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Introdução
É no contexto da crise das grandes narrativas e das vicissitudes das teorias secularizadoras que
encontramos a chave para compreender a retomada do interesse religioso em nosso tempo.
Com a crise da modernidade diluíram-se igualmente as ideias iluministas e positivistas segundo
as quais as religiões seriam simplesmente formas de experiência residual sem possibilidade de
futuro. As religiões aparecem novamente hoje, ao contrário do que previam o cientismo
positivista e o historicismo marxista, como “guias possíveis para o futuro”[3].
Um dos traços que caracterizam o campo religioso contemporâneo nesta transição de milênio
é a “desregulamentação das identidades religiosas históricas”. Ocorre um processo de
desinstitucionalização religiosa, expressa no desligamento de parte dos fiéis tradicionais de sua
identidade religiosa particular. As crenças tendem a se disseminar, conformando-se cada vez
menos a modelos estabelecidos. Exemplos concretos, como os que ocorrem no campo da
moral comportamental e sexual, sinalizam as dificuldades reais das instituições neste
momento atual de prescrever aos indivíduos, e à sociedade como um todo, códigos unificados
de sentido. Como um dado caracteristicamente moderno, a crença e a participação religiosas
passam agora pelo crivo da consciência individual, tornam-se matéria de opção. Os sujeitos
tendem a resistir a quaisquer imposições advindas das instituições religiosas. Desenvolve-se,
ao contrário, um processo de “atomização individual” e a multiplicação de pequenas
comunidades fundadas na afinidade social, cultural e espiritual de seus membros[7].
O perfil religioso que se coaduna bem com a modernidade religiosa é aquele do peregrino, que
traz consigo as marcas da mobilidade construída a partir de experiências pessoais. O peregrino
“emerge como uma figura típica do religioso em movimento, num duplo sentido: ele reenvia
de forma metafórica à fluidez dos percursos espirituais individuais”; bem como a “uma forma
de sociabilidade religiosa em plena expansão, que se estabelece sob o signo da mobilidade e
da associação temporária”[13]. Na condição moderna, o indivíduo se vê diante do imperativo
de construir com seus próprios recursos e disposições as significações de sua existência.
No cenário religioso contemporâneo vislumbramos não apenas o refluxo contínuo das religiões
constituídas, mas igualmente uma sensibilidade crescente para a pluralidade de visões de
mundo e a “bricolagem”. Como vimos anteriormente, as crenças tendem hoje a escapar
largamente ao controle das grandes Igrejas e instituições religiosas. Vive-se um momento novo
de amplo deslocamento de fronteiras e pluralização do campo religioso. Nesse processo de
“subjetivização das crenças religiosas”, os indivíduos passam a compor o seu sistema religioso
sem uma relação mais precisa com um corpo de crenças institucionalmente válido. Essa
fragmentação pode ser precisamente observada no cristianismo, como destacou Françoise
Champion: “Tudo acontece como se o cristianismo deixasse de ser um sistema globalizante e
unificado, de se tomar em bloco, para se tomar um conjunto de ‘peças destacadas’, oferecidas
às livres composições pessoais, à adesão seletiva a um número limitado de crenças, de
práticas, de preceitos”[14].
Esse cenário vem reforçado com o fenômeno da Nova Era, que sinaliza a presença de uma
religiosidade descentralizada e errante. Trata-se de um “sincretismo em movimento”, que
consagra o efêmero e o provisório como traços da experimentação religiosa. Com a Nova Era
dá-se “a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar elementos de
tradições já existentes e fazer desses elementos metáforas que expressem performaticamente
uma determinada visão, em destaque em um determinado momento, e segundo
determinados objetivos”[17]. A dinâmica que acompanha a Nova Era manifesta uma busca
espiritual e uma cultura personalizada. Com a crise das grandes utopias no espaço público,
abre-se um campo novo no âmbito dos movimentos de consciência: uma religiosidade aberta
às mais diversas técnicas espirituais e contribuições alternativas. Em sintonia com a
sensibilidade pós-moderna, a Nova Era busca expressar os valores singulares da realização
pessoal: a liberdade para eleger múltiplos e heterogêneos caminhos na linha da expansão da
consciência; a busca de convivência harmoniosa com a natureza e todos os seres; um novo
entusiasmo espiritual, em sintonia com as mais variadas formas de sacralidade. A combinação
desses diversos aspectos faz com que essa experiência se converta em ‘criatura sedutora’ que
responde às expectativas de um vasto conjunto de agentes sociais nas sociedades
ocidentais”[18].
