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Capítulo 4

A arte egeia

Se navegarmos do delta do Nilo para noroeste, o nosso primeiro vislumbre.da Europa


será o extremo oriental de Creta, para além da qual se encontra um grupo de pequenas
ilhas dispersas, as Cíclades. Um pouco mais longe, a Grécia continental, em frente da Ásia
Menor, na outra margem do mar Egeu. Para os arqueólogos, "Egeu" não é meramente um
termo geográfico; adaptaram-no para designar as civilizações que floresceram nesta área
durante o terceiro e o segundo milênio a. C., antes de se ter desenvolvido a civilização
grega propriamente dita. Foram três, estreitamente ligadas e contudo diferentes: a de Cre-
ta, designada por minoica, segundo o nome do lendário rei Minos, a das Cíclades (cicládi-
ca) e a do continente grego (heládica). Cada uma foi dividida em três fases: arcaica, média
e final, que correspondem, aproximadamente, às monarquias antiga, média e nova do Egito.
Os achados mais importantes e as maiores realizações artísticas datam da última parteda
fase média e de toda a final.
128 História da arte A arte egeia 129

Há cerca de um século, a civilização egeia era apenas conhecida pela narração da Guerra nos radicalmente afastada de tudo quanto se vira antes. Não
de Tróia por Homero, na Ilíada, e pelas lendas gregas sobre Creta. As mais antigas escava- faltam ídolos de fertilidade mais antigos, mas a maior parte
ções (por Heinrich Schliemann, na década de 1870, na Ásia Menor e na Grécia, e por ostenta os volumes esferoidais das corpulentas vênus do Pa-
sir Arthur Evans, em Creta, um pouco antes de 1900) foram empreendidas para verificar leolítico, suas antepassadas. E, de fato, os primeiros ídolos
o fundamento dessas histórias. Desde então, uma grande quantidade de material fascinan- cicládicos também eram desse tipo. O que teria, então, indu-
te tem sido trazido à luz - ultrapassando tudo o que as fontes faziam prever -, mas zido os escultores a suprimir os aspectos físicos tradicionais
o nosso conhecimento da civilização egeia é ainda muito mais limitado que o do Egito da fecundidade até chegarem ao ideal de esbeltez juvenil da
ou o do Oriente Próximo. Infelizmente, a interpretação dos testemunhos arqueológicos figura 116? Terá havido uma mudança radical do sentido e
recebeu pouca ajuda dos documentos escritos egeus. do propósito ritual dessas estátuas?
Não nos atrevemos sequer a uma tentativa de explicação.
A escrita minoica e o linear B Basta dizer que os escultores das Cíclades do segundo milê-
nio a. C. produziram os mais antigos nus femininos de ta-
Por volta de 2000 a. C., desenvolveu-se em Creta um sistema de escrita. Uma forma
tardia dessa escrita minoica, chamada linear B, em uso 600 anos mais tarde, tanto em manho natural que conhecemos e que durante muitos séculos
Creta como na Grécia, foi decifrada há poucos anos. Trata-se já do grego primitivo, dife- foram os únicos a fazê-los. Na arte grega, encontramos raras
rente da língua usada nas inscrições minoicas anteriores ao séc. XV a. C., que continuam estátuas de mulheres nuas até os meados do séc. IV a. C.,
indecifradas. Esses textos do linear B são, na maioria, inventários de palácios e documen- quando Praxíteles e outros começaram a esculpir imagens da
tos administrativos que pouco revelam da história e da religião do povo que os compôs. Vênus nua. Não deve ter sido por mero acaso que as mais
Falta-nos assim o conhecimento de fundo para a compreensão da arte egeia. Suas formas, famosas estátuas de Afrodite foram encontradas em santuá-
embora vinculadas, por um lado, ao Egito e ao Oriente Próximo e, por outro, à Grécia rios das ilhas do mar Egeu ou da costa da Ásia Menor, re-
arcaica, não são uma simples transição entre esses dois mundos - possuem uma obsessiva giões onde os ídolos cicládicos tinham surgido.
beleza original. O enigmático ar de frescor e de espontaneidade da arte egeia é, entre as
suas variadas e estranhas qualidades, a que nos faz esquecer quão pouco sabemos acerca
do significado destas formas. A ARTE MINOICA

