana Luisa Marques Fagundes
Júlia Mignac dos Santos
Ana Margarete Freitas
Juliana de Andrade Passos
Ana Paula Miranda da Hora
Kátia Cordélia Cunha Carneiro
Ana Paula Silva Pereira
Lara Hardman
Andréa Pato
Larisa Andrade e Castro
Antônio Marcos Santana Barreira
Leila Reis Leal
Carla Silva Fiaes
Leíza Nazareth
Carolina Brandão Vieira Lima
Lívia Gomes de Vasconcelos
Caroline Barbosa Tanajura
Lorena de Almeida Oliveira
Charlene Gomes de Souza
Luane Neves
Clotildes Silva Sousa
Lucineide Santiago de Souza
Cristiane Batista da Silva
Lygia Silva Pedreira de Freitas
Daphne Soares
Maria Anunciação Brites Guimarães França
Emanuelle Teixeira
Maria Clara Guimarães
Érica Almeida Coelho
Mariana de Castro Brandão Cardoso
Fernanda Rebouças
Mariana Ferreira Santos Carteado
Fernanda Vidal
Marianna Luiza Alves Soares
Fernando Luiz Failla
Marilia de Azevedo Alves Brito
Filipe Soares Rodrigues
Marines Oliveira
Flavia Bomfim Hasselman
Milena Gonçalves Sobral
Flora Albuquerque Matos
Milena Silva Lisboa

256
Mônica Machado de Matos Itatiara Nascimento
Naiara Oliveira Jamile Oliveira Menezes
Nara Cortês Andrade Kátia Luzia de Camargo Jesus
Polyana P. Mendonça Larissa Figueiredo Santos
Sandra Assis Brasil Leni Lima Silva
Sheila Silva Lima Lívia Maria dos Santos Cerqueira
Tatiana Medeiros Luciana Principe de Oliveira Galheigo
Thiago Lima Mello Luiana Lima Fernandes
Vanessa Nobre Vilas Bôas Luíza Viana Ferreira
Vera Christiane Rittel Mabel Dias Jansen Silva
Wellington Carlos Magnovanda Martins D. Oliveira
Manuela Gagliano Ferreira
Terapia Ocupacional Maria Eduarda Nunes Correia Lima
Naama Correia Lima Pires
Adriana Balaguer (Supervisora substituta) Patricia Barreto da Silva Rocha
Adelly Rosa Orselli Moraes Sodré Patricia Freitas Lima
Adriana Bitencourt Sharlene Bawes
Alanda Ribeiro Dos Santos Andrade Silvânio Silva Souza
Ana Claudia Silva Braga Tâmara Silva Cedraz
Ana Cristina Oliveira Nogueira Thalita de Figueiredo Taboada
Ana Patrícia Oliveira Souza Thyena Oneida Carneiro Rios
Ana Paula Silva Pereira Yandra Magalhães C. Marques
Carol Silva Andrade
Clarissa Brito Barbosa Medicina
Daniela Maria Ribeiro Astolpho
Dayane Boa Ventura Lima Diego Espinheira da Costa Bomfim
Eitha Milena Teixeira Araújo Allana Silva
Ester Bonfim Góes Lucas Nascimento
Fernanda Abreu Rodrigues Nascimento
Fernanda Gonçalves de Moura
Flávia Conceição Borges Matos
Gisele Duarte Lordelo
Hélvia Vieira Aguiar

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