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Uma Análise de Concepções Sobre A Infancia e A Insercao Do Consumismo
Uma Análise de Concepções Sobre A Infancia e A Insercao Do Consumismo
Universidade FUMEC
Artigo
Resumo: Este artigo faz uma análise de percepções e de concepções sobre o que é a criança e resgata
a evolução do conceito de infância da antiguidade aos dias atuais, associando tais mudanças à dinâmica
social pelo surgimento de novas estruturas familiares e de fatores históricos, sociais, políticos e culturais.
São discutidos algumas particularidades da criança e seu processo de desenvolvimento cognitivo sob a
luz da teoria de Piaget, considerando a infância inserida nas grandes sociedades de consumo capitalistas
e analisando como ela interpreta as informações apresentadas pelo mercado através das propagandas e
outros meios. Este artigo tem como objetivo contextualizar a evolução das percepções em relação à criança,
evidenciando sua inserção crescente no mercado de consumo, peculiaridades inerentes à sua idade, sua
relação e comunicação com os pais e como eles são significativos no desenvolvimento de sua autonomia e
capacidade crítica. O consumo exagerado se afirma culturalmente e gera consequências na infância, frutos
de um processo alienante que vem sendo construído pelo sistema capitalista e reproduzido pelas pessoas.
Evidencia-se, então, a precocidade das relações que se processam no interior da sociedade.
Palavras-chave: Crianças. Cultura. Desenvolvimento infantil. Desenvolvimento cognitivo. Comportamento
do consumidor.
Abstract: This article analyses the perceptions and conceptions of “what the child is” and gives an account
of the evolution of childhood’s notion from old times to present days, associating those changes to the
social dynamics through the beginning of new familiar structures and historical, social, political and cultural
factors. Some child’s particularities and his/her cognitive development process according to Piaget’s theory
are discussed, considering childhood in the large capitalist consuming societies and analysing how the child
interprets the information presented by the media through advertisements and other communication ways.
This article’s goal is to present the evolution of the perceptions concerning the child, evidencing his/heir
growing insertion in the consumption market, the peculiarities of his/her age, relationship and communication
with his/her parents and how they are significative to the child’s autonomy development and critical capacity.
The exaggerated consumption is culturally emphasized and generates consequences during childhood,
which are products of an alienating process that has been forged by the capitalist system and reproduced
by society. The precocity of the relations which are processed in society is evidenced.
Keywords: Children. Culture. Childhood development. Cognitive development. Consumer behavior.
Resumen: Este artículo hace un análisis de percepciones y de concepciones sobre lo que es el niño y
rescata la evolución del concepto de infancia desde la antigüedad a los días actuales, asociando tales
cambios a la dinámica social por el surgimiento de nuevas estructuras familiares y de factores históricos,
sociales, políticos y culturales. Son discutidas algunas particularidades del niño y su proceso de desarrollo
cognoscitivo bajo la luz de la teoría de Piaget, considerando la infancia insertada en las grandes sociedades
de consumo capitalistas y analizando como esta interpreta las informaciones presentadas por el mercado
a través de las propagandas y otros medios. Este artículo tiene como objetivo contextualizar la evolución
de las percepciones con relación al niño, evidenciando su inserción creciente en el mercado de consumo,
peculiaridades inherentes a su edad, su relación y comunicación con los padres y como ellos son significativos
en el desarrollo de su autonomía y capacidad crítica. El consumo exagerado se afirma culturalmente y genera
consecuencias en la infancia, frutos de un proceso alienante que viene siendo construido por el sistema
capitalista y reproducido por las personas. Se evidencia, entonces, la precocidad de las relaciones que se
procesan en el interior de la sociedad.
Palabras-clave: Niños. Cultura. Desarrollo infantil. Desarrollo cognoscitivo. Comportamiento del consumidor.
