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O surpreendente efeito da positividade

tóxica na saúde mental


Lucía Blasco, da BBC News Mundo
14 dezembro 2020

A positividade também pode ser tóxica

Pode parecer contraditório, mas a positividade pode ser tóxica.

"Qualquer tentativa de escapar do negativo — evitá-lo, sufocá-lo ou silenciá-lo —


falha. Evitar o sofrimento é uma forma de sofrimento", escreveu o escritor americano
Mark Manson em seu livro A Arte Sutil de Ligar o Foda-se.

É precisamente nisso que consiste a positividade tóxica ou positivismo extremo: impor


a nós mesmos — ou aos outros — uma atitude falsamente positiva, generalizar um
estado feliz e otimista seja qual for a situação, silenciar nossas emoções "negativas" ou
as dos outros.

Já aconteceu de você contar algo negativo sobre sua vida para alguém e, em vez de
ouvir e acolher, a pessoa dizer: "Mas pelo menos..." ou então "É só você pensar
positivo"?
O psicólogo da saúde Antonio Rodellar, especialista em transtornos de ansiedade e
hipnose clínica, prefere falar em "emoções desreguladas" do que "negativas".

"A paleta de cores emocionais engloba emoções desreguladas, como tristeza,


frustração, raiva, ansiedade ou inveja. Não podemos ignorar que, como seres
humanos, temos aquela gama de emoções que têm uma utilidade e que nos dão
informações sobre o que acontece no nosso meio e no nosso corpo", explica Rodellar à
BBC News Mundo.

Para a terapeuta e psicóloga britânica Sally Baker, "o problema com a positividade
tóxica é que ela é uma negação de todos os aspectos emocionais que sentimos diante
de qualquer situação que nos represente um desafio."

"É desonesto em relação a quem somos permitir-nos apenas expressões positivas", diz
Baker. "Negar constantemente tudo o que é 'negativo' que sentimos em situações
difíceis é exaustivo e não nos permite construir resiliência [a capacidade de nos
adaptarmos a situações adversas]."

"Isso nos isola de nós mesmos, de nossas verdadeiras emoções. Nós nos escondemos
atrás da positividade para manter outras pessoas longe de uma imagem que nos
mostra imperfeitos."

"Tudo vai ficar bem" nem sempre é a resposta mais reconfortante


Psicologia positiva vs. positividade tóxica
Para entender a positividade tóxica, devemos primeiro diferenciá-la da psicologia
positiva, um conceito que parece semelhante, mas é diferente.

"A psicologia positiva foi popularizada pelo psicólogo Martin Seligman, que trabalhou
muito com os problemas da depressão e deu uma perspectiva diferente para lidar com
diferentes problemas, situações ou patologias", explica Rodellar.

Na década de 1990, Seligman, então presidente da Associação Psicológica Americana


(APA), disse em uma conferência que a psicologia precisava dar um novo passo para
estudar do ponto de vista científico tudo o que torna o ser humano feliz.

Em seu famoso livro The Optimistic Child (A Criança Otimista, sem edição no Brasil), o
psicólogo americano explicou que o pessimista não nasce, mas é criado. "Aprendemos
a ser pessimistas pelas circunstâncias da vida."

No entanto, ele também disse que podemos lutar contra esse pessimismo e
transformar nossos pensamentos negativos em mais positivos.

Mas isso não quer dizer que, se você se sente triste, tem que se concentrar em ser
feliz. Na verdade, fazer isso provavelmente cairá na armadilha da positividade tóxica
porque, para trabalhar as emoções negativas, você não pode ignorá-las. Primeiro você
deve reconhecê-las e aceitá-las.

Às vezes é ok não estar bem


O segredo é não levar o positivismo ao extremo.

"O conceito de psicologia positiva ficou um pouco distorcido com o tempo", diz
Rodellar. "Focar nos aspectos positivos das diferentes situações que ocorrem na vida
pode ser terapêutico e construtivo. O problema é que levado ao extremo pode gerar
uma baixa capacidade de enfrentar situações negativas."

"A psicologia positiva aplicada corretamente é uma prática muito útil, mas usada
indiscriminadamente gera uma visão muito parcial da realidade e um sentimento de
desamparo. Negar situações dolorosas e prejudiciais na vida é como ver a realidade
com um só olho", acrescenta Rodellar.

Como a positividade tóxica nos afeta?


Bloquear ou ignorar emoções "negativas" pode ter consequências para a saúde.

"Todas as emoções que reprimimos são somatizadas, expressas através do corpo,


muitas vezes na forma de doença. Quando negamos uma emoção, ela encontrará uma
forma alternativa de se expressar", diz Rodellar.

"Suprimir as emoções afeta sua saúde. Se você esconder suas dificuldades mentais por
trás de uma fachada de positividade, elas se refletirão de maneiras alternativas em seu
corpo, de problemas de pele à síndrome do intestino irritável", explica Sally Baker.

"Quando ignoramos nossas emoções negativas, nosso corpo aumenta o volume para
chamar nossa atenção para esse problema. Suprimir as emoções nos esgota mental e
fisicamente. Não é saudável e não é sustentável a longo prazo", diz a terapeuta.
É preciso aceitar todas as emoções, incluindo as negativas

Uma segunda consequência, diz Rodellar, é que "quando nos concentramos apenas
nas emoções positivas, obtemos uma versão mais ingênua ou infantil das situações
que podem nos acontecer na vida, de modo que nos tornamos mais vulneráveis aos
momentos difíceis".

