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A crítica neomarxista de Michael Apple

O início da crítica neomarxista às te- outras esferas sociais, como a educação e


orias tradicionais do currículo e ao papel a cultura, por exemplo. Há, pois, uma rela-
ideológico do currículo está fortemente ção estrutural entre economia e educação,
identificado com o pensamento de Michael entre economia e cultura. Nos termos
Apple. Trabalhos anteriores, como os de da terminologia introduzida por autores
Althusser e Bourdieu, por exemplo, tinham como Bernstein e Bourdieu, há um vínculo
estabelecido as bases de uma crítica radical entre reprodução cultural e reprodução
à educação liberal, mas não tinham propria- social. Mais especificamente, há uma clara
mente tomado como foco de seu questio- conexão entre a forma como a economia
namento o currículo e o conhecimento está organizada e a forma como o currículo
escolar. Apple aproveita-se dessas críticas está organizado.
e de outras tradições da teorização social Para Apple, entretanto, essa ligação não
crítica mais ampla (Raymond Williams, por é uma ligação de determinação simples
exemplo), para elaborar uma análise crítica e direta. A preocupação em evitar uma
do currículo que iria ser muito influente nas concepção mecanicista e determinista
décadas seguintes. dos vínculos entre produção e educação
Apple toma como ponto de partida já estava presente em seu primeiro livro,
os elementos centrais da crítica marxista Ideologia e currículo, publicado pela primeira
da sociedade. A dinâmica da sociedade vez nos Estados Unidos em 1979, mas ela
capitalista gira em torno da dominação de iria se tornar ainda mais forte nos seus
classe, da dominação dos que detêm o livros posteriores. Basicamente, para ele,
controle da propriedade dos recursos ma- não é suficiente postular um vínculo entre,
teriais sobre aqueles que possuem apenas de um lado, as estruturas econômicas e
sua força de trabalho. Essa característica sociais mais amplas e, de outro, a educa-
da organização da economia na sociedade ção e o currículo. Esse vínculo é mediado
capitalista afeta tudo aquilo que ocorre em por processos que ocorrem no campo da
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educação e do currículo e que são aí ativa- das teorias educacionais críticas. Con-
mente produzidos. Ele é mediado pela ação trapondo-se às perspectivas tradicionais
humana.Aquilo que ocorre na educação e sobre currículo, Apple vê o currículo
no currículo não pode ser simplesmente em termos estruturais e relacionais.
deduzido do funcionamento da economia. O currículo está estreitamente relacio-
É essa preocupação que leva Apple a nado às estruturas econômicas e sociais
recorrer ao conceito de hegemonia, tal mais amplas. O currículo não é um corpo
como formulado por Antonio Gramsci e neutro, inocente e desinteressado de
desenvolvido por Raymond Vy'illiams. É o conhecimentos. Contrariamente ao que
conceito de hegemonia que permite ver o supõe o modelo de Tyler, por exemplo,
campo social como um campo contestado, o currículo não é organizado através de
como um campo onde os grupos domi- um processo de seleção que recorre às
nantes se veem obrigados a recorrer a um fontes imparciais da filosofia ou dos valores
esforço permanente de convencimento supostamente consensuais da sociedade. O
ideológico para manter sua dominação. É conhecimento corporificado no currículo
precisamente através desse esforço de con- é um conhecimento particular. A seleção
vencimento que a dominação econômica que constitui o currículo é o resultado de
se transforma em hegemonia cultural. Esse um processo que reflete os interesses par-
convencimento atinge sua máxima eficácia ticulares das classes e grupos dominantes.
quando se transforma em senso comum, Na análise de Apple, a preocupação
quando se naturaliza. O campo cultural não é com a validade epistemológica do
não é um simples reflexo da economia: ele conhecimento corporificado no currículo.
tem a sua própria dinâmica.As estruturas A questão não é saber qual conhecimento
econômicas não são suficientes para garan- é verdadeiro, mas qual conhecimento é
tir a consciência; a consciência precisa ser considerado verdadeiro. A preocupação é
conquistada em seu próprio campo. com as formas pelas quais certos conheci-
É com esses elementos, acrescidos mentos são considerados como legítimos,
de elementos tomados de empréstimo em detrimento de outros, vistos como
a autores como Pierre Bourdieu, Basil ilegítimos. Nos modelos tradicionais, 0
Bernstein e Michael Young, que Michael conhecimento existente é tomado como
Apple vai colocar o currículo no centro dado, como inquestionável. Se existe algum
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questionamento, ele não vai além de crité- caso também de ·sernstein, que centrou
rios epistemológicos estreitos de verdade sua análise menos naquilo que é transmi-
e falsidade. Como consequência, os mode- tido e mais na forma como é transmitido.
los técnicos de currículo limitam-se à ques- De outro, situam-se aquelas críticas que
tão do "como" organizar o currículo. Na deram mais importância ao currículo
perspectiva política postulada por Apple, explícito, oficial, ao "conteúdo" do currí-
a questão importante é, ao invés disso, a culo. Pode-se dizer que este foi o caso de
questão do "por quê". Por que esses co- Althusser, ao menos na primeira parte de
nhecimentos e não outros? Por que esse seu ensaio sobre a ideologia e os aparelhos
conhecimento é considerado importante ideológicos de estado.Apple procura rea-
e não outros? E para evitar que esse "por lizar uma análise que dê igual importância
que" seja respondido simplesmente por aos dois aspectos do currículo, embora se
critérios de verdade e falsidade, é extrema- possa notar uma ênfase ligeiramente maior
mente importante perguntar:"trata-se do no seu conteúdo explícito, naquilo que ele
conhecimento de quem?". Quais interesses chama de "currículo oficial". Ele considera
guiaram a seleção desse conhecimento necessário examinar tanto aquilo que ele
particular? Quais são as relações de poder chama de "regularidades do cotidiano es-
envolvidas no processo de seleção que colar" quanto o currículo explícito; tanto
resultou nesse currículo particular? o ensino implícito de normas, valores e
No que concerne ao papel do currí- disposições quanto os pressupostos ide-
culo no processo de reprodução cultural ológicos e epistemológicos das disciplinas
e social, essa crítica inicial do currículo que constituem o currículo oficial.
esteve frequentemente dividida entre duas Como boa parte da literatura socioló-
ênfases. De um lado, estavam aquelas crí- gica crítica sobre currículo desse período
ticas que enfatizavam o papel do chamado inicial, Apple colocava uma grande ênfase,
"currículo oculto" nessa reprodução. É o em Ideologia e currículo, no processo que
caso, por exemplo, de Bowles e Gintis, a escola exerce na distribuição do conhe-
que chamaram a atenção para o papel cimento oficial. A suposição é de que a
exercido pelas relações sociais da escola escola simplesmente transmite e distribui
no processo de reprodução social. É o o conhecimento que é produzido em
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algum outro lugar. Apple, entretanto, das relações de gênero e raça no processo
concede um papel igualmente importante de reprodução cultural e social exercido
à escola como produtora de conhecimen- pelo currículo. A importância atribuída a
to, sobretudo daquilo que ele chama de essas diferentes dinâmicas iria se tornar
"conhecimento técnico". O "conhecimento mais equilibrada nos livros posteriores.
técnico" relaciona-se diretamente com a O que se manteria, entretanto, era uma
estrutura e o funcionamento da socie- comum preocupação com o poder. O que
dade capitalista, uma vez que se trata de torna sua análise "política" é precisamente
conhecimento relevante para a economia essa centralidade atribuída às relações
e a produção. Obviamente, essa produção de poder. Currículo e poder - essa é a
se dá principalmente nos níveis superiores equação básica que estrutura a crítica do
do sistema educacional, isto é, na universi- currículo desenvolvida por Apple.A ques-
dade. Mas na medida em que os requisitos tão básica é a da conexão entre, de um
de entrada na universidade pressionam os lado, a produção, distribuição e consumo
currículos dos outros níveis educacionais, dos recursos materiais, econômicos e, de
esses currículos refletem a mesma ênfase outro, a produção, distribuição e consumo
no "conhecimento técnico". É esse tipo de recursos simbólicos como a cultura, 0
de conhecimento que acaba sendo visto conhecimento, a educação e o currículo.
como tendo prestígio, em detrimento de Como vimos, já em seu primeiro livro
outras formas de conhecimento, como Apple procurava construir uma perspec·
o conhecimento estético e artístico, por tiva de análise crítica do currículo que
exemplo. Trata-se de mais um dos me- incluísse as mediações, as contradições e
canismos pelos quais o currículo se liga ambiguidades do processo de reprodução
com o processo de reprodução cultural cultural e social. Entretanto, apenas com
0

