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05/04/2023, 16:01 Inteiro Teor - HTML.

PODER JUDICIÁRIO
----------RS----------

Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
4ª Câmara Cível
Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 5143665-13.2022.8.21.7000/RS


TIPO DE AÇÃO: Unidade de terapia intensiva (UTI) / unidade de cuidados intensivos (UCI)
RELATOR: DESEMBARGADOR EDUARDO UHLEIN
AGRAVANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

Trata-se de agravo de instrumento interposto por SANDRA NORECI


CORREA DA SILVA contra a decisão que, nos autos da ação ajuizada por/em face de
HOSPITAL DE CARIDADE FREI CLEMENTE e LETICIA DA SILVA NEVES,
indeferiu a tutela de urgência objetivando que o hospital demandado realizasse o
procedimento necessário (transfusão de sangue) para salvar a vida de Letícia da Silva
Neves.

A decisão restou assim redigida:

1. Defiro a gratuidade da Justiça. Anote-se.

2. Cadastre-se LETICIA DA SILVA NEVES como requerida, já que se requer um


provimento jurisdicional contra a sua vontade.

3. Em resumo, trata-se de ação ordinária em que se requer "seja deferido o pedido de


forma liminar, determinando que o requerido realize o procedimento necessário para
salvar a vida de Leticia: transfusão de sangue". A paciente - e requerida - Letícia está em
estado grave e necessita de transfusão de sangue, conforme atestado médico juntado
(evento 01, "Atestado Médico 5"). Porém, a paciente, enquanto consciente, recusou-se,
por convicção religiosa (Testemunha de Jeová), ao recebimento de tranfusão (evento 01,
"outros 07", documento com firma autenticada em Cartório). Por tal razão, a mãe de
Letícia, Sandra Noreci, ajuíza a presente ação.

É essencial que se inicie por demonstração de compadecimento à Senhora Sandra, mãe


de Letícia. Intui-se e quase se sente a mesma dor. Em mentes atéias ou agnósticas, tem-se
mesmo por inexplicável a possibilidade de perda de uma vida por convicção religiosa.

Porém, é necessário ter empatia, também, a Letícia. Não, Letícia, não há um dever de
viver. É um direito, não um dever. Um direito que traz ínsito, de modo inafastável -
inafastável, vale repetir -, que a vida seja vivida com dignidade. Dignidade que não há
como ser desatrelada da liberdade religiosa e de sua convicção professada por Letícia.
Não. Letícia não é obrigada a viver sem se reconhecer, sem se aceitar, nem sem a
aceitação dos seus.

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Tais palavras, talvez, não confortem Sandra. Espera-se que confortem, mas talvez não.
De todo modo, é necessário que a mãe Sandra saiba que não são essas palavras que,
talvez, por respeito à própria dignidade de Letícia, condenem essa amada filha à não vida
(e, paralelamente, evitem uma vida em indignidade).

Primeiro, porque há técnicas outras de salvamento, que dispensam a transfusão. O


Ministério Público Federal, inclusive, há alguns meses, ajuizou ação civil pública em face
da União para obrigar esse ente federado à disponibilização de tais técnicas pelo SUS
(http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/mpf-ajuiza-acao-que
busca-a-revisao-de-politicas-publicas-para-tratamentos-medicos-com-transfusao-de
sangue ).

Segundo, porque se tem decidido desta forma em inúmeros Tribunais. Não se tem, aqui,
uma decisão conforme, exclusivamente, a consciência desse magistrado. O Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, tem o seguinte precedente:

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO


ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE.
DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO
QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu
a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim
de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro
momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de
sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas,
especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente
submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido
necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a
preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa,
podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do
direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica
violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito
calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja
submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO
PROVIDO.(Agravo de Instrumento, Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em: 06-
05-2010).

Legalmente, a decisão supra está amparada pelo direito constitucional à liberdade


religiosa e pelo artigo 15 do Código Civil, bem como pelo artigo 10, cabeça, da Lei de
Transplantes (Lei 9.434/97), que diz expressamente: "o transplante ou enxerto só se
fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera,
após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento".

