JONA TH AN D.

SPENCE

EM BUSCA DA
CHINA MODERNA
Quatro séculos de história
Tradução:
TOMÁS ROSA BUENO
e PEDRO MAIA SOARES

NOVAS TENSÕES NO FINAL DA ERA QING
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o AUTOFORTALECIMENTO E A GUERRA CONTRA O JAPÃO
Os homens de Estado confucianos cujas capacidade, integridade e tenacidade
ajudaram a reprimir as rebeliões da metade do século xix mostraram com quanta
imaginação os chineses podiam responder a novos desafios. Sob a bandeira geral
da restauração da ordem no Império Qing, eles tinham conseguido criar novas es-
truturas para cuidar das relações exteriores e coletar taxas alfandegárias, construir
navios e armamentos modernos e começar a ensinar direito internacional e rudi-
mentos de ciência moderna. "Autoforlalecimento" não fora um slogan vazio, mas
um caminho evidentemente viável para um futuro mais seguro. Os chineses e man-
chus progressistas pareciam capazes de trabalhar juntos com o objetivo de preservar
os aspectos mais estimados de suas culturas tradicionais ao adaptar seletivamente
elementos do conhecimento e da tecnologia ocidentais às necessidades da China.
Era verdade que restavam os problemas complexos da miUtarização rural conti-
nuada, da nova autonomia regional sobre impostos, dos abusos dos senhores da
terra e da corrupção burocrática e das potências estrangeiras beUcosas, com suas
intrusões militares, diplomáticas e missionárias. Mas com uma liderança imperial
vigorosa e um Grão-Conselho resoluto, parecia que a dinastia Qing poderia recu-
perar um pouco de sua antiga força.
Infelizmente para a sobrevivência da dinastia, a liderança vigorosa não estava
a caminho. Tongzhi, em cujo nome se iniciara a Restauração Tongzhi dos governos
central e provinciais, morreu subitamente aos dezoito anos, em janeiro de 1875, pou-
co depois de assumir pessoalmente o poder. A causa oficial da morte foi varíola, mas
espalhou-se o rumor de que ele se exaurira com a vida desregrada e os excessos come-
tidos nos bairros de prazer de Pequim. Sua jovem imperatriz estava grávida quando
ele morreu, mas parece ter sido excluída das reuniões decisivas convocadas pela mãe
de Tongzhi, a imperatriz viúva Cixi, para decidir a sucessão imperial.
A única forma de Cixi preservar seu poder pessoal era continuar como regen-
te; dessa forma, ela designou para imperador seu sobrinho de três anos Guangxu,
assegurando-se assim de que continuaria a exercer por muitos anos o poder por
trás do trono. O êxito desse estratagema ficou garantido quando a esposa grávida
de Tongzhi morreu naquela primavera, antes que seu filho tivesse nascido.* A es-
{•) É quase certo que a viúva de Tongzhi foi induzida ao suicídio por Cixi, mas as provas conti-
nuam controvertidas.
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colha de Guangxu, no cnlanio, violava uma lei rundamenlal da sucessão dos Qing:
ele era da mesma geração de Tongzhi, não de uma posterior, e, porlanlo, nãt) po-
deria executar adequadamente as cerimónias filiais ancestrais em memória do im-
perador morto. Cixi calou a oposição aberta sobre essa questão prometendo que
quando Guangxu tivesse um filho, ele seria adotado como herdeiro de Tongzhi e
assim estaria capacitado a reahzar os ritos devidos. Um funcionário confuciano
íntegro suicidou-se em protesto diante do túmulo de Tongzhi, mas ninguém mais
levou o descontentamento com a decisão de Cixi a esse extremo. Os burocratas mais
antigos silenciaram, aparentemente resignados com mais um período prolongado
de mando indireto da poderosa regente.
Cixi era uma mulher complexa e capaz, embora fosse também teimosa c im-
placável quando achasse necessário. Única mulher a atingir um alto nível de poder
político na China durante o período Qing, foi posteriormente responsabilizada por
muitas das desgraças da dinastia por homens que achavam que ela jamais deveria
ter ocupado o poder. Nascida em 1835 — seu pai descendia de uma distinta linha-
gem manchu, mas ocupava um posto menor na burocracia —, Cixi foi nomeada
uma das consortes do imperador Xianfeng em 1851 e tornou-se sua favorita em
1856, quando lhe deu um filho. Xianfeng discutia assuntos políticos com ela e per-
mitia-lhe a leitura de relatórios. Em 1860, ela o acompanhou na fuga aos Ahados
para Rehee, após a morte de Xianfeng, em 1861, fez-se nomear co-regente da Chi-
na com um golpe palaciano. O poder político de Cixi resultou então de sua posição
como co-regente em nome de seu filho Tongzhi, de 1861 a 1873, e em nome de
seu sobrinho Guangxu, de 1875 a 1889. Foi também a autoridade política última
enquanto Guangxu definhava recluso no palácio — por ordens suas —, de 1898
a 1908. Muito culta e pintora competente, Cixi mantinha-se bem informada sobre
todos os assuntos de Estado, ouvindo os relatórios de seus ministros sentada atrás
de uma tela (por uma questão de decoro). Não obstante ser politicamente conser-
vadora e financeiramente extravagante, ela aprovou muitas das iniciativas de res-
tauração dos autofortalecedores; ao mesmo tempo, tentou resguardar ciosamente
as prerrogativas da linhagem imperial manchu dominante.
Uma vez que as questões de política externa estariam no primeiro plano de
todo o processo de decisão, foi lamentável que Cixi tenha entrado em rota de coli-
são com o príncipe Gong, depois que ele provocou a execução de um dos eunucos
favoritos dela, condenado por abuso flagrante de poder. O crescimento incontro-
lável do poder em mãos dos eunucos e sua consequente corrupção fora uma marca
tradicional do declínio da competência dinástica e os primeiros governantes Qing
tinham jurado jamais repetir o erro dos últimos Ming de permitir que os eunucos
dominassem a corte. O príncipe Gong talvez estivesse querendo evitar a volta dessa
situação, mas a imperatriz regente tomou em termos pessoais a morte de seu favo-
rito e conseguiu, a partir de então, bloquear o acesso de Gong a posições de poder.
Para diluir ainda mais a força dos Qing, o poderoso estadista provincial Zeng
Guofan morreu em 1872, o habilidoso Wenxiang em 1876, e Zuo Zongtang conti-
nuou preocupado com a pacificação dos muçulmanos no Noroeste longínquo do
país. Em Pequim, os grão-conselheiros, embora fossem homens de valor, com car-
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reiras ilustres, tendiam a ser conservadores e não tinham a habilidade ou a iniciati-
va para mudar os rumos da China. Embora programas de autofortalecimenlo con-
tinuassem a ser implementados durante as últimas décadas do século XIX, um nú-
mero desproporcional deles deveu-se a um único homem, Li Hongzhang. Li tinha
a confiança de Cixi; após a repressão das rebehões dos nians e taipings e as nego-
ciações posteriores ao massacre de Tianjin, ele foi enviado para o Norte da China
com a função dupla de governador-geral da região de Hebei e comissário de co-
mércio para os portos setentrionais. Mais do que qualquer outra pessoa, ele colo-
cou sua marca nos derradeiros anos do século na China.
O empenho politico de Li Hongzhang dirigiu-se basicamente para três amplas
áreas; empresarial, educacional e diplomática. Como empresário, baseou-se nos
alicerces colocados na fase anterior do movimento de autoforlalecimento. Procu-
rou diversificar os empreendimentos, entrando em áreas que teriam efeitos de lon-
go alcance no desenvolvimento geral do pais. Essas iniciativas envolveriam o go-
verno e capitalistas mercantis em operações conjuntas sob uma fórmula chamada
de "supervisão governamental e gerenciamento mercantil". Um desses projetos,
fundado por Li Hongzhang em 1872, foi a Companhia de Navegação a Vapor Mer-
cantil da China, destinada a deter a dominação da navegação costeira por potên-
cias estrangeiras. A receita da companhia, da qual o próprio Li era acionista, vi-
nha principalmente de contratos para transportar os grãos da tributação do Centro
da China para a região de Pequim. Após 1877, as minas de carvão Kaiping, próxi-
mas de Tianjin, expandiram-se enormemente por ordem de Li, a fim de dar ao país
maior controle sobre seus recursos minerais e fornecer combustível para a crescen-
te frota de vapores. Li também fundou um grande cotonifício em Xangai, em 1878,
para frear o crescimento da importação de têxteis.
Na década de 1880, Li criou arsenais em Tianjin que fabricavam as balas e
bombas para as armas Remington e Krupp que começara a comprar no exterior.
Logo começou a produção dos próprios rifles Remington, com equipamento com-
prado dos americanos. Li desenvolveu um sistema de telégrafo nacional, Hgando
os cabos internacionais — que iam até Xangai — primeiro a Tianjin e, depois, a
Pequim; estenderam-se então ramais a muitas cidades grandes do interior. Ele tam-
bém dirigiu a construção de novas instalações portuárias em Lúshun, cidade do
Sul da Manchúria, e de um trecho de mais de quatro quilómetros de ferrovia para
levar o carvão das minas Kaiping até um canal próximo, de onde podia ser trans-
portado por barco até Tianjin e usado pela nova frota. De início, os vagões eram
puxados por mulas, mas em 1881 um dos assistentes de Li aproveitou sucata oci-
dental para construir a primeira máquina a vapor da China, usada com sucesso
na linha férrea.
Li Hongzhang também levou adiante esforços anteriores de reforma educa-
cional. Apoiou a proposta de uma missão educacional nos Estados Unidos, ideia
formulada por Yung Wing e endossada por Zeng Guofan. A corte deu seu consen-
timento e, em 1872, o primeiro grupo de meninos chineses, com idades entre doze
e catorze anos — muitos deles filhos dos empregados nos novos arsenais e estalei-
ros de Fuzhou, Tianjin e Xangai —, foi mandado para Hartford, Connecticut. Ali
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moraram com famílias americanas e mergulharam no aprendizado de inglês, na
educação em geral e nos estudos chineses. Em 1875, já somavam 120 estudantes.
Mas na escola e no ambiente social dessa cidade americana era difícil para os meni-
nos chineses manter os valores culturais tradicionais nos quais as autoridades Qing
insistiam. Eles começaram a usar roupas ocidentais, abandonando suas vestimen-
tas, e vários deles cortaram seus rabichos, sob pressão ou zombaria local. Muitos
foram atraídos pelo cristianismo. O próprio casamento de Yung Wing com uma
das professoras de Hartford era mais um exemplo da forte atração que o Ocidente
exercia sobre esses estudantes.