Teresa Gutiérrez, psicopedagoga e especialista em neuropsicologia, considera que "o


positivismo tóxico tem consequências psicológicas e psiquiátricas mais graves do que a
depressão".

"Pode levar a uma vida irreal que prejudica nossa saúde mental. Tanto positivismo não
é positivo para ninguém. Se não houver frustração e fracasso, não aprendemos a
desenvolver em nossas vidas", disse ele à BBC Mundo.

'É ok não estar bem'

O positivismo tóxico está na moda? Baker pensa que sim e atribui isso às redes sociais,
"que nos obrigam a comparar nossas vidas com as vidas perfeitas que vemos online".

"Há uma tendência constante nas redes sociais de nos mostrarmos perfeitos e felizes.
Mas isso é desgastante e não é real."

"Se houvesse mais honestidade sobre as vulnerabilidades, nos sentiríamos mais livres
para experimentar todos os tipos de emoções. Somos humanos e devemos nos
permitir sentir todo o espectro de emoções. É ok não estar bem. Não podemos ser
positivos o tempo todo."

Gutiérrez acredita que houve um aumento do positivismo tóxico "nos últimos anos",
mas principalmente durante a pandemia.
É preciso ser honesto consigo mesmo sobre suas emoções

"Vivemos um momento atípico e estranho em que muita gente está sofrendo muito.
Ansiedade, incerteza, frustração, medo... são sentimentos comuns. Porém, há um
excesso de positivismo tóxico que é perigoso", afirma a psicoterapeuta.

Rodellar diz que vê "uma certa tendência ao bem-estar rápido, de querer se sentir bem
imediatamente, como um direito natural".

"É muito bom pensar que tudo vai dar certo, mas isso não significa que todo o
processo para que aconteça tenha que ser agradável. É mais realista dizer 'isso
também vai acontecer, mas vai passar' quando estamos em um momento de
bloqueio", diz a psicóloga.

"Todas as emoções são como ondas: ganham intensidade e depois descem e tornam-
se espuma, até desaparecer aos poucos. O problema é quando não as queremos sentir
porque nos tornamos mais dóceis perante uma 'onda' que se aproxima".

Validar em vez de ignorar


Os psicólogos concordam que o ideal — em termos gerais — é aceitar todas as
emoções, em vez de suprimir aquelas que nos fazem mal.

Não se trata de não ser positivo, mas de validar como nos sentimos a cada momento
mesmo quando não estamos bem.
"Seja mais honesto, mais autêntico, não tenha medo de expressar que está triste,
deprimido ou ansioso. Reconheça que está mal e saiba que isso vai acontecer.
Experimente essas emoções e aprenda com elas a ser mais resiliente", explica Baker,
que esclarece que essas dicas excluem pessoas com depressão clínica (um distúrbio
grave que, na verdade, costuma piorar se não for tratado).

Stephanie Preston, professora de psicologia da Universidade de Michigan, nos EUA,


acredita que a melhor maneira de validar as emoções é "apenas ouvi-las".

"Quando alguém compartilha sentimentos negativos com você, em vez de correr para
fazer essa pessoa se sentir melhor ou pensar mais positivamente ("Tudo vai ficar
bem"), tente levar um segundo para refletir sobre seu desconforto ou medo e faça o
possível para ouvir", aconselha a especialista.

"Estar em uma situação emocionalmente difícil já faz as pessoas se sentirem sozinhas e


isoladas. Quando outros tentam silenciar essas emoções, especialmente amigos e
familiares, dói muito. Ouvir alguém que está sofrendo pode fazer uma grande
diferença na vida da pessoa."

Preston diz que diversos estudos mostram como o altruísmo beneficia e influencia
positivamente a nossa própria saúde.

Você oculta suas emoções negativas?

E se você é quem está mal, "o mais importante é fazer um exercício de consciência",
propõe Rodellar.
"Esteja atento à situação e à emoção que está vivenciando. Não negue que algo ruim
está acontecendo, não olhe para o outro lado, mas não fique preso a essa emoção
negativa."

"As emoções são informações que temos que ler e entender para depois aplicar uma
perspectiva construtiva e ver quais lições podemos aprender e como podemos gerar
mudanças no futuro."

Como aplicar isso na prática? Em vez de dizer "não pense nisso, seja positivo", diga
"me diz o que você está sentindo, eu te escuto". Em vez de falar "poderia ser pior",
diga "sinto muito que está passando por isso". Em de vez "não se preocupe, seja feliz",
diga "estou aqui para você".

"Temos que assumir a responsabilidade por nossa própria felicidade a partir da


psicologia construtiva", diz Rodellar.

"Tudo bem olhar para o copo meio cheio, mas aceitando que pode haver situações em
que o copo está meio vazio e, a partir daí, assumir a responsabilidade de como
construímos nossas vidas".

Para Baker, o que devemos lembrar é que "todas as nossas emoções são autênticas e
reais, e todas elas são válidas".

*Esta reportagem não é um artigo médico. Se tiver sintomas de depressão, perguntas ou precisar de orientação,
consulte seu médico ou um psicólogo.

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