Desde seu nascimento, a criança integra-se dos fatos sociais de sua época e ao contexto
em um mundo de significados construídos sociocultural específico. Considerando o
historicamente e interage com ele inspirando- homem um ser social e a grande diversidade
se em modelos de seu meio social. De acordo cultural existente nas sociedades, a criança
com Durkheim (1973), os fatos sociais foi percebida e tratada de formas distintas.
precedem o indivíduo e possuem existência Em cada contexto e época, foram construídos
própria, são externos a ele e estão além diferentes significados em relação à criança
de seu controle e vontade, uma vez que a e ao seu papel social, produzindo-se imensa
sociedade e todos os seus padrões já estão diversidade de concepções e percepções
postos quando o indivíduo nasce. A criança, sobre a infância. As representações de infância
ao inserir-se na sociedade, adapta-se às regras da atualidade têm origem em um processo
associavam a imagem à sua vida doméstica e moral do século XVII. Inicialmente, fazia parte
idealizavam o papel da mãe. Posteriormente, do costume da época associar as crianças às
começa-se a reproduzir a criança em brincadeiras sexuais dos adultos sem nenhuma
multidões sempre acompanhadas dos pais, reserva, com a adoção de linguagem vulgar
sugerindo uma imagem de dependência e de e grosseira e de ações e de gestos obscenos,
fragilidade. Os artistas destacavam os traços de brincadeiras que envolviam sexo, etc. A
característicos da criança, diferenciando-a criança era considerada alheia e indiferente
dos adultos. à sexualidade.
infância escrava, a criança não tinha pai e sentimento da infância, como a exploração
mãe identificados. A Lei do Ventre Livre do trabalho infantil, o crescente número de
(1871) coloca sob o poder dos senhores desnutrição, o abandono, os abusos sexuais,
os filhos de escravos nascidos ingênuos, a prostituição, a delinquência juvenil, a
obrigando-os a criar essas crianças até que violência por parte da polícia e da família, a
completassem 8 anos de idade. “Como discriminação e a exclusão social. Esses fatos
vimos, o escravo permanece criança até a presentes no cotidiano são tipificados como
idade de 7 para 8 anos” (Del Priore, 1996, problemas da infância na atualidade. Na
p. 81). Nessa idade, a criança percebia Constituição, inúmeros direitos outorgados às
sua inferioridade social e econômica, e a crianças sugerem a continuidade do percurso
passagem para a adolescência era o primeiro de valorização da infância, mas, na prática,
choque importante que a criança escrava esses direitos reservados à infância são sempre
recebia. A escravidão no Brasil representa transgredidos.
um grande abalo no sentimento e na
valorização da infância. Del Priore observa Nas sociedades capitalistas pós-modernas
que, no século XIX, a infância continua a do século XX, configura-se uma nova
ser explorada no Brasil rural e em outros concepção de infância: as crianças como
contextos como fábricas e indústrias, com segmento de mercado, que constituem um
significativo histórico de acidentes de público de interesse das empresas por já
trabalho que envolviam a infância operária. consumirem ativamente e influenciarem seus
pais a comprar, representando os promissores
No Brasil, o conceito menor surge no consumidores do futuro. Essa representação
século XIX associado aos limites etários. De da infância que emerge na atualidade é fruto
acordo com Del Priore (1996), o mundo das mudanças econômicas, sociais, políticas
jurídico descobre o menor nas crianças e e ideológicas ocorridas com a globalização
adolescentes pobres das cidades que, por não do século XX.