A civilização cretense é, de longe, a mais rica e a mais


estranha do Mundo Egeu. O que a distingue, não só do Egi-
A ARTE CICLÁDICA to e do Oriente Próximo mas também da civilização clássica
da Grécia, é a falta de continuidade, que parecer ter causas
Do povo que habitou as ilhas Cíclades entre 2600 e 1100 a. C., pouco ficou além das mais profundas que um mero acidente arqueológico. Perante
suas modestas sepulturas de pedra. Entre os objetos que depositaram junto dos mortos, as melhores realizações da arte cretense, em vão tentamos vis-
apenas alguns são dignos de nota: os numerosos ídolos de mármore de uma espécie singu- lumbrar uma progressão - aparecem e desaparecem tão re-
larmente impressionante. Quase todos representam uma mulher nua, de pé e com os bra- pentinamente que o seu destino deve ter sido determinado
ços cruzados no peito, talvez a deusa-mãe e da fertilidade, já nossa conhecida na Ásia por forças externas, mudanças violentas e súbitas que afeta-
Menor e no Oriente Próximo e cuja origem se perde no Paleolítico (figs. 19, 30 e 31). ram toda a ilha, das quais pouco ou nada sabemos. Todavia,
Apresentam uma configuração peculiar que nos recorda as qualidades angulosas e abstra- o caráter alegre, jocoso até, desta arte, plena de dinamismo
tas da escultura primitiva: o corpo aplanado e cuneiforme, o forte pescoço em forma de rítmico, não deixa transparecer tais convulsões.
coluna, o rosto oval de traços reduzidos ao longo nariz aquilino. Dentro deste tipo estrei-
tamente definido e estável, os ídolos cicládicos têm formas e dimensões muito variáveis
- desde alguns centímetros até o tamanho natural. Os melhores, como o da figura 116, são ARQUITETURA
de um requinte disciplinado muito acima do nível da arte paleolítica ou primitiva. A primeira destas mudanças inesperadas ocorreu por vol-
Quanto mais se estuda esta peça, mais se nota que as suas qualidades só podem ser ta de 2000 a. C. Até então, durante os oito séculos do perío-
descritas como "elegância" e "sofisticação", por mais incongruentes que nos pareçam do minoico antigo, os cretenses tinham ido pouco além do
aqui tais palavras. Há um extraordinário sentido da estrutura orgânica do corpo nas deli- nível das aldeias neolíticas, embora haja indícios de comér- 116. Ídolo, Amargos. 2500-1100
cadas curvas do contorno e nas convexidades, levemente sugeridas, que marcam os joelhos cio marítimo, especialmente com o Egito. Criaram, então, a. C. Mármore, alt. 0,76 m. Mu-
e o ventre. Mesmo sem considerarmos o seu aspecto enganoso de modernidade, parece- um sistema próprio de escrita e uma civilização representada seu de Ashmolean, Oxford
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A arte egeia 131
por vários grandes palácios. Em Cnossos, Faístos e Malia surgiram três num certo perío-
do, m s pouco resta deste surto repentino de construção monumental porque foram todos
destruídos por volta d 1700 a. C. Cem anos mais tarde, outros edifícios maiores surgiram
nos mesmos locais, vindo a sofrer sorte idêntica (1500 a. C.).
Estes "novos" palácios tornaram-se a nossa principal fonte de informação acerca da
arquitetura cretense. de Cnossos, chamado o Palácio de Minas, era O mais ambicioso,
cobrindo uma vasta área e composto de tantos aposentos que ficou sendo conhecido nas
lendas gregas como o "labirinto do Minotauro". Cuidadosamente explorado e em parte
reconstruído, embora nos escape a aparência do conjunto, é evidente que O seu aspecto
exterior não tinha a imponência dos palácios assírios e persas (figs. 100 e 109). Não houve
qualquer preocupação com o efeito de unidade monumental, os diversos elementos são
pequenos e_ os tetos tão baixos (figs. 117 e 118) que mesmo quando há vários andares os
edifícios não parecem altos.
Apesar disso, os numerosos pórticos, escadarias e pátios devem ter dado ao palácio
um aspecto agradavelmente aberto e arejado. Alguns dos interiores, com as paredes rica-
mente decoradas, ainda hoje conservam a sua atmosfera de íntima elegância. É excelente
a construção de alvenaria, mas as colunas eram todas de madeira. Nenhuma subsistiu e
só lhes conhecemos as formas características (fuste liso adelgaçado na parte inferior e ar-

