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AMAURY SILVA

Professor de Direito Penal e Processual Penal – Graduação e Pós-Graduação; Formador na


ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Especialista em
Ciências Criminais; Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos);
Doutorando em Comunicação Interface com Direito

ARTUR CARLOS SILVA


Advogado; Pós-Graduado em Direito Público

2ª e d i ç ã o
Revista, atualizada e ampliada
CRIMES DE RACISMO - 2ª edição
© Amaury Silva e Artur Carlos Silva
EDITORA MIZUNO 2020
Revisão: José Silva Sobrinho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

S586c Silva, Amaury.


Crimes de racismo / Amaury Silva. – 2.ed. Leme, SP: JH Mizuno, 2020.
206 p. : 14 x 21 cm

ISBN 978-65-5526-077-9

1. Racismo – Brasil. 2. Discriminação racial – Legislação – Brasil. I. Título.

CDD 305.896081

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SOBRE OS AUTORES
AMAURY SILVA
Professor de Direito Penal e Processual Penal – Graduação e Pós-Graduação; Formador na
ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Especialista em
Ciências Criminais; Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Huma-
nos); Doutorando em Comunicação Interface com Direito

ARTUR CARLOS SILVA


Advogado; Pós-Graduado em Direito Público
#VidasNegrasImportam

“A lei não pode fazer com que a pessoa me ame, mas pode fazer com
que ela não me elimine” – Martin Luther King

“I can’t breathe” – George Floyd

“(...) não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber


constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade,
uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como
quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e san-
grentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros... inú-
meros. E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e
atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por
entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa
clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele
uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E
Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, deman-
dava, sacrificava se, lutava, exauria se no próprio ardor, como uma
candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero da-
quele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro... E, por essa
filosofia, empenhava se de corpo e alma, fazia se matar pelo bom...
Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das
mãos de algum cliente mais abastado.” Raul Pompeia sobre Luís Gama

“A questão racial no Brasil não é uma questão para o negro resolver


(...). A questão negra no Brasil não é uma questão do negro, é uma
questão da sociedade” – Conceição Evaristo

“Os policiais deveriam nos proteger ao invés de acabar com a nossa


família (...)”; “Não podia imaginar que o perigo estaria dentro de casa,
onde ele deveria se sentir seguro e protegido”, Neilton da Costa Pin-
to e Rafaela Coutinho Matos, pais de João Pedro
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
O Racismo Como Fenônemo Social e Jurídico ......................... 17
1. A percepção do fenômeno racista no mundo: origem e evolução..... 18
1.1. Sobre o racismo estrutural........................................................ 20
1.2. O racismo reverso..................................................................... 23
1.3. O Direito como uma das estruturas antirracistas...................... 17
1.4. A comunicação e a luta antirracista........................................... 30
2. Breve retrospecto da escravidão no Brasil......................................... 31
3. Do racismo e da luta contra a discriminação racial............................ 35
4. Das cotas raciais para as cotas sociais: educação e concursos públicos... 40
4.1. As ações afirmativas................................................................... 46
4.2. Discriminação positiva e negativa.............................................. 49

capítulo 2
Lei 7.716/89: Estudo Completo..................................................... 51
1. Elementos Normativos....................................................................... 52
2. Classificação do crime........................................................................ 57
2.1. Sujeito ativo............................................................................... 57
2.2. Sujeito passivo............................................................................ 57
2.3. Conduta..................................................................................... 58
2.4. Meios de execução.................................................................... 58
2.5. Modos de execução................................................................... 60
2.6. Lugar do crime........................................................................... 60
2.7. Crime de dano........................................................................... 61
2.8. Crime de perigo abstrato.......................................................... 62
2.9. Crime material........................................................................... 62
2.10. Crime formal........................................................................... 62
2.11. Crime de mera conduta .......................................................... 63
2.12. Crime instantâneo................................................................... 63
2.13. Comissivo................................................................................ 63
2.14. Unissubsistente........................................................................ 63
2.15. Plurissubsistente...................................................................... 63
2.16. Dolo......................................................................................... 64
2.17. Iter criminis .............................................................................. 64
3. Da imprescritibilidade e da inafiançabilidade...................................... 64
4. Bem jurídico e Mandado Constitucional de Criminalização............... 70
5. Acordo de não persecução penal e racismo...................................... 72
6. Audiência de custódia e racismo........................................................ 77