4. Reações à pluralização
A realidade da pluralização do campo religioso não ocorre sem reações específicas das várias
tradições de fé. O fenômeno do pluralismo provoca necessariamente o abalo das estruturas de
plausibilidade de comunidades específicas, que podem reagir de forma diversificada. Como
destacou Peter Berger: “o pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com respeito
àquilo em que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana
abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que conta verdadeiramente na vida.
Quando o relativismo alcança certa intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande
fascínio”[20].
Diante da realidade plural, três reações podem acontecer. Em primeiro lugar, a negociação
cognitiva. Aqui ocorre o caminho do diálogo com a diversidade, campo hoje fecundado pelas
inúmeras experiências do diálogo inter-religioso. Em segundo lugar, a capitulação cognitiva.
Para evitar o “doloroso” processo de trocas e concessões recíprocas, rompe-se com a
identidade particular para aderir à realidade do outro. Em terceiro lugar, a redução cognitiva,
que pode acontecer de forma defensiva ou ofensiva. Trata-se do caminho trilhado pelos
diversos fundamentalismos ou similares, que reagem ao novo e ao diverso seja mediante o
fechamento em guetos protetores, seja de forma missionariamente agressiva.
Conclusão
Como pudemos observar ao longo do texto, estamos hoje no mundo ocidental diante de um
quadro religioso caracterizado por grande complexidade. Não estamos mais diante de um
mundo desencantado, regido por uma lógica secularizadora implacável. Há uma sede
generalizada por novas utopias, uma busca permanente de sentido e solidariedade.
[1] Umberto ECO, “Para todos os fins úteis”, in Jean Claude CARRIÈRE et al., Entrevistas sobre o
fim dos tempos, Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 209.
[3] Gianni VATTIMO, Acreditar em acreditar, Lisboa, Relógio D’água, 1996, p. 17.
[4] Este tema foi desenvolvido de forma bem precisa por Danièle Hervieu-Léger em seu
recente livro: Le pèlerin et le converti; la religion en mouvement, Paris, Flammarion, 1999.
Seguiremos aqui de perto as reflexões da autora.
[12] Maria del Rosario CONTEMPONI, “Nova Era e pós-modernidade”, in Maria Júlia CAROZZI
(org.), A Nova Era no Mercosul, Petrópolis, Vozes, 1999,p. 133.
[15] Pierre Sanchis, “O repto pentecostal à ‘cultura católica brasileira’”, in Alberto ANTONIAZZI
et al., Nem anjos nem demônios; interpretações sociológicas do pentecostalismo, Petrópolis,
Vozes, 1994, p. 36.
[16] Rubem Cesar FERNANDES et alii, Novo nascimento; os evangélicos em casa, na Igreja e na
política, Rio de Janeiro, Mauad, 1998, p. 140.
[17] Leila AMARAL, “Sincretismo em movimento — O novo estilo Nova Era de lidar com o
sagrado”, in Maria Lúcia CAROZZI (Org.), A Nova Era no Mercosul, Petrópolis, Vozes, 1999, p.
47.
[18] Maria del Rosario CONTEMPONI, Nova Era e pós-modernidade, in Maria Lúcia CAROZZI
(org.), A Nova Era no Mercosul, op. cit., p. 143.
[19] Colin CAMPBELL, “A orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodiceia para
um novo milênio”, in Religião e Sociedade, 18/1, Rio de Janeiro, agosto de 1997.
[20] Peter Berger, Una gloria remota; avere fede nell’epoca del pluralismo, Bologna, Il Mulino,
1994, p. 48.
[21] Danièle HERVlEU-LÉGER, Le pélerin et le converti, op. cit., pp. 119 e 54.
[22] Ignácio RANONET, “Geopolítica da Fé”, in Folha de S. Paulo — Caderno Especial — Busca
pela fé, p. 2, 26 de dezembro de 1999.