118. Mégaron da rainha. Palácio de Minos, Cnossos, Creta

rematado em cima por um largo capitel de coxim redondo e ábaco quadrado) através de
representações na pintura e na escultura. Quanto à origem deste tipo de coluna, por vezes
usada como símbolo religioso, ou às possíveis relações com a arquitetura egípcia, nada
podemos dizer.
Quem foram os construtores desses palácios? Não conhecemos seus nomes nem seus
feitos (com exceção do lendário Minas), mas os indícios arqueológicos permitem algumas
conjecturas. Não eram príncipes guerreiros, pois não se encontrou qualquer fortificação
na Creta minoica e os temas militares são quase desconhecidos na sua arte. Nada leva
a supor que fossem reis sagrados, como os do Egito ou da Mesopotâmia, sendo todavia
possível que tivessem presidido a festividades religiosas (as únicas partes dos palácios mi-
nóicos que podem ser identificadas como lugares de culto são pequenas capelas, o que
nos leva a crer que as cerimônias religiosas se realizassem ao ar livre). Por outro lado,
os numerosos armazéns, oficinas e "escritórios" de Cnossos indicam que o palácio, além
de morada régia, era um grande centro administrativo e comercial. Como a navegação
e o comércio desempenhavam um papel importante na vida econômica, a avaliar pelas
instalações portuárias complexas e pelos artigos cretenses de exportação ·achados no Egito
e em outras regiões, talvez o rei fosse o chefe de uma aristocracia mercantil.

ESCULTURA

A vida religiosa é ainda mais difícil de definir que a organização política ou social.
117. Escadaria, ala oriental do Palá- Concentrava-se em determinados lugares sagrados, tais como grutas ou bosques, e a sua
cio de Minos. Cnossos, Creta, c. 1500 divindade principal (ou divindades?) era feminina, aparentada às deusas da maternidade
a. C. e da fecundidade que encontramos anteriormente. Como os minoicos não ergueram tem-
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A arte egeia 133

tuadamente cônica da figura, os olhos enormes e as espessas sobrancelhas arqueadas su-


gerem um parentesco - remoto e indireto, possivelmente por via da Ásia Menor - com
a arte mesopotâmica.

PINTURA, CERÂMICA E BAIXOS-RELEVOS

A deusa das serpentes data do princípio do curto período (de 1600 a 1450 a. C.) ao
qual se deve quase tudo o que temos de arquitetura, escultura e pintura minoicas. Depois
da catástrofe que varreu os palácios antigos, e de um século de lenta recuperação, houve
o que nos parece uma explosão de riqueza e um surto não menos notável de energia criadora.
O aspecto mais surpreendente deste florescimento repentino, porém, são as grandes
realizações no campo da pintura. Na época dos palácios antigos (2000-1700 a. C.), Creta
desenvolveu um tipo de cerâmica célebre pela perfeição técnica e pelos dinâmicos motivos
decorativos em espiral (fig. 120, est. 11), mas nada deixava prever as pinturas murais "na-
turalistas" dos novos palácios. Infelizmente, só restam pequenos fragmentos desses afres-
cos e raras composições escaparam intactas, muito menos o traçado de qualquer parede
completa.
Grande parte representa cenas da natureza, aves e outros animais entre uma vegetação
luxuriante, ou seres marinhos. No notável fragmento da figura 121, um gato aproxima-se
cautelosamente de um faisão desprevenido atrás de um arbusto. As formas planas, desta-
cadas em silhueta sobre um fundo de cor lisa, assim como a aguda observação das plantas
e dos animais, lembram a pintura egípcia. Mas, se a pintura mural minoica deve a sua
origem à influência da arte egípcia, revela um estado de espírito e uma concepção de bele-
za muito diferentes: em lugar do hieratismo e da estabilidade, encontramos aqui uma pai-
xão pelo movimento rítmico e ondulatório; as próprias formas possuem uma estranha
imponderabilidade - parecem flutuar ou oscilar num mundo sem gravidade, como se a
cena se passasse debaixo d'água.