CAPÍTULO 3
Comentários à Lei Antirracismo (Lei 7.716/89).......................... 87

Art. 1º ................................................................................................ 88

Art. 2º ................................................................................................ 88

Art. 3º ................................................................................................ 89
1. Objeto jurídico................................................................................... 89
1.1. Sujeito ativo.............................................................................. 90
1.2. Sujeito passivo........................................................................... 91
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 91
2. Do tipo subjetivo................................................................................ 92

Art. 4º ................................................................................................ 92
1. Objeto jurídico................................................................................... 93
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 93
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 93
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 94
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 94
1.5. Negativa de equipamentos necessários e norma penal em
branco......................................................................................... 95
1.6. Impedimento a ascensão ou benefício funcional........................ 95
1.7. Tratamento diferenciado............................................................ 96
1.8. Exigência de aspectos específicos de raça ou etnia................... 96

Art. 5º ................................................................................................ 98
1. Objeto jurídico................................................................................... 98
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 99
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 99
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 99
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 99

Art. 6º ................................................................................................ 100


1. Objeto jurídico................................................................................... 100
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 100
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 101
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 101
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 102
1.5. Aumento de pena...................................................................... 102

Art. 7º ................................................................................................ 102


1. Objeto jurídico................................................................................... 103
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 103
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 103
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 104
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 104

Art. 8º ................................................................................................ 104


1. Objeto jurídico................................................................................... 104
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 105
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 105
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 105
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 106
Art. 9º ................................................................................................ 106
1. Objeto jurídico................................................................................... 106
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 106
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 107
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 107
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 108
1.5. Inexigibilidade de conduta diversa do empregado..................... 108

Art. 10 ............................................................................................... 109


1. Objeto jurídico................................................................................... 109
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 109
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 110
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 110
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 111

Art. 11 ............................................................................................... 111


1. Objeto jurídico................................................................................... 111
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 112
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 112
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 112
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 113

Art. 12 ............................................................................................... 113


1. Objeto jurídico................................................................................... 113
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 113
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 113
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 114
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 114

Art. 13 ............................................................................................... 114


1. Objeto jurídico................................................................................... 114
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 115
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 115
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 115
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 115
Art. 14 ............................................................................................... 116
1. Objeto jurídico................................................................................... 116
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 116
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 116
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 117
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 118

Art. 15 ............................................................................................... 118

Art. 16 ............................................................................................... 118

Art. 17 ............................................................................................... 120

Art. 18 ............................................................................................... 120

Art. 19 ............................................................................................... 121

Art. 20 ............................................................................................... 122


1. Objeto jurídico................................................................................... 122
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 122
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 123
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 123
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 124
1.5. Tipicidade.................................................................................. 124
1.6. Racismo reverso e tipicidade..................................................... 126
1.7. Liberdade de expressão e continuidade delitiva........................ 127

§1 ............................................................................................... 128
1. Objeto jurídico................................................................................... 128
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 129
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 129
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 129
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 130
1.5. Tipicidade conglobante e liberdade de expressão..................... 130
1.6. Tipo misto alternativo................................................................ 131
§2 ............................................................................................... 131

§3 ............................................................................................... 134
1.7. Medidas cautelares.................................................................... 134

§4 ............................................................................................... 134
1.8. Efeito da condenação................................................................. 135
2. Dos crimes de homofobia e transfobia equiparados aos crimes de
racismo por decisão do STF............................................................. 135
2.1. Da (in)constitucionalidade da equiparação das condutas ho-
mofóbicas e transfóbicas aos crimes de racismo......................... 138