e social. desenvolvimento posterior da teorizaç~o


Em seu primeiro livro, Ideologia e crítica é que as contradições e resistências
currículo, Apple, em consonância com o iriam ganhar um papel mais destacad.º·
paradigma marxista adotado, enfatizava as Ao dar ênfase ao conceito de hegemonia,
relações sociais de classe, embora admitin- Apple chama atenção para o fato de que
do, talvez secundariamente, a importância a reprodução social não é um processo
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tranquilo e garantido.As pessoas precisam pela forma como o currículo está orga-
ser convencidas da desejabilidade e legiti- nizado? Como se formam resistências e
midade dos arranjos sociais existentes. Mas oposições ao currículo oficial? Ao enfatizar
esse convencimento não se dá sem oposi- essas questões, Michael Apple contribui, de
ção, conflito e resistência. É precisamente forma importante, para politizar a teoriza-
esse caráter conflagrado que caracteriza ção sobre currículo.
um campo cultural como o do currículo.
Como uma luta em torno de valores, signi-
ficados e propósitos sociais, o campo social
Leituras
e cultural é feito não apenas de imposição
APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo:
e domínio, mas também de resistência e
Brasiliense, 1982.
oposição. A descrição do currículo como
APPLE, Michael. "Vendo a educação de forma
sendo também um campo de resistência
relacional : classe e cultura na sociologia do
está apenas esboçada em Ideologia e currícu- conhecimento escolar". Educação e realidade,
lo. Ela seria reforçada posteriormente por 11 ( 1), 1986: p.19-34.
influência, principalmente, da pesquisa de APPLE, Michael. "Currículo e poder". Educação e
Paul Willis relatada no livro Aprendendo a realidade, 14(2), 1989: p.46-57.
ser trabalhador. APPLE, Michael. Educação e poder. Porto Alegre:
Em suma, na perspectiva de Apple, o Artes Médicas, 1989.
currículo não pode ser compreendido - e MOREIRA, Antonio Flavio B. A contribuição de
transformado - se não fizermos perguntas Michael Apple para o desenvolvimento de uma
fundamentais sobre suas conexões com teoria curricular crítica no Brasil. Fórum educa-
relações de poder. Como as formas de cional, 1989, 13 (4), p.17-30.

divisão da sociedade afetam o currículo?