119. A Deusa das Serpentes (sacerdo- 120. Jarro com Asa (Estilo Kamares), Faístos (v. est. 11). Mu-
tisa?), c. 1600 a. C. Terracota, alt. seu de Heraklion, Creta
0,34 m. Museu de Heraklion, Creta

plos, não é de estranhar a ausência de imagens de culto de grande porte, mas, mesmo
em pequena escala, as obras de tema religioso são raras e pouco significativas. Duas esta-
tuetas de terracota (c. 1600 a. C.) achadas em Cnossos parecem representar a deusa numa
das suas várias identidades. A da figura 119 mostra-a com três serpentes a envolvendo-lhe
os braços, o tronco e o toucado. O significado desses animais parece claro - em numero-
sas religiões antigas eles são associados às divindades da Terra e à fecundidade masculina
- assim como os seios nus desta estatueta sugerem a fecundidade feminina.
Tratar-se-ia realmente de uma imagem de culto? A posição frontal também é própria
de uma imagem votiva. E as serpentes? Eram atributo divino ou serviam para qualquer
fim ritual? E uma rainha ou uma sacerdotisa? Falta-lhe majestade, e o elaborado vestido
confere-lhe um ar laico e mundano. E, como são raras as serpentes na ilha, seu culto deve 121. Gato à Espreita de um Faisão. Frag-
ter sido importado; paradoxalmente, nenhuma deusa-serpente foi descoberta até hoje fora mento de pintura mural. Hagia Triada,
de Creta. Só o estilo da estatueta faz admitir uma possível fonte estrangeira: a forma acen- c. 1600-1580 a. C. Alt. 0,53 m. Museu
de Heraklion, Creta
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134 História da arte

122. Afresco do Toureiro (v. est. 12)


Museu de Heraklion, Creta

A vida marinha era um dos temas preferidos da pintura minoica (ver o afresco dos
peixes e dos golfinhos, na figura 118) e a sua influência faz-se sentir em tudo, até no Afres-
co do Toureiro, o maior e o mais cheio de dinamismo dos que foram recuperados (fig.
122, est. 12; as manchas mais escuras são os fragmentos que serviram de base à restaura-
ção). O título convencional não nos deve enganar; o que vemos não é uma corrida de
touros, mas um jogo ritual em que o atleta dá um "salto mortal" por cima da fera. Duas 123. Vaso do Polvo. Palaikastro, Creta,
das figuras com ''cintura de vespa'' são mulheres, diferenciadas pela cor mais clara da c. 1500 a. C. Alt. 0,28 m. Museu de He-
raklion, Creta
pele, convenção já usada na arte egípcia. Não há dúvida de que o touro era um animal
sagrado e que o rito do salto tinha um papel importante na vida religiosa minoica. Encon-
tramos ainda um eco destas cenas na lenda grega dos efebos e das donzelas sacrificadas
ao Minotauro. Mas, se tentarmos "ler" o afresco como uma descrição desse espetáculo
"tauromáquico", ele parecerá estranhamente ambíguo. Mostrarão as três personagens as
fases sucessivas da mesma ação? Como terá o jovem saltado para o dorso do animal e
em que sentido está se orientando? Os arqueólogos até consultaram peritos de rodeio sem
conseguirem uma resposta satisfatória. Nada disto significa incompetência por parte do
artista - seria absurdo censurá-lo por não ter obtido um efeito que nunca procurara - mas
tão somente a sua preferência pelo movimento fluido e sem esforço, em detrimento da
precisão das atitudes ou do poder dramático. Idealizou o rito, por assim dizer, acen-
tuando o seu aspecto de jogo harmonioso, a tal ponto que os participantes se comportam
como golfinhos brincando no mar.
O mundo flutuante desta pintura mural foi uma criação de tanta originalidade que
a sua influência está presente em toda a arte do período dos novos palácios. Na cerâmica
pintada, os antigos temas abstratos (fig. 120, est. 11) deram lugar a um novo repertório 124. Cabrito Montês Saltando. Vaso
inspirado na vida animal e vegetal. Certos vasos estão inteiramente cobertos de peixes, do Palácio de Kato Zakro, c .
conchas, polvos, etc., como se o próprio mar tivesse sido captado neles (fig. 123). Talvez 1500
a escultura em grande escala, se tivesse havido, tivesse podido manter a sua independên- a. C. Calcário (folheado a ouro),
comprimento do cabrito c. 0,10 m.
cia, mas os pequenos relevos e estatuetas a que os escultores se limitavam estão muitas Museu de Heraklion, Creta
vezes pertíssimo do estilo dos afrescos. O salto do cabrito montês (também animal sagra-
do) esculpido com tanto realismo num vaso de pedra (fig. 124) possui um movimento "em
vôo'', idêntico ao do touro no Afresco do Toureiro.
Mais impressionante ainda é o relevo do chamado Vaso dos Ceifeiros (fig. 125), uma
136 História da arte A arte egeia 137