Art. 21 ............................................................................................... 140


3. Vigência da lei..................................................................................... 140

Art. 22 ............................................................................................... 140

CAPÍTULO 4
Crime de Injúria Racial..................................................................... 141
1. Objeto jurídico................................................................................... 142
1.1. Sujeito ativo............................................................................... 142
1.2. Sujeito passivo............................................................................ 142
1.3. Consumação e tentativa............................................................ 142
1.4. Dolo e culpa............................................................................... 143
1.5. Ação penal ................................................................................ 143
1.6. Suspensão condicional do processo.......................................... 143
1.7. Crítica à injúria qualificada. Princípio da proporcionalidade...... 144
1.8. Distinção com o crime de racismo previsto na Lei 7.716/89 .. 144
1.9. Perdão judicial........................................................................... 145
1.10. Aumento de pena ................................................................... 146
1.11. Imunidade material do vereador.............................................. 147
1.12. Crime de racismo e concurso com injúria qualificada............. 139
1.13. Injúria racial reversa................................................................. 150
CAPÍTULO 5
Prática Forense.................................................................................. 151
1. Liberdade provisória.......................................................................... 152
2. Liberdade provisória - Injúria Racial................................................... 155
3. Representação.................................................................................... 158
4. Alegações finais................................................................................... 160
5. Apelação ............................................................................................ 166
6. Razões de Apelação............................................................................ 167
7. Habeas Corpus.................................................................................... 170
8. Recurso Especial................................................................................. 174
9. Recurso Extraordinário...................................................................... 177

CAPÍTULO 6
Peças Referentes à Decisão do STF no Âmbito da Ação
Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO)
Nº 24/DF que Considerou a Homofobia e a Transfobia
como Racismo Social................................................................. 179
1. Liberdade provisória ......................................................................... 180
2. Representação à autoridade policial................................................... 183
3. Habeas Corpus.................................................................................... 185

ANEXO
Texto Completo da Lei 7.716/89................................................... 189

REFERêNCIAS......................................................................................... 195

índice alfabético remissivo........................................................... 201


CAPÍTULO 1
O Racismo Como Fenônemo Social E Jurídico
18 Amaury Silva e Artus Carlos Silva

1 A percepção do fenômeno racista no mundo: ori-


gem e evolução

A verificação de aspectos definitivamente incisivos para a iden-


tificação do fenômeno racista no mundo é insuficiente para a demar-
cação de sua gênese. Flutuam compreensões entre a articulação de
sua ocorrência ainda na Antiguidade e raciocínios de sua exortação no
século XVIII pela projeção da intelectualidade europeia.
Ao explicar sobre a origem do raciscmo no mundo, o antro-
pólogo Kabengele Munanga, professor titular da FFLCH/USP e autor
de “Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas,
Culturas e Civilizações”, Editora Global, enfatiza:

Não existe unanimidade entre os estudiosos sobre a origem do


racismo. Sociólogos e antropólogos pensam que o racismo foi
construído na modernidade ocidental pelos filósofos iluministas
e naturalistas. A partir do século 18, esses filósofos iniciaram
a obra de classificação científica da diversidade humana em
raças distintas, decretadas por eles de inferiores e superiores
com base nas diferenças somáticas. Já trabalhos mais recentes,
como o de Isaac Benjamin (The Invention of Racism in Classical
Antiquity. Princeton and Oxford, Princiton University Press,
2004), encontram as raízes do racismo na antiguidade clássica,
entre os gregos e os romanos.
Apesar da controvérsia sobre as origens do racismo, sua
essência é única. É a ideia de que a diversidade humana é
composta de grupos biologicamente contrastados (cor da
pele, traços morfológicos e marcadores genéticos). Esses
grupos são hierarquizados com bases nessas diferenças em
raças superiores e inferiores, numa  pirâmide encabeçada pelo
grupo branco, tendo os negros na base inferior e os chamados
amarelos na parte intermediária. Essa classificação é usada para
justificar e legitimar a dominação de um sobre os outros. (In:
http://claudia.abril.com.br/materias/3955/?pagina1&amp%3Bs
h=31&amp%3Bcnl=31 – acesso em 14.06.2011).
crimes de racismo
19

Os fundamentos de teorias raciais são elaborados a partir de


três vertentes: a tipologia racial, darwinismo social e estudos pro-
tossociológicos, que mereceram a seguinte abordagem de Evandro
Charles Piza Duarte:

As duas primeiras, que emergiram de descobertas no reino


biológico, são contemporâneas ao surgimento da Criminologia
positivista, estando associadas sobretudo à noção negativa em que
o termo raça foi inicialmente empregado e ao surgimento de sua
forma derivada, o racismo. Ambas negaram a cisão entre corpo e
alma, tão cara ao pensamento religioso, assim como apresentaram
o antagonismo inter-racial como um fato implantado na natureza
das raças.
A terceira, surgida da tentativa de os investigadores americanos
formularem explicações sociológicas para aquilo que acreditavam
constituir problemas sociais, está associada à própria desconstrução
da ideologia da desigualdade-inferioridade presente nas teorias
anteriores e aos movimentos de emancipação dos grupos sociais
racialmente rotulados como inferiores. (In: Criminologia & Racismo,
2009, Juruá Editora, p. 86)

Em diversas fases subsequentes da história mundial o exercício
de uma potestade racial eclode como preponderante ou determinan-
te fator de dominação e subjugação de povos e grupos, ou se exterio-
riza como veia de predominância interna na formação de categorias a
partir da dicotomia da cor da pele.
O racismo enquanto anomalia aprofundada e arraigada nos pa-
drões de comportamento da humanidade não parece predisposto ao
perecimento, passadas diversas fases no seu desenvolvimento com
superações. Apresenta-se íntegro, forte, visível, com ares de moder-
nidade, recicla ofendidos com ou sem disfarces, enfim, justifica sua
cruel tradição como aponta o escritor Eduardo Galeano:

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país


até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos:
cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que
proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então Robert
Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação
20 Amaury Silva e Artus Carlos Silva

militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a


si própria, que tem “uma tendência inerente à vida selvagem e
uma incapacidade física de civilização”. Um dos responsáveis pela
invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz:
“Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que
haviam deixado os franceses”.
O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma
grande plantação de açúcar, com mão de obra escrava. No Espírito das
leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: “O açúcar seria
demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção.
Os referidos escravos são negros desde os pés até a cabeça e têm o
nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se
impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma
alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro”.
Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz.
Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os
negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza,
e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo
devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava
o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl
von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o
negro com precisão científica: “Vagabundo, preguiçoso, negligente,
indolente e de costumes dissolutos”. Mais generosamente, outro
contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro “pode
desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala
algumas palavras”. (In: A História do Haiti é a história do racismo, in
www.ecodebate.com.br – acesso em 14.11.2011).

1.1 Sobre o racismo estrutural

Um padrão de conduta e parâmetros que se apresentam como


normalizados e normalizadores nas relações plurais que são estabele-
cidas na sociedade conduzem à reflexão quanto ao racismo estrutural.
Sílvio Luiz de Almeida ensina que nessa observação avançada sobre a
questão racial, em relação às concepções individualista e institucional,
não há como se compreender o racismo como uma patologia, desar-
ranjo institucional ou uma condicionante individual atávica, reproduzi-
da como herança genética.
crimes de racismo
21

O racismo está incluso no processo social e constitui um frag-


mento dele de acordo com a referência doutrinária de Sílvio Luiz de
Almeida. Nessas condições, a questão deve ser enfrentada também
pelo ângulo das estruturas da sociedade, isto é, a abordagem e o en-
frentamento não pressupõem soluções na linha de saída e que depen-
dem da ótica de análise de cada camada da anomalia social a partir
do seu objeto (no caso presente, é o próprio racismo), mas a ação
empreendida sobre o plexo integral dos componentes da teia social
afetará a problemática racial, enfim, transformando-se o todo, as par-
tes estarão impactadas e descortinam-se os enfrentamentos capilares
que devem ser desenvolvidos.
Da mencionada análise sobre a incidência do racismo estrutu-
ral, colhe-se como procedimento indicativo para que o panorama do
combate antirracista seja entendido em toda a sua complexidade e
tratado na sua dimensão universal e não compacta, conforme o ma-
gistério de Sílvio Luiz e Almeida:

Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e


institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças
profundas nas relações sociais, políticas e econômicas. (O que é
racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018, p. 38/9).

Essa projeção do racismo foi definida de modo pioneiro no


Brasil por Lélia Gonzalez, para quem os nós que formam a malha do
sistema social como o fator econômico seriam determinantes no es-
tabelecimento da divisão e distinção entre membros e integrantes de
classes e instituições:

O racismo [...] denota sua eficácia estrutural na medida em que
estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por
todas as formações capitalistas e multirraciais contemporâneas.
Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um
todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação
dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura
de classes e no sistema de estratificação social. (GONZALEZ,
Lélia 2018, p. 98)
22 Amaury Silva e Artus Carlos Silva

Se não há previsão alvissareira que se possa eleger como indutora


de uma exclusão ou eliminação do racismo no plano do imediato, a te-
mática do combate e da luta contra o preconceito racial é das urgências
mais preciosas para o mundo. A constante elevação dos direitos humanos
como valor essencial e universal para uma modernidade presente e futura
é a sinalização de que a questão racial significa o ponto, simultaneamente,
de maior interrogação e interjeição sobre os próximos e decisivos passos
da humanidade: isonomia material ou igualdade etérea e artificial.
Não se pode crer que a transição nesse itinerário aconteça
como resultado de litanias ou um grande espetáculo sob orientação
explosiva e prosélita de uma prestidigitação improvável. As estruturas
que sustentam a divisão e a distinção possuem tentáculos universais e
profundos. Sem luta permanente e difusa que tenham a capacidade de
abordagem às ideologias da dominação e da diferença não há como se
especular em torno da superação da questão racial.
O filósofo Achille Mbembe sinaliza pela presença contemporânea
de elementos que indicam um devir que se sugere transformativo, mas
adverte quanto à imprescindibilidade da construção progressiva e aponta
as condições centrais para o exaurimento da discriminação e do racismo:

O projeto de um mundo comum baseado nos princípios da


“igualdade das partes” e da unidade fundamental do gênero humano
é um projeto universal. E já é possível, a quem quiser, detectar no
presente sinais (frágeis, por certo) deste mundo por vir. A exclusão,
a discriminação e a seleção em nome da raça permanecem, contudo,
fatores estruturantes – ainda que frequentemente negados – da
desigualdade, da ausência de direitos e da dominação contemporânea,
inclusive nas nossas democracias. Além disso, não se pode fingir que
a escravidão e a colonização não existiram ou que as heranças dessa
triste época foram totalmente liquidadas.
(...)
Assim, enquanto o racismo não tiver sido eliminado da vida e da
imaginação do nosso tempo, será preciso continuar a lutar pelo
advento de um mundo para além das raças. Mas, para chegar a
esse mundo a cuja mesa todos são convidados a se sentar, ainda
é preciso se ater a uma rigorosa crítica política e ética do racismo
e das ideologias da diferença. A celebração da alteridade só tem
se ela se abrir para a questão crucial do nosso tempo, a questão
da partilha, do comum e da abertura à exterioridade. (Crítica da
Razão Negra, N-1 edições, 2018, p. 305)
crimes de racismo
23

Esse diagnóstico nos permite compreender que o racismo não


é um fim em si mesmo, embora as práticas efetivas e os casos concre-
tos de discriminação e preconceito tenham essa aparência. Há um véu
que encobre o olhar para os confins onde se localizam os territórios
que determinam o racismo. As ideologias totalitárias e suas fórmulas
para a concentração econômica e de poder; a invisibilidade que orna-
menta a visão turva sobre as minorias e das múltiplas formas do ser
formam uma articulação de suporte que precisa ser alvo de aborda-
gem para que a problemática do racismo apareça sem qualquer nível
de ofuscação, verdadeiramente como é, a negação da essência humana.