Mas o golpe final na missão de Li foi a descoberta tardia de que o governo
americano não iria permitir que um grupo seleto dos estudantes, uma vez termina-
da a educação secundária, entrasse para as academias militar e naval, em Annapo-
lis e West Point, como Li esperara. Assim, em 1881, ele concordou com a decisão
das autoridades conservadoras Qing de fechar a missão educacional e trazer os es-
tudantes de voha. Eles retornaram à China via San Francisco, em agosto de 1881.
O último triunfo deles em solo americano foi ter derrotado o time de beisebol de
Oakland, que contava com uma vitória fácil mas foi desbaratado pela trajetória
mahciosa das bolas do lançador chinês. Muitos desses estudantes tornaram-se in-
fluentes nas forças armadas, engenharia e administração empresarial; mas, a partir
de então. Li Hongzhang mandou seus estudantes mais promissores para a França,
Alemanha ou Grã-Bretanha, onde os governos não tinham objeções a que recebes-
sem educação militar ou naval tecnicamente avançada. E criou também academias
militar e naval na própria Tianjin.
O mundo da diplomacia internacional era ainda mais inóspito aos Qing. Aqui
Li Hongzhang trabalhou para tentar resolver uma ampla gama de problemas difí-
ceis, às vezes sozinho, às vezes junto com Robert Hart, outras vezes com o Zongli
Yamen. Na década de 1870, esses problemas incluíam as negociações com os japo-
neses sobre o estatuto internacional das ilhas Ryukyu e da Coreia. Em nenhum dos
dois casos os Qing foram capazes de apresentar uma reivindicação convincente de
direitos especiais, pois o velho sistema de "relações com tributários", criado mui-
tos séculos antes para mostrar a superioridade cultural da China sobre esses terri-
tórios vizinhos, estava seriamente enfraquecido. Com efeito, a corte Qing estava
totalmente despreparada para responder à extraordinária expansão do poderio ja-
ponês nesse período. Datava apenas de 1854 que o comodoro americano Matthew
C. Perry forçara os japoneses a acabar com seu isolamento e a reconhecer as reali-
dades das relações internacionais e do comércio exterior. Contudo, foram tão efi-
cazes as reformas económicas e institucionais da Restauração Meiji, iniciada em
1868, que o Japão podia agora apresentar uma força militar superior à da China.
Em 1879, os japoneses anexaram as Ryukyu, e a Coreia poderia ter seguido o mes-
mo caminho na década de 1880, se Li não tivesse persuadido o rei coreano a assi-
nar tratados com Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha (que se tor-
nara um Estado unificado em 1871).
Em 1876, Li também tivera que manter negociações complexas com a Ingla-
terra, depois que um dos seus cônsules, Augustus Margary, foi assassinado por mem-
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bros de tribos de Yunnan. Margary participava de uma equipe de pesquisa britâni-
ca que estudava a possibilidade de abrir estradas e ferrovias entre a Birmânia e o
Yunnan. Na convenção resultante, Li, representando os Qing, na verdade reconheceu
a debilidade da dinastia ao concordar em pagar uma indenização de 700 mil taéis,
mandar uma missão para pedir desculpas à rainha Vitória e abrir mais quatro por-
tos. Mais benéficas aos interesses da China foram as negociações com a Rússia,
conduzidas no final da década de 1870 pelo Zongli Yamen e o filho de Zeng Guo-
fan, então ministro dos Qing na Grã-Bretanha. Pelo Tratado de São Petersburgo
de 1881, os russos concordavam em anular um tratado anterior desigual e devolver
Pequim i . . . f' X ^ ^ COREIA
lU •Lusshun* J
^ HLiBRI J ^SeUl

aos Qing ò domínio de partes de Ili que tinham estado sob ocupação russa desde f í SIIANDONd
'^Weihaiwei
.,
iAi>Ifi

a irrupção das rebeliões muçulmanas. Embora a Rússia ainda mantivesse áreas enor- I ^ '^^ AiiHiivUi

mes de antigo território Qing, ao norte dos rios Amur e Ussuri, o Tratado de São
Petersburgo garantiu à China o controle de suas fronteiras no extremo Oeste, so-
TIBETE
C H I /N A \
berania confirmada quando Xinjiang foi declarada província, em 1884.
O sucesso com a Rússia alimentou uma confiança falsa na corte e entre os man- Chongqing,
Lizhou Miir da
darins Qing. Em 1880, quando os franceses expandiram seu império colonial ocu- Chiim
pando Hanói e Haiphong — apesar das reivindicações chinesas de direitos espe- GUANGXI
Oríeiílal

ciais sobre a área — e começaram a pressionar a China por mais concessões em QUESTÕES DE FRONTEIRA, CU ANtlDONCi

Annam (hoje Vietnã), Li Hongzhang recomendou cautela. Mas seus pedidos fo-
TONiílN
1870-y5 BIRMÂNIA Hanoi ^
^ — F r o t a francesa, Mar iki China
ram varridos pelo ímpeto de chineses e manchus belicosos que insistiam que os Qing W V 1884 HAINAÍ.' Mc-i-iiíioiíiil
assumissem uma posição firme nessa questão de princípio. Em 1884, enquanto Li Guerra Sino-japonesa,
i 1894-95 A N A M I I FILIPINAS
tentava negociar com a França para evitar o início das hostilidades, os favoráveis
SIAO

a medidas duras continuavam a lutar com os franceses em Annam e na vizinha Ton-
kin. O almirante em comando da frota francesa na região respondeu a essas hosti-
lidades intermitentes entrando com suas forças no porto de Fuzhou e ancorando
perto da frota chinesa.
Li Hongzhang recomendara um acordo negociado com a França, por mais hu-
milhante que parecesse, porque sabia quão fraca era a marinha chinesa. Em agos-
to de 1884, quando as negociações se romperam e a frota francesa abriu fogo em
Fuzhou, ficou catastroficamente provado que Li tinha razão e revelaram-se mais
uma vez as disparidades entre uma potência industrial desenvolvida e a China dos
Qing. A frota francesa consistia em oito navios de guerra e dois torpedeiros, com
um total de mais de setenta armas pesadas e numerosas metralhadoras. Os barcos
franceses estavam misturados aos de nações não behgerantes, o que os tornava um
alvo difícil. Ancorados nas vizinhanças, os chineses tinham onze navios de sua no-
va frota meridional de "autofortalecimenlo" — todos de madeira, com exceção
de dois —, bem como alguns velhos juncos de guerra e barcos a remo armados.
Esses navios tinham em conjunto 45 canhões novos, a maioria de calibre pequeno.
Às 13h56 de 22 de agosto, o almirante francês mandou sua frota abrir fogo. A nau
capitânia dos chineses foi afundada no primeiro minuto da batalha; em sete minu-
tos, a maioria dos barcos chineses tinha sido atingida; dentro de uma hora, todos
os navios estavam afundados ou em chamas e o arsenal e as docas destruídos. Os
franceses contaram cinco mortos; os chineses, 521 mortos e 51 desaparecidos. Em-
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bora os Qing vencessem algumas batalhas terrestres inconclusivas no Sudoeste, o
controle francês sobre a Indochina estava assegurado. Um ano depois, os britâni-
cos imitaram a agressividade francesa e declararam o protetorado sobre a Birmânia.
Li Hongzhang poderia ter mandado o segmento setentrional da marinha para
reforçar a parte meridional em Fuzhou; em vez disso, preferiu conservar aquelas
forças e reforçá-las ainda mais, bem como usá-las para escorar sua própria base
de poder administrativo e burocrático. Além de dar testemunho de seu poder e pres-
tígio, a tarefa mais importante de sua frota era manter abertas as vias marítimas
para a Coreia. A corte criara um novo posto, o de "residente" chinês em Seul,
encarregado da difícil tarefa de manter relações calorosas com a corte coreana e
assegurar que a "independência" coreana não significasse o enfraquecimento do
estatuto privilegiado da China no país. Os Qing queriam ter certeza de que o Japão
não conquistaria uma base permanente na Coreia. Na década de 1890, a tensão
cresceu à medida que ficavam claros os desígnios dos japoneses em relação à pe-
nínsula. Em 1894, quando a irrupção de uma rebehão doméstica ameaçou o rei
coreano, tanto China quanto Japão aproveitaram a oportunidade para mandar tro-
pas a fim de proteger a família real. Os japoneses, capazes de mover tropas com
mais rapidez que os chineses, tomaram o palácio coreano em 21 de julho e designa-
ram um "regente" fiel aos interesses deles.
Naquele mesmo dia, os Qing comissionaram um navio de transporte britânico
para levar um reforço de 1200 chineses à Coreia. Interceptado por um cruzador
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 japonês, o transporte recusou-se a render-se e foi afundado; menos de duzentos
iiomens sobreviveram. No final do mês, as tropas terrestres japonesas já tinham
derrotado os chineses numa série de batalhas em torno de Seul e Pyongyang; em
outubro, os japoneses cruzaram o rio Yalu e entraram em território Qing. No mês
seguinte, outro exército japonês tomou o porto fortificado de Liishun. As forças
terrestres do Japão estavam então em posição de penetrar na própria China atra-
vés de Shanhaiguan, como Dorgon o fizera dois séculos e meio antes.
A marinha do Norte da China, apesar dos esforços de Li para conservá-la,
estava para sofrer um destino semelhante ao da marinha do Sul, com efeitos ainda
mais danosos sobre os objetivos de autofortalecimenlo chinês. Essa frota seten-
trional, composta por dois encouraçados, dez cruzadores e dois torpedeiros, já fo-
ra seriamente danificada pelos japoneses em setembro, numa batalha ao largo da
foz do Yalu, e recuara para o porto fortemente defendido de Weihaiwei, no lado
norte da península de Shandong. Ah, o almirante chinês protegeu sua frota atrás
de uma barreira de minas de contato e não participou mais da luta. Mas numa ma-
nobra brilhante, realizada em janeiro de 1895, uma força japonesa de 20 mil solda-
dos e 10 mil trabalhadores de campanha atravessou o promontório de Shandong
e tomou os fortes de defesa de Weihaiwei pelo lado terrestre. Voltando os canhões
contra a frota chinesa e, ao mesmo tempo, penetrando nos campos de minas com
torpedeiros, conseguiram destruir um dos couraçados e quatro cruzadores. Os dois
almirantes chineses mais graduados e os comandantes Qing dos fortes suicidaram-se.