125. Vaso dos Ceifeiros (detalhe). Ha-


gia Triada, c. 1550-1500 a.e. Estea-
tite, larg. 0,12 rn. Museu de Hera-
klion, Creta
126. Tesouro de Atreu (interior). Micenas, c.
1300-1250 a. C.
procissão de homens musculosos, de tronco nu, levando aos ombros um instrumento que
parece uma combinação de foice e ancinho. Uma festa das colheitas? É possível, ainda
que de novo aqui o ritmo animado da composição se sobreponha à clareza descritiva. Ve-
mos três cantores, conduzidos por um outro que agita um sistro; cantam a plenos pul-
mões, em especial o "chefe do coro", cujo peito está tão distendido que se lhe veem as
costelas através da pele. O relevo é notável - na verdade, único - pelo esforço muscular
pela irrequieta e ruidosa alegria, pela fina observação aliada a um claro propósito
humorístico. Quantas obras desta qualidade terá a arte minoica produzido? Apenas
encontra- mos algo de semelhante no relevo Trabalhadores Transportando uma Trave (fig. 83),
talhado quase dois séculos depois, sob o estilo de Akhenaton. Será possível que peças
como o Vaso dos Ceifeiros tenham estimulado os artistas egípcios nesse período tão breve
quanto importante?
127. Corte do Tesouro de Atreu

A ARTE MICÊNICA
ram a ser enterrados em poços sepulcrais e, um pouco mais tarde, em câmaras cônicas
de pedra, conhecidas como túmulos em forma de colméia, que alcançaram o apogeu por
Ao longo da costa sudeste da Grécia existiu durante o Período Heládico Final (ou Re-
volta de 1300 a. C., em construções impressionantes (como a das figuras 126 e 127), de
cente c. 1600-1100 a. C.), um certo número de núcleos populacionais muito semelhantes
paredes formadas por fileiras concêntricas de blocos de pedra talhados com grande preci-
aos da Creta minoica. Também se agrupavam ao redor de palácios. Os respectivos habi-
são. O seu descobridor, achando que se tratava de um projeto ambicioso demais para uma
tantes eram os micênicos, nome derivado de Micenas, o centro mais importante. Como
sepultura, deu-lhe o nome enganoso de Tesouro de Atreu. Câmaras funerárias tão comple-
as obras de arte descobertas em escavações nestes locais têm uma feição nitidamente mi-
noica, julgou-se, a princípio, que fossem de origem cretense, mas está provado que descen- xas como esta só se faziam, na época, no Egito. ·
diam das primeiras tribos que chegaram na região pouco depois do ano 2000 a. C. O Tesouro de Atreu tinha sido despojado do seu conteúdo havia muito tempo. Mas
outros túmulos micênicos foram descobertos intactos e o seu conteúdo causou uma surpre-
Os túmulos e o seu conteúdo sa ainda maior: ao lado dos cadáveres reais foram encontradas máscaras de ouro ou prata,
ao que parece para lhes cobrir o rosto. Se assim era, estas máscaras obedeciam à mesma
Durante mais de quatro séculos, esses homens levaram uma obscura existência pastoril intenção - embora não ao mesmo estilo - das máscaras achadas nos túmulos faraônicos
na sua nova pátria. As modestas sepulturas deste período apenas continham singelos va- da Monarquia Média ou da Nova (v. fig. 84, est. 8). Havia também muitos objetos pes-
sos de barro e algumas armas de bronze. Mas, por volta de 1600 a. C., os mortos começa- soais - vasos para beber, jóias, armas -, muitos deles de ouro e primorosamente traba-
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129 e 130. As taças de Vaphio, c. 1500 a. C. Ouro, alt. 0,076 x 0,088 m. Museu Nacional, Atenas