A questão está submetida ao Supremo Tribunal Federal - Tema 1.069 de repercussão


geral. Embora não julgado pela Corte, o respectivo Recurso Extraordinário já tem
parecer da Procuradoria Geral da República com a seguinte ementa:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. DIREITOS


FUNDAMENTAIS REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 1.069. CIRURGIA SEM
TRANSFUSÃO SANGUÍNEA. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.
AUTODETERMINAÇÃO. LIBERDADE DE CRENÇA. CONDICIONANTES.
PROVIMENTO. 1. Recurso extraordinário, leading case do Tema 1.069 da
sistemática da repercussão geral: “o direito de autodeterminação dos testemunhas
de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem
transfusão de sangue, em razão de sua consciência religiosa". 2. A dignidade da
pessoa humana, um dos fundamentos da República brasileira (Constituição
Federal, art. 1º, IV), está intimamente relacionada à liberdade positiva, também
denominada de autonomia ou autodeterminação, que é a capacidade de tomar
decisões sem ser cerceado por terceiros ou pelo Estado, em que se insere o direito
à inviolabilidade de consciência e de crença. 3. O direito de escolha do tratamento
médico pelo paciente, por motivos religiosos, há de ser respeitado, no exercício de
sua autonomia e liberdade individual, quando existente forma de tratamento
alternativa eficaz. 4. A realização de procedimento médico, sem a utilização de
hemoderivados ou de outra medida excepcional, há de ser atestada

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como viável pela equipe médica responsável e acompanhada do consentimento
esclarecido do indivíduo que se irá submeter ao procedimento acerca de seus
riscos. 5. A decisão de recusar tratamento de saúde, por convicção religiosa, há de
estar delimitada no âmbito individual, sem que haja o envolvimento de crianças,
adolescentes ou incapazes e risco à saúde pública e à coletividade. 6. Propostas de
teses de repercussão geral: I – É permitido ao paciente recusar-se a se submeter a
tratamento de saúde, por motivos religiosos, como manifestação positiva de sua
autodeterminação e de sua liberdade de crença. II – A recusa a tratamento de
saúde, por motivos religiosos, é condicionada à decisão inequívoca, livre,
informada e esclarecida do paciente; ao não envolvimento de crianças,
adolescentes ou incapazes; e à ausência de risco à saúde pública e à coletividade.
III – É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo
sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea
ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso,
anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre,
informada e esclarecida do paciente. — Parecer pelo provimento do recurso
extraordinário, com a fixação das teses sugeridas.

Nos Estados Unidos da América, conhece-se o Caso Brooks, em que o Tribunal de


Apelação do Estado de Illinois reconheceu o direito de um paciente de religião
Testemunha de Jeová a recusar transfusões de sangue não desejadas. No Canadá, no
Caso Mallete vs. Schulman, a Corte de Apelação de Ontário decidiu que um adulto capaz
pode recusar tratamento médico por questões de convicção religiosa, ainda que o leve à
morte. Há decisões em diversos outros países, como Chile e Argentina.

Portanto, em vista de todo o exposto, é necessário, no caso, que se respeite a clara e


inequívoca intenção de Letícia, manifestada conscientemente, com firma autenticada em
Cartório, em exercício de sua liberdade religiosa, a qual, enfatize-se, compõe, de modo
essencial, como condição existencial, o seu ser, a sua existência, a sua vida, que só existe
em dignidade.

Com esses fundamentos e com o maior e mais sincero compartilhamento de dor com a
requerente Sandra, INDEFIRO o pedido.

Procedida a intimação urgente da parte autora pelo Sistema Eproc. Não obstante,
intimem-se os Procuradores por telefone, com urgência, a fim de que possam manejar,
com urgência, o competente recurso.

Em expediente, citem-se.

Recebido o recurso no plantão Jurisdicional, restou indeferida a tutela


recursal, decisão que restou confirmada pelo Relator original.

Os embargos de declaração opostos pela agravante foram desacolhidos.

Intimada, a parte agravada deixou transcorrer in albis o prazo para


apresentar contrarrazões.

Com vista dos autos, o Ministério Público opinou pelo conhecimento e


desprovimento do agravo de instrumento.

VOTO

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.