Desesperada, a corte procurou o desfavorecido príncipe Gong para ajudar nas
negociações, tal como acontecera 35 anos antes, quando o palácio de verão fora
incendiado durante as desastradas negociações do Tratado de Tianjin. O príncipe
disse com tristeza a um diplomata ocidental que lhe tinham dado a tarefa de ' 'colar
os cacos da taça que os atuais ministros jogaram no chão".' Para auxiliar o prín-
cipe Gong, os Qing escolheram o mais visível daqueles ministros, Li Hongzhang,
e foi ele que teve de ir pessoalmente ao Japão para negociar com os vencedores.
Os termos do Tratado de Shimonoseki, formalizado em abril de 1895, eram
desastrosos para a China. Teriam sido piores se um assassino não tivesse atirado
em Li, ferindo-o no rosto, abaixo do olho esquerdo, e envergonhando o governo
japonês perante o mundo. A China tinha de reconhecer "a autonomia e indepen-
dência total e completa da Coreia", o que, nas circunstâncias do momento, signifi-
cava fazer da Coreia um protetorado japonês. Os Qing prometiam também pagar
ao Japão 200 milhões de taéis de indenização de guerra, liberavam mais quatro portos
— inclusive Chongqing, no alto Yangzi, na província de Sichuan — e cediam ao
Japão "para sempre" toda Taiwan, as Pescadores e a região de Liaodong, no Sul
da Manchúria. Os japoneses também teriam licença para construir fábricas e ou-
tros empreendimentos industriais em quaisquer das áreas dos portos livres. Os pro-
testos de russos, alemães e franceses forçaram os japoneses a desistir da reivindica-
ção sobre Liaodong em troca de uma indenização adicional de 30 mil taéis, mas
todas as outras cláusulas do tratado foram confirmadas. Muitos dos jovens estu-
diosos mais brilhantes da China, reunidos em Pequim para os exames trienais do
jinshiy desafiaram a ira da corte ao denunciar apaixonadamente o Tratado de Shi-
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monoscki c pedir um novo c mais audaz programa de crescimento económico e re-
forma governamental para compensar as trágicas perdas do país. Mas a corte Qing
parecia paralisada. Era a conclusão sombria das esperanças mais brilhantes da era
de autofortalecimenlo.
O MOVIMENTO REFORMISTA DE 1898
Durante a última década do século xix, a China estava numa situação ambí-
gua, curiosa. Elementos do velho e do novo coexistiam lado a lado. Em muitos
níveis, o ritmo das mudanças parecia irresistível e irreversível. Barcos a vapor cru-
zavam o Yangzi, enormes diques guarneciam a zona portuária de Xangai, acade-
mias militares treinavam jovens oficiais em táticas ocidentais, livros didáticos cien-
tíficos saíam dos prelos e memoriais vinham por telégrafo das províncias para o
Grão-Conselho. Vitoriosas numa série de guerras, as potências ocidentais tinham
imposto sua presença na China e começavam agora a investir maciçamente no país,
especialmente em minas, comunicações modernas e indústria pesada. O impacto
do imperialismo foi profundo, intensificando tensões já geradas pelo movimento
de autofortalecimento.
Contudo, boa parte dessa mudança aparente estava confinada às cidades por-
tuárias livres e, dentro delas, às áreas de concessão aos ocidentais. A penetração
no interior do país era lenta, mesmo para os negócios estrangeiros mais agressivos,
e em quase todos os casos os ocidentais contavam com seus intermediários chineses
— os chamados compradors — para abrir mercados aos seus produtos através das
rotas tradicionais de comércio e distribuição. Para a maioria dos jovens chineses
do sexo masculino de famílias abastadas, os padrões de educação permaneciam inal-
terados: decoravam os clássicos confucionistas e batalhavam para obter o diploma
local de shengyuan antes de se submeter aos exames do juren provincial e do jinshi
nacional. Nas cidades e no campo, as meninas ainda tinham pouco acesso à educa-
ção formal, seus pés ainda eram amarrados e seus casamentos arranjados pelos pais.
Nos campos, semeadura e colheita eram manuais e a produção levada penosamen-
te para o mercado. Os estrangeiros, se aparecesse algum, eram considerados exóti-
cos ou ameaçadores. Os diplomatas chineses designados para o exterior ganhavam
pouco prestígio com suas nomeações e eram amiúde humilhados ao voltar e força-
dos a uma aposentadoria precoce.
Quando uma verdadeira interpenetração de tradição e mudança ocorria, tratava-
se frequentemente de um processo de longo prazo, quase invisível. Os agricultores
chineses, respondendo a novas demandas domésticas por produtos como tabaco
e algodão, podiam obter lucros muito maiores do que antes, mas ficavam também
mais vulneráveis às oscilações do mercado. Os que plantavam chá ou produziam
seda estavam, de fato, respondendo à demanda do mercado mundial, e as flutua-
ções dos preços provocavam súbitas e inexpHcáveis oscilações entre prosperidade
e privação. A refinada tecnologia de tecelagem mecânica da seda dos Estados Uni-
dos e Japão exigia maior uniformidade dos fios; para as famílias camponesas que
durante gerações tinham fiado a seda a mão, isso significava um encolhimento do
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 mercado para seus produtos. A tecnologia da imprensa e o aumento do número
de leitores urbanos estimulou o crescimento de revistas e jornais, que começaram
a apresentar comentários políticos e anúncios pagos de produtos de beleza e saúde,
fornecendo uma nova consciência de opções aos indivíduos. O sentimento crescen-
te de que a China era apenas uma terra entre outras começou a levar à visão de
que ela era, portanto, também uma nação entre nações e que nenhuma nação po-
deria sobreviver sem cidadãos comprometidos, tanto homens quanto mulheres. Os
primeiros periódicos impressos da China começaram a defender essas ideias, que
encontraram recepção imediata entre os intelectuais envergonhados e desanimados
pela guerra contra o Japão e os termos do Tratado de Shimonoseki.
Nos anos posteriores à guerra sino-japonesa, disseminou-se uma formulação
que restabelecia a segurança àqueles preocupados com o valor do "autofortaleci-
mento": "O conhecimento chinês devia continuar sendo a essência, mas o conhe-
cimento ocidental devia ser usado para o desenvolvimento prático". Geralmente
abreviada para ti-yong (das palavras chinesasfiSÍI^,"essência" e "uso prático"),
tratava-se de uma posição culturalmente tranqúihzadora numa época de mudanças
ambíguas e amiúde penosas. Ela afirmava que havia, com efeito, uma estrutura
fundamental de valores filosóficos e morais chineses que dava continuidade e sig-
nificado à civilização. Conservando essa crença, a China poderia então se permitir
adotar rapidamente todo tipo de prática ocidental e contratar assessores ocidentais.
Era essa a formulação favorita de Zhang Zhidong, um funcionário confucia-
no que fora uma poderosa voz entre os conservadores belicosos. Zhang coroou uma
notável carreira pública servindo por quase dezoito anos consecutivos como
governador-geral das províncias de Hunan e Hubei. Depois de Li Hongzhang, ele
talvez tenha sido o mais eficiente dos reformadores provinciais. Zhang pressionou
com vigor e sucesso a favor do estabelecimento de uma ferrovia entre Hankou e
Pequim — financiada por empréstimos estrangeiros — e construiu o primeiro grande
complexo de carvão, ferro e aço da China, nas minas de Han-Ye-Ping, no leste
de Hubei. Contudo, continuou a insinuar-se junto à imperatriz regente Cixi e seus
conselheiros através de seus pronunciamentos conservadores sobre a necessidade
de reforma gradual e de suas sonoras declarações sobre os valores essenciais do
sistema ético tradicional confucionista.
Fazendo eco à posição ti-yong de Zhang Zhidong, muitos dos eruditos confu-
cianos mais brilhantes e bem-sucedidos da geração mais jovem ficaram indignados
com os termos do Tratado de Shimonoseki e colaboraram na redação de um longo
memorial ao trono, recomendando enfaticamente a resistência ao Japão e reque-
rendo uma ampla gama de reformas administrativas, industriais e económicas. Es-
ses homens reuniram-se em Pequim para os exames de jinshi da primavera de 1895
e foram coordenados por dois intelectuais de grande inteligência e coragem — Kang
Youwei e Liang Qichao. Kang era um brilhante erudito clássico de 37 anos, da re-
gião de Cantão, que havia conquistado fama mas também atraído críticas por sua
abordagem excêntrica dos ensinamentos confucionistas. Em seus primeiros escri-
tos, Kang utilizara seu amplo conhecimento clássico para tentar provar que Con-
fúcio não resistira à mudança social e que o confucionismo não negava as ideias
básicas de desenvolvimento e progresso humanos. Nisso ele sofria a influência das
230
ideias de confucionismo popularizadas pela primeira vez por eruditos chineses no
início do século xix, ao estudarem os comentários de Gongyang. Liang Qichao,
o segundo intelectual, tinha 22 anos e fora aluno de Kang. Já estava envolvido ati-
vamente em academias provinciais e recém-formadas sociedades nacionais que de-
fendiam um programa acelerado de reforma radical para a China. Apesar de seu
radicaUsmo, ele, tal como Kang, estava em busca de seu grau de jinshi, que conti-
nuava a ser o caminho mais prestigioso para o status de elite.
Influenciado também pelo budismo e de estrutura mental altamente emocio-
nal, Kang Youwei considerava-se o novo sábio capaz de salvar o povo chinês. Suas
visitas a Hongcong e Xangai, onde examinou as manifestações do desenvolvimen-
to técnico e urbano ocidental, combinadas com suas leituras de física, eletricidade
e óptica, convenceram-no da possibilidade de uma verdadeira síntese ti-yong. Liang
compartilhava essa confiança e excitação, e ambos se encheram de satisfação quando
o longo memorial reformista, depois de ser empurrado de repartição em repartição
por burocratas assustados, foi finalmente lido pelo imperador em pessoa. Aos 24
anos, Guangxu estava justamente emergindo da sombra de sua tia Cixi, que parti-
ra em semi-retiro para o palácio de verão reconstruído. Ele tinha forte interesse
em reformas e sensibilizou-se com as palavras de Kang, Liang e os outros candidatos.