1.2 O racismo reverso


No plano histórico e cultural a ausência de igualdade material e
formal quando se analisa o racismo em relação à cor da pele e sua pro-
jeção no Brasil é indubitável a identificação de que a discriminação não
foi construída apenas com os fatores biológicos ou antropológicos.
Os componentes de ordem social e cultural edificaram o quadro que
se expandiu até a atualidade e se não for experimentado movimento
resolutório, sua tendência é a permanência.
Assim, mais uma vez é cabível uma consistente definição de
racismo para os fins de enfrentamento da candente questão alusiva ao
racismo reverso. No Dicionário de Política por Bobbio, Matteucci e
Pasquino é possível se extrair uma definição para o racismo que con-
templa essa expectativa orgânica:

Com o termo Racismo se entende, não a descrição da diversidade das


raças ou dos grupos étnicos humanos, realizada pela antropologia física
ou pela biologia, mas a referência do comportamento do indivíduo à raça
a que pertence e principalmente, o uso político de alguns resultados
aparentemente científicos, para levar a crença da superioridade de uma
raça sobre as demais. Este uso visa a justificar e consentir atitudes de
discriminação e perseguição contra as raças que se consideram inferiores.
(Dicionário de Política de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e
Gianfranco Pasquino, Brasília: Editora UNB – 2004, p. 1059)

24 Amaury Silva e Artus Carlos Silva

Na contextualização do racismo no Brasil e no recorte pro-


posto, é evidenciado o sistema engendrado nas relações políticas e
sociais, resultantes na organização e funcionamento da sociedade de
modo que as pessoas negras e não as pessoas brancas são vitimadas
pela pretensa concepção de supremacia, cuja liturgia é desenvolvida
em vários setores e módulos, culminando pela percepção do racismo
na sua cavidade individualista, institucional e estrutural. Sem dúvida al-
guma, que em relação às camadas ou acepções institucional e estrutural
não há como se estabelecer uma lógica de racismo reverso. As institui-
ções assimilam e reproduzem o que está contido no racismo estrutural.
Com isso, o grande pendor totalitário quanto ao racismo é justamente o
predomínio da ideia de superioridade que se enraizou e se estende nas
múltiplas jornadas, formas e engrenagens da realidade social.
Dessa maneira, o racismo inverso é cogitado como uma rup-
tura dessa lógica, isto é, a vítima passaria a adotar ações, ideias e for-
mas de ser e se organizar que resultasse em afetação de cunho racis-
ta em relação ao agente ou beneficiário do racismo estrutural. Resta
dizer em relação à problemática brasileira, o racismo praticado pelas
pessoas negras em relação às pessoas brancas.
Não acreditamos que o racismo inverso tenha condições de
ser reconhecido como prática ou premissa em relação ao caráter
institucional e muito menos em consideração ao aspecto mais to-
nitruante do racismo, que é o estrutural. Essa inversão teria como
significado simplesmente proclamar a inexistência ou solução para a
maior das injustiças contra os direitos humanos, pois seria sintomática
de um equilíbrio ausente, composição e paridade que não se confirma
por nenhum pronunciamento objetivo e concreto, mas pertencente
a uma visão nefelibata e distante das experiências empíricas, que per-
mitem referências analíticas quanto às relações sociais que podem ser
customizadas frente à posição da pessoa negra na sociedade brasileira
em franca inferioridade.
Quanto ao ângulo individualista do racismo, não vislumbra-
mos que a questão seja simplista ao ponto de refutar de modo vee-
mente a presença do racismo reverso. A expressão quando colocada
em contato com critérios absolutos adquire muito mais efeitos áridos
do que realmente significa. Por reversão deve ser compreendida a
crimes de racismo
25