de saltar por cima do touro, mas à atividade muito mais prática de capturar animais nas
pastagens, tema que não aparece na arte minoica e está presente na micênica. Uma vez
cientes disso, já somos capazes de constatar que o traçado das taças não pode competir
com o movimento rítmico e contínuo das composições minoicas e que os touros, não obs-
tante todo o seu vigor físico, mais parecem simples gado que animais sagrados. Tudo pare-
ce indicar, assim, que as taças são uma adaptação micênica de formas minoicas, quer por
um artista do continente, quer por um cretense a serviço de patronos micenenses.
128. Rhyton com feitio de cabeça de
leão. De um túmulo de poço, Mice-
Micenas, Creta e o Egito
nas, c. 1550 a. C. Ouro, alt. 0,20 m. Assim, no séc. XVI a. C., Micenas apresenta um quadro singular: ao que parece ser
Museu Nacional, Atenas
uma influência egípcia nas tradições funerárias vem juntar-se um forte influxo artístico
de Creta, num período de extraordinária riqueza material, manifestada pela profusão de
lhados. Agumas peças, como o magnífico vaso de ouro em forma de cabeça de leão (fig. ouro. Teriam os micênicos dominado os minoicos, causando a destruição dos "novos pa-
128), manifestam um estilo arrojadamente expressivo, de planos suaves limitados por arestas lácios", por volta de 1500? Hipótese já descartada, pois parece que os edifícios foram
vivas que fazem admitir uma ligação com o Oriente Próximo. Outras, porém, possuem um arrasados por uma catástrofe natural (tremor de terra e ondas gigantescas, depois de uma
sabor tão acentuadamente minoico que devem ter sido importadas de Creta. erupção vulcânica). Seja como for, o enigma da influência egípcia permanece por deci-
frar. Precisamos de uma explicação triangular que envolva os micênicos, Creta e o Egito,
As taças de Vaphio aproximadamente um século antes da ruína dos "novos palácios". Segundo uma teoria
recente, fascinante e imaginativa, embora difícil de confirmar em pormenores, os egípcios,
entre 1700 e 1580 a. C., procuravam expulsar os hicsos, que tinham-se apoderado do Del-
Neste _último grupo encontram-se as duas célebres taças de ouro de um túmulo em ta. Para isso, obtiveram o auxílio dos guerreiros micênicos, que regressaram carregados
Vaphio (figs. 129, 130), produzidas por volta de 1500 a. C., algumas décadas depois do de ouro (metal que somente o Egito possuía em abundância) e profundamente impressio-
rhyton da cabeça de leão, mas não se sabe onde, por quem nem para quem. Aqui torna-se nados pelos costumes funerários que tinham conhecido. Os cretenses do Período Minoico,
agudo o problema "minoico ou micênico?". A controvérsia não é tão vã como p de pare- pouco dados à guerra mas famosos marinheiros, levaram e trouxeram os micênicos, de
cer, porque põe à prova a nossa capacidade de distinguir as duas culturas vizinhas, tal modo que também eles tiveram um contato novo e mais estreito com o Egito (o que talvez
como nos obriga a considerar todos os aspectos das taças. Encontramos nelas, no estilo explique a sua prosperidade súbita perto de 1600 a. C., assim como o desenvolvimento
ou no tema, algo que seja não minoico? À primeira vista, notamos a semelhança das figu- rápido das pinturas murais naturalistas nessa época). Uma vez estabelecidas, as estreitas
ras hum as com as do Vaso dos Ceifeiros, e as dos touros com O animal do Afresco relações entre Micenas e Creta iriam durar muito. Quando a escrita linear B apareceu,
do Toureiro. Por outro lado, os homens das taças de Vaphio não se entregam ao exercício por volta de 1400 a. C., os micênicos eram senhores da ilha, por conquista ou por algum
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casamento dinástico. Certo é que o seu poder cresceu à medida que declinava o dos creten-
ses; os grandes monumentos de. Micenas foram todos construídos entre 1400 e 1200 a. C.