O memorial reformista dos candidatos ao jinshi de 1895 levantava muitas ques-
tões que estavam perturbando os intelectuais mais clarividentes da China. O país
precisava de um exército modernizado, escreveram eles, equipado com a artilharia
e as armas de fogo ocidentais mais avançadas. Para desenvolver uma base indus-
trial nacional, a corte deveria se valer da capacidade técnica dos chineses do Sudes-
te asiático. Era preciso aumentar os impostos, desenvolver um sistema bancário
estatal, criar uma rede ferroviária, construir uma frota mercantil e instalar um sis-
tema postal moderno. A China deveria melhorar a quahdade de sua agricultura
através de escolas de treinamento e construir centros para fomentar a inovação in-
dustrial e estimular o tipo de engenhosidade criativa que levava os inventores dos
Estados Unidos a requerer 13 mil patentes por ano. Era preciso desenvolver pro-
gramas de reassentamento em áreas rurais pobres e atrasadas para atrair de volta
milhares de emigrantes chineses produtivos que partiam a cada ano. Anteriormen-
te, apenas rebeldes como o líder dos taipings Hong Ren'gan tinham defendido em
público mudanças tão profundas, mas agora a juventude confuciana mais brilhan-
te da China explorava as mesmas ideias.
Esses jovens com pretensões reformistas tinham feito seus pedidos de mudan-
ça através dos canais tradicionais, mas os efeitos foram insignificantes. O impera-
dor Guangxu, embora parecesse interessado, não tinha poder político real, e os bu-
rocratas conservadores mais antigos providenciaram para que as propostas fossem
devidamente arquivadas. Mas, na década de 1890, as demandas por mudança já
não podiam ser confinadas a esses canais comparativamente ortodoxos e polidos.
Outros reformistas, como o jovem Sun Yat-sen,* tomaram um caminho diferente.
Filho de uma família rural pobre da região de Cantão, Sun não tinha as vantagens
(*) Este é o estilo romanizado em que a forma cantonense do nome de Sun foi sempre escrita.
231
 dc educação e status da família de Kang. Ao contrário, la! como milhares de chine-
ses pobres do Sudeste, alguns de seus familiares linham emigrado durante o século
XIX. Dois tinham morrido na corrida do ouro da Califórnia; outros tinham se fi-
xado no Havai. Ali Sun Yat-sen reuniu-se a um irmão mais velho no início da dé-
cada de 1880 e recebeu educação em escolas missionárias, que o apresentaram a
ideias sobre democracia e governo republicano, bem como ao cristianismo, para
depois se transferir para a escola de medicina, em Hongcong. Um híbrido cultural
com grandes ambições e profundamente alarmado com o destino da China, Sun
ofereceu seus serviços ao governador-geral Li Hongzhang em 1894, como assessor
para ajudar na defesa e desenvolvimento do país. Com a atenção voltada para as
crises na Coreia e outros pontos, Li ignorou-o.
Sun ficou desapontado e frustrado. Os ingleses não consideravam sua instru-
ção suficiente para deixá-lo praticar medicina em seus domínios, nem os chineses
pareciam admirar suas habilidades. A resposta de Sun foi formar uma sociedade
secreta no Havaí, no final de 1894, que ele batizou de Sociedade Reviver a China,
cujo compromisso era derrubar os manchus e estabelecer um novo governante, ou
mesmo uma forma repubMcana de governo. Levantando algum dinheiro com seu
irmão e amigos, mudou-se para Hongcong e, em 1895, tentou associar-se a socie-
dades secretas da região de Cantão para deflagrar um levante mihtar que se espa-
lharia e derrubaria a dinastia. Mal organizado, dificultado por falhas de segurança
e fundos e armas inadequados, o plano foi descoberto pelas autoridades Qing e
os líderes locais executados.
Sun fugiu de Hongcong para o Japão e de lá para San Francisco e depois Lon-
dres. Fixou-se na capital inglesa e começou a ler muito sobre teoria económica e
política ocidental. Seus estudos foram interrompidos em 1896, quando o staff da
legação chinesa em Londres fez uma tentativa desastrada (mas quase bem-sucedida)
de raptá-lo e mandá-lo de volta à China para processá-lo e executá-lo. Sun tornou-
se uma figura famosa quando sua dramática história foi divulgada amplamente pela
imprensa ocidental. Voltando para o Oriente e estabelecendo uma série de bases
no Sudeste asiático e no Japão, Sun continuou a labutar, através de sociedades se-
cretas e de seus próprios confrades juramentados, para dar um golpe miUtar con-
tra os Qing.
Sun Yat-sen encontrou apoio entre chineses inquietos e aventureiros, pouco
fiéis aos Qing e que tinham provado um pouco das oportunidades e riscos da vida
no exterior. Um desses seguidores foi "Charlie" Soong, cujos filhos desempenha-
riam papéis importantes na política chinesa do século xx. Charlie Soong cresceu
numa famíHa de pescadores e comerciantes da ilha de Hainan, no Sul da China.
Depois de deixar a família para viver com parentes em Java, Soong foi para Bos-
ton em 1878, onde se empregou como aprendiz com uma famíha de comerciantes
chineses. Entediado com a vida que levava, fugiu para o mar, ahstou-se como tri-
pulante em um barco americano de repressão ao contrabando e foi finalmente en-
tregue pelo capitão do navio a amigos generosos na CaroHna do Norte que o colo-
caram na escola e o prepararam para ser um missionário cristão. Voltando à China
em 1886, trabalhou pouco tempo como pregador, mas em circunstâncias que jul-
232
gava humilhantes e mal pagas. Em 1892, encontrou um foco para suas energias
empreendedoras e fez uma fortuna substancial imprimindo Bíbhas para os missio-
nários ocidentais. Não demorou para que entrasse na produção industrial de ma-
carrão, usando máquinas ocidentais modernas, e se mudasse para uma confortável
casa em estilo estrangeiro nos arredores de Xangai. A essa altura, através de conta-
tos com sociedades secretas, também começou a injetar dinheiro na organização
ilegal de Sun Yat-sen.
No final da década de 1890, os chineses, conhecendo cada vez melhor os es-
trangeiros, tinham à disposição uma ampla gama de modelos, dos reformistas Meiji
do Japão a George Washington, Napoleão Bonaparte e Pedro, o Grande. Prolife-
ravam pubHcações reformistas e histórias didáticas, exaltando vários pensadores
ocidentais do passado e advertindo a China com os exemplos de países como a Po-
lónia, a Turquia e a índia, que tinham sido respectivamente repartidos, arruinados
economicamente e subjugados poHticamente. Ao mesmo tempo, as potências oci-
dentais renovavam suas exigências de direitos especiais económicos e residenciais
na China — amiúde denominadas "a escalada por concessões" —, que colocavam
os Qing em risco ainda maior. Nesse contexto, o imperador Guangxu, que indiscu-
tivelmente tinha uma visão mais ampla das opções de seu país do que qualquer de
seus predecessores e até estudara inglês, decidiu afirmar sua independência como
monarca e agir em favor de sua terra. Entre junho e setembro de 1898, divulgou
uma série extraordinária de éditos que mereceram o nome de "Reformas dos Cem
Dias". Embora a maioria dos éditos envolvesse propostas já levantadas pelos re-
formadores do autofortalecimento e pelos protestadores de 1895, jamais a iniciati-
va imperial apresentara tal corpo coerente de ideias reformistas.
Guangxu exigia mudanças em quatro áreas principais da vida e do governo.
Para reformar o sistema de exames, ordenou a abolição do formato altamente esti-
lizado conhecido como o "ensaio de oito pernas", que vinha estruturando os exa-
mes havia séculos. Requeria também que boa caligrafia e conhecimento de poesia
não fossem mais critérios para a classificação dos candidatos; em vez disso, exigiu
o uso de mais questões relacionadas com problemas práticos governamentais. Tam-
bém na área da educação, ordenou a elevação de nível da escola de Pequim e a
adição de uma escola de medicina, a conversão das velhas academias (e de santuá-
rios rurais desnecessários) em escolas modernas que oferecessem ensino tanto chi-
nês como ocidental, e a abertura de institutos técnicos para o estudo de mineração,
indústria e ferrovias. Na área mais ampla do desenvolvimento económico, o im-
perador ordenou que os funcionários locais coordenassem reformas no comércio,
indústria e agricultura e que aumentassem a produção de chá e seda para exporta-
ção. Criaram-se novas repartições em Pequim para supervisionar esse crescimen-
to, assim como minas e ferrovias, e o Ministério da Fazenda deveria designar um
orçamento geral anual para o país como um todo.
Guangxu voltou-se também para o fortalecimento das forças armadas. Muito
do dinheiro necessário à marinha fora para a reconstrução do palácio de verão da
imperatriz viúva, o que incluiu a construção de um "barco" de mármore para o
deleite de seus olhos. Agora, uma frota de 34 vasos de guerra deveria ser reunida.
233
 através de compra ou construção. O treinamento militar deveria ser padronizado
segundo o modelo ocidental. Era preciso melhorar o treinamento e a disciplina das
milícias locais. O imperador chegou a prometer que levaria a imperatriz Cixi a Tian-
jin para passar em revista os novos exércitos. Por fim, ele tentou fortalecer a bu-
rocracia, tornando-a mais eficiente e simplificando seus procedimentos. Procurou
abolir as sinecuras mais óbvias e remover alguns dos funcionários para postos nas
novas repartições de planejamento económico.
Na implementação desse programa de reformas foram feitas várias mudanças
importantes de pessoal. Li Hongzhang vinha perdendo influência desde o desastre
da guerra contra o Japão e foi removido para o Zongli Yamen. O próprio tutor
de Guangxu foi demitido por ser cauteloso em relação à escala das reformas. Vá-
rios pensadores reformistas, entre eles Kang Youwei, foram nomeados secretários
no Grão-Conselho ou no Zongli Yamen, a fim de que participassem das discussões
importantes e enviassem memoriais ao imperador através de seus superiores. Kang
ganhou uma audiência imperial e submeteu duas obras de análise histórica ao im-
perador: uma sobre o destino da Polónia, outra sobre os triunfos das reformas ja-
ponesas da Restauração Meiji. Mas muitos funcionários graduados, vendo com olhar
deformado o programa de reformas de Guangxu, consideraram-no prejudicial ao
futuro do país e destruidor dos verdadeiros valores intrínsecos da China. Parece
que Guangxu se enganou ao pensar que sua tia Cixi apoiaria sua visão de uma Chi-
na nova e o ajudaria a vencer a oposição. Na verdade, ela estava perturbada por
algumas das mudanças propostas que ameaçavam enfraquecer a casa reinante Qing
e preocupava-se com o fato de que a facção que apoiava Guangxu parecesse peri-
gosamente subordinada a pressões e influências de franceses e ingleses.