Como a forma como o currículo processa
o conhecimento e as pessoas contribui,
por sua vez, para reproduzir aquela divi-
são? Qual conhecimento - de quem - é
privilegiado no currículo? Quais grupos se
beneficiam e quais grupos são prejudicados
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tranquilo e garantido.As pessoas precisam pela forma como o currículo está orga-
ser convencidas da desejabilidade e legiti- nizado? Como se formam resistências e
midade dos arranjos sociais existentes. Mas oposições ao currículo oficial? Ao enfatizar
esse convencimento não se dá sem oposi- essas questões, Michael Apple contribui, de
ção, conflito e resistência. É precisamente forma importante, para politizar a teoriza-
esse caráter conflagrado que caracteriza ção sobre currículo.
um campo cultural como o do currículo.
Como uma luta em torno de valores, signi-
ficados e propósitos sociais, o campo social
Leituras
e cultural é feito não apenas de imposição
APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo:
e domínio, mas também de resistência e Brasiliense, 1982.
oposição. A descrição do currículo como
APPLE, Michael. "Vendo a educação de forma
sendo também um campo de resistência
relacional: classe e cultura na sociologia do
está apenas esboçada em Ideologia e currícu- conhecimento escolar". Educação e realidade,
lo. Ela seria reforçada posteriormente por 11( 1). 1986: p.19-34.
influência, principalmente, da pesquisa de APPLE, Michael. "Currículo e poder". Educação e
Paul Willis relatada no livro Aprendendo a realidade, 14(2), 1989: p.46-57.
ser trabalhador. APPLE, Michael. Educação e poder. Porto Alegre:
Em suma, na perspectiva de Apple, o Artes Médicas, 1989.
currículo não pode ser compreendido - e MOREIRA, Antonio Flavio B. A contribuição de
transformado - se não fizermos perguntas Michael Apple para o desenvolvimento de uma
fundamentais sobre suas conexões com teoria curricular crítica no Brasil. Fórum educa-
relações de poder. Como as formas de cional, 1989, / 3 (4), p.17-30.

divisão da sociedade afetam o currículo?


Como a forma como o currículo processa
o conhecimento e as pessoas contribui,
por sua vez, para reproduzir aquela divi-
são? Qual conhecimento - de quem - é
privilegiado no currículo? Quais grupos se
beneficiam e quais grupos são prejudicados
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O currículo como política cultural: Henry Giroux

Entre os autores que, nos Estados incorporam, embora de forma limitada


Unidos, ajudaram a desenvolver uma teori- e contida, as recentes contribuições do
zação crítica sobre currículo, destaca-se, pós-modernismo e do pós-estruturalismo.
sem dúvida, a figura de Henry Giroux. A síntese que se segue baseia-se, pois, nos
Embora iniciando um pouco mais tarde seus primeiros livros: ldeology, culture, and
do que Michael Apple, Giroux contribuiu the process ofschooling ( 1981) e Theory and
de forma decisiva para traçar os contor- resistance in education ( 1983).
nos de uma teorização crítica que iria, Tal como ocorreu com outros auto-
depois, florescer de modo talvez ines-
res dessa fase inicial, também a crítica de
perado. Tal como fizemos com Michael
Giroux esteve centrada, nesse momento,
Apple, vamos nos restringir aqui a fazer
numa reação às perspectivas empíricas e
uma síntese das teorizações e conceitos
técnicas sobre currículo então dominantes.
desenvolvidos em sua primeira fase. Gi-
Utilizando-se de conceitos desenvolvidos
roux tem se voltado, desde então, para
pelos autores da Escola de Frankfurt
temáticas e direções que algumas vezes
(Adorno, Horkheimer, Marcuse), Giroux
parecem um tanto distantes daquelas nas
ataca a racionalidade técnica e utilitária,
quais se concentrava inicialmente, nisso
bem como o positivismo das perspectivas
diferindo bastante de Apple. Nos seus
dominantes sobre currículo. Na análise de
últimos livros, Giroux tem se preocupa-
Giroux, as perspectivas dominantes, ao se
do cada vez mais com a problemática da
cultura popular tal como se apresenta no concentrarem em critérios de eficiência
cinema, na música e na televisão. Embora e racionalidade burocrática, deixavam de
sempre em conexão com a questão peda- levar em consideração o caráter histórico,
gógica e curricular, suas análises parecem ético e político das ações humanas e sociais
ter se tornado crescentemente mais e, particularmente, no caso do currículo,
culturais do que propriamente educacio- do conhecimento. Como resultado desse
nais. Além disso, seus últimos escritos apagamento do caráter social e histórico
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do conhecimento, as teorias tradicionais as teorizações que teriam, depois, tanta
sobre currículo, assim como o próprio influência sobre a teoria educacional crí.
currículo, contribuem para a reprodução tica: a crítica da ideologia de Althusser; a
das desigualdades e das injustiças sociais. crítica cultural de Bourdieu e Passeron; 0
O desenvolvimento das teorias críticas princípio da correspondência de Bowles e
sobre currículo, como vimos, esteve es- Gintis. Giroux, tal como Apple, não es-
treitamente ligado - em contraposição ao tava satisfeito com a rigidez estrutural e
empiricismo e ao pragmatismo vulgar das com as consequências pessimistas dessas
perspectivas tradicionais - à utilização da teorizações. Seu trabalho inicial iria se
teoria social crítica mais ampla. Giroux foi, concentrar, em boa parte, no desenvol-
entretanto, talvez um dos poucos autores vimento de uma cuidadosa crítica dessas
a se utilizar, nessa fase, dos insights teóricos perspectivas, bem como no esboço de
dos investigadores da Escola de Frankfurt. alternativas que pudessem superar aquilo
Giroux se inclinava, nesse momento, para que ele via como falhas e omissões dessas
uma posição que era claramente tributária teorias. Assim, por exemplo, ele criticava
do marxismo, mas ele queria evitar, ao Bowles e Gintis pelo caráter mecanicista
mesmo tempo, uma identificação com a e determinista de seu princípio da corres-
rigidez economicista de certos enfoques pondência que não deixava nenhum espaço
marxistas. A produção teórica da Escola para a mediação e a ação humanas. Nesse
de Frankfurt, com sua ênfase na dinâmica modelo, aquilo que ocorria na escola e no
cultural e na crítica da razão iluminista e da currículo estava determinado, de antemão,
racionalidade técnica, ajustava-se perfeita- pelo que acontecia na economia e na pro·
mente a esse objetivo.A Escola de Frankfurt dução. Por outro lado, a teorização que
fornecia uma crítica à epistemologia implí- Bourdieu e Passeron faziam do processo
cita na racionalidade técnica que podia ser de reprodução cultural e social dava um
prontamente aplicada à crítica tanto das peso excessivo à dominação e à cultura
perspectivas dominantes sobre currículo dominante, em detrimento das culturas
quanto ao próprio currículo existente. dominadas e de processos de resistência.
No momento em que Giroux come- Giroux é igualmente crítico, entretanto,
ça a escrever já estavam em circulação daquelas vertentes da crítica educacional
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que se inspiravam mais na fenomenologia e desenvolver uma teorização crítica, mas
nos modelos interpretativos de teorização alternativa, sobre a pedagogia e o currícu-
social do que nos diversos estruturalismos. lo. Giroux esteve preocupado, nessa fase
Como descrevi noutro capítulo, uma das inicial, em apresentar uma alternativa que
correntes do movimento de reconcep- superasse o pessimismo e o imobilismo
tualização da teorização curricular, nos sugeridos pelas teorias da reprodução.
Estados Unidos, estava centrada no estudo Ele já fala aqui numa "pedagogia da possi-
fenomenológico das compreensões que as bilidade" - um conceito que vai se tornar
próprias pessoas que participam da cena central às teorizações de sua fase inter-
educacional têm de seus atos e significados. mediária. Contra a dominação rígida das
Na Inglaterra, uma parte importante da estruturas econômicas e sociais sugeridas
chamada "nova sociologia da educação" pelo núcleo "duro" das teorias críticas da
também estava preocupada em desen- reprodução, Giroux sugere que existem
volver análises que levassem em conta as mediações e ações no nível da escola e do
formas pelas quais estudantes e docentes currículo que podem trabalhar contra os
desenvolvem, através de processos de desígnios do poder e do controle. A vida
negociação, seus próprios significados so- social em geral e a pedagogia e o currículo
bre o conhecimento, o currículo e a vida em particular não são feitos apenas de
educacional em geral. O que estava em dominação e controle. Deve haver um
jogo, na perspectiva dessas análises, era a lugar para a oposição e a resistência, para
construção social desses significados pelos a rebelião e a subversão.
próprios agentes no espaço da escola e do Como outros autores, Giroux é am-
currículo. Giroux critica essas análises por plamente influenciado, nesse aspecto,
não darem suficiente ou nenhuma atenção pela pesquisa do sociólogo inglês, Paul
às conexões entre, de um lado, as formas Willis. Ex-aluno do importante Centre
como essas construções se desenvolvem for Contemporary Cultural Studies, da
no espaço restrito da escola e do currículo Universidade Birmingham, Paul Willis
e, de outro, as relações sociais mais amplas iria se tornar conhecido pela pesquisa
de controle e poder. relatada no livro Aprendendo a ser tra-
É no conceito de resistência, entretan- balhador. Também insatisfeito com o
to, que Giroux vai buscar as bases para determinismo econômico das teorias da
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reprodução,Willis quer saber o que leva jo- compreende o currículo fundamentalmente
vens de classe operária a voluntariamente através dos conceitos de emancipação e
escolher empregos de classe operária. Para libertação. Novamente, sob forte influência
isso, Willis acompanha um grupo de jovens dos teóricos da Escola de Frankfurt, ele vê
de classe operária de uma escola secundária 0 processo de emancipação como um dos

em suas atividades tanto na escola quanto no objetivos de uma ação social politizada. É
trabalho. Basicamente, o que Willis argumen- através de um processo pedagógico que
ta é que o encaminhamento desses jovens permita às pessoas se tornarem conscientes
para ocupações de classe operária não é o do papel de controle e poder exercido pelas
simples resultado passivo de uma lei econô- instituições e pelas estruturas sociais que elas
mica ou social. Essa destinação é ativamente podem se tornar emancipadas ou libertadas
criada na própria cultura juvenil operária, de seu poder e controle.
através, sobretudo, da celebração, nessa Três conceitos são centrais a essa
cultura, de uma masculinidade fortemente concepção emancipadora ou libertadora
associada com a cultura operária do chão do currículo e da pedagogia: esfera pública,
de fábrica. Infelizmente, o resultado final é intelectual transformador, voz. Tomando
o mesmo, mas o que Willis vislumbra aí, de empréstimo a Habermas o conceito de
nessa cultura, é um momento e um espaço "esfera pública", Giroux argumenta que
de criação autônoma e ativa que poderia
a escola e o currículo devem funcionar
ser explorado para uma resistência mais , . ,,
como uma "esfera pública democrat1ca ·
politicamente informada.
A escola e o currículo devem ser locais
Éessa possibilidade da resistência que Gi- onde os estudantes tenham a oportunidade
roux vai desenvolver em seus primeiros tra- de exercer as habilidades democráticas da
balhos. Ele acredita que é possível canalizar discussão e da participação, de questiona-
o potencial de resistência demonstrado por mento dos pressupostos do senso comum
estudantes e professores para desenvolver da vida social. Por outro lado, os profes-
uma pedagogia e um currículo que tenham sores e as professoras não podem ser
um conteúdo claramente político e que seja vistos como técnicos ou burocratas, mas
crítico das crenças e dos arranjos sociais
como pessoas ativamente envolvidas nas
dominantes. Ao menos nessa fase, Giroux
atividades da crítica e do questionamento,
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a serviço do processo de emancipação e li- de enfatizar também as estreitas conexões
bertação. Tomando como base a noção de entre a pedagogia e a política, entre a edu-
"intelectual orgânico" de Gramsci, Giroux cação e o poder. A crítica que Freire faz
vê os professores e as professoras como da "educação bancária" e sua concepção
"intelectuais transformadores". Finalmen- do conhecimento como um ato ativo e
te, o conceito de "voz", que Giroux desen- dialético também combinavam com os
volveria na fase intermediária de sua obra, esforços de Giroux em desenvolver uma
aponta para a necessidade de construção perspectiva de currículo que contestasse
de um espaço onde os anseios, os desejos os modelos técnicos então dominantes.
e os pensamentos dos estudantes e das Para sintetizar: numa tendência que
estudantes possam ser ouvidos e atenta- iria ganhar mais impulso posteriormente,
mente considerados.Através do conceito Giroux vê a pedagogia e o currículo através
de "voz", Giroux concede um papel ativo da noção de "política cultural". O currí-
à sua participação - um papel que contesta culo envolve a construção de significados
as relações de poder através das quais essa e valores culturais. O currículo não está
simplesmente envolvido com a transmissão
voz tem sido, em geral, suprimida.
de "fatos" e conhecimentos "objetivos". O
Há uma reconhecida influência de currículo é um local onde, ativamente, se
Paulo Freire na obra de Henry Giroux. produzem e se criam significados sociais.
Por um lado, a concepção libertadora de Esses significados, entretanto, não são
educação de Paulo Freire e sua noção de simplesmente significados que se situam
ação cultural forneciam-lhe as bases para no nível da consciência pessoal ou indi-
o desenvolvimento de um currículo e de vidual. Eles estão estreitamente ligados a
uma pedagogia que apontavam para possi- relações sociais de poder e desigualdade.
bilidades que estavam ausentes nas teorias Trata-se de significados em disputa, de
críticas da reprodução então predominan- significados que são impostos, mas também
tes. Por outro lado, embora Paulo Freire contestados. Na visão de Giroux, há pouca
salientasse a importância da participação diferença entre, de um lado, o campo da
pedagogia e do currículo e, de outro, o
das pessoas envolvidas no ato pedagógico
campo da cultura. O que está em jogo, em
na construção de seus próprios significa-
ambos, é uma política cultural.
dos, de sua própria cultura, ele não deixava
55
Leituras
GIROUX, Henry. Escola crítica e política cultural. São
Paulo: Cortez, 1987.

GIROUX, Henry. Pedagogia radical. Subsídios. São


Paulo: Cortez, 1983.

GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em edu-


cação. Petrópolis:Vozes, 1986.

56
Pedagogia do oprimido
versus pedagogia dos conteúdos

Parece evidente que Paulo Freire não Pedagogia do oprimido que melhor repre-
desenvolveu uma teorização especifica senta o pensamento pelo qual ele iria se
sobre currículo. Em sua obra, entre- tornar internacionalmente conhecido
tanto, como ocorre com outras teorias e reconhecido. Educação como prática da
pedagógicas, ele discute questões que liberdade está ainda muito ligado ao pensa-
estão relacionadas com aquelas que co- mento da chamada "ideologia do desenvol-
mumente estão associadas com teorias vimento" que caracterizava o pensamento
mais propriamente curriculares. Pode-se de esquerda da época. Em seu primeiro
dizer que seu esforço de teorização con- livro, a palavra-chave é, precisamente,
siste, ao menos em parte, em responder "desenvolvimento". No segundo, a centra-
à questão curricular fundamental: "o que lidade do conceito de "desenvolvimento" é
ensinar?". Em sua preocupação com a deslocada pelo de "revolução". Além disso,
questão epistemológica fundamental ("o os elementos propriamente pedagógicos
que significa conhecer?"), Paulo Freire do pensamento de Freire estão aí pouco
desenvolveu uma obra que tem implica- desenvolvidos: metade do livro é dedicada
ções importantes para a teorização sobre a uma análise da formação social brasileira.
o currículo. Além disso, é conhecida sua Pedagogia do oprimido, por outro lado,
influência sobre as teorizações de autores difere, em aspectos fundamentais, das
e autoras mais diretamente ligados ao outras teorizações que iriam constituir
desenvolvimento de perspectivas mais as bases de uma teoria educacional crítica
propriamente curriculares. (Althusser, Bourdieu e Passeron, Bowles e
Aqui, como fizemos com outros auto- Gintis). Em primeiro lugar, diferentemen-
res, vamos nos restringir aos seus livros te daquelas teorizações, sua análise deve
iniciais, particularmente Educação como muito mais à filosofia do que à sociologia
Prática da liberdade ( 1967) e Pedagogia e à economia política. É verdade que a
do oprimido ( 1970). Na verdade, é o livro análise que Freire faz da formação social

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brasileira na primeira parte de Educação turalistas da educação. Não se pode ima-
como prática da liberdade é profundamen- ginar Althusser ou Bourdieu e Passeron
te histórica e sociológica. Já a análise que falando, como faz Freire em Pedagogia
Freire faz do processo de dominação em do oprimido e em livros posteriores, de
Pedagogia do oprimido está baseada numa "amor", "fé nos homens", "esperança" ou
dialética hegeliana das relações entre senhor "humildade".
e servo, ampliada e modificada pela leitura do Finalmente, a teorização de Freire é
"primeiro Marx", do marxismo humanista claramente pedagógica, na medida em
de Erich Fromm, da fenomenologia exis- que ele não se limita a analisar como são
tencialista e cristã e de críticos do processo a educação e a pedagogia existentes, mas
de dominação colonial (Memmi, Fanon). O apresenta uma teoria bastante elaborada
foco está, aqui, muito menos na dominação de como elas devem ser. Essas diferen-
como um reflexo das relações econômicas e ças refletem-se inclusive nos títulos dos
muito mais na dinâmica própria do processo respectivos livros: enquanto o de Freire
de dominação. ressalta o termo "pedagogia", o livro de
Em segundo lugar, as críticas socioló- Bowles e Gintis, por exemplo, sugere uma
gicas da educação tomam como base a análise da escola na sociedade capitalista
estrutura e o funcionamento da educação estadunidense, e o de Baudelot e Establet
institucionalizada nos países desenvolvidos. propõe-se, claramente, a analisar a "es-
Está implícita na análise de Freire, por cola capitalista na França".
sua vez, uma crítica à escola tradicional, A crítica de Freire ao currículo exis-
mas sua preocupação está voltada para o tente está sintetizada no conceito de
desenvolvimento da educação de adultos "educação bancária".A educação bancária
em países subordinados na ordem mundial. expressa uma visão epistemológica que
Na verdade, em Pedagogia do oprimido, concebe o conhecimento como sendo
Freire adia a transformação da educação constituído de informações e de fatos a
formal para depois da revolução. Pode-se serem simplesmente transferidos do pro-
dizer ainda que os conceitos humanistas fessor para o aluno. O conhecimento se
utilizados por Freire em sua análise estão confunde com um ato de depósito - ban-
claramente ausentes de análises mais estru- cário. Nessa concepção, o conhecimento é
sa
algo que existe fora e independentemente conceito fenomenológico de "intenção",
das pessoas envolvidas no ato pedagógico. o conhecimento, para Freire, é sempre
Refletindo aqui a crítica mais cientificista "intencionado", isto é, está sempre dirigido
ligada à "ideologia do desenvolvimento", para alguma coisa.
bem como as críticas à escola tradicional O mundo, pois, não existe a não ser
feitas pelos ideólogos da "Escola Nova", como "mundo para nós", como mundo
Freire ataca o caráter verbalista, narrati- para a nossa consciência. Freire está aqui
vo, dissertativo do currículo tradicional. longe das concepções pós-estruturalistas
Na sua ênfase excessiva num verbalismo recentes que concebem o conhecimento
vazio, oco, o conhecimento expresso no como estreitamente relacionado com
currículo tradicional está profundamen- suas formas de representação no texto
te desligado da situação existencial das e no discurso. A representação implicada
pessoas envolvidas no ato de conhecer. na perspectiva de Freire é a do mundo na
Na concepção bancária da educação, o consciência. O ato de conhecer envolve
educador exerce sempre um papel ativo, fundamentalmente o tornar "presente" o
enquanto o educando está limitado a uma mundo para a consciência.
recepção passiva. O ato de conhecer não é, entretanto,
Através do conceito de "educação pro- para Freire, um ato isolado, individual.
blematizadora", Freire busca desenvolver Conhecer envolve intercomunicação, in-
uma concepção que possa se constituir tersubjetividade. Essa intercomunicação é
numa alternativa à concepção bancária mediada pelos objetos a serem conhecidos.
que ele critica. Na base dessa "educação Na concepção de Freire, é através dessa in-
problematizadora" está uma compreensão tercomunicação que os homens mutuamente
radicalmente diferente do que significa se educam, intermediados pelo mundo
"conhecer". Aqui, a perspectiva de Freire cognoscível. É essa intersubjetividade do co-
é claramente fenomenológica. Para ele, nhecimento que permite a Freire conceber
conhecimento é sempre conhecimento de o ato pedagógico como um ato dialógico.A
alguma coisa. Isso significa que não existe educação bancária torna desnecessário o di-
uma separação entre o ato de conhecer álogo, na medida em que apenas o educador
e aquilo que se conhece. Utilizando o exerce algum papel ativo relativamente ao
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conhecimento. Se conhecer é uma questão sidade do desenvolvimento de um currículo
de depósito e acumulação de informações e que esteja de acordo com sua concepção
fatos, o educando é concebido em termos de educação e pedagogia. A diferença re-
de falta, de carência, de ignorância, relativa- lativamente às perspectivas tradicionais de
mente àqueles fatos e àquelas informações. currículo está na forma como se constroem
O currículo e a pedagogia se resumem ao esses "conteúdos programáticos".
papel de preenchimento daquela carência. Pode-se comparar, nesse aspecto, o
Em vez do diálogo, há aqui uma comunica- método sugerido por Paulo Freire, com
ção unilateral. Na perspectiva da educação os métodos seguidos por modelos mais
problematizadora, ao invés disso, todos os tradicionais, como o de Tyler, por exem-
sujeitos estão ativamente envolvidos no ato plo. Tyler sugeria estudos sobre os apren-
de conhecimento. O mundo - o objeto a dizes e sobre a vida ocupacional adulta
ser conhecido - não é simplesmente "co- bem como a opinião dos especialistas das
municado"; o ato pedagógico não consiste diferentes disciplinas como fontes para o
em simplesmente "comunicar o mundo". Em desenvolvimento de objetivos educacio-
vez disso, educador e educandos criam, dia- nais, tudo isso filtrado pela filosofia e pela
logicamente, um conhecimento do mundo. psicologia educacionais. Na perspectiva
Ésobre essas bases que Freire vai desen- de Freire, é a própria experiência dos
volver seu famoso "método". Ele não se limi- educandos que se torna a fonte primária
ta a criticar o currículo implícito no conceito de busca dos "temas significativos" ou
de "educação bancária". Freire fornece, já "temas geradores" que vão constituir o
em Pedagogia do oprimido, instruções deta- "conteúdo programático" do currículo dos
lhadas de como desenvolver um currículo programas de educação de adultos. Freire
que seja a expressão de sua concepção de não nega o papel dos especialistas que,
"educação problematizadora". É curioso interdisciplinarmente, devem organizar
observar que Freire utiliza nesse livro ex- esses temas em unidades programáticas,
pressões e conceitos bastante tradicionais, mas o "conteúdo" é sempre resultado de
tais como "conteúdos" e "conteúdos pro- uma pesquisa no universo experiencial dos
gramáticos", para falar sobre currículo. Ele próprios educandos, os quais são também
está bem consciente, entretanto, da neces- ativamente envolvidos nessa pesquisa.
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Contrariamente à representação que do ato de conhecer como "consciência
comumente se faz, Paulo Freire concede de alguma coisa". É essa consciência,
uma importância central, em seu "méto- que inclui a consciência não apenas das
do", ao papel tanto dos especialistas nas coisas e das próprias atividades, mas
diversas disciplinas, aos quais cabe, ao também a consciência de si mesmo, que
final, elaborar os "temas significativos" e distingue o ser humano dos animais. É
fazer o que ele chama de "codificação", igualmente central à sua epistemologia,
quanto aos educadores diretamente entretanto, aquilo que ele chama de
envolvidos nas atividades pedagógicas. "conceito antropológico de cultura". Isso
Ao menos em Pedagogia do oprimido, significa entender a cultura, em oposição
Paulo Freire acredita que o "conteúdo à natureza, como criação e produção
programático da educação não é uma humana. Nessa concepção de cultura, não
doação ou imposição, mas a devolução se faz uma distinção entre cultura erudita
organizada, sistematizada e acrescentada e cultura popular, entre "alta" e "baixa"
ao povo daqueles elementos que este lhe cultura. A cultura não é definida por
entregou em forma desestruturada". O qualquer critério estético ou filosófico.
que ele destaca é a participação dos edu- A cultura é simplesmente o resultado de
candos nas várias etapas da construção qualquer trabalho humano. Nesse sentido,
desse "currículo programático". Numa faz mais sentido falar não em "cultura",
operação visivelmente curricular, ele fala mas em "culturas".
em escolha do "conteúdo programático", O desenvolvimento dessa noção de
que deve ser feita em conjunto pelo edu- cultura tem importantes implicações cur-
cador e pelos educandos. Esse conteúdo riculares. Embora Freire não desenvolva
programático deve ser buscado, conjunta- esse tema, o currículo tradicional - huma-
mente, naquela realidade, naquele mundo nista, clássico - que dominou a educação
que, segundo Freire, constitui o objeto do dos grupos dominantes por um longo
conhecimento intersubjetivo. tempo, está baseado precisamente numa
Vimos que a epistemologia que funda- definição da cultura como o conjunto das
menta a perspectiva curricular de Freire obras de "excelência" produzidas no campo
está centrada numa visão fenomenológica das artes visuais, da literatura, da música,