Investe a agravante contra a decisão que indeferiu a tutela de urgência


objetivando que o hospital demandado realizasse o procedimento necessário (transfusão
de sangue) para salvar a vida de Letícia da Silva Neves, que é Testemunha de Jeová.

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A inconformidade não merece prosperar.

A demandada Letícia da Silva Neves externou a sua crença religiosa, a


pouco meses, inclusive quando já em tratamento de saúde para Mielodisplasia ou
Síndrome Mielodisplásica, mas "em pleno gozo de suas faculdades mentais e livre de
qualquer erro, dolo ou coação", através do documento "Diretivas Antecipadas e
Procuração para Tratamento de Saúde" (Evento 1, OUT7), no qual declarou ser
Testemunha de Jeová e "não aceito NENHUMA TRANSFUSÃO de sangue total,
glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma em nenhuma
circunstância, mesmo que os profissionais de saúde opinem que isso seja necessário
para a manutenção da minha vida." e, ainda, que "não concedo a ninguém (incluindo
meu procurador) autoridade para desconsiderar ou anular minhas instruções expressas
neste documentos. Familiares, parentes ou amigos talvez discordem das minhas
decisões, mas qualquer discordância da parte deles não diminui a força ou a substância
da minha recusa de sangue ou de mais instruções.". No documento, Letícia apontou
como Procurador, para para o caso de ficar inconsciente, Armindo Alves Júnior e como
Procurador Alternativo Daniel Nunes Mendes. Confirma-se o documento em comento:

Note-se que a manifestação de vontade de Letícia é taxativa e apontou que


remanesce mesmo diante da discordância de familiares, parentes ou amigos, o que
parece ser justamente o caso em tela.

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É certo que a questão é por demais sensível, e não se está, aqui, a


desconsiderar a dor e o imenso sofrimento dos familiares e amigos em relação ao estado
de saúde de Letícia e o forte desejo do seu pronto restabelecimento; contudo, não cabe
ao Poder Judiciário autorizar ou ordenar tratamento médico quando a paciente adulta,
maior e capaz, manifestou de modo inequívoco e expressamente sua vontade, em razão
do exercício de sua crença religiosa constitucionalmente assegurada, de não se submeter
à transfusão sanguínea.

A respeito da complexa questão aqui apreciada, o professor e Ministro do


Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, quando da elaboração do parecer
intitulado "Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de
Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas", analisou a colisão entre o
Direito à Vida e Liberdade de Religião, fazendo as seguintes ponderações:

"A liberdade de religião é um direito fundamental, uma das liberdades básicas do


indivíduo, constituindo escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela
sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença
religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade
da pessoa humana. 3. A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando
presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno,
o que significa dizer: válido, inequívoco, livre e informado."

Ao analisar o aspecto da vida como direito fundamental e como valor


objetivo ressaltou que:

"(...)

Em suma: o valor objetivo da vida humana desfruta de uma posição preferencial no


ordenamento jurídico, podendo o direito à vida ser considerado indisponível prima facie.
Nada obstante, não se trata de um direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e
legais em que se admite a sua flexibilização. A assunção do risco de morte poderá ser
legítima quando se trate do exercício de outras liberdades básicas pelo titular do direito.
Impõe-se, nesse ambiente, uma análise caso a caso, na qual se possam analisar os
diferentes elementos em jogo, com destaque para a repercussão das restrições sobre o
conceito do próprio indivíduo acerca de sua dignidade. A discussão sobre a recusa de
tratamento médico por fundamento religioso insere-se nesse contexto e será abordada em
tópico próprio."

Já quanto ao aspecto liberdade religiosa, o eminente constitucionalista asseverou que:

(...)"

Em conclusão: a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra


o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão
nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não pode impor
uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da
comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. A pergunta que resta
responder é a seguinte: pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para
impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal?
Este é um caso-limite que contrapõe o paternalismo à autonomia individual. A
indagação não comporta resposta juridicamente simples nem moralmente barata.

No que diz respeito à legitimidade da recusa de tratamento médico por


fundamento religioso, esclareceu que:

"As testemunhas de Jeová professam a crença religiosa de que introduzir sangue no


corpo pela boca ou pelas veias viola as leis de Deus, por contrariar o que se encontra
previsto em inúmeras passagens bíblicas. Daí a interdição à transfusão de sangue
humano, que não pode ser excepcionada nem mesmo em casos emergenciais, nos quais
exista risco de morte. Por essa razão, as testemunhas de Jeová somente aceitam
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submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que


fazem das passagens bíblicas relevantes. Tal visão tem merecido crítica severa de adeptos
de outras confissões e de autores que têm se dedicado ao tema, sendo frequentemente
taxada de ignorância ou obscurantismo. Por contrariar de forma
intensa o senso comum e por suas consequências potencialmente fatais, há quem sustente
que a imposição de tratamento seria um modo de fazer o bem a esses indivíduos, ainda
que contra sua vontade. Não se está de acordo com essa linha de entendimento. A crença
religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da
qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão
compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade
humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV).

(...)

Relembre-se, como já assinalado, que a ordem jurídica respeita até mesmo decisões
pessoais de risco que não envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar
esportes como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação humanitária em
zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar escolhas existenciais. Por tudo isso, é
legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das
testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito
fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de
fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como
expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento
médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder
Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida
como expressão de sua dignidade.".

Ao assentar a possibilidade de recusa de tratamento pelas testemunhas de


Jeová, o Ministro Barroso lembra ainda que a questão da validade e da adequação da
manifestação de vontade requer o consentimento genuíno, sustentando que para que
ele se caracterize, é imperativo verificar a presença de aspectos ligados ao sujeito do
consentimento, à liberdade de escolha e à decisão informada nos seguintes termos:

"O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá


manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá
ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-
la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar
sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma
situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de
medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se
repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso
e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se
admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento. A decisão,
ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico.

Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável,
inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual,
manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável.

Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de
uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter
sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por
derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a
compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências
de sua decisão. Nessa linha, os elementos relevantes devem ser transmitidos em
linguagem acessível ao indivíduo, conforme indicado na Carta dos Direitos dos Usuários
da Saúde (Portaria MS nº 675/2006), em seu Terceiro Princípio, item IV, e na Lei
Estadual (RJ) nº 3.613/2001.".

Ademais, como já foi apontado nestes autos, sem que novidade alguma
tenha aportado, inexiste evidência segura de que inexista qualquer outra terapêutica,
afora a transfusão de sangue, capaz de assegurar a sobrevivência da

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paciente, que informou recusar-se a tal procedimento.

E, no ponto, o atestado médico apresentado com os declaratórios


tampouco não aponta que a transfusão de concentrado de hemácias seja a única opção
possível para o tratamento de Letícia, limitando-se em indicar que "traria consideráveis
benefícios na sua melhora", o que, em um exame preliminar, mostra-se insuficiente para
viabilizar a tutela de urgência pretendida.

Observo, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal no RE nº


1212272RG/AL (Tema 1069)1reconheceu que a controvérsia referente ao direito de
autodeterminação confessional dos testemunhas de Jeová em submeter-se a tratamento
médico realizado sem transfusão de sangue possui natureza constitucional e inegável
relevância, além de transcender os interesses subjetivos da causa, a qual ainda está em
processamento. Portanto, até que matéria seja apreciada e a tese fixada pela Suprema
Corte, evidente que não haverá consenso entre os operadores do direito quando da
eventual colisão entre direitos fundamentais (direito à vida x direito à liberdade
religiosa).

A propósito:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO.
TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS
FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A
DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão
sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A
postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou
atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com
tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue.
Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não
concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico
que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da
crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio.
Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não
implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito
calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a
tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO.(Agravo
de Instrumento, Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em: 06-05-2010).

Impende ressaltar, por fim, que o parecer da ilustre Procuradora de Justiça


Vera Lúcia Gonçalves Quevedo também é pelo desprovimento do agravo.

Diante do exposto, voto por negar provimento ao agravo de instrumento.

Documento assinado eletronicamente por EDUARDO UHLEIN, Desembargador, em 30/11/2022, às 18:21:59,


conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site
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Signatário (a): EDUARDO UHLEIN
Data e Hora: 30/11/2022, às 18:21:59

1. Tema: 1069 Título: Direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento
médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa. Descrição: Recurso
extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, inciso III; 5º, caput e incisos II, VI e VIII; e 196 da
Constituição Federal, o direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento
médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa.

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Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
4ª Câmara Cível
Avenida Borges de Medeiros, 1565 - Porto Alegre/RS - CEP 90110-906

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 5143665-13.2022.8.21.7000/RS


TIPO DE AÇÃO: Unidade de terapia intensiva (UTI) / unidade de cuidados intensivos (UCI)
RELATOR: DESEMBARGADOR EDUARDO UHLEIN
AGRAVANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

EMENTA

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO


ESPECIFICADO. SAÚDE. GENITORA QUE BUSCA ORDEM
JUDICIAL PARA QUE O HOSPITAL REALIZE TRANSFUSÃO
DE SANGUE NA PACIENTE/DEMANDADA QUE É
TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TUTELA DE URGÊNCIA.
AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 300, DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL.

1. A demandada/paciente externou a sua crença religiosa há pouco meses,


inclusive quando já em tratamento de saúde para Mielodisplasia ou Síndrome
Mielodisplásica, mas em pleno pleno gozo de suas faculdades mentais e livre
de qualquer erro, dolo ou coação através do documento denominado
"Diretivas Antecipadas e Procuração para Tratamento de Saúde", no qual
declarou ser Testemunha de Jeová e que não aceita nenhuma transfusão de
sangue total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma em
nenhuma circunstância, mesmo que os profissionais de saúde opinem que isso
seja necessário para a manutenção da vida e que haja discordância de
familiares, parentes ou amigos.

2. A liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de


escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão
nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não
pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo
para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais
pessoas. Controvérsia referente ao direito de autodeterminação confessional
dos testemunhas de Jeová em submeter-se a tratamento médico realizado sem
transfusão de sangue possui natureza constitucional, sendo objeto do RE nº
1212272RG/AL (Tema 1069) pelo Pretório Excelso, o qual ainda está em
processamento.

3. Conforme clarividente doutrina de Luis Roberto Barroso, adotada pelo


relator, "a crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida,
uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem
sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do
direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos
fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV)"

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4. Caso em que o atestado médico não aponta que a transfusão de
concentrado de hemácias seja a única opção possível para o tratamento da
paciente/demandada, limitando-se em indicar que "traria consideráveis
benefícios na sua melhora", o que, em um exame preliminar, mostra-se
insuficiente para viabilizar a tutela de urgência pretendida.

5. Tutela de urgência indeferida na origem.

AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a


Egrégia 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
decidiu, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos
do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do
presente julgado.

Porto Alegre, 23 de novembro de 2022.

Documento assinado eletronicamente por EDUARDO UHLEIN, Desembargador, em 30/11/2022, às 18:21:59,


conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site
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Data e Hora: 30/11/2022, às 18:21:59

Poder Judiciário
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO VIRTUAL DE 23/11/2022

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 5143665-13.2022.8.21.7000/RS


RELATOR: DESEMBARGADOR EDUARDO UHLEIN
PRESIDENTE: DESEMBARGADOR VOLTAIRE DE LIMA MORAES
PROCURADOR(A): SEGREDO DE JUSTIÇA
AGRAVANTE: SEGREDO DE JUSTIÇA
ADVOGADO: ALISSON FERRONATO DOS SANTOS (OAB RS058880)
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA
ADVOGADO: VILSON FERREIRA BICUDO (OAB RS027756)
AGRAVADO: SEGREDO DE JUSTIÇA

Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Virtual do dia 23/11/2022, na
sequência 256, disponibilizada no DE de 11/11/2022.

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05/04/2023, 16:01 Inteiro Teor - HTML.

Certifico que a 4ª Câmara Cível, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a


seguinte decisão:
A 4ª CÂMARA CÍVEL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO
AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: DESEMBARGADOR EDUARDO UHLEIN


VOTANTE: DESEMBARGADOR EDUARDO UHLEIN
VOTANTE: DESEMBARGADOR FRANCESCO CONTI
VOTANTE: DESEMBARGADOR VOLTAIRE DE LIMA MORAES
ANA PAULA FABRIS VIDAL
Secretária
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