estarem sob a autoridade dos responsáveis,
são chamados de menores abandonados. O consumismo das grandes
Posteriormente, esse conceito é associado sociedades capitalistas da
à criminalidade e serve à regulamentação
atualidade
das leis para menores. Surgem dois tipos
de infância: uma incluída na cobertura
As novas configurações geradas pelas
das políticas sociais básicas, com crianças
transformações econômicas, tecnológicas,
socializadas pela escola e pela família, e outra
políticas, sociais, culturais e ideológicas
excluída das famílias e das políticas sociais,
ocorridas nas grandes sociedades capitalistas
que constitui o contingente dos menores. No
da contemporaneidade produziram
século XX, com o crescimento da pobreza
significativas mudanças na vida das pessoas,
e da violência urbana, a criança se torna
nas relações sociais, e novas subjetividades
objeto de políticas governamentais de caráter
mais abrangente. Nos anos 60, o Estado se são construídas. A sociedade de consumo e
torna o principal responsável pela proteção suas ideologias dominantes promovem um
e pela assistência à infância abandonada e distanciamento do homem consigo mesmo
em situações de risco no Brasil. Surge uma e com a sua natureza, produzindo uma
nova concepção de infância: a criança como manifestação típica das grandes sociedades
sujeito de direitos civis, humanos e sociais, capitalistas da atualidade: o predomínio do
necessitando de direitos e cuidados especiais. ter sobre o ser. Em A Sociedade do Espetáculo,
Cirino (2001) sugere um retrocesso do Debord (1997) afirma que o espetáculo é,
se no aspecto artificial, uma busca subjetiva uma adaptação sempre mais precisa à
e emocional por benefícios e prazeres. realidade” (Piaget, 2001, p.17). De acordo
A paixão pelo novo e a importância que com Piaget, do ponto de vista social, a
adquire o ser você mesmo mobilizam acomodação nada mais é do que a imitação
as pessoas a se sentirem especiais por e o conjunto de operações que possibilitam
adquirirem algo que classificam como a à criança submeter-se aos exemplos e aos
minha marca. A ideia de se sentir uma imperativos do grupo em que está inserida.
pessoa com personalidade singular assume A assimilação consiste na incorporação da
um sentido de grande valor e faz as pessoas realidade à atividade e às perspectivas do
buscarem incessantemente uma identidade eu. “A assimilação e a acomodação são,
que se concretiza superficialmente. Esse portanto, os dois pólos de uma interação
objetivo se torna cada vez difícil de ser entre o organismo e o meio que é a condição
alcançado e gera incômodo e frustração nas para qualquer funcionamento biológico e
pessoas, que tentam apoiar-se nos produtos intelectual” (Piaget, 2003, p.360).
e nas marcas acreditando que sejam os
elementos necessários para a satisfação Piaget (2001) divide o processo de
de suas demandas e para a construção de desenvolvimento mental da criança em
suas identidades. Em vez de se comprar um seis estágios: sensório-motor ou período de
produto, compra-se a promessa de satisfação lactância, composto por três subestágios (do
de um desejo, um conceito, um estilo de nascimento aos dois anos), pré-operacional
vida, tudo relacionado às marcas: “É sobre (dois aos sete anos), operações concretas
um fundo de desorientação e de ansiedade (sete aos doze anos) e operações formais (a
crescente do hiperconsumidor que se destaca partir dos doze anos, marcando o início da
o sucesso das marcas” (Lipovetsky, 2007, adolescência). As estruturas progressivas dos
p.50). estágios (formas sucessivas de equilíbrio) são
maneiras de organização da atividade mental
Contribuições de Jean Piaget: da criança nas dimensões individual e social,
sob um duplo aspecto: motor ou intelectual
a criança de dois a sete anos
e afetivo.
Jean Piaget é um dos representantes mais
Neste estudo, o estágio pré-operacional (dois
expressivos do interacionismo, que explica o
a sete anos) é destacado por ser a faixa etária
comportamento humano em uma perspectiva
caracterizada pelo surgimento da linguagem,
na qual o desenvolvimento das estruturas
pelas relações sociais de submissão aos adultos
cognitivas e a construção do psiquismo são
e pela inserção da infância no consumismo.
