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Por terem sido utilizados em muitas das pesquisas que serão aqui relata-
das, é necessário descrever os dois bancos de dados que reúnem amostras da
fala de crianças cujo desenvolvimento é considerado normal – AQUIFONO e
INIFONO –, e aquele em que estão amostras de fala de crianças com desvios
fonológicos – DESFONO.
No início de 1991, Carmen Matzenauer e Regina Lamprecht, inseridas,
respectivamente, nos cursos de Pós-Graduação em Letras da UCPEL e da PUCRS,
decidiram realizar, em iniciativa conjunta, uma ampla coleta de dados de fala
de crianças monolíngües adquirindo o português como língua materna, com
desenvolvimento considerado normal quanto aos aspectos lingüístico, cognitivo
e emocional.
As pesquisadoras tiveram como objetivo disponibilizar para a comunida-
de acadêmica amostras de fala propícias à realização de estudos fonológicos,
por serem resultantes de entrevistas dirigidas para a eliciação de dados de
fonologia, e confiáveis, por serem registradas em transcrição fonética ampla
feita por pessoas treinadas, com conferência por pelo menos um, mas, em
caso de dúvida, por outro transcritor. Ter essas amostras prontas e à mão
facilita em muito a tarefa do pesquisador, porque são eliminadas diversas eta-
pas demoradas e complexas, como a procura e a triagem de sujeitos, as entre-
vistas para a coleta e a transcrição fonética. Os pesquisadores ficam liberados
para a descrição e a análise, para o estudo dos fatos sem mais demora.
O primeiro desses Bancos foi o AQUIFONO, em que estão registradas
entrevistas com 310 crianças das cidades de Pelotas (RS) e Porto Alegre (RS),
com idade entre 2:0 e 7:1, pertencentes a um grupo sociolingüisticamente
homogeneizado pela escolaridade dos pais, identificada por formação mínima
correspondente ao primeiro grau/ensino fundamental completo. Os informantes
foram divididos em 31 faixas etárias, cada uma contando com dez crianças:
cinco do sexo feminino e cinco do sexo masculino. As faixas etárias englobam
um período de dois meses, como se vê em (1), a seguir.
(1)
Faixa etária Idade
FE 1 2:0;0 - 2:1;29 (2 anos até 2 anos, 1 mês e
29 dias)
FE 2 2:2;0 – 2:3;29 (2 anos e 2 meses até 2 anos,
3 meses e 29 dias)
20 Regina Ritter Lamprecht (Org.)
(2)
Faixa etária Idade
FE 1 1:0;0 - 1:0;29 (1 ano até 1 ano e 29 dias)
FE 2 1:1;0 - 1:1;29 (1 ano e 1 mês até 1 ano 1 mês e
29 dias)
FE 3 1:2;0 - 1:2;29 (1 ano e 2 meses até 1 ano
2 meses e 29 dias)
e assim por diante, até:
FE 12 1:11;0 – 1:11;29 (1 ano e 11 meses até 1 ano,
11 meses e 29 dias).
Características dialetais
Critérios de aquisição
drões que não interferem no desenvolvimento da fala. São crianças com de-
senvolvimento lingüístico adequado à idade cronológica em termos de com-
preensão e produção de linguagem nos níveis sintático, semântico, morfológico
e pragmático.
O emprego das palavras “normal” e “anormal” é substituído, por mui-
tos pesquisadores de quaisquer línguas, pelo uso de “típico” e “atípico”, ou
“adequado” e “inadequado”, em razão de as duas primeiras serem, freqüen-
temente, consideradas pejorativas ou politicamente incorretas. Por esse
motivo é muito importante esclarecer que faremos uso de todos esses ter-
mos ao longo deste livro, sem com isso estarmos sinalizando qualquer tipo
de preconceito ou julgamento. Fica convencionado que expressões como
“aquisição normal” e “aquisição típica” serão empregadas como sinônimas,
assim como o serão expressões como “desenvolvimento anormal” e “desen-
volvimento atípico”.