Arquitetura
Com exceção de alguns pormenores, como a forma das colunas e variados motivos
decorativos, a arquitetura de Micenas pouco deve à tradição minoica. Os palácios do con-
tinente eram fortalezas erigidas sobre colinas e rodeadas de muralhas defensivas de enor-
mes blocos de pedra, tipo de construção completamente desconhecido em Creta mas
semelhante às fortificações hititas de Boghaz-Keui (v. fig. 99). A Porta dos Leões, em Mi-
cenas (fig. 131), é o mais imponente exemplo dessas fortificações maciças que, mais tarde,
inspiraram aos gregos tal respeito que as tiveram por obras dos ciclopes (raça mitológica
de gigantes de um só olho). Mesmo o Tesouro de Atreu, apesar de construído com blocos
menores e mais regulares, possui um lintel ciclópico (fig. 126).
O grande relevo de pedra da Porta dos Leões também é alheio à tradição minoica.
As duas feras, ladeando uma coluna cretense simbólica, possuem a majestade severa e
heráldica da cabeça de leão da figura 128. Pela função de guardiões da porta, pelos corpos
tensos e musculosos e pela simetria do traçado, sugerem uma influência do Oriente anti-
go. Podemos lembrar aqui a Guerra de Tróia, imortalizada na Ilíada, que levou os micêni-
cos até a Ásia Menor pouco depois de 1200 a. C. É muito provável, porém, que muito
antes disso eles já se aventurassem para o Oriente, entregues ao comércio ou à guerra.
O centro do Palácio, em Micenas e em outros lugares da península, era a sala de au-
diências ou mégaron, de que só conhecemos bem a planta: uma sala grande, retangular,
com uma lareira redonda ao centro e quatro. colunas onde assentavam as traves do telhado
(fig. 132). Dava-lhe acesso uma antecâmara, antecedida pelo pórtico de duas colunas. É
uma versão ampliada das vulgares casas das gerações anteriores, datando do Heládico Mé-
dio. Ricas decorações parietais e esculturas decorativas deviam realçar a dignidade da
moradia real.

Escultura
Não há qualquer vestígio de arquitetura religiosa micênica, se alguma vez existiu. Mas
os palácios tinham pequenas capelas, como os de Creta. A que deuses se prestava o culto? Não
se sabe ao certo. A religião micênica devia, certamente, conter elementos minoicos, a par
de influências da Ásia Menor e de divindades de origem grega, herdadas dos seus
antepassados. Mas os deuses têm um estranho modo de fundir-se uns com os outros e

131. Porta dos Leões, Micenas, c . 1250 a. C.

132. Planta de um mégaron micênico


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133 e 134. Três Divindades. Micenas, e. 1500-1400 a. C. Marfim, alt. 0,076 m. Museu Nacional, Atenas

de mudar de identidade, de modo que as imagens religiosas de Micenas são muito difíceis
de interpretar.
Que podemos concluir, por exemplo, do pequeno grupo de marfim (figs. 133, 134) de-
senterrado em Micenas, em 1939? O estilo desta peça - as suas linhas profusamente en-
curvadas e a flexibilidade dos movimentos do corpo - ainda lembra a arte minoica, mas
o tema é realmente estranho. Duas mulheres ajoelhadas, dando-se os braços sobre os om-
bros, tendo no colo uma criança. Esta agarra-se ao braço da figura sem cabeça e aproxima-se
dela. Será a mãe? E a outra mulher, a avó? Na era cristã, são correntes estes grupos de
família. O mais frequente é o de Santa Ana, a Virgem e o Menino, reunidos de maneira
semelhante.
É a lembrança destas obras mais recentes que influencia a nossa visão deste marfim.
Mas nenhum tema de religião antiga nos dá a chave para a interpretação deste grupo.
Por outro lado, há um mito muito espalhado, acerca do deus-menino (o seu nome varia
de lugar para lugar) que, abandonado pela mãe, é criado por ninfas, deusas e até animais.
Somos, assim, levados a concluir - sem muita convicção - que é um deus-menino com
as suas amas. Mas o verdadeiro mistério é outro e mais profundo: é o da ternura dos ges-
tos, o do íntimo afeto que une as três figuras. Em parte alguma, através de toda a arte
antiga antes dos gregos, encontramos deuses, ou mesmo homens, que exprimam afeição
com tanto calor e eloquência.
Reflete-se aqui algo de fundamentalmente novo, uma visão íntima e familiar dos seres
divinos que faz parecer atemorizadora e distante a própria deusa minoica das serpentes
(fig. ll9). Esta mudança de atitude e a capacidade de exprimi-la na arte dever-se-á aos
micênicos? Ou terá vindo dos minoicos? Como quer que seja, