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Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a
Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente), Nancy
Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
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RECURSO ESPECIAL Nº 1.860.649 - SP (2018/0335830-4)
RELATOR : MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
RECORRENTE : C N DA S
OUTRO NOME : N DA S
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PAULA MANZELLA ROMANO - DEFENSORA PÚBLICA - SP323945
RELATÓRIO
Sustenta que, desde sua infância, "sente-se mulher e vê seu sexo físico
inadequado em relação ao seu sexo psicológico e social" e que "todas as vezes que se
apresenta em local onde é exigida a apresentação de identificação civil há clara ofensa à sua
dignidade humana" (fl. 167 e-STJ).
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que, além de ser extremamente invasivo, não está disponível para atender a integralidade da
demanda, destacando que, em alguns casos, "há inclusive vedação médica para cirurgia" (fl.
169 e-STJ).
É o relatório.
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RECURSO ESPECIAL Nº 1.860.649 - SP (2018/0335830-4)
EMENTA
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VOTO
1. Breve histórico
O Tribunal local entendeu ter ficado demonstrado nos autos que a autora
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realmente era submetida a situações constrangedoras em virtude do prenome masculino N. No
entanto, a despeito disso, considerou que a alteração como postulada, ou seja, a substituição
de N. pelo prenome feminino C., não seria necessária, pois o simples acréscimo do prenome C.
já bastaria para cessar o constrangimento.
De início, cumpre esclarecer que transexual é a pessoa que não se identifica com
o seu sexo anatômico natural, manifesta o desejo de eliminar os genitais, de perder as
características primárias e secundárias do sexo de seu nascimento e de ganhar as do sexo
oposto. Há uma repulsa pelo próprio corpo.
Já em seu aspecto público, o direito ao nome, como destacado por Maria Helena
Diniz, "(...) decorre do fato de estar ligado ao registro da pessoa natural (Lei nº 6.015, arts. 54,
nº 4 e 55), pelo qual o Estado traça princípios disciplinares ao seu exercício" (Curso de Direito
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Civil Brasileiro, 24ª edição, pág. 201).
“(...)
Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:
1°) o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo
possível determiná-la, ou aproximada;
2º) o sexo do registrando;
(...)
4º) o nome e o prenome, que forem postos à criança;
(...)
Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial
lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se
forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo
reconhecimento no ato.
Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão
prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os
pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o
caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz
competente.
Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a
maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o
nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a
alteração que será publicada pela imprensa.
Art. 57. A alteração posterior de nome, somente por exceção e
motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por
sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e
publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta
Lei.
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua
substituição por apelidos públicos notórios” (grifou-se).
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Observa-se, assim, que a alteração do prenome é possível nas hipóteses em que
o nome civil causar constrangimentos ao indivíduo.
Como destacado por Olga Fernandes de Moura Leite, “não se trata de renúncia
da pessoa ao seu direito ao nome, mas sim do nascimento de uma verdadeira identidade que
estava oculta” (“As pessoas que passarem por procedimentos de redesignação sexual têm
direito à alteração do prenome e do gênero no registro civil de nascimento”, In: ARRUDA ALVIM
et al. (coord.). Teses jurídicas dos tribunais superiores: Direito Civil II. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2017. Pág. 1.124).
A ideia é que o direito ao nome e de se identificar com esse nome decorre do fato
de que os direitos de personalidade são condições que garantem a plena cidadania, o exercício
de outros direitos, deveres e responsabilidades e, por isso, não devem ser condicionados à
realização de uma intervenção cirúrgica.
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prenome se traduz no maior objetivo do transexual, que, com essa conquista,
passa a ter dirimidas todas as dúvidas a respeito de sua identidade perante a
sociedade, dando-lhe a segurança física e moral, respeito à sua dignidade e a
oportunidade profissional necessária a fim de conviver em total equilíbrio, de
modo seguro e pacífico” (FUSSEK, LIGIA DOS SANTOS. “Os Direitos Civis do
Transexual em Relação à Mudança de Gênero e Prenome”. In: Revista Síntese
de Direito: Família, São Paulo, v. 15, n. 82, fev./mar. 2014).
Embora o uso do nome social não altere o registro civil, ele é uma forma de
garantir o respeito às pessoas transexuais, evitando constrangimentos públicos, pois permite a
identificação da pessoa por nome adequado ao gênero com o qual ela se identifica.
O uso do nome social está, inclusive, amparado pelo Decreto nº 8.727/2016, que
permite aos portadores de nomes sociais sua utilização em órgãos da administração pública
federal direta, autárquica e fundacional.
Destaca-se da lista acima o fato de que o nome social deve ser uma escolha
pessoal do indivíduo, que seja aceito por ele como parte de sua identidade, não cabendo a
quem quer que seja escolher ou impor o uso do nome social a ser utilizado.
Essa mesma autonomia deve ser estendida para o nome civil. O direito de
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escolha, quando o nome civil indicado no registro de nascimento se revelar incompatível com a
identidade sexual do seu portador e se pretender a alteração registral, é uma decorrência da
autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar.
Dessa forma, não havendo impedimentos legais para que o indivíduo altere o seu
prenome no registro civil, de modo a adequar seus documentos à realidade por ele vivenciada e
minimizar os constrangimentos enfrentados no seu cotidiano, também não há razões para não
aceitar e reconhecer o nome escolhido pela autora para essa modificação.
Não cabe a nenhum outro sujeito que não seja o próprio indivíduo decidir se o
mero acréscimo de um prenome feminino seria suficiente ou não para cessar os
contrangimentos, sobretudo quando consta dos autos que “a alteração do prenome não
objetiva descumprimento de obrigações” (fl. 157 e-STJ), tendo a autora juntado aos autos
certidões negativas expedidas pelos Distribuidores e Tabelionados do Estado de São Paulo,
onde possui domicílio (fls. 26/39 e-STJ).
Assim, o registro civil da autora deve ser alterado para que conste o
prenome feminino C., escolhido por ela, seguido pelo nome de família, “da S.”, sem nenhuma
referência ao prenome masculino.
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também merece reparos.
Convém registrar que o artigo 15 do Código Civil estabelece que “ninguém será
constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.
Além disso, embora a cirurgia para redesignação de sexo tenha como objetivo
melhorar a saúde do paciente, tanto no aspecto psicológico quanto no morfológico, não sendo
uma cirurgia estética, é preciso ressaltar que não se trata de procedimento simples. A etapa
que antecede a cirurgia costuma durar 2 (dois) anos, pois é necessário que o paciente seja
acompanhado por equipe multidisciplinar de profissionais entre eles: endocrinologista,
psicólogo, neuropsiquiatra, psicanalista, cirurgião plástico e geneticista.
Logo, não são todos os transexuais que desejam a cirurgia que estarão aptos
para se submeterem ao procedimento, tampouco todos os transexuais pretendem se submeter
à intervenção cirúrgica, seja por razões financeiras, por receio de complicações médicas ou
pela vontade de manter seus órgãos reprodutores.
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Vários países já respaldam essa concepção de proteção da dignidade humana.
Na Suécia, por exemplo, em 2012, o Tribunal Administrativo de Apelações entendeu que, se os
indivíduos são compelidos a sofrer a esterilização para o fim de obter o reconhecimento de
gênero, a cirurgia não pode ser vista como uma escolha voluntária. Por essa razão, considerou
a exigência da cirurgia uma invasão da privacidade da pessoa. No mesmo sentido, em 2014, a
Dinamarca alterou os requisitos para a mudança de gênero, retirando deles a submissão à
cirurgia de redesignação.
Confira-se:
Com efeito, o STF ampliou o alcance das normas que permitem a alteração do
registro civil, fazendo prevalecer os direitos de personalidade e, sobretudo, o princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).
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Desse modo, não há como negar à autora o direito de alterar o gênero que
consta em seu registro civil, devendo o recurso especial ser provido também quanto a esse
aspecto.
4. Do dispositivo
É o voto.
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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : C N DA S
OUTRO NOME : N DA S
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PAULA MANZELLA ROMANO - DEFENSORA PÚBLICA - SP323945
ASSUNTO: REGISTROS PÚBLICOS - Registro Civil das Pessoas Naturais - Retificação de Nome
SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr(a). RAFAEL RAMIA MUNERATTI, pela parte RECORRENTE: C N DA S
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na
sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do
voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi e
Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
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