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O PAPEL DO

PSICÓLOGO ESCOLAR

Carmem Silvia de Arruda Andaló


Professora do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina
A Psicologia Escolar vem sendo indivíduo" (l-pg.24). Caberia aqui cam centrados no aluno, isto é, a
considerada até agora como uma discutir e esclarecer a natureza de responsabilidade dos insucessos e
área secundária da Psicologia, tal ajustamento. dos fracassos recai sempre sobre
vista como relativamente simples, Dada a possibilidade de se in- o educando. O papel do psicólogo
não requerendo muito preparo, terpretar a perspectiva de preven- escolar seria então o daquele pro-
nem experiência profissional. ção como uma questão meramente fissional que tem por função tra-
Dentro da instituição-escola é adaptativa, é que, no presente ar- tar estes alunos-problema e
pouco valorizada, até mesmo dis- tigo, procuramos analisar duas devolvê-los à sala de aula "bem
pensável, haja vista a inexistên- abordagens frequentemente en- ajustados".
cia de serviços dessa natureza, en- contradas com relação ao papel do Na medida em que os problemas
quanto os de Orientação educacio- psicólogo escolar, e propomos são equacionados em termos de
nal e Supervisão escolar são pre- uma terceira alternativa, que é a saúde x doença, fica o papel do
vistos e regulamentados por lei. deste profissional como agente de psicólogo investido de um caráter
Essa perspectiva, que nos pare- mudanças. onipotente, uma vez que seria o
ce bastante equivocada e inade- portador de soluções mágicas e
quada, talvez provenha do fato de prontas para as dificuldades en-
que, historicamente, a área esco- O PSICÓLOGO frentadas. Por outro lado, acaba
lar tenha-se caracterizado como ESCOLAR por estabelecer uma relação de as-
um desmembramento da área CLÍNICO simetria, verticalidade e poder
clínica, o que gerou a visão de dentro da instituição, uma vez
uma Psicologia Escolar clínica. que lhe é atribuída a decisão e o
Uma outra abordagem seria a Está implícita nessa visão de julgamento a respeito da adequa-
da ação preventiva da Psicologia Psicologia Escolar uma vincula- ção ou inadequação das pessoas
Escolar. Prevenir significa ção com a área de saúde mental, em geral. São as duas faces de
"antecipar-se a", "evitar", onde os problemas são equaciona- uma mesma moeda — de um lado
"livrar-se d e " , "impedir que algo dos em termos de saúde x doença, o mágico, o salvador, e do outro,
suceda". No contexto da escola o o que na escola se retraduz como um elemento altamente persecutó-
que se pretenderia evitar ou impe- problemas de ajustamento e adap- rio e ameaçador. E s s a dupla ima-
dir? A existência de problemas, tação. O que nos parece estar sub- gem que o psicólogo adquire ou
de dificuldades ou fracassos? jacente, mas nem sempre claro, transmite(?) em função deste tipo
A conotação por vezes encon- nessa perspectiva, é a idéia de que de abordagem ou da sua própria
trada, entretanto, parece ser a de a escola como instituição é toma- postura, leva, com freqüência, a
evitar desajustes ou desadapta- da como adequada, como cum- uma atitude ambivalente e de re-
ções do aluno. Maria Helena No- prindo os objetivos ideais a que se sistência por parte da instituição
vaes, ao defender a importância propõe. Permanecem inquestiona¬ escolar, que muitas vezes dificul-
da formação adequada do psicólo- dos, desta forma, o anacronismo ta ou até impede a continuidade
go escolar e sua responsabilidade dos currículos, dos programas, dos serviços de psicologia.
profissional, afirma que " d a d o o das t é c n i c a s de ensino- Uma outra conseqüência que
caráter sobretudo preventivo da aprendizagem empregadas, bem nos parece importante denunciar
atuação do psicólogo escolar, essa como a adequação da relação nesta visão clínica, é a de que o
orientação (psicológica) merece professor-aluno estabelecida. professor, ao entregar o seu "alu-
tanto ou mais cuidado do que Esta é, portanto, uma visão no difícil" nas mãos de um profis-
qualquer outra, pois tem como conservadora e adaptativa, uma sional tido como mais habilitado
meta principal o ajustamento do vez que os problemas surgidos fi- que ele para lidar com a questão,
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se exime da sua responsabilidade pré-escolas, realizado em julho de cidade para aqueles que apresen-
para com este aluno. Passa então 1983, promovido pela Secretaria tassem deficiências de ordem mo-
a considerá-lo como um problema da Educação do Estado de São tora. Com relação à primeira hipó-
que não é seu e que deveria ser so- Paulo, na cidade de São José do tese, acreditamos ser totalmente
lucionado fora do contexto de sala Rio Preto, do qual participamos, inviável a sua realização dentro
de aula, que é o seu ambiente de recebemos veementes queixas de do contexto escolar por duas ra-
trabalho, a saber, no gabinete de professores de qe, sob o pretexto zões fundamentais:
Psicologia. Na realidade, porém, de sigilo sobre os resultados dos
a criança que apresenta dificulda- testes psicológicos aplicados em 1. Como tal tipo de tratamento
des, mesmo quando atendida por seus alunos, só passíveis de serem fica ligado, pelo senso comum, à
outros profissionais, enquanto manipulados por psicólogos, as doença mental, corre-se o sério
aluna continua sendo problema do escolas ficavam praticamente sem risco de discriminar e estigmati-
professor e da sua turma e como nenhuma informação a respeito zar aqueles alunos que se benefi-
tal deve ser assumida. dos exames realizados. ciassem desta forma de assistên-
É também frequente, no traba- cia;
Lyons e Powers relatam que
lho clínico dentro da escola, o uso num estudo longitudinal com 2. Como a escola é uma organi-
de testes variados, desde as tradi- crianças de nível primário dispen- zação complexa, onde a privacida-
cionais medidas de QI até provas sadas do sistema escolar de uma de é bastante restrita por ser um
de personalidade, com elaboração grande cidade norte-americana grupo onde as pessoas convivem
de diagnósticos e orientação bas- por problemas de comportamento, por longo tempo, diariamente por
tante minuciosas e aprofundadas. foram avaliadas as contribuições várias horas e durante anos, fica
Ocorre, entretanto, que este tra- dos psicólogos da seguinte forma: muito comprometida a questão de
balho todo se torna infrutífero e "Embora 263 escolas registras- sigilo, não por parte do profissio-
sem sentido, pois é comum as sem que o estudo psicológico ha- nal, evidentemente, mas por parte
famílias se recusarem a aceitar a via sido de alguma forma útil aos dos próprios alunos.
orientação, preferindo atribuir as pais e/ou professores, 144 escolas
causas do insucesso escolar à pró- Com relação à Psicomotricida-
registraram que ele não tinha aju- de, visando atingir principalmen-
pria instituição, que é então acu- dado. Apenas uma escola deu uma
sada de ineficiente. É evidente te as populações de baixa renda,
razão para este fato, afirmando que não têm acesso a terapêuticas
que, ao buscar uma orientação que o estudo psicológico era muito
psicológica, todo cliente passa por desta natureza, tem-se pensado
limitado." num trabalho integrado com a
um processo, frequentemente lon-
go e ambivalente, de lidar e acei- Um outro impasse comumente área de Educação Física, no senti-
tar as suas próprias dificuldades enfrentado com relação aos exa- do de incluir, nessas aulas,
ou deficiências. Ora, na medida mes psicológicos é o da dificulda- exercícios de equilíbrio, coorde-
em que a escola toma a iniciativa de de se encontrar, em nosso nação motora ampla etc. Com re-
de realizar esse processo, através meio, instituições que possibili- lação aos aspectos de motricidade
do serviço de Psicologia, sem uma tem a concretização das orienta- fina, a montagem de pequenos
conscientização gradativa e es- ções dadas, de forma economica- grupos de atendimento paralelo
pontânea da família a respeito do mente acessível à maioria da nos- talvez pudesse ser levada a efeito
seu filho-problema, o resultado sa população escolar. Desta ma- dentro do próprio ambiente da es-
deverá ser ou um recusa de cola- neira, o diagnóstico e a orientação cola.
borar até mesmo na fase inicial de realizados perdem a sua utilidade
e portanto o seu sentido. Num nível mais sofisticado, a
diagnóstico, ou uma rejeição clara abordagem clínica pode
e aberta da orientação oferecida. Um outro aspecto a se questio- transformar-se numa consultoria
Uma outra dificuldade é a de os nar é a instalação de Serviços de de saúde mental, com o enfoque
dados obtidos através de exames atendimento psicológico dentro básico voltado para a prevenção
psicológicos nem sempre rever- da instituição-escola, com a inten- já mencionada no início deste tra-
tem para a escola sob forma de ção de oferecer Psicoterapia para balho. O psicólogo não se restrin-
orientações concretas e os portadores de distúrbios emo- giria apenas à aplicação de testes
acessíveis. Num congresso sobre cionais e de conduta e Psicomotri- e à realização de terapia dentro do
contexto escolar, mas pretenderia e, a partir daí, planejamos nossa ral, discorrendo sobre a necessi-
"difundir a saúde mental, procu- ação. dade de "comportar-se bem, ser
rando alcançar um maior número Temos procurado atuar junto bom aluno, bom filho" etc., numa
possível de pais, administradores ao corpo docente e discente, bem tentativa de fazer com que os edu-
e professores, que por sua vez como junto à direção e à equipe candos venham a preencher as ex-
atingem o maior número possível técnica, tentando conscientizá-los pectativas que a instituição, espe-
de crianças". da realidade da sua escola, refle- cialmente os professores, têm de-
tindo com eles sobre os seus obje- les.
tivos, sobre a concepção que sub- Em nosso trabalho como psicó-
O PSICÓLOGO jaz ao processo educacional em-
ESCOLAR logos escolares, nessa perspectiva
pregado, sobre as expectativas de agente de mudanças, temo-
AGENTE DE que têm de seus alunos, sobre o ti-
MUDANÇAS nos voltado basicamente pa-
po de relação professor-aluno ra a constituição de grupos opera-
existente, enfim sobre a organiza- tivos com alunos, professores e
Uma outra alternativa que nos ção como um todo. equipe técnica, no sentido de en-
parece mais adequada e que não As queixas básicas comumen¬ caminhar uma reflexão crítica so-
exclui, pelo contrário, se beneficia te encontradas junto à instituição- bre a instituição, incluindo o pro-
das contribuições da Psicologia escola referem-se à dispersivida¬ cesso de ensino-aprendizagem, a
clínica e da Psicologia acadêmica, de e desatenção, desinteresse, relação professor-aluno, as mu-
seria a do psicólogo escolar como apatia, agitação, baixo rendimen- danças sociais que estão ocorren-
agente de mudanças dentro da to e fraco nível de aprendizagem, do, evidenciando com isso, a defa¬
instituição-escola, onde funciona- rebeldia e agressividade, bem co- sagem cada vez maior que se esta-
ria como um elemento catalizador mo dificuldades na relação belece entre a escola e a vida. Des-
de reflexões, um conscientizador professor-aluno e entre os pró- sa maneira, procuramos desfocar
dos papéis representados pelos prios educandos. Tais problemas a atenção sobre o aluno como úni-
vários grupos que compõem a ins- têm aparecido na forma mais ou ca fonte de dificuldades, como o
tituição. menos intensa em todos os graus, único responsável e culpado pela
Nessa perspectiva precisa-se, o que vem caracterizar uma crise crise geral pela qual a escola pas-
ao contrário do que se colocou no aguda e profunda pela qual a ins- sa, propiciando uma visão mais
início deste texto, de um profis- tituição vem passando. global e mais compreensiva desta
sional experimentado, com prepa- crise, procurando considerar to-
ro amplo e diversificado, uma vez A tendência geral da escola é
centrar as causas de tais dificul- dos os seus aspectos e, conjunta-
que a Psicologia escolar é então mente, encontrar formas alterna-
encarada como uma área de inter- dades nos alunos. As medidas que
vêm sendo utilizadas para tentar tivas de enfrentá-la.
