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Antes de Mais Nada


Regina Ritter Lamprecht

Como foi dito no Prefácio, o conteúdo deste livro resulta de informações


obtidas nas descrições dos dados e nas análises de resultados de um grande
número de pesquisas sobre aquisição fonológica já realizadas no Rio Grande
do Sul. Por isso, para melhor entendimento dos capítulos em que será descrito
o percurso da aquisição das diferentes classes de sons e estruturas silábicas, é
conveniente dar aos leitores algumas informações, falando de aspectos gerais
referentes ao conjunto dos trabalhos em que se fundamentam os demais ca-
pítulos.

UM PEQUENO HISTÓRICO DAS PESQUISAS

A primeira disciplina sobre Aquisição da Linguagem na PUCRS e, por


conseguinte, no Rio Grande do Sul, iniciou-se em março de 1983 por iniciati-
va dos professores Feryal Yavas, Ph.D., e Mehmet Yavas, Ph.D., investindo em
uma área de pesquisas relativamente nova no Brasil e no mundo todo. À épo-
ca, eram pouco numerosos os pesquisadores brasileiros que estudavam esse
assunto, devendo ser destacados os nomes de Cláudia de Lemos, Leonor Scliar-
Cabral, Eleonora Albano, Ester Scarpa, Rosa Figueira, Maria Cecília Perroni,
Letícia Corrêa, Maria Fausta de Castro Campos, Maria Francisca Lier-de Vitto.1
As primeiras coletas de dados sobre aquisição fonológica feitas na PUCRS,
ainda em 1983, constaram de gravações de entrevistas com crianças que
apresentavam alterações de fala. Mais adiante, em 1987, Mehmet Yavas teve
a percepção de que, para estudarmos o sistema fonológico de crianças com
desvios fonológicos, seria fundamental e imprescindível que se conhecesse
em profundidade e em detalhes a aquisição fonológica de crianças com de-
18 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

senvolvimento considerado normal. Essa população passou a ser, então, ou-


tro foco de pesquisas e das duas primeiras teses de doutorado defendidas na
área: Lamprecht (1990) e Hernandorena (1990). Até hoje, nossas pesquisas
continuam voltadas para esta necessidade – a análise da fala de crianças
com desenvolvimento normal – para podermos, entre outros aspectos, esta-
belecer o perfil da aquisição segmental e silábica do português brasileiro,
descrever diferenças individuais entre os sujeitos e verificar possíveis regres-
sões no desenvolvimento. Quanto mais pesquisamos, mais os dados nos apre-
sentam questões novas, e questões já estudadas são reenfocadas na visão de
novas teorias.2
É importante ressaltar essa constante evolução, ao longo dos anos, no
posicionamento teórico que é adotado. Nossas pesquisas sobre a aquisição do
componente fonológico seguem uma trajetória que percorre diferentes mode-
los teóricos para a fundamentação da análise dos dados. Iniciada com a
Fonologia Natural, a análise passou pela Fonologia Gerativa e desta para a
Fonologia Autossegmental, adotada desde 1994 em estudos baseados na
Fonologia Métrica, na Geometria de Traços e na Teoria da Sílaba. Desde 1999
são feitos estudos com base na Teoria da Otimidade.3
Mudou, também, o posicionamento em relação à natureza dos desvios
fonológicos: considerados sistemas fonológicos de natureza essencialmente
diferente dos sistemas de crianças consideradas normais, os desvios passaram
a ser vistos como basicamente semelhantes, embora certamente não idênticos
(Lamprecht, 1999).
A experiência obtida no contato com os dados levou à ampliação das
faixas etárias que são observadas, descritas e analisadas. Se em 1990 as pri-
meiras teses sobre a aquisição fonológica normal, já referidas anteriormente,
iniciavam a observação das crianças aos 2:4 (anos:meses) ou aos 2:9, desde
1999 a idade inicial de observação tem sido a de 1:0.
Ao lado das diferentes teorias fonológicas, diversas pesquisas têm utiliza-
do dois valiosos instrumentos: a análise estatística, com o auxílio do pacote de
programas VARBRUL, numa adaptação, para os estudos em Aquisição, da
metodologia usada em estudos variacionistas; e a análise acústica, utilizada
para a confirmação da análise perceptual e para a comprovação de fatos e
etapas do desenvolvimento.

ALGUMAS INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS PARA LER O AFP

Nesta seção encontram-se informações sobre os bancos de dados nos quais


muitas das pesquisas buscaram suas evidências, assim como sobre caracterís-
ticas dialetais da região em que foram realizadas as coletas das amostras de
fala. Também é explicado, em grandes linhas, o pacote de programas VARBRUL,
utilizado para o tratamento estatístico dos dados, por ele ser referido em di-
versos dos capítulos seguintes. São, igualmente, apresentados critérios adotados
Aquisição Fonológica do Português 19

para considerar adquirido um segmento ou uma estrutura silábica e explicitados


critérios para a definição de normalidade. Por último, fala-se em diferenças
entre o português brasileiro e o português europeu.

Descrição dos bancos de dados

Por terem sido utilizados em muitas das pesquisas que serão aqui relata-
das, é necessário descrever os dois bancos de dados que reúnem amostras da
fala de crianças cujo desenvolvimento é considerado normal – AQUIFONO e
INIFONO –, e aquele em que estão amostras de fala de crianças com desvios
fonológicos – DESFONO.
No início de 1991, Carmen Matzenauer e Regina Lamprecht, inseridas,
respectivamente, nos cursos de Pós-Graduação em Letras da UCPEL e da PUCRS,
decidiram realizar, em iniciativa conjunta, uma ampla coleta de dados de fala
de crianças monolíngües adquirindo o português como língua materna, com
desenvolvimento considerado normal quanto aos aspectos lingüístico, cognitivo
e emocional.
As pesquisadoras tiveram como objetivo disponibilizar para a comunida-
de acadêmica amostras de fala propícias à realização de estudos fonológicos,
por serem resultantes de entrevistas dirigidas para a eliciação de dados de
fonologia, e confiáveis, por serem registradas em transcrição fonética ampla
feita por pessoas treinadas, com conferência por pelo menos um, mas, em
caso de dúvida, por outro transcritor. Ter essas amostras prontas e à mão
facilita em muito a tarefa do pesquisador, porque são eliminadas diversas eta-
pas demoradas e complexas, como a procura e a triagem de sujeitos, as entre-
vistas para a coleta e a transcrição fonética. Os pesquisadores ficam liberados
para a descrição e a análise, para o estudo dos fatos sem mais demora.
O primeiro desses Bancos foi o AQUIFONO, em que estão registradas
entrevistas com 310 crianças das cidades de Pelotas (RS) e Porto Alegre (RS),
com idade entre 2:0 e 7:1, pertencentes a um grupo sociolingüisticamente
homogeneizado pela escolaridade dos pais, identificada por formação mínima
correspondente ao primeiro grau/ensino fundamental completo. Os informantes
foram divididos em 31 faixas etárias, cada uma contando com dez crianças:
cinco do sexo feminino e cinco do sexo masculino. As faixas etárias englobam
um período de dois meses, como se vê em (1), a seguir.