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do teatro. Mesmo que implicitamente, essa concentrar na perspectiva de grupos
crítica do conceito de cultura permite a dominados em países da América Latina
Paulo Freire desenvolver uma perspectiva e, mais tarde, nos países que se tornavam
curricular que, antecipando-se à influência independentes do domínio português,
posterior dos Estudos Culturais, apaga as Paulo Freire antecipa, na pedagogia e no
fronteiras entre cultura erudita e cultura currículo, alguns dos temas que iriam,
popular. Essa ampliação do que constitui depois, se tornar centrais à teoria pós-
cultura permite que se veja a chamada colonial ista. A perspectiva de Freire era.
"cultura popular" como um conhecimen- já em Pedagogia do oprimido, claramente
to que legitimamente deve fazer parte pós-colonialista, sobretudo em sua
do currículo. insistência no posicionamento episte-
Se Paulo Freire se antecipou, de certa mologicamente privilegiado dos grupos
forma, à definição cultural do currículo dominados: por estarem em posição
que iria caracterizar depois a influência dominada na estrutura que divide a so-
dos Estudos Culturais sobre os estudos ciedade entre dominantes e dominados,
curriculares, pode-se dizer também que esses grupos tinham um conhecimento
ele inicia o que se poderia chamar, no da dominação que os grupos dominantes
presente contexto, de uma pedagogia não podiam ter. Numa era em que o
pós-colonialista ou, quem sabe, de uma tema do "multiculturalismo" ganha tanta
perspectiva pós-colonialista sobre currí- centralidade, essa dimensão da obra de
culo. Como se sabe, a perspectiva pós- Paulo Freire pode talvez servir de ins-
colonialista, desenvolvida sobretudo nos piração para o desenvolvimento de um
estudos literários, busca problematizar currículo pós-colonialista que responda
as relações de poder entre os países '
as novas condições de dominação que
que, na situação anterior, eram coloniza- caracterizam a "nova ordem mundial".
dores e aqueles que eram colonizados.
O predomínio de Paulo Freire no
Essa perspectiva procura privilegiar a
campo educacional brasileiro seria
perspectiva epistemológica dos povos
contestado, no início dos anos 80, pela
dominados, sobretudo da forma como
chamada "pedagogia histórico-crítica" ou
se manifesta em sua literatura. Ao se
"pedagogia crítico-social dos conteúdos",
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desenvolvida por Dermeval Saviani. Tal aquisição e fortalecimento do poder das
como Freire, Saviani não pretendia estar classes subordinadas. Neste sentido, a
elaborando propriamente uma teoria do pedagogia de Saviani aparece como a
currículo, mas sua teorização focaliza única, dentre as pedagogias críticas, a
questões que pertencem legitimamente deixar de ver qualquer conexão intrín-
ao campo dos estudos curriculares. Em seca entre conhecimento e poder. Para
oposição a Paulo Freire, Saviani faz uma Saviani, o conhecimento é o outro do
nítida separação entre educação e po- poder. A análise de Saviani não se alinha
lítica. Para ele, uma prática educacional nem mesmo com as análises marxistas,
que não consiga se distinguir da política dominantes na época, que enfatizavam
perde sua especificidade .A educação tor- o caráter necessariamente distorcido
na-se política apenas na medida em que - ideológico - do conhecimento, de
ela permite que as classes subordinadas modo geral, e do conhecimento escolar,
se apropriem do conhecimento que ela de modo particular. No contexto das
transmite como um instrumento cultural teorias pós-estruturalistas mais recentes,
que será utilizado na luta política mais que assinalam, seguindo Foucault, um
ampla.Assim, para Saviani, a tarefa de uma nexo necessário entre saber e poder, a
pedagogia crítica consiste em transmitir teorização curricular de Saviani parece
aqueles conhecimentos universais que visivelmente deslocada. No limite, exce-
são considerados como patrimônio da tuando-se uma evidente intenção crítica,
humanidade e não dos grupos sociais que é difícil ver como a teoria curricular da
deles se apropriaram. Saviani critica tanto chamada "pedagogia dos conteúdos"
as pedagogias ativas mais liberais quanto a possa se distinguir de teorias mais tradi-
pedagogia libertadora freireana por enfa- cionais do currículo. Na sua oposição à
tizarem não a aquisição do conhecimento pedagogia libertadora freireana, ela cum-
mas os métodos de sua aquisição. priu, entretanto, um importante papel
Há, na teorização de Saviani, uma nos debates no interior do campo crítico
evidente ligação entre conhecimento e do currículo. Embora sua influência tenha,
poder. Essa ligação limita-se, entretanto, ultimamente, diminuído, ela continua,
a enfatizar o papel do conhecimento na inegavelmente, importante.

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Leituras
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio:
Paz e Terra, 1976.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.


Rio: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio: Paz e


Terra, 1970.

GADOTTI, Moacir. Paulo Freire. Uma biobibliograf,a.


São Paulo: Cortez/lnstituto Paulo Freire, 1996.

MOREIRA.Antonio Flavio B. Currículos e programas


no Brasil. Campinas: Papirus, 1990.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, 1983.

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