secção entre a Psicologia clínica e Parece-nos importante esclare-
a Psicologia organizacional, por resolvê-las ou contorná-las
trabalhar e lidar com uma insti- resumem-se basicamente em: cer que não excluímos nessa abor-
tuição social complexa, hierarqui- 1. Encaminhar os "casos- dagem pesquisas voltadas para os
zada, resistende à mudança e que problema" ao Serviço de Orienta- processos dos indivíduos, pois de
reflete a organização social como ção Educacional ou ao Serviço de fato encontramos inúmeros casos
um todo. Nessa perspectiva é im- Psicologia, como se os profissio- onde as dificuldades encontradas
portante considerar o indivíduo nais destas áreas tivessem solu- são do próprio aluno e não da ins-
sem perder de vista, entretanto, ções mágicas e prontas para tais tituição. Tais casos necessitam de
sua inserção no contexto mais am- casos; um enfoque mais clínico, que,
plo da organização. quando se faz necessário, é levado
2. Criar mecanismos de contro- a efeito, sem entretanto, perder-se
Um trabalho eficiente nessa li- le cada vez mais rígidos e repres- de vista o aspecto institucional da
nha teria que partir de uma análi- sivos sobre o comportamento dos questão.
se da instituição, levando em con- educandos através de inspetores Da oportunidade que temos ti-
ta o meio social no qual se encon- de aluno, comunicações aos pais, do de atuar na área de Psicologia
tra e o tipo de clientela que aten- reduções nas notas, multiplicação escolar, esta vem-se configurando
de, bem como os vários grupos das avaliações etc. como um campo de ação extrema-
que a compõem, sua hierarquiza- Com relação aos Serviços de mente rico, porém inexplorado,
ção, suas relações de poder, pas- Orientação Educacional, com ex- desvalorizado e até mesmo pouco
sando pela análise da filosofia es- ceções evidentemente, temos ob- conhecido, não só dentro das esco-
pecífica que a norteia, e chegando servado alguns aspectos: las, mas também dentro da pró-
até a política educacional mais a. não conseguem dar vazão ao pria categoria de psicólogos. O pa-
ampla. crescente número de casos difíceis pel do psicólogo escolar acha-se
Em nosso trabalho prático jun- encaminhados; portanto, mal delimitado e mal de-
to às escolas, iniciamos geralmen- b. buscam contatos com os finido, e o que pretendemos aqui,
te por um levantamento da insti- pais, numa tentativa, na maioria com essas primeiras anotações, é
tuição onde pretendemos atuar. das vezes infrutífera, de transfe- encaminhar e aprofundar a dis-
Procuramos caracterizá-la em rir a resolução dos problemas pa- cussão sobre esse tema.
seus aspectos organizacionais, ra o âmbito familiar;
tentamos detectar a ideologia sub- c. desenvolvem trabalhos jun-
jacente aos objetivos expressos ou to ao corpo discente através de au- Bibliografia
implícitos que a instituição con- las tradicionais onde são desen- NOVAES, M. H. - Psicologia escolar. Pe-
trópolis. Vozes Ed. 1980.
tém. Começamos, assim, por um volvidos temas, com uma conota- PATTO, H. S. - Introdução à Psicologia
diagnóstico da realidade da escola ção quase sempre de caráter mo- escolar. São Paulo. Queiroz Ed. 1981.

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