(1)
Faixa etária Idade
FE 1 2:0;0 - 2:1;29 (2 anos até 2 anos, 1 mês e
29 dias)
FE 2 2:2;0 – 2:3;29 (2 anos e 2 meses até 2 anos,
3 meses e 29 dias)
20 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

FE 3 2:4;0 – 2:5;29 (2 anos e 4 meses até 2 anos,


5 meses e 29 dias)
e assim por diante, até:
FE 31 7:0;0 – 7:1;29 (7 anos até 7 anos, 1 mês e
29 dias).

Para direcionar a coleta, foi utilizado o instrumento proposto na Avalia-


ção Fonológica da Criança (Yavas, Hernandorena e Lamprecht, 1991), que consta
de 125 palavras representadas em cinco desenhos temáticos, complementado
por um instrumento adicional, elaborado especificamente para essa coleta e
contendo palavras com as consoantes líquidas nas diferentes posições na síla-
ba e na palavra. A decisão de acrescentar essa nova lista foi motivada por se
saber que essa é a classe de sons de aquisição mais tardia no desenvolvimento
normal, assim como aquela que mais dificuldades oferece às crianças com
desvios fonológicos. Os métodos utilizados para a eliciação das palavras do
instrumento constituem-se de nomeação, narração e fala espontânea.
Em 1998, sempre com o auxílio de mestrandas e de bolsistas de iniciação
científica, foram iniciadas as gravações de entrevistas com crianças entre 1:0
e 2:0, visando à obtenção de amostras de fala que complementassem e ampli-
assem, em termos de faixa etária, o AQUIFONO. Constituiu-se, assim, o Banco
de Dados INIFONO, que reúne entrevistas com 100 crianças, sendo que as
amostras de fala de 96 delas constituem um corpus de dados transversais;
quatro crianças, porém, foram entrevistadas mensalmente e constituem um
corpus de dados longitudinais.
Os 96 informantes da coleta transversal estão divididos em 12 faixas
etárias, cada uma contando com oito crianças: quatro do sexo feminino e
quatro do sexo masculino. As faixas etárias englobam um período de um mês,
como se vê em (2), a seguir.

(2)
Faixa etária Idade
FE 1 1:0;0 - 1:0;29 (1 ano até 1 ano e 29 dias)
FE 2 1:1;0 - 1:1;29 (1 ano e 1 mês até 1 ano 1 mês e
29 dias)
FE 3 1:2;0 - 1:2;29 (1 ano e 2 meses até 1 ano
2 meses e 29 dias)
e assim por diante, até:
FE 12 1:11;0 – 1:11;29 (1 ano e 11 meses até 1 ano,
11 meses e 29 dias).

O grupo longitudinal do INIFONO é constituído por duas meninas e dois


meninos, com idade inicial de 1:0. Cada criança pertencente a esse segundo
Aquisição Fonológica do Português 21

grupo foi entrevistada em intervalos de 25 a 30 dias, pelo menos até comple-


tar 2:0. As entrevistas com as duas meninas foram continuadas até os quatro
anos.
Utilizando o mesmo instrumento proposto por Yavas, Hernandorena e
Lamprecht (1991), foi idealizada uma maneira específica para contornar a
dificuldade de obter amostras de fala de crianças tão pequenas. A coleta foi
facilitada pela utilização dos “Sacos de Brinquedos”, a saber, duas sacolas
coloridas contendo brinquedos, miniaturas e objetos que representam os itens
lexicais cuja produção se deseja conseguir, e bem adequados à pouca idade
dos informantes do INIFONO.
Com o mesmo objetivo, porém contemplando outra população, Regina
Lamprecht, mais uma vez auxiliada por mestrandas e bolsistas de iniciação
científica, havia iniciado, em 1995, a coleta e a consolidação de amostras de
fala de crianças com desvios fonológicos evolutivos. Resultou daí o Banco de
Dados DESFONO, que reúne entrevistas de 80 crianças com idade entre 2:7 e
10:0 cujo desenvolvimento fonológico é atípico. Esse número de sujeitos é
muito significativo, tendo em vista que as crianças com desvios fonológicos
constituem uma subpopulação das crianças com aquisição fonológica normal.
O instrumento de coleta e os critérios de transcrição foram os mesmos estabe-
lecidos para o AQUIFONO.
Esses bancos estão arquivados no Centro de Estudos sobre Aquisição e
Aprendizagem da Linguagem - CEAAL / PUCRS e no Mestrado em Letras da
UCPEL.

Características dialetais

É importante descrever as características da variante falada em Porto


Alegre (RS) e Pelotas (RS), porque é nessas duas cidades que vivem as crian-
ças cujas amostras de fala estão registradas nos três bancos de dados acima
descritos, base de muitas das pesquisas que serão aqui enfocadas. Além disso,
todos os exemplos que ilustram o texto do AFP referem-se a produções dessa
região. Os leitores de outras regiões do país em cuja fala existam característi-
cas diversas dessas devem fazer as necessárias adequações.
A fala dessa região apresenta as características a seguir relacionadas.

• Palatalização de /t/ e /d/ diante de /i/


Ex: ‘tia’  [t ia] ‘dinheiro’  [d i’¯eRu]
• Elevação das vogais médias /e/ para [i] e /o/ para [u], em determina-
dos contextos
Ex: ‘menino’  [mi’ninu] ‘coruja’  [ku’RuZa]
• Semivocalização ou velarização da lateral quando em posição de coda
Ex: ‘sal’  [saw] ~ [sa ] ‘alto’  [‘awtu] ~ [‘a tu]
22 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

• Monotongação de ditongos fonéticos


Ex: ‘madeira’  [ma’deRa] ‘pouco’  [‘poku]
• Produção da fricativa em coda como fricativa alveolar (sem a
palatalização característica de outras variantes, como, por exemplo, a
carioca)
Ex: ‘casca’  [‘kaska] ‘lápis’  [‘lapis]
• Produção do r-fraco como tap, e do r-forte como fricativa velar
Ex: ‘arara’  [a’ a a] ‘rato’  [‘xatu] ‘carro’ [‘kaxu]
• Não-produção, quase categórica, do /r/ do morfema do infinitivo e do
/s/ do morfema do plural
Ex: ‘lavar’  [la’va] ‘dois livros’  [dojs ‘livRu]

O pacote de programas VARBRUL

A partir de 1995, passou-se a utilizar o pacote de programas VARBRUL


em muitas das pesquisas sobre a aquisição fonológica.4 São representativos os
trabalhos de Miranda (1996), Hernandorena e Lamprecht (1997), Mezzomo
(1999), Vidor (2000), Savio (2001), Oliveira (2002) e Ribas (2002). A opção
pelo uso do VARBRUL nesse tipo de trabalho deve-se ao fato de o programa
ser capaz de fornecer freqüências e probabilidades sobre os fenômenos estu-
dados, além de selecionar variáveis relevantes no processo da aquisição
fonológica. Não menos importante é o fato de o VARBRUL ser de uso relativa-
mente fácil para os pesquisadores, após um treinamento adequado.
O pacote de programas computacionais VARBRUL permite o tratamento
estatístico de dados variáveis, realizado através de modelos matemáticos. O
conjunto de programas é largamente utilizado em análises lingüísticas
variacionistas (Scherre,1993) e, apesar da especificidade para a área da vari-
ação, também é utilizado com sucesso no tratamento de dados da aquisição
fonológica.
Esse pacote de programas possibilita a observação do papel de variáveis
lingüísticas (como, por exemplo: contexto fonológico precedente e seguinte;
tonicidade; modo e ponto de articulação ou sonoridade da consoante prece-
dente e seguinte; qualidade da vogal) e de variáveis não-lingüísticas (como,
por exemplo: idade, sexo, etnia, escolaridade, classe social). Diferentes roda-
das permitem o cruzamento de variáveis para verificar a possível interação de
fatores, o seu papel no funcionamento dos dados observados e a sua probabi-
lidade.

Critérios de aquisição

Para afirmar que um determinado segmento ou uma certa estrutura


sílábica já estão ou ainda não estão adquiridos por alguma criança ou em uma
Aquisição Fonológica do Português 23

determinada faixa etária, é necessário ter-se um critério de proporção de acer-


tos de produção a partir do qual essa afirmação possa ser feita. Os pesquisado-
res da área da aquisição fonológica não consideram necessário que um pata-
mar de 100% de acertos seja atingido pelas crianças, porque uma certa pro-
porção de produções inadequadas restantes representa resquícios de etapas já
superadas ou, até mesmo, simples lapsos de língua.
As pesquisas recentes que procuram estabelecer o perfil da aquisição
fonológica consultadas para a elaboração dos capítulos do AFP trabalham,
todas, com percentagens de produção correta para definir etapas de aquisi-
ção. Um levantamento dos critérios utilizados nos trabalhos que serão listados
a seguir mostra que, entre os treze trabalhos listados, oito definem 85 ou 86%
de produção correta como critério para considerar que um segmento ou síla-
ba está adquirido, e outros três utilizam 80% de produção correta como crité-
rio. Portanto, onze dessas treze pesquisas adotam a faixa entre 80 a 86% de
produção adequada para considerar que determinado elemento fonológico
está adquirido. Somente dois trabalhos utilizam parâmetros diferentes – 90 e
75%, respectivamente, como se vê na lista seguinte.

Hernandorena e Lamprecht (1997) 90%


Azambuja (1998) 86%
Fronza (1999) 86%
Savio (2001) 86%
Ribas (2002) 85%
Oliveira (2002) 85%
Hernandorena (1990) 85%
Miranda (1996) 85%
Rangel (1998) 85%
Rizzotto (1997) 80%
Mezzomo (1999) 80%
Bonilha (2000) 80%
Lamprecht (1990) 75%

Portanto, quando houver menção ao fato de um segmento ou estrutura


silábica estarem adquiridos, isso significa que uma proporção de 80 a 86%,
ou mais, das crianças de uma faixa etária dominam tal segmento ou estrutura
silábica em 80 a 86%, ou mais, das possibilidades de ocorrência.

Critérios para a definição de normalidade

Com exceção do Capítulo 12, que versa sobre os desvios fonológicos, os


demais capítulos do AFP referem-se à fala de crianças cujo desenvolvimento é
considerado normal nos aspectos lingüístico, cognitivo e emocional. Com essa
definição estamos referindo-nos a crianças cujas características orofaciais,
auditivas, cognitivas, neurológicas e emocionais encontram-se dentro de pa-
24 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

drões que não interferem no desenvolvimento da fala. São crianças com de-
senvolvimento lingüístico adequado à idade cronológica em termos de com-
preensão e produção de linguagem nos níveis sintático, semântico, morfológico
e pragmático.
O emprego das palavras “normal” e “anormal” é substituído, por mui-
tos pesquisadores de quaisquer línguas, pelo uso de “típico” e “atípico”, ou
“adequado” e “inadequado”, em razão de as duas primeiras serem, freqüen-
temente, consideradas pejorativas ou politicamente incorretas. Por esse
motivo é muito importante esclarecer que faremos uso de todos esses ter-
mos ao longo deste livro, sem com isso estarmos sinalizando qualquer tipo
de preconceito ou julgamento. Fica convencionado que expressões como
“aquisição normal” e “aquisição típica” serão empregadas como sinônimas,
assim como o serão expressões como “desenvolvimento anormal” e “desen-
volvimento atípico”.

Português brasileiro e português europeu

O português brasileiro e o português europeu, falado em Portugal, são


variantes que têm algumas características diferentes, fato que se reflete no
processo de aquisição fonológica.
Mezzomo e Menezes (2001) comparam a aquisição das estruturas silá-
bicas nessas duas variantes e concluem por semelhanças, mas também apon-
tam diferenças. Para trazer exemplos de diferenças apontadas pelas auto-
ras, temos que “... as crianças brasileiras não percorrem todos os quatro
estágios encontrados na aquisição do ataque máximo [onset complexo] no
português europeu, excluindo parte do estágio 1 e o estágio 2” (p. 697).
Além disso, segundo as autoras, a explanação da aquisição da rima do por-
tuguês europeu encontrada por Freitas (1997) não é eficaz para o português
brasileiro.5
Deve ser destacado que as pesquisas nas quais os diferentes capítulos do
AFP se apóiam estão todas voltadas exclusivamente para o português brasilei-
ro. Portanto, sempre que fizermos referência ao português, nos próximos capí-
tulos, é ao português brasileiro que estaremos nos referindo.

PRELIMINARES SOBRE AQUISIÇÃO FONOLÓGICA

Nas seções seguintes, serão abordados quatro tópicos básicos para se


falar em aquisição fonológica. Esses assuntos são colocados como prelimina-
res, precedendo os capítulos sobre a aquisição das diversas classes de sons e
dos diferentes tipos de sílabas, para que os leitores possam familiarizar-se
com conhecimentos importantes, fundamentais mesmo, tais como as varia-
ções evolutivas que existem entre crianças e as regressões no desenvolvimen-
Aquisição Fonológica do Português 25

to. Com esses subsídios, poderão relativizar os resultados de estudos feitos


com dados de grande número de crianças, porque já foram informados sobre
a possibilidade de ampla variabilidade individual, e terão em mente que o
desenvolvimento não se dá numa progressão linear. É explicada, também, a
noção e a motivação das estratégias de reparo, e são apresentadas manifesta-
ções de conhecimento fonológico implícito, com discussão de suas implicações.

Variações individuais

A construção do sistema fonológico dá-se, em linhas gerais, de maneira


muito semelhante para todas as crianças, e em etapas que podem ser conside-
radas iguais. Mas, ao mesmo tempo, verifica-se a existência de variações indi-
viduais entre elas, constatando-se, inclusive, que a possibilidade e a abran-
gência dessas variações é bastante ampla. Portanto, dentro das etapas e carac-
terísticas gerais do desenvolvimento fonológico – aquelas que podem ser en-
contradas em todas as crianças – há a possibilidade de variação individual
quanto ao domínio segmental e prosódico. Essa variabilidade pode ser bastan-
te acentuada, dependendo de cada sujeito, individualmente. A variação dá-se
tanto em termos de idade de aquisição como também quanto aos caminhos
percorridos – as estratégias de reparo6 utilizadas – para atingir a produção
adequada.
Para mostrar como é acentuada a variação individual dentro do desen-
volvimento normal, Lamprecht (2001) apóia-se em dados de Rangel (1998),
que realiza um estudo longitudinal de três crianças com idade entre 1:6 e 3:0.
Nessa pesquisa, para considerar que um segmento está adquirido, Rangel adota
os seguintes critérios: para afirmar que existe domínio fonético (simplesmen-
te saber produzir o som), deve haver pelo menos duas produções adequadas
em três entrevistas seguidas de um mesmo informante; para afirmar que exis-
te domínio fonológico (saber usar esse som dentro do sistema da língua),
deve haver a produção adequada em pelo menos 85% das possibilidades de
ocorrência do som em duas entrevistas seguidas. A Tabela 1.1, abaixo, mostra
as diferenças de idade, encontradas entre essas três crianças, no domínio fo-
nético de alguns sons.

TABELA 1.1 Diferenças na idade de domínio fonético de alguns sons, em três crianças
(Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fone Tatiana Rafael João Diferenças

bd 1:7 1:6 1:9 Até 3 meses


k 1:7 1:9 1:10 Até 3 meses
g 1:7 2:6 2:0 Até 11 meses
fvsz 1:7 2:0 2:1 Até 6 meses
26 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

Nas Tabelas 1.2 e 1.3, é possível ver as diferenças na idade de aquisição


das líquidas não-laterais – os “sons de r”, que são os últimos segmentos adqui-
ridos pelas crianças falantes de português.

TABELA 1.2 Diferenças na idade de domínio fonético das líquidas não-laterais em onset
simples, em três crianças (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fone Tatiana Rafael João Diferenças

R-forte [x] 1:10 2:7 2:4 Até 9 meses


r-fraco [ R ] 2:4 2:9 2:10 Até 6 meses

TABELA 1.3 Diferenças na idade de domínio fonológico das líquidas não-laterais, em três
crianças (Lamprecht, 2001, a partir de dados de Rangel, 1998)
Fonema Tatiana Rafael João Diferenças

R-forte /R/ 2:0 2:8 2:9 Até 9 meses


r-fraco /R / 2:4 2:10 Após os 3:0* Mais de 8 meses
* 3:0 é a idade máxima encontrada nos dados de Rangel

Esses dados mostram uma diferença de até 11 meses entre as crianças,


seja no domínio da realização fonética, seja no do papel fonológico dos sons
da língua, o que representa uma extensão de tempo muito significativa para
crianças de menos de três anos, faixa etária máxima da pesquisa em questão.
Portanto, quando se compara o sistema fonético e/ou fonológico de uma
criança com um padrão de normalidade estabelecido pelas pesquisas, deve-se
sempre ter em mente a possibilidade de consideráveis diferenças individuais
sem que isso represente um desvio ou um atraso.

Regressões no desenvolvimento fonológico

Os trabalhos recentes mostram que, ao contrário do que se poderia su-


por, o desenvolvimento fonológico não se dá numa progressão constante. A
evolução – tanto no domínio dos segmentos como no das estruturas silábicas
– desde o estado inicial da aquisição em direção ao estado final, quando o
sistema está compatível com o alvo-adulto, não é constante, num movimento
linear, mas sim com descontinuidades. A variabilidade individual determina
se essas regressões no desenvolvimento de uma certa criança são desprezíveis,
passando despercebidas, ou se são importantes, com picos de baixas percen-
tagens de produção correta interferindo ao longo da linha evolutiva.
Aquisição Fonológica do Português 27

Um decréscimo no desempenho em certos momentos do desenvolvimen-


to, seguido de novo crescimento até a estabilização, constitui o que é referido
na literatura como “Curva em U” (Strauss, 1982). Esse tipo de variação intra-
sujeito possivelmente é decorrente de haver, em dado momento, um desen-
volvimento mais acentuado de um nível lingüístico em detrimento de outro.
Por exemplo, a entrada de um novo aspecto sintático, semântico ou morfológico
no sistema da criança pode acarretar um decréscimo momentâneo no nível
fonológico (Crystal, 1987).7
Algumas pesquisas sobre a aquisição do português apontam regressões
importantes em certas faixas etárias, como os trabalhos de Miranda (1996),
Zitzke (1998), Azambuja (1998), Mezzomo (1999) e Ribas (2002), entre ou-
tros. Para exemplificar, toma-se o trabalho de Miranda, que pesquisa a aquisi-
ção das líquidas não-laterais, no qual a “Curva em U” fica bem evidente em
momentos diferentes para as duas consoantes não-laterais: para o R-forte na
faixa etária 6, que compreende crianças dos 2:6 aos 2:8, e para o r-fraco na
faixa etária 9, que compreende crianças dos 3:4 aos 3:6. Veja-se a Figura 1.1.

Figura 1.1 Regressões na produção de ‘r-fraco’ e ‘R-forte’ conforme Miranda (1996, p. 95)
28 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

Estratégias de reparo

A expressão estratégia de reparo, que é amplamente empregada neste


livro, refere-se a estratégias adotadas pelas crianças para adequar a realização
do sistema-alvo – a língua falada pelos adultos do seu grupo social – ao seu
sistema fonológico, ou seja, refere-se àquilo que as crianças realizam em lu-
gar do segmento e/ou da estrutura silábica que ainda não conhecem ou cuja
produção não dominam. Veja-se exemplos8 das mais produtivas em (3).

(3)
No nível segmental:

• a dessonorização de obstruintes (ex.: ‘abre’  [‘api])


• a anteriorização (ex.: ‘queijo’  [‘kezu])
• a posteriorização (ex.: ‘bolsa’  [‘bo a])
• a semivocalização de líquidas (ex.: ‘cenoura’  [’noja],
‘colo’  [‘kçwu], ‘folha’  [‘foja])
• a substituição de líquida, geralmente de não-lateral por lateral (ex.:
‘passarinho’  [pasa’li¯u], ‘barraca’  [ba’laka])
• a não-realização do segmento em onset simples9 (ex.: ‘sabonete’ 
[‘eti], ‘rua’  [‘ua])

No nível silábico:

• a não-realização do segundo membro de um onset complexo (ou re-


dução de encontro consonantal) (ex.: ‘braço’  [‘basu])
• a não-realização da coda (ex.: ‘carninha’  [ka’ni¯a])
• a metátese (ex.: ‘verde’  [‘v edZi] ‘dragão’  [da’g ãw])
• a epêntese (ex.: ‘brabo’  [ba’Rabu])
• a não-realização de uma ou mais sílabas (ex.: ‘dormindo’  [‘mindu],
‘dinossauro’  [‘sawo]).

Para tentar compreender essas estratégias, temos que pensar na expe-


riência que a criança acumula, desde muito pequena, sobre os níveis fonético
e fonológico da sua língua materna. Sabemos que o bebê percebe a pauta
rítmica e entonacional da fala desde a vida intra-uterina; o feto ouve a voz da
sua mãe e de outros falantes presentes no ambiente, do mesmo modo como
também ouve música. Experimentos como os de Mehler, Jusczyk, Lambertz,
Halsted, Bertoncini e Amiel-Tison (1988) comprovam que, alguns dias após
o nascimento, o bebê reconhece a voz da mãe e dá preferência à entonação
da língua falada no seu ambiente se comparada com uma que lhe é estra-
nha, igualmente por reconhecer essa língua. Essa percepção é fonética: o bebê
com poucos dias de idade distingue um [b], que é [+sonoro], de um [p], que é
[-sonoro], mas não há, ainda, atribuição de valor distintivo a essas diferenças.
Aquisição Fonológica do Português 29

No entanto, a categorização dos sons que o bebê percebe em um sistema


fonológico inicia-se cedo. Hayes (2001) comenta que, em torno dos 8 meses de
vida, os bebês começam a compreender palavras, e esse momento coincide com
um extraordinário crescimento da capacidade fonológica, documentada por pes-
quisas. Experimentos mostram que, nessa idade, a capacidade de discriminação
fonética começa a diminuir; no entanto, essa perda fonética representa, na verda-
de, um ganho fonológico, porque o bebê está aprendendo a prestar atenção nas
distinções que são “úteis”, no sentido de serem capazes de distinguir palavras, de
fazerem parte – ou não – do sistema fonológico do seu ambiente. Outro experi-
mento (Jusczyk e Hohne, 1997) comprova que bebês de 8 meses são capazes de
lembrar palavras de historinhas, gravadas em fitas, em testes de laboratório rea-
lizados duas semanas mais tarde. Citando Hayes (2001, p. 5), a idade de 8 a 10
meses “... representa o nascimento da verdadeira fonologia.”
No início da produção de fala – precedida por vocalizações e pelo balbu-
cio –, por volta de 1:0 ou um pouco mais tarde, a criança pequena depara-se
com um conflito entre o sistema fonológico empregado em seu ambiente, o
qual ouve na fala dos outros e que é o alvo a ser atingido, e as limitações na
sua capacidade de categorização, de articulação, de planejamento motor, de
memória fonológica e de processamento auditivo. Para atender a essas dificul-
dades, ou seja, para ficar dentro da realidade das limitações inerentes ao seu
momento de desenvolvimento, a criança simplifica suas produções num movi-
mento natural de adaptação do output às suas capacidades. Isso significa sim-
plificar estruturas silábicas, valer-se de um inventário fonético e fonológico
incompleto e reduzir movimentos articulatórios através de assimilações que
tornam os segmentos mais parecidos.
Essas adequações do sistema fonológico da língua às possibilidades de
produção da criança pequena constituem as estratégias de reparo, ou seja,
estratégias destinadas a resolver o conflito da melhor maneira possível para o
estágio de desenvolvimento em que a criança pequena se encontra.
Como a criança evolui e amadurece dia a dia – o que pode ser verificado
com facilidade através do crescimento físico e do aumento das capacidades
cognitivas e motoras – as estratégias também mudam, na medida em que as
necessidades de adequação ao sistema-alvo diminuem.

Conhecimento fonológico

Como foi visto na seção anterior, há, desde muito cedo, a construção
gradativa do conhecimento que a criança tem do sistema fonológico em aqui-
sição. Essa construção dá-se a partir das evidências que a criança encontra na
língua do seu ambiente, que é a ela dirigida pelo grupo social em que está
inserida. No caso da ampla maioria das crianças, o amadurecimento do co-
nhecimento fonológico resulta no estabelecimento de um sistema condizente
com esse input.10
30 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

Nem sempre, porém, a criança pequena manifesta todo o conhecimento,


toda a sua capacidade na produção da fala. Em outras palavras, é possível que
a criança saiba mais do que os interlocutores – os adultos e outras crianças
com que interage – podem perceber. Numa observação minuciosa, encontra-
remos, às vezes, evidências que apontam para a representação subjacente exis-
tente na mente da criança, porém não-evidenciada na fala. A produção pro-
porciona indícios valiosos do conhecimento fonológico que uma criança tem e
que, embora ainda não utilizado, fornece pistas indicativas da potencialida-
de, do crescimento da criança. Três exemplos dessa situação em que o conhe-
cimento é mais avançado, mais maduro, do que a produção são trazidos a
seguir.
Exemplo 1 – uma criança que, ao que tudo indica, ainda não adquiriu o
onset complexo e, portanto, não produz encontros consonantais, terá produ-
ções como as em (4).

(4)
‘braço’  [‘basu]
‘trator’  [ta’toR]
‘tricô’  [ti’ko]

Mas, se na região em que essa criança vive ocorre a palatalização do /t/


diante do /i/11, e se a criança efetivamente realiza essa palatalização dizendo,
por exemplo, [tSia] para /tia/, então para ‘tricô’ a produção deveria ser [tSi’ko]
e não [ti’ko]. A produção sem a palatalização, nesse contexto específico, signi-
fica que, na representação mental da palavra que a criança possui, o [t] não
está diante do [i], havendo algo (neste caso o /r/) que impede a palatalização,
ou seja, a realização de [tSi’ko]. Conseqüentemente, pode-se inferir que ela
tem conhecimento do onset complexo, que ela sabe da existência da seqüên-
cia /tr/ embora não a produza.12
Exemplo 2 - uma criança que não produz o /s/ ou o /r/ em coda, terá
realizações como as em (5).

(5)
‘borboleta’  [bobo’leta]
‘pescoço’  [pe’kosu]

No entanto, nesses casos, às vezes, é possível constatar perceptualmente –


e, com maior grau de certeza, por meio de análise acústica13 – que há um alon-
gamento da vogal, como em (6):

(6)
‘bolsa’  [bo:sa]
Aquisição Fonológica do Português 31

Esse alongamento, chamado compensatório, constitui a comprovação de


que a criança tem conhecimento da sílaba CVC – com coda – embora ainda
não produza essa estrutura na fala.
Exemplo 3 – no nível segmental também podem ser encontradas evidên-
cias de conhecimento não realizado. Lamprecht (comunicação pessoal) traz
amostra de Isabela, de 2:3, que não produz o /r/ em coda absoluta e o substi-
tui por [l], do que resulta a produção mostrada em (7).

(7)
‘forte’  [‘fçltSi]

Na fala dessa menina temos, no mesmo momento, realizações esperadas


de /l/ em coda como [w], como se vê em (8).

(8)
‘sol’ – [sçw]
‘azul’  [a’zuw]

A partir dessas produções, podemos inferir que a menina sabe que existe
o /r/ em coda e também sabe que esse segmento é diferente do /l/; não po-
dendo produzi-lo, por motivos já explicitados na seção Estratégias de Reparo
deste capítulo, recorre à estratégia de substituição da não-lateral pela lateral.
O importante é que, ao não semivocalizar essa lateral em coda, sinaliza a
diferença entre /r/ e /l/ e demonstra seu conhecimento fonológico.
A constatação da existência de conhecimento fonológico, mesmo que não
concretizado, traz informações valiosas para os terapeutas, porque informa
sobre a potencialidade do paciente: aquele que evidenciar conhecimento
fonológico subjacente de um segmento ou de uma estrutura silábica terá me-
lhor prognóstico de tratamento do que outro que não demonstrar esse conhe-
cimento.

NOTAS

1. Na área específica da aquisição fonológica, destacam-se as pesquisadoras Eleonora


Albano (UNICAMP), Ester Scarpa (UNICAMP) e Leonor Scliar-Cabral (UFSC).
2. Com o decorrer do tempo, os estudos sobre aquisição fonológica foram levados
para outras universidades do Estado por pesquisadores titulados na PUCRS. Atual-
mente, estendem-se à Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), Universidade Fe-
deral de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Universi-
dade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA), Rede Metodista de Educação-IPA (anteriormente IMEC) e ao Centro
Universitário FEEVALE.
32 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

3. Para detalhes sobre essa evolução, veja listagem de pesquisas apresentada por
Lamprecht (2003) em número especial de Letras de Hoje comemorativo aos 20 anos
de pesquisas sobre Aquisição da Linguagem na PUCRS.
4. Especificamente aquelas realizadas na PUCRS e UCPEL.
5. Para o estudo da aquisição do português europeu indica-se a tese de doutorado de
Freitas (1997).
6. Veja-se a seção Estratégias de Reparo neste capítulo.
7. Aqui estão sendo referidas, exclusivamente, possíveis razões de ordem lingüística.
Isso não significa que se desconhecem ou descartam outros fatores, de natureza não-
lingüística, como, por exemplo, os emocionais.
8. Os exemplos de substituição de líquida são retirados do corpus de Vicente, aos 2:8;
os de metátese são de José, aos 4:0; o de epêntese é de Débora, aos 3:11. Todos os
demais são de Isabela, aos 1:10.
9. Embora seja um processo que ocorre no nível segmental, a não-realização de seg-
mento em onset simples afeta também o nível silábico pelo fato de eliminar o onset
da sílaba.
10. O input das crianças pode variar exatamente por ser determinado pelo grupo social
em que cada uma vive: os familiares, vizinhos, pessoas do bairro, da creche/escolinha.
11. Veja-se a seção Características Dialetais neste capítulo.
12. Esse exemplo, com suas implicações, é referido, pela primeira vez, em Hernandorena
(1990). Posteriormente, encontramos essa descrição em Ramos (1996), Magalhães
(2000) e Mota (2001).
13. O alongamento compensatório da vogal que precede uma coda não-realizada é discu-
tido no Capítulo 8, nas diferentes seções sobre estratégias de reparo utilizadas na
aquisição da coda.
Aquisição Fonológica do Português 33

2
Bases para o Entendimento
da AAquisição
quisição Fonológica
Carmen Lúcia Barreto Matzenauer

O PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA FONOLOGIA:


CONSIDERAÇÕES GERAIS

A aquisição da linguagem é tarefa complexa em virtude da natureza


das línguas naturais. Toda língua é um sistema constituído de diferentes
unidades – fonemas, sílabas, morfemas, palavras, frases – cujo funciona-
mento é governado por regras e/ou restrições. É exatamente para tentar des-
crever e explicar o funcionamento das línguas e dos subsistemas que as inte-
gram que têm sido formuladas diferentes teorias. Cada novo modelo teórico
pretende alcançar maior poder explicativo em relação a propostas anteriores.
Em se referindo ao componente fonológico das línguas, muitas têm sido
as teorias propostas, visando à mais detalhada descrição da fonologia e ao seu
mais completo entendimento.
Ao explicarem o funcionamento da fonologia dos sistemas lingüísticos,
as teorias têm também ajudado a elucidar o processo de aquisição de sons e
fonemas pela criança. Para que se compreenda com maior profundidade o
processo de aquisição da fonologia, é importante, portanto, que se conheçam
conceitos fundamentais relativos à fonologia e aos modelos teóricos a ela
relativos.
No período do empirismo clássico, achava-se que a aquisição de uma
língua ocorria por imitação, por analogia, por generalização de estímulo (e
34 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

outros mecanismos de aprendizagem), a partir dos padrões e das estruturas


mais freqüentes e mais salientes. Mas, se realmente o processo de aquisição
seguisse esse caminho, como se explicaria o fato de a criança formar frases ou
palavras que nunca ouviu? Figueira (1995), estudando a aquisição da morfo-
logia do português, mostra vários exemplos de palavras criadas por crianças,
que jamais foram ditas por adultos e que nunca pertenceram ao sistema da
língua. Em (1) estão ilustrados alguns desses exemplos.1

(1) a. Mãe: O leite tá quente.


Menina: Então diquenta. (3:11)

b. (a mãe fecha a caixa de brinquedos; decepcionada, a menina


diz)
Menina: Diabriu! (4:1)

c. (pedindo para a mãe tirar o laço do vestido)


Menina: Deslaça, mãe. (4:6)

A observação das produções lingüísticas apresentadas em (1) evidencia


que a criança aqui referida já adquiriu o prefixo de- ~ des- ~ dis- da língua
portuguesa e seu uso para expressar ação contrária, como em desfazer, dissociar
e decrescer, por exemplo. Com esse conhecimento da morfologia da língua, a
menina cria palavras, utilizando o prefixo adequado, com o sentido em que
efetivamente é utilizado na língua. No entanto, as palavras utilizadas não
poderiam ter sido antes ouvidas, pois não pertencem ao sistema lingüístico
em uso. Embora apresentando itens lexicais não pertencentes ao português,
esse uso constitui-se em uma prova de que a criança vai adquirindo gradual-
mente o sistema lingüístico e vai desenvolvendo um conhecimento internalizado
das unidades da língua e das regras de seu funcionamento para construir
significados e para estabelecer comunicação.
Uma teoria da língua tem de poder explicar o complexo processo de aqui-
sição da linguagem e o funcionamento das línguas naturais. Particularmente
sobre aquisição, é preciso explicar por que, embora haja diferenças indivi-
duais em uma mesma comunidade lingüística, crianças muito diferentes, com
experiências diversas ao extremo, chegam a possuir gramáticas comparáveis e
até praticamente idênticas, a não ser que apresentem desvios que afetem a
linguagem.
Para Chomsky (1965, 1986), é a faculdade da linguagem – um mecanis-
mo inato – que possibilita a aquisição de uma língua em período relativamen-
te pequeno de tempo, por qualquer criança considerada normal, a partir da
simples exposição a dados lingüísticos. Essa faculdade da linguagem dá aces-
so à Gramática Universal (GU), que se constitui, segundo a Teoria de Princípios
e Parâmetros (Chomsky, 1981), em um conjunto de princípios que caracteriza
as gramáticas possíveis, preconizando as formas, ou parâmetros, como as gra-
Aquisição Fonológica do Português 35

máticas particulares podem ser organizadas. A GU, portanto, é a essência co-


mum existente em todos os sistemas, a partir da qual cada língua estrutura a
sua gramática particular, ou seja, cada língua estabelece parâmetros a partir
de princípios universais. Se um princípio da GU estabelece que a estrutura da
sílaba pode conter três elementos – onset, núcleo e coda –, uma língua poderá
determinar que, em sua gramática, por exemplo, o onset e o núcleo são obri-
gatórios e a coda é opcional, enquanto na gramática de outra língua, por
exemplo, somente o núcleo poderá ser obrigatório, ficando o onset e a coda
como unidades opcionais.
De acordo com esse modelo teórico, a tarefa da criança – que tem acesso
à GU –, ao aprender uma língua, consiste unicamente em escolher, entre as
gramáticas compatíveis com os princípios da GU, aquela que é conciliável com
os dados com que se defronta na comunidade lingüística em que está inserida,
ou seja, cabe à criança estabelecer os valores dos parâmetros adequados à
língua que está sendo adquirida.2 Essa é uma tarefa de grande complexidade,
que exige ‘cálculos mentais’, exercícios de análise e de síntese, com relação a
todos os níveis, desde a fonologia, a morfologia e a sintaxe, até os outros
componentes que constituem a gramática de uma língua.3
Outra proposta teórica que tem implicações relativas à aquisição da lin-
guagem é o Conexionismo, que se estabeleceu como uma corrente da psicolo-
gia, causando impacto nas ciências cognitivas. O Conexionismo pressupõe es-
tar a base, tanto do funcionamento das línguas, como do processo de sua
aquisição, na formação de conexões neuroniais, ou seja, na constituição de
redes de associação ou teias de unidades neuroniais de processamento
interconectadas. Um importante aspecto das redes conexionistas é sua habili-
dade para aprender; em virtude disso, enfatiza Plunkett (2000) que, se o com-
portamento da rede, durante o treinamento de aprendizagem, imitar o com-
portamento da criança em seu processo de aquisição, pode trazer evidências
sobre seus diferentes estágios desenvolvimentais. É relevante salientar que os
modelos conexionistas pressupõem que o processamento é distribuído e em
paralelo: é distribuído, porque muitos são os neurônios e as conexões que, em
uma rede, participam da representação da informação; é em paralelo, porque
integra informações advindas simultaneamente de fontes múltiplas (Plunkett,
2000; Poersch, 1998). Para essa proposta teórica, portanto, adquirir conheci-
mento implica o estabelecimento de novas conexões neuroniais. Pesquisas atuais
estão investigando as capacidades potenciais de aprendizagem dos sistemas
conexionistas relativamente a diferentes componentes das línguas naturais,
particularmente à fonologia, à morfologia, à sintaxe e à semântica.
As análises apresentadas nos capítulos subseqüentes fundamentam-se em
modelos teóricos gerativos que têm raízes nas propostas de Chomsky e apre-
sentam o inatismo como pressuposto básico. Essa perspectiva teórica prevê
que a criança, como todo ser humano, detenha um conjunto de informações
lingüísticas como parte de um programa genético. Segundo essa linha teórica,
a informação lingüística geneticamente armazenada é responsável pela criati-
36 Regina Ritter Lamprecht (Org.)