Embora os indícios sejam contraditórios, parece que alguns reformistas temiam
que pudesse ocorrer um golpe contra o imperador e, em consequência, aproximaram-
se de alguns generais, tentando obter-lhes o apoio. O tiro saiu pela culatra: em 19
de setembro de 1898, Cixi ficou sabendo dessa tentativa e voltou subitamente para
a Cidade Proibida. Dois dias depois, lançou um édito afirmando que o imperador
lhe pedira para reassumir o poder. Colocou Guangxu sob detenção no palácio e
prendeu seis de seus assessores supostamente radicais. Por sua ordem, foram exe-
cutados antes mesmo de ser processados sob vagas acusações de conspiração, para
a consternação do partido reformista e de muitos estrangeiros na China. Kang You-
wei deixara Pequim em missão pouco antes do golpe, mas seu irmão mais moço
estava entre as vítimas. Com sua cabeça a prémio, Kang foi levado por um navio
britânico para a segurança em Hongcong, de onde foi para o Japão e, depois, para
o Canadá. Liang Qichao também fugiu da China e começou uma vida de exílio.
Os sonhos deles de um programa coerente de reformas, a ser coordenado pelo im-
perador em nome de uma China nova, tinham acabado em desgraça.
TRÊS FACES DO NACIONALISMO ' - '
Durante 1898 e 1899, como parte da onda geral de expansão imperialista, as
potências estrangeiras intensificaram suas pressões e abusos sobre a China. Os ale-
234
mães usaram o pretexto dc um ataque a seus missionários para ocupar Qingdao,
cidade portuária de Shandong, e reivindicar direitos sobre as minas e ferrovias das
proximidades. Os ingleses tomaram o porto de Weihaiwei, ao norte da península
de Shandong (onde a frota chinesa fora afundada pelos japoneses três anos antes)
e forçaram os Qing a conceder o arrendamento por 99 anos de uma grande área
de terra fértil na península de Kowloon, ao norte de Hongcong, que passaram a
chamar de "Os Novos Territórios". Os russos aumentaram sua presença na Man-
chúria e ocuparam Lúshun, onde ergueram fortificações maciças. Os franceses rei-
vindicaram direitos especiais em Yunnan, Guangxl e Guangdong, províncias fron-
teiriças de Tonkin, e sobre a ilha de Hainan. Os japoneses, já senhores de Taiwan,
continuaram a pressionar a Coreia e intensificaram sua penetração económica na
China central. As tentativas dos Estad ^s Unidos de declarar uma política de "por-
ta aberta" para a China, sob cujos termos todos os países concordariam em não
negar acesso aos outros em suas esferas de influência, poderiam, através do efeito
moral, diminuir o retalhamento da China, mas não havia sanções para fazer valer
essa política. Alguns chineses começaram a temer — com razão — que seu país
estivesse à beira de ser "cortado em fatias como um melão".
Nessa atmosfera de hostilidade e medo, uma força vigorosa começou a se de-
senvolver na China. As muitas faces que mostrou podem ser reunidas sob o nome
de nacionalismo, o que, para os chineses, compreendia uma nova consciência de
suas relações com as forças estrangeiras e os manchus. Supunha também a percep-
ção correspondente do povo chinês como uma unidade que deveria ser mobilizada
para sua própria sobrevivência. Pode-se ver o crescimento desse fenómeno em três
exemplos: o levante dos boxers de 1900, a pubhcação de O exército revolucionár
de Zou Rong, em 1903, e o boicote antiamericano de 1905.
Os Boxers Unidos em Probidade, como se autodenominavam, começaram a
surgir como uma força no noroeste de Shandong em 1898. Seu nome e os ritos mar-
ciais que praticavam vinham de uma variedade de sociedades secretas e unidades
de autodefesa que tinham se espalhado no sul de Shandong nos anos anteriores,
principalmente em resposta às provocações de missionários ocidentais e seus con-
versos chineses. Alguns boxers acreditavam que eram invulneráveis a espadas e ba-
las e recorriam a um panteão eclético de espíritos e protetores da religião, roman-
ces e teatro populares. Embora não tivessem uma liderança unificada, recrutavam
lavradores e outros trabalhadores, desesperados diante das enchentes desastrosas,
a que se seguiram secas, em Shandong; começaram a exigir o fim dos privilégios
gozados por chineses convertidos ao cristianismo e a atacar tanto os conversos quanto
os missionários cristãos. No começo de 1899, já tinham destruído ou roubado um
bom pedaço de propriedade dos chineses cristãos e haviam matado vários conver-
sos na região fronteiriça de Shandong-Hebei, alarmando seriamente os estrangei-
ros, que exigiram que o governo reprimisse os boxers e seus partidários. Os boxers
responderam com um refrão popular — "Reviver o Qing, destruir o estrangeiro"
— que foi logo ampliado para uma diatribe mais detalhada:
235
 Há muitos conversos cristãos
Que perderam o Juízo,
Eles iludem nosso imperador,
Destroem nossos deuses.
Derrubam nossos templos e altares,
Proíbem incensos e velas,
Rejeitam tratados de ética,
E ignoram a razão.
Você não percebe que
O alvo deles é engolir a nação?^
No ano seguinte, as diatribes transformaram-se em versos de pé quebrado de
fácil memorização, alguns dos quais eram pendurados nas paredes de altares dos
boxers ou nas esquinas:
Seus homens são imorais, " ' :
Suas mulheres, desprezíveis são.
Para os demónios, é o incesto
O modelo para a procriação.
Não cai chuva dos Céus,
O solo está seco e crestado. ' :
E tudo porque as igrejas
Têm o céu engarrafado.
Quando os demónios de fora
Forem expulsos até o fim,
O Grande Qing, unido, junto,
À nossa terra trará paz enfim.^
Na primavera de 1900, ano que seus líderes haviam previsto como o da aurora
de uma nova idade religiosa, os boxers já tinham se expandido de forma impres-
sionante. Cerca de 70% deles eram camponeses jovens, do sexo masculino. O resto
vinha de uma ampla mistura de itinerantes e artesãos: ambulantes, homens de ri-
quixá, carregadores de cadeirinhas, barqueiros de canais, afiadores de facas, bar-
beiros e artesãos do couro; alguns eram soldados dispensados e contrabandistas
de sal. Juntaram-se a eles grupos femininos de boxers, dos quais o mais importan-
te era o Lanternas Vermelhas Cintilantes, composto por meninas e mulheres entre
doze e dezoito anos de idade, cujos poderes femininos eram invocados para lutar
contra a "poluição" das mulheres chinesas cristãs, que supunham ser corrosiva para
a força dos homens boxers. A mais conhecida dessas mulheres era "Lotus" Huang,
filha de um barqueiro pobre e ex-prostituta, a qual acreditavam que possuía pode-
res espirituais especiais. Outras mulheres foram reunidas em equipes chamadas de
Lanternas das Panelas, que davam de comer aos soldados boxers de panelas que
supostamente se reenchiam por mágica após cada refeição.
Ainda sem qualquer liderança coordenada, grupos de boxers começaram a en-
trar em Pequim e Tianjin no começo de junho. Percorrendo as ruas vestidos com

236 A China entrou em um período de mudanças ambíguas na segunda metade do século xix. Estas
fotos de John Thomson (ambas c. 1868) sugerem as tensões entre velhos e novos hábitos. No alto-.
Altar do Céu ao lado de Fuzhou. Embaixo: arsenal de Nanquim.
uniformes variegados de turbanles vermellios, pretos ou amarelos e perneiras ver-
melhas, levando amuletos brancos nos pulsos, eles hostihzaram — e, em alguns
casos, mataram — chineses conversos e até mesmo quem possuía objetos estran-
geiros — luminárias, relógios ou fósforos. Os boxers mataram também quatro en-
genheiros franceses e belgas e dois missionários ingleses, arrancaram trilhos de fer-
rovias, queimaram as estações e cortaram as linhas telegráficas. As autoridades
provinciais oscilaram, assim como a corte Qing, às vezes protegendo os estrangei-
ros e enfrentando os boxers, outras vezes parecendo tolerar, ou mesmo aprovar
as demonstrações de "lealdade" xenofóbica. As potências estrangeiras tinham man-
dado por trem quatrocentos soldados a mais para Pequim no final de maio e início
de junho para proteger seus cidadãos. Mas depois que os trilhos foram destruídos,
um outro reforço ocidental de 2 mil homens tentou forçar seu caminho de Tianjin
a Pequim. Foram repelidos pelos boxers, sofrendo perdas pesadas.
Em 17 de junho, os ocidentais tomaram os fortes de Dagu às forças dos Qing,
a fim de dar cobertura para o desembarque de tropas, caso irrompesse uma guerra
em larga escala. Naquele mesmo dia, mas antes que a notícia da queda dos fortes
chegasse a Pequim, a imperatriz Cixi teve uma reunião de emergência com os prín-
cipes manchus e funcionários mais graduados. Suas palavras, anotadas por um dos
presentes, refletem sua angústia e dúvida sobre a questão de até que ponto confiar
nos boxers; "Hoje a China está extremamente debilitada. Só podemos contar com
os corações e as mentes do povo. Se nós os deixarmos de lado e perdermos o cora-
ção do povo, o que poderemos usar para sustentar o pais?".'^ (Da mesma forma,
em 1848, o imperador Daoguang cismara que se pudesse manter apenas a lealdade
de seu povo seria sempre possível dar conta dos "bandidos estrangeiros".) Dois
dias depois, a notícia da batalha nos fortes de Dagu chegou a Pequim, o ministro
alemão foi morto na rua, quando se dirigia para uma entrevista no Zongli Yamen,
e forças dos boxers cercaram as legações estrangeiras. Elogiando então os boxers
como uma milícia leal, em 21 de junho de 1900 a imperatriz lançou uma "declara-
ção de guerra" às potências estrangeiras, em que afirmava;
Os estrangeiros foram agressivos conosco, infringiram nossa integridade territo-
rial, pisotearam nosso povo [...] Eles oprimem nosso povo e blasfemam contra nos-
sos deuses. A gente comum sofre muito nas mãos deles e deseja vingança. Sendo
assim, os bravos seguidores dos boxers vêm queimando igrejas e matando cristãos.'