Variações individuais
TABELA 1.1 Diferenças na idade de domínio fonético de alguns sons, em três crianças
(Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fone Tatiana Rafael João Diferenças
TABELA 1.2 Diferenças na idade de domínio fonético das líquidas não-laterais em onset
simples, em três crianças (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fone Tatiana Rafael João Diferenças
TABELA 1.3 Diferenças na idade de domínio fonológico das líquidas não-laterais, em três
crianças (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fonema Tatiana Rafael João Diferenças
Figura 1.1 Regressões na produção de ‘r-fraco’ e ‘R-forte’ conforme Miranda (1996, p. 95)
28 Regina Ritter Lamprecht (Org.)
Estratégias de reparo
(3)
No nível segmental:
No nível silábico:
Conhecimento fonológico
Como foi visto na seção anterior, há, desde muito cedo, a construção
gradativa do conhecimento que a criança tem do sistema fonológico em aqui-
sição. Essa construção dá-se a partir das evidências que a criança encontra na
língua do seu ambiente, que é a ela dirigida pelo grupo social em que está
inserida. No caso da ampla maioria das crianças, o amadurecimento do co-
nhecimento fonológico resulta no estabelecimento de um sistema condizente
com esse input.10
30 Regina Ritter Lamprecht (Org.)
(4)
‘braço’ [‘basu]
‘trator’ [ta’toR]
‘tricô’ [ti’ko]
(5)
‘borboleta’ [bobo’leta]
‘pescoço’ [pe’kosu]
(6)
‘bolsa’ [bo:sa]
Aquisição Fonológica do Português 31
(7)
‘forte’ [‘fçltSi]
(8)
‘sol’ – [sçw]
‘azul’ [a’zuw]
A partir dessas produções, podemos inferir que a menina sabe que existe
o /r/ em coda e também sabe que esse segmento é diferente do /l/; não po-
dendo produzi-lo, por motivos já explicitados na seção Estratégias de Reparo
deste capítulo, recorre à estratégia de substituição da não-lateral pela lateral.
O importante é que, ao não semivocalizar essa lateral em coda, sinaliza a
diferença entre /r/ e /l/ e demonstra seu conhecimento fonológico.
A constatação da existência de conhecimento fonológico, mesmo que não
concretizado, traz informações valiosas para os terapeutas, porque informa
sobre a potencialidade do paciente: aquele que evidenciar conhecimento
fonológico subjacente de um segmento ou de uma estrutura silábica terá me-
lhor prognóstico de tratamento do que outro que não demonstrar esse conhe-
cimento.
NOTAS
3. Para detalhes sobre essa evolução, veja listagem de pesquisas apresentada por
Lamprecht (2003) em número especial de Letras de Hoje comemorativo aos 20 anos
de pesquisas sobre Aquisição da Linguagem na PUCRS.
4. Especificamente aquelas realizadas na PUCRS e UCPEL.
5. Para o estudo da aquisição do português europeu indica-se a tese de doutorado de
Freitas (1997).
6. Veja-se a seção Estratégias de Reparo neste capítulo.
7. Aqui estão sendo referidas, exclusivamente, possíveis razões de ordem lingüística.
Isso não significa que se desconhecem ou descartam outros fatores, de natureza não-
lingüística, como, por exemplo, os emocionais.
8. Os exemplos de substituição de líquida são retirados do corpus de Vicente, aos 2:8;
os de metátese são de José, aos 4:0; o de epêntese é de Débora, aos 3:11. Todos os
demais são de Isabela, aos 1:10.
9. Embora seja um processo que ocorre no nível segmental, a não-realização de seg-
mento em onset simples afeta também o nível silábico pelo fato de eliminar o onset
da sílaba.
10. O input das crianças pode variar exatamente por ser determinado pelo grupo social
em que cada uma vive: os familiares, vizinhos, pessoas do bairro, da creche/escolinha.
11. Veja-se a seção Características Dialetais neste capítulo.
12. Esse exemplo, com suas implicações, é referido, pela primeira vez, em Hernandorena
(1990). Posteriormente, encontramos essa descrição em Ramos (1996), Magalhães
(2000) e Mota (2001).
13. O alongamento compensatório da vogal que precede uma coda não-realizada é discu-
tido no Capítulo 8, nas diferentes seções sobre estratégias de reparo utilizadas na
aquisição da coda.
Aquisição Fonológica do Português 33
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Bases para o Entendimento
da AAquisição
quisição Fonológica
Carmen Lúcia Barreto Matzenauer