vidade, ou seja, pela capacidade da criança de produzir formas lingüísticas


nunca antes ouvidas, e pela reconstrução da estrutura da língua, ou seja, pela
capacidade da criança de, a partir de um input lingüístico constituído mesmo
de dados fragmentados, reconstituir a estrutura da língua e construir o conhe-
cimento do sistema que está sendo adquirido.

O NÍVEL FONOLÓGICO DA LÍNGUA

Para entendermos o funcionamento e o processo de aquisição do nível


fonológico da língua, é preciso conhecermos algumas noções fundamentais
relativas a essa área. Um primeiro aspecto diz respeito à diferença entre som e
fonema e, conseqüentemente, entre fonética e fonologia.
Consideram-se sons da fala aqueles emitidos pelo aparelho vocal huma-
no e que ocorrem nas línguas do mundo. A descrição desses sons, do ponto de
vista articulatório, acústico e auditivo, é objeto da fonética. Interessa, pois, à
fonética a realidade física dos sons da língua, ou seja, o que as pessoas fazem
quando falam (a realidade dos sons que efetivamente produzem) e o que
ouvem quando alguém lhes fala.
Consideram-se fonemas de uma língua aqueles sons que são pertinentes
para a veiculação de significado, isto é, os sons que distinguem significados
entre palavras da língua. Ao observarmos, por exemplo, os pares pata/bata,
fala/vala e cinco/zinco, podemos afirmar que /p/, /b/, /f/, /v/, /s/, /z/ são
fonemas do português, porque distinguem palavras da língua. Diferentemen-
te, os sons [t] e [tS ], nas duas formas diversas de realização da palavra ‘tia’,
por exemplo, não distinguem significado em português e, portanto, funcio-
nam como alofones ou variantes de um mesmo fonema. A descrição dos
fonemas, de sua distribuição e organização em cada sistema lingüístico é ob-
jeto da fonologia. À fonologia, portanto, importam os sons usados distintiva-
mente em uma língua e seus padrões de funcionamento.
Para os estudos de aquisição da linguagem, as distinções acima referidas
são de extrema relevância, uma vez que adquirir uma língua implica empre-
gar adequadamente os fonemas que integram o seu sistema fonológico, bem
como realizar os sons que caracterizam o inventário fonético do dialeto da
comunidade em que o aprendiz está inserido – a criança precisa aprender a
reconhecer os sons que são distintivos (fonemas) e os sons que são redundan-
tes (variantes ou alofones) em sua língua.
Todo falante possui uma representação fonológica, mais abstrata, que con-
tém os fonemas que identificam a língua, e uma representação fonética, cons-
tituída pelos sons, de acordo com suas propriedades articulatórias e acústicas,
indicando como a palavra é realizada. A primeira aproxima-se da representa-
ção mental que os falantes têm dos itens lexicais, constituindo o que Chomsky
(1968) chamou de estrutura subjacente; a segunda aproxima-se da chamada
representação de superfície, da forma fonética efetivamente realizada. Se-
Aquisição Fonológica do Português 37

gundo a Fonologia Gerativa Clássica (Chomsky e Halle, 1968) – que é um


modelo teórico derivacional –, a relação entre esses dois tipos de representa-
ção é estabelecida por meio de regras. Em (2a) e (2b), vemos exemplos do
mapeamento estabelecido entre a representação fonológica (representada entre
barras) e a representação fonética (representada entre colchetes): a partir da
representação fonológica, por meio de regras, é derivado o output fonético.

(2a) /bolo/ REPRESENTAÇÃO SUBJACENTE


‘bolo Regra de acentuação
‘bolu Regra de neutralização da vogal átona final
[‘bolu] FORMA FONÉTICA

(2b) /time/ REPRESENTAÇÃO SUBJACENTE


‘time Regra de acentuação
‘tSime Regra de palatalização
‘tSimi Regra de neutralização da vogal átona final
[‘tSimi] FORMA FONÉTICA

No exemplo (2b), em dialetos em que não há a palatalização, a forma


fonética realiza-se como [‘timi], pois não é aplicada a regra que transforma a
plosiva /t/ na africada [tS] antes da vogal [i], ou seja, o funcionamento da
fonologia desses dialetos não contém esse nível derivacional.
Dentre os modelos fonológicos derivacionais mais recentes destacam-se
a Teoria Autossegmental, a Teoria da Sílaba, a Teoria Métrica, a Teoria Lexical
e a Teoria Prosódica. Os estudos sobre o processo de aquisição da fonologia
das línguas têm fundamentado, nessas teorias, suas investigações e análises
na última década.
Outro recente modelo teórico que merece ser destacado é a Teoria da
Otimidade (Optimality Theory – OT), que se caracteriza por ser não-
derivacional. Na OT há o pressuposto de que o processamento lingüístico não
se dá de forma serial, como defendiam os modelos derivacionais, cujo funcio-
namento está exemplificado em (2): nesse novo modelo, há o entendimento
de que a representação fonológica – chamada de input – se relaciona com o
output fonético por um processamento lingüístico que ocorre em paralelo.
Para a OT, o mapeamento entre input e output não se dá por meio da aplicação
de regras, mas pela avaliação de candidatos a output com base em uma hierar-
quia de restrições. Segundo a OT, integra a GU um conjunto de restrições, que
são universais e violáveis, as quais são hierarquizadas diferentemente em cada
sistema lingüístico. Portanto, a OT concebe o funcionamento de toda gramáti-
ca com base no ranqueamento de restrições, sendo que cada língua tem sua
especificidade determinada por uma hierarquia particular de restrições uni-
versais.4 Nos últimos anos começaram a ser realizados estudos sobre a aquisi-
ção da fonologia, inclusive sobre a aquisição do português brasileiro, com
base na OT.

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