possibilidade de retorno ao início, ato procedimental ou efeito de re-


verter, modificar. Desse modo, o racismo na reversão, parte do opri-
mido para o opressor/beneficiário, o que ao padrão da subjetividade
e idiossincrasias não pode ser considerado como propósito inatingível
ou exauriente.
Como método de luta, inconformismo e debate, pode ser
consagrada a legitimidade dessa reversão. Mas, a devolução no pla-
no individual, significa o comportamento e a conduta desenvolvidos
como parcela do construto maior (racismo institucional e estrutural),
justamente no ponto que deve ser feita a incisão inspiradora e com
potencial de modificação do aspecto geral. Não se mudam instituições
ou estruturas sem a contenção, neutralização ou exclusão de con-
dutas humanas assertivas do status quo. Esse regime que é operado
historicamente por pessoas contra pessoas mantém o viés cromático
da pele, continua a ser inspirado em sectarismo, quando a posição
individual alimentar essa perspectiva.
Racismo de qualquer feição é totalitarismo. É uma duração do
estado de exceção que não convém a um sentido de centralidade do
ser humano como decorrência e obediência irrestrita aos valores de-
mocráticos. O biopoder ou a vida nua constituem a matéria-prima
para o racismo, como uma estratégia do poder.
Esse diagnóstico já foi objeto da reflexão de Foucault com a
seguinte abordagem:

A especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade,


não está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder.
Está ligado a técnica do poder, a tecnologia do poder. Está ligado a
isto que nos coloca, longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade
da história, num mecanismo que permite ao biopoder exercer-se.
Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que
é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da
raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor,
o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano
do direito de morte implica o funcionamento, a introdução
e a ativação do racismo. (FOUCAULT, Michel. Em defesa da
sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 309).
26 Amaury Silva e Artus Carlos Silva

A negativa de racismo reverso no segmento individualista des-


considera que o movimento unitário, coletivo e global contido na
manifestação de pessoas ou grupos possa resultar em uma soberania
que utilize a tática do racismo, qualquer racismo, por qualquer cor ou
outro módulo de referência. Convocando o parâmetro conceitual do
homo sacer de Agamben na contemporaneidade como o ser humano
sem a qualidade da humanidade, consideramos, no entanto, que o
imperativo de se afastar uma hegemonia de cunho racista não significa
a implantação de outra, não há base vicariante para essa instauração.
Para Agamben o homo sacer é aquele que pode ser morto e não
pode ser sacrificado. É o completo renegado, abandonado por obra
da soberania que se manifesta pelo direito e pelo aspecto de perten-
cimento à divindade.
Como esclarece o filósofo Agamben:

Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio


e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável,
é a vida que foi capturada nesta esfera. (AGAMBEN, Giorgio.
Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
UFMG, 2002., p. 91)

Assim, qualquer pessoa, grupo de pessoas que estejam na con-


tingência de experimentar a técnica do racismo como uma das atua-
ções operativas da soberania, podem ser destinatários e vítimas da ex-
cludente da humanidade, logo homo sacer. Se a manifestação de cunho
pessoal em forma de individualidade ou conjuntural traduz uma ideia
situacionista de inversão daquele que assume o protótipo do homo
sacer e não a emancipação de todos – para que ninguém seja homo sa-
cer, formata-se uma perspectiva possível para a utilização do racismo.
É ponderado concluir nesses termos que o racismo constitui
uma afetação aos direitos humanos. Adotando-se a reflexão de Geor-
ge Marmelstein quanto aos níveis ou camadas de eficácia dos direitos
humanos e fundamentais entre vertical e horizontal, onde o Estado
seria responsável pelo padrão vertical e nas relações interpessoais es-
taria o nível horizontal, aplicada especificamente à questão racial, terí-
amos no racismo estrutural e institucional a dimensão no patamar
vertical e no plano do racismo individualista a referência horizontal.

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