frutos da interação entre sujeito e objeto. Piaget
Com a linguagem, os comportamentos da
(2001) considera a adaptação e a organização
criança são profundamente modificados
pertencentes à natureza do ser humano, nas dimensões afetiva e intelectual. Piaget
que organiza suas experiências vividas e (2001) enfatiza que a troca e a comunicação
adapta-se ao que estiver experimentado. A entre os indivíduos são a consequência
adaptação na criança ocorre por meio dos mais evidente do surgimento da linguagem,
processos de assimilação e de acomodação: e ressalta três consequências essenciais
“Pode-se chamar adaptação ao equilíbrio para o desenvolvimento mental da criança
dessas assimilações e acomodações. Essa nesse estágio: início da socialização da ação
é a forma geral de equilíbrio psíquico. O (troca entre os indivíduos), pensamento
desenvolvimento mental aparecerá, então, (interiorização da palavra com base na
em sua organização progressiva como linguagem interior e nos signos) e intuição
o adulto induz a criança à noção objetiva Piaget enfatiza que a coação moral do adulto
da responsabilidade, e aponta o esforço (respeito unilateral) resulta na heteronomia,
dos pais para apanhar a criança em falta, a e a cooperação resulta na autonomia. É um
multiplicidade das ordens (alguns pais são sinal de autonomia a criança descobrir que
como os governantes sem inteligência, que a veracidade é necessária nas relações de
se limitam a acumular as leis, desprezando as simpatia e de respeito mútuos, e, nesse caso,
contradições e as confusões resultantes dessa a reciprocidade relaciona-se à autonomia:
acumulação), o prazer de aplicar sanções e o “Com efeito, há autonomia moral quando a
prazer de usar sua autoridade (acreditando- consciência considera como necessário um
se que é preciso “quebrar a vontade da ideal, independente de qualquer pressão
criança” ou “fazer sentir à criança que há exterior” (Piaget, 1977a, p.172). Piaget
uma vontade superior à dela”). Geram-se ressalta que toda relação entre pais e filhos
tensão e problemas, que os pais muitas vezes que envolva coação moral do adulto e
atribuem à maldade inata da criança e ao extinção da reciprocidade e do respeito tende
pecado original. a resultar na heteronomia: “A autonomia
só aparece com a reciprocidade, quando o
O relacionamento entre pais e filhos é respeito mútuo é bastante forte, para que
essencial em relação ao processo gradativo o indivíduo experimente interiormente a
de autonomia da criança e às influências necessidade de tratar os outros como gostaria
de seu meio social. Maldonado (1981) de ser tratado” (Piaget, 1977a, p.172).
enfatiza ser essencial que os pais adotem
atitudes que estimulem a autonomia da É imprescindível que, desde cedo, os pais
criança (principal manifestação de seu estabeleçam com os filhos uma relação de
crescimento), seu poder de julgamento, confiança, transparência e honestidade.
senso crítico e capacidade de escolha. Educar Maldonado (1981) ressalta que muitos pais
para o desenvolvimento da autonomia na contam mentiras aos filhos sobre vários
infância pressupõe dar-lhe oportunidade aspectos, enganando-os ou omitindo coisas
de escolher (delimitando as margens de importantes da vida, o que gera conflitos
escolhas) e responsabilidades (deixando psíquicos na criança quando ela precisar
gradativamente de fazer por ela o que já lidar com as contradições entre o que vê e
é capaz de fazer sozinha e não intervindo o que os pais contaram. O prejuízo de seu
em situações com as quais ela já é capaz de desenvolvimento intelectual é decorrente
lidar). Para Maldonado, quando se pensa que de tais conflitos, assim como a criança pode
a criança não está entendendo nada ou que colocar em dúvida a integridade dos pais
não tem problemas, torna-se muito difícil e perder a confiança neles. É fundamental
para ela lidar com as contradições a que fica que os pais sejam sinceros e autênticos com
exposta, pois o pensamento infantil, em geral, os filhos, sendo de grande valia ensinar à
caracteriza-se por generalizações indevidas, criança comportamentos e atitudes que
que causam preocupação e ansiedade às estimulem seu crescimento e o processo
crianças. “A criança sente-se mais tranqüila gradativo de aquisição de sua autonomia.
e segura quando é oficialmente informada É imprescindível incentivar sua capacidade
do que está acontecendo e quando recebe crítica, sua criatividade e exercitar seu
ajuda para expressar abertamente dúvidas poder de escolha, assim como ajudá-la a
e sentimentos” (Maldonado, 1981, p.37). entender as consequências que decorrerão
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