Com o apoio agora declarado de Cixi e das altas autoridades manchus, os bo-
xers lançaram uma série de ataques aos estabelecimentos missionários e aos estran-
geiros. Os ataques foram particularmente violentos em Shanxi, Hebei e Henan, com
a pior atrocidade ocorrendo em Shanxi. Ah, o governador manchu Yuxian cha-
mou os missionários e suas famílias para Taiyuan, capital da província, prometen-
do protegê-los dos boxers. Mas quando eles chegaram mandou matar todos os 45
homens, mulheres e crianças.
Em Pequim, o corpo diplomático estrangeiro e suas famílias abrigaram-se nu-
ma área de defesa composta sobretudo pelas residências de britânicos, russos, ale-

237
 LIAONING
mães, japoneses e americanos, fortificada às pressas com barricadas de móveis, sa-
cos de areia, troncos de madeira e colchões. Se os boxers estivessem mais bem or-
ganizados ou um número maior de soldados regulares tivesse participado do ata-
que, os ocidentais teriam sido todos mortos. Mas o ataque não foi efetuado com
força coordenada, os exércitos modernizados dos Qing ficaram de fora da refrega
e os poderosos governadores-gerais da China central, como Zhang Zhidong, pro-
curaram ganhar tempo e se recusaram a envolver suas tropas recém-adestradas no
conflito.
Em 4 de agosto de 1900, uma coluna expedicionária de 20 mil soldados, com-
posta principalmente de japoneses, russos, britânicos, americanos e franceses, e
operando sob uma estrutura de comando conjunto complexa, deixou Tianjin. A
resistência dos boxers logo se esboroou, comandantes essenciais dos Qing se suici-
daram e as tropas ocidentais entraram em Pequim e levantaram o cerco dos boxers
em 14 de agosto. Enquanto elas chegavam do Leste, Cixi e seu sobrinho Guangxu
fugiam para Oeste, estabelecendo uma capital temporária em Xi'an, cidade do va-
le do rio Wei. Depois de uma campanha demorada e por vezes encarniçada, con-
duzida primariamente por uma nova força expedicionária de soldados alemães, e
de negociações complexas com a corte fugitiva e Li Hongzhang (uma vez mais in-
dispensável como mediador), um tratado formal de paz conhecido como o Proto-
colo dos Boxers foi assinado em setembro de 1901.
238
Nesse protocolo, os Qing concordavam em erigir monumentos à memória dos
mais de duzentos ocidentais mortos, suspender todos os exames por cinco anos nas
cidades onde tinham ocorrido atrocidades contra estrangeiros, proibir todas as im-
portações de armas por dois anos, permitir a colocação de guardas estrangeiros
permanentes e de armas defensivas para proteger o bairro das legações para sem-
pre, transformar o Zongli Yamen em um Ministério das Relações Exteriores ple-
no, e executar os principais partidários dos boxers, inclusive o governador Yuxian,
de Shanxi. Eles também concordaram em pagar uma indenização por danos à vida
e à propriedade dos estrangeiros de 450 milhões de taéis (cerca de 67 milhões de
libras esterlinas ou 333 milhões de dólares ao câmbio da época), uma quantia as-
sombrosa num momento em que a receita total dos Qing era estimada em cerca
de 250 milhões de taéis anuais. Os chineses deveriam pagar a indenização em ouro,
numa escala ascendente, com 4% de juros, até que o débito fosse amortizado, em
31 de dezembro de 1940. Com todos os juros incluídos, o pagamento total da Chi-
na ao longo do período de 39 anos chegaria a quase 1 bilhão de taéis (exatamente
982 238 150).
Em janeiro de 1902, a imperatriz e seu sobrinho voltaram de trem para Pe-
quim, onde Li Hongzhang acabara de morrer de doença, aos 78 anos de idade. Ci-
xi restabeleceu sua residência na Cidade Proibida, que por mais de um ano fora
o quarlel-general das forças estrangeiras. No final daquele mês, em um gesto apa-
rentemente genuíno de reconciliação, ela recebeu em pessoa os membros mais gra-
duados do corpo diplomático estrangeiro em seu palácio; em 1? de fevereiro, em
outro ato sem precedentes, deu uma recepção para as damas. Mas o imperador
Guangxu ainda não tinha permissão para desempenhar um papel político aberto.
Os dois reformistas exilados, Sun Yat-sen e Kang Youwei, tentaram explorar
a confusão causada pelo levante dos boxers, desfechando ambos seus próprios ata-
ques aos Qing durante 1900. O de Kang ocorreu em Hubei e Anhui, em agosto,
e o de Sun, em Huizhou, a leste de Cantão, em outubro. O objetivo de Kang era
restaurar Guangxu no poder como monarca constitucional, enquanto Sun queria
fundar uma república chinesa. Nenhum dos planos estava bem financiado e coor-
denado e ambos foram reprimidos pelas tropas dos Qing sem dificuldades.
As formas de protestos voltaram então aos manipuladores da palavra escrita.
O mais articulado deles revelou-se ser um estudante de dezoito anos chamado Zou
Rong, cuja obra fornece o segundo estudo de caso das novas formas de nacionalis-
mo. Zou Rong fazia parte do número crescente de jovens chineses que, após a guerra
sino-japonesa, foram estudar no Japão; impressionados com o poderio do vizinho,
esses estudantes queriam observá-lo de perto. Zou ficou consternado diante da in-
capacidade dos Qing de reagir com criatividade naquele tempo de crise. Tal como
certas sociedades secretas e os líderes dos taipings, ele escolheu responsabilizar os
manchus, mas, ao contrário daqueles rebeldes anteriores, foi além dos slogans e
redigiu uma cuidadosa e completa acusação das fraquezas dos manchus. Por ironia,
ele pôde fazer isso porque, ao voltar do Japão, fora morar na área de concessão
aos estrangeiros de Xangai, onde, segundo acordos jurisdicionais complexos sobre
"extraterritorialidade", os residentes estavam sujeitos às assim chamadas cortes
239
"mistas", dominadas por ocidentais com prática jurídica. Esses residentes podiam
escrever e disseminar seus escritos com uma liberdade impossível para os que vi-
viam em cidades comuns, controladas pela polícia e pelos magistrados dos Qing.
Zou Rong reuniu suas ideias antimanchus em um livrete intitulado O exército
revolucionário (1903). Em linguagem retumbante, conclamava seus compatriotas
chineses a rejeitar o jugo manchu e tomar nas próprias mãos seu destino. Os chine-
ses tinham se tornado uma raça de escravos, declarava Zou, e homens como Zeng
Guofan, destruidor dos taipings, longe de heróis, eram os lacaios dos manchus e
os carrascos de seus conterrâneos. Os chineses deviam aprender com os exemplos
ocidentais que é possível derrubar a tirania interna e Hbertar um país da domina-
ção externa se o povo estiver consciente de sua unidade e lutar em conjunto. Como
escreveu Zou:
Eu não invejo ter de repetir sempre que internamente somos os escravos dos man-
chus e sofremos com a tirania deles, externamente estamos sendo atormentados
pelas Potências, e estamos duplamente escravizados. A razão por que nossa sagra-
da raça Han, descendente do Imperador Amarelo, deveria apoiar a independência
revolucionária procede precisamente da questão de se nossa raça vai fracassar e
ser exterminada.*
E exortava dramaticamente seus compatriotas a retomar seu destino:
Vocês possuem governo, dirijam-no vocês mesmos; vocês têm leis, mantenham-
nas vocês mesmos; vocês têm indústrias, administrem-nas vocês mesmos; vocês
possuem forças armadas, comandem-nas vocês mesmos; vocês possuem terras,
cuidem delas vocês mesmos; vocês têm recursos inexauríveis, explorem-nos vocês
mesmos. Vocês estão qualificados de todas as formas para a independência revolu-
cionária.^
Esses chamamentos provocantes, inseridos no meio das outras exigências de
Zou Rong por reformas tais como assembleias eleitas, igualdade de direitos para
as mulheres e garantias de liberdade de imprensa e reunião, compunham uma mis-
tura empolgante. O panfleto disseminou-se amplamente e Sun Yat-sen, em parti-
cular, usou-o como meio de superar o mais cauteloso Kang Youwei, distribuindo
milhares de exemplares a seus partidários em San Francisco e Cingapura. Os fun-
cionários dos Qing pressionaram muito as autoridades ocidentais de Xangai para
que entregassem Zou e os escritores e jornalistas que tinham colaborado na publi-
cação e circulação de sua obra. Os ocidentais não concordaram e, em 1904, Zou
foi julgado pela Corte Mista de Xangai pela acusação de distribuir escritos infla-
matórios. Ali foi condenado a dois anos de prisão, ao passo que uma corte dos
Qing mandaria rapidamente executá-lo. Por ironia cruel, Zou, poupado de uma
morte humilhante e dolorosa nas mãos dos Qing, ficou doente na prisão e morreu
no início de 1905. Embora tivesse apenas dezenove anos, conseguira deixar uma
marca extraordinária em seu tempo.
Durante o período do julgamento de Zou, outra onda de protesto contra os
abusos dos estrangeiros estivera crescendo. Desde a aprovação nos Estados Unidos
240
das leis de exclusão antichinesas de 1882 e da ratificação delas por tratado, os ame-
ricanos tinham realizado numerosos atos de hostilidade contra os imigrantes chi-
neses. Os oficiais da imigração do Departamento do Tesouro invadiram casas de
chineses em algumas cidades americanas, sob o pretexto de examinar documentos;
intimidações e deportações eram comuns; e a chegada de chineses em portos dos
Estados Unidos — inclusive de visitantes de status, como as delegações convidadas
para a Exposição de St. Louis, em 1904 — eram tratadas com grosseria. O rancor
cresceu quando a política discricionária dos americanos foi estendida para os chi-
neses residentes no Havaí e nas Filipinas.
Alguns chineses tentaram evitar essas complicações usando documentos fal-
sos e foram repelidos nos portos; outros, mais sutis, usavam passaportes de outros
países, adquiridos ilegalmente, mas tecnicamente váhdos. Em 1904, por exemplo,
quando Charhe Soong mandou sua filha mais velha Ailing aos Estados Unidos pa-
ra estudar, ela viajou com um passaporte português, concedido graças à alegada
residência de seu pai em Macau. Embora ela, de início, tenha sido proibida dc
desembarcar em San Francisco e forçada a passar dias sob detenção no navio, as
pressões de amigos e de missionários locais conseguiram finalmente que ela fosse
admitida em solo americano.
Em 1905, surgia um novo tipo de reação na China, constituindo uma terceira
expressão de sentimento nacionalista. O recém-criado Ministério das Relações Ex-
teriores, instado pelo embaixador da China em Washington, ficou tão escandaliza-
do com as histórias de maus-tratos aos chineses que se recusou a renovar o tratado
de imigração com os Estados Unidos. Para fortalecer a posição do país, comer-
ciantes de Cantão, Xangai, Xiamen, Tianjin e outros lugares declararam um boi-
cote total aos produtos americanos em junho de 1905. Já houvera boicotes desse
tipo antes, com destaque para o dos comerciantes de Hankou, na década de 1880,
mas nunca tão amplo e ideologicamente definido. Embora o governo americano
tenha protestado e algumas autoridades locais dos Qing intervindo, especialmente
nos portos do Norte da China, o boicote foi eficaz em muitas cidades, em particu-
lar em Xangai e Cantão. A corte Qing acabou cedendo às pressões americanas e
lançou uma proclamação contra o boicote; mas uma vez que as cópias da procla-
mação foram colocadas de cabeça para baixo em muitas cidades, os boicotadores
supuseram, com razão, que a corte comportava-se com ambivalência. Apoiados
por fundos de comunidades chinesas da Califórnia e do Oregon e pelo entusiasmo
patriótico dos estudantes chineses — muitos recém-chegados dos estudos no Japão
—, os comerciantes negavam-se a trabalhar com cigarros, algodão, querosene e fa-
rinha de origem americana. Somente no final de setembro a solidariedade deles ra-
chou e o comércio começou a se normalizar. Embora não fosse, na aparência, tão
dramática quanto a violência dos boxers e a retórica feroz de Zou Rong, essa ten-
tativa de reagir à humilhação nacional através de uma ação económica coordenada
marcou um novo tipo de movimento popular na história chinesa.
241
FORÇAS EMERGENTES
O vigor e a complexidade crescente do novo nacionalismo chinês eram apenas
um dos aspectos de uma nova busca de identidade que atravessou toda a sociedade
no final da dinastia Qing. As pressões económicas, políticas, educacionais e sociais
eram sentidas por praticamente todos na China, talvez com a exceção dos que ain-
da viviam presos aos padrões rurais tradicionais, longe das cidades. Mas mesmo
esses lavradores pobres aprendiam que os impostos tinham de subir para pagar pe-
las reformas e se reuniam em protestos em muitos lugares do país, onde eram re-
primidos por tropas ou agentes das recém-crladas forças poHciais. Entre aqueles
que outrora seriam ignorados, mas que agora faziam suas vozes serem ouvidas ca-
da vez mais, estavam os estudantes no exterior, as mulheres, os comerciantes e os
trabalhadores urbanos.
Depois do cancelamento da missão estudantil oficial em Hartford, Connecti-
cut, uma nova leva de estudantes chineses partiu para a Europa na década de 1880,
especialmente para a França e a Grã-Bretanha. Um pioneiro desse movimento foi
Yan Fu, que estudara na escola naval de Fuzhou na década de 1860 e fora manda-
do para a Inglaterra em 1877, onde freqiientou as escolas navais de Portsmouth
e Greenwich. Ali estudou a tecnologia naval britânica, que ainda era a, melhor do
mundo, apesar da forte concorrência dos alemães. Também passou muito tempo
examinando as práticas legais do Ocidente e iniciou uma ampla leitura da teoria
política ocidental. Nesse decorrer, desenvolveu um interesse pelos assim chamados
"darwinistas sociais", que procuravam apHcar a teoria da evolução das espécies
de Darwin à sociedade.
Tais teorias, que falavam da "sobrevivência dos mais aptos" e da necessidade
de adaptação criativa se as espécies quisessem evitar a extinção, pareciam ter, aos
olhos dos chineses, uma relevância melancólica para o destino da nação deles. As
traduções que Yan Fu fez dessas obras tiveram ampla circulação. Após seu retorno
à China, em 1879, Yan trabalhou também como administrador na academia naval
de Beiyang, de Li Hongzhang, tornando-se superintendente em 1890. Apesar de
seus muitos afazeres, começou uma série de traduções de obras influentes como
Evolução e ética, de Thomas Huxley, Sobre a liberdade, de John Stuart Mill, O
espírito das leis, de Montesquieu, e A riqueza das nações, de Adam Smith. Embo-
ra ficasse amiúde deprimido e não tivesse muito sucesso em sua carreira profissio-
nal na academia de Beiyang — a depressão extrema levou-o ao vício do ópio —,
Yan conseguiu apresentar uma gama eletrizante de ideias aos estudantes da China.
Em 1905, quando a corte dos Qing aboliu o sistema tradicional de exames con-
fucianos, abriu-se o caminho para uma carreira académica e intelectual e surgiram
novas opções para a juventude chinesa. O jovem Zhou Shuren, que se tornaria o
mais famoso contista da China, sob o pseudónimo de Lu Xun, foi engolfado por
essas novas correntes. Educado inicialmente em escolas confuclanas locais de Zhe-
jiang, Lu Xun leu as obras darwinistas de Yan Fu no final da adolescência e parti-
cipou depois do grande êxodo de estudantes para o Japão, que se tornara um pólo
de atração para a juventude chinesa. Tão mais próximo e mais barato que os Esta-
242
dos Unidos e a Europa, lendo uma escrita comum e não tão distante culturalmente
em vestimentas e alimentação, o Japão oferecia um modelo atraente depois que
derrotara a China, em 1894, e se tornara ainda mais sedutor depois que esmagara
as forças russas em Lúshun, em 1904. A maneira como os japoneses tinham conse-
guido enxertar uma estrutura constitucional no sistema imperial interessava pro-
fundamente os jovens chineses com ideias reformistas. As escolas de direito e me-
dicina, as academias militares, os departamentos de ciência política e economia do
Japão, tudo parecia oferecer uma nova esperança ao chineses, em um momento
em que a tradicional "essência" da China dava sinais de ficar cada vez mais frágil
diante do poder arrasador do Ocidente.
Foi enquanto estudava medicina no Japão, em 1905, que Lu Xun ficou choca-
do com um diapositivo que mostrava os japoneses triunfantes executando um su-
posto traidor chinês, em meio a um grande círculo de chineses apáticos. Resolveu
então desistir da medicina e concentrar-se na hteratura, a qual, acreditava ele, po-
deria chocar os chineses e conscientizá-los de sua situação. Lu Xun achava que en-
quanto a vida cultural e espiritual da China estivesse em tal caos, não haveria sen-
tido em se preocupar com a saúde dos corpos dos chineses. Começou então um
programa de traduções para o chinês de obras importantes do realismo social da
Europa e da Rússia, para que os estudantes pudessem compreender as grandes ques-
tões que tinham dominado as outras partes do mundo na segunda metade do sécu-
lo XIX.
Os milhares de estudantes chineses no Japão só podiam ser controlados super-
ficialmente, se tanto, pelas autoridades Qing, embora muitos fossem sustentados
por estipêndios governamentais e pudessem teoricamente ser chamados de volta por
comportamento inadequado. Entre suas fileiras enérgicas e entusiasmadas, Sun Yat-
sen encontrou recrutas prontos para suas organizações anti-Qing e, em 1905, ele
aliou essas organizações a vários outros grupos para formar a "Aliança Revolu-
cionária" (Tongmeng hui). A Aliança tentava infiltrar seus membros estudantis de
volta na China, uma vez terminada a educação deles, para trabalhar por uma even-
tual insurreição militar. A ideologia dela era uma mistura das ideias republicanas
de Sun — desenvolvidas durante seu período de estudos na Europa e em leituras
posteriores — e teorias socialistas do nivelamento do imposto territorial e da ne-
cessidade de controlar o desenvolvimento capitalista. O chamamento atrevido ao
ativismo revolucionário de Sun tornava-se paulatinamente mais irresistível do que
a defesa cautelosa da monarquia constitucional e da proteção do imperador Guangxu
advogada por Kang Youwei.
Entre os estudantes no Japão havia muitas moças e isso marcou uma mudan-
ça drástica na vida política e social da China. Embora alguns chineses "revolucio-
nários" ainda levassem suas concubinas de pés amarrados para o Japão, muitas
jovens independentes estavam, com o apoio de seus próprios pais e irmãos, desa-
tando os pés e lutando para obter uma educação adequada, ou mesmo superior.
Elas encontravam apoio moral e social em irmandades que prometiam abrigo e ajuda
económica se permanecessem solteiras, em grupos de homens que se comprome-
tiam a casar com mulheres de "pés grandes" e em escolas que estimulavam ativa-
243
 mente nelas a busca de conhecimento. Essas mulheres encontravam modelos em
figuras ocidentais famosas como Joana D'Arc, Madame Roland, Florence Nigh-
lingale e Catherine Beecher, cujas biografias foram traduzidas, publicadas e repu-
blicadas em revistas. Havia também imagens violentas, como a da jovem radical
russa Sofia Perofskaya que, ao assassinar o czar Alexandre ii, embora tenha sido
presa e executada, tornou-se um modelo para a intransigência e coragem feminina
em face dos desmandos autocráticos.
Embora ainda em pequena escala — em 1909, apenas cerca de 13 mil meninas
freqiientavam escolas em toda a China, e umas poucas centenas no exterior —, pa-
ra essas jovens chinesas esse foi um período de desenvolvimento constante das ha-
bilidades literárias e de reflexão cautelosa sobre as fraquezas da China e as restri-
ções da vida familiar. Mas um exemplo vivido da realização literal dos objetivos
femininos mais revolucionários foi oferecido por Qiu Jin, uma jovem da mesma
parte de Zhejlang que o escritor Lu Xun. Obrigada a casar bem jovem, por arranjo
dos pais, com o filho de um comerciante de quem não gostava, ela lhe deu dois
filhos e depois abandonou subitamente a família e foi sozinha de barco a vela para
o Japão, em 1904. Ali, sustentando-se com a venda de suas jóias e ajudada por
amigos, começou a estudar vários assuntos ocidentais e a falar pubHcamente sobre
a necessidade de reformas.
Atraída para a órbita da Aliança Revolucionária, Qiu Jin gostava de usar rou-
pas mascuhnas de vez em quando e fazer experiências com explosivos. Voltando
à China em 1906, tornou-se uma professora radical numa pequena escola de Zhe-
jiang, mantendo contatos com adeptos da Aliança e encontrando-se com membros
das sociedades secretas locais. Praticando amiúde exercícios militares e montando
a cavalo como homem, atraiu inevitavelmente críticas dos habitantes mais conser-
vadores, mas conseguiu manter-se no posto. Foi em sua escola, em julho de 1907,
juntamente com um amigo revolucionário em Anhui, que ela tentou deflagrar um
levante contra os Qing. As tropas locais capturaram-na sem maiores dificuldades,
e após um julgamento sumário ela foi executada. Uma vida curta, infeliz, vã, po-
dem ter dito alguns; contudo, o exemplo que deixou foi de coragem e iniciativa
diante das profundas frustrações nacionais, e outras mulheres chinesas prossegui-
riam vigorosamente na luta pelas liberdades políticas.
O mundo dos negócios na China também estava agitado nesse período. Já dis-
semos que a política de autofortalecimento procurara expandir a base económica
do país através da criação de "companhias supervisionadas pelo governo e admi-
nistradas por comerciantes" e que algumas delas obtiveram êxito em campos co-
mo o da mineração e da marinha mercante. Mas os problemas de sobreposição de
jurisdição e falta de capital retardaram esses esforços e, na década de 1890, come-
çara a haver maior interesse nas assim chamadas "companhias de administração
conjunta de funcionários e comerciantes". Muitas dessas iniciativas foram incenti-
vadas por funcionários de Xangai, ou pelo governador-geral Zhang Zhidong, em
Hunan-Hubei, entre elas várias fiações e tecelagens, com capital de 500 mil taéis
ou mais. Os fundos foram levantados por funcionários abastados agindo em con-
junto com comerciantes e membros da pequena nobreza local, embora, em alguns
244
casos, os comercianles fossem essencialmcnle obrigados a "contribuir" pelas au-
toridades provinciais. A partir desse nível, bastava um passo para que alguns fun-
cionários provinciais começassem a agir como empresários independentes, ou que
algumas figuras abastadas desenvolvessem suas próprias indústrias sem apoio es-
tatal. Nie, genro de Zeng Guofan, foi um dos funcionários graduados que investi-
ram nos novos cotonifícios de Xangai; por sua vez, seus dois filhos, que falavam
inglês, tornaram-se capitahstas sem deter cargo púbUco, obtendo lucros de mais
de 100 mil taéis em 1904.
Uma vez que a corte, a burocracia de Pequim, os funcionários provinciais e
os comerciantes tinham cada um seus próprios interesses e clientela, revelou-se im-
possível desenvolver o tipo de política económica coordenada que obtivera tanto
sucesso na Restauração Meiji do Japão. Mas alguns líderes da corte acenaram nes-
se sentido. O príncipe Chun, por exemplo, irmão do imperador Guangxu, encontrou-
se com muitos comerciantes chineses no exterior durante sua jornada diplomática
para pedir desculpas aos governos ocidentais pelos massacres dos boxers. Ao vol-
tar à China, tornou-se um forte defensor da intervenção económica vigorosa do
Estado. Em parte por sua sugestão, os Qing criaram em 1903 um Ministério do
Comércio (Shangbu), de nível equivalente ao dos seis ministérios antigos e do novo
Ministério das Relações Exteriores. O Shangbu tinha quatro repartições principais:
uma para tratar do comércio (inclusive patentes e monopólios), uma para agricul-
tura e silvicultura, uma para indústria e a quarta para "auditoria" (que incluía áreas
como bancos, feiras de negócios, pesos e medidas e litígios comerciais).
Ao mesmo tempo, o Estado estimulava a formação de câmaras de comércio,
na esperança de que elas pudessem facilitar o controle centralizado sobre os comer-
ciantes. Os Qing aparentemente não se deram conta de que essas câmaras também
poderiam dar aos seus participantes um senso maior de iniciativa e autonomia. Reu-
nindo membros das guildas comerciais tradicionais, das instituições bancárias lo-
cais e novos empresários abastados, a Câmara do Comércio de Xangai foi orga-
nizada em 1903, mas ainda dominada por financistas da cidade de Ningbo, na
província de Zhejiang. A câmara de Cantão demorou mais para crescer devido à
resistência local à supervisão central, mas já era uma força económica em 1905.
Ambas as câmaras desempenharam um papel importante na Hderança do boicote
antiamericano do final de 1905. À medida que foram enriquecendo, os comercian-
tes chineses do Sudeste asiático (e, em grau menor, dos Estados Unidos e Canadá)
também começaram a investir em certas empresas chinesas, ou a colocar capital
à disposição de outras.
Essas novas formas de comércio e de desenvolvimento industrial se tornaram,
tal como o imperialismo estrangeiro, fontes de transtornos para a vida dos traba-
lhadores urbanos. Dados esparsos permitem entrever as reações deles. No início
do período Qing houvera exemplos de paradas do mercado urbano e de greves de
trabalhadores como as do setor de porcelana de Jiangxi e dos puxadores de barca-
ças de grãos do Grande Canal. Mas uma carta de 1897, escrita em Xangai por um
vendedor americano de 24 anos da Companhia Winchester de Armas de Repeti-
ção, mostra a escalada das tensões urbanas em meio às novas realidades sociais,
e como os estrangeiros podiam se envolver facilmente nelas.
245
 o vendedor descreve um conflito do final de março de 1897 provocado pela
decisão do Conselho Municipal de Xangai de elevar o imposto pago pelos donos
de carrinho de mão de quatrocentas para seiscentas moedas de cobre por mês (um
saho de 25 para 37,5 centavos de dólar, em números atuais). Em protesto, os coo-
Hes conseguiram se organizar e tirar todos os carrinhos de mão das ruas em 1 ? de
abril. Quando, dias depois, um coolie soHtário tentou atravessar da Concessão Fran-
cesa para a Inglesa com um carrinho cheio de restos, uma multidão de trabalhado-
res espancou-o e destruiu seu carrinho. Um policial que veio em ajuda do coolie
também apanhou. Os ocidentais, vendo o policial em apuros, foram em sua ajuda
e policiais montados chegaram para auxihar, mas foram obrigados a desmontar
porque seus póneis ficaram assustados com a multidão. Os trabalhadores enfren-
taram as espadas da polícia com pedaços de pau e tijolos arrancados de muros da
vizinhança. Quatro toques de sirene de um barco inglês trouxeram "voluntários"
ocidentais para a cena em vinte minutos e os coolies foram dispersados, ficando
três deles mortos e dois policiais feridos. Em meia hora, marinheiros de vários na-
vios de guerra estrangeiros já tinham ocupado pontes-chaves e locais públicos. A
paz voltou às ruas, e o Conselho Municipal decidiu postergar o aumento do impos-
to para julho.*
Hankou também passava por um desenvolvimento industrial impressionante
sob o comando de Zhang Zhidong, com muito mais de 10 mil operários emprega-
dos em fábricas modernas já na década de 1890. E ali também as tensões sociais
cresciam, devido ao aumento de estrangeiros residentes e à abertura de novas áreas
de concessão a eles. As condições de trabalho eram ruins, os salários baixos, e as
condições de moradia atrozes, para os trabalhadores rurais que migravam para a
cidade já apinhada em busca de emprego, de longo prazo ou temporário. Os traba-
lhadores em cobre entraram em greve em 1905, os empregados da casa de cunho
em 1907, e milhares de ambulantes, camelos e encarregados de barracas, junto com
balconistas de lojas de fazendas, em 1908. Nas outras grandes cidades do país, os
novos cotonifícios, usinas de cimento, fundições, fábricas de papel e outras insta-
lações industriais que surgiam — amiúde, com capital estrangeiro — também mos-
travam um panorama de exploração e agitação.
Não se percebiam perspectivas mais amplas nesses protestos, mas a notícia da
tentativa de revolução na Rússia em 1905 teve um forte impacto na Ásia oriental.
Os radicais japoneses próximos de Sun Yat-sen fizeram um novo tipo de paralelo
entre a Rússia e a China e colocaram Sun em contato pessoal com os revolucioná-
rios russos. Como um japonês expHcou, com simplicidade vívida, China e Rússia
eram as duas maiores autocracias do mundo e a repressão que promoviam signifi-
cava um bloqueio à liberdade em qualquer outro lugar. A solução era óbvia: "Pa-
ra o avanço da civilização era necessário derrubar essas autocracias".*
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11
O FIM DA DINASTIA
A CONSTITUIÇÃO QING
Entre 1860 e 1905, a corte Qing e as autoridades provinciais chinesas tinham
tentado adaptar um amplo espectro de técnicas e ideias ocidentais às necessidades
comprovadas de seu país: artilharia, navios, telégrafo, escolas novas, fábricas, câ-
maras de comércio e direito internacional. Embora o foco mudasse constantemen-
te, o objetivo era sempre aprender certas práticas do Ocidente que tornariam a China
mais forte e capaz de se proteger das pressões e exigências do mesmo Ocidente.
Portanto, era lógico que, após o fracasso do levante dos boxers, os Qing tentassem
se apropriar de elementos das estruturas constitucionais que pareciam estar no cer-
ne do poderio ocidental.
Na década de 1850, mandarins como Xu Jiyu tinham louvado em especial a
flexibilidade e abertura do sistema presidencial e congressual americano e foi ini-
cialmente para os Estados Unidos que os Qing mandaram seus estudantes. Outros
intelectuais foram atraídos pela ideologia da Revolução Francesa e admiravam a
impressionante expansão do poderio francês no sécnlo xix. Mas uma vez que a
ideia de repúbhca — que significaria o fim deles — dificllmerue podia ser do gosto
dos Qing, eles começaram também a considerar seriamente vários exemplos de mo-
narquias constitucionais que poderiam ao mesmo tempo fortalecer o país e segurar
sua dinastia. A Grã-Bretanha, ainda a maior potência industrial e militar do mun-
do, constituía ura exemplo óbvio; outro era a Alemanha, conquistando rapidamente
proeminência global; e um terceiro — e mais impressionante — era o Japão, que
menos de vinte anos após o estabelecimento de uma estrutura conjunta imperial
e parlamentar tinha transformado sua economia, sua indústria, seu exérc'*'" uia-
rinha e todo o sistema de posse da terra. A prova mais espantosa da força que es-
sas mudanças trouxeram para o Japão foram as vitórias sobre a China, na guerra
de 1894, e sobre a Rússia, em 1904-5.
O primeiro passo importante na direção da reforma constitucional foi dado
pela imperatriz Cixi em 1905, quando ordenou a formação de um pequeno grupo
de estudos de cinco príncipes e funcionários — três manchus e dois chineses — que
iriam ao Japão, Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Rússia e Itália pa-
ra estudar seus governos. A consciência de que a missão poderia fortalecer tanto
os Qing que seria impossível derrubá-los consternou certos nacionalistas radicais,
alguns dos quais apelaram para táticas terroristas, numa tentativa de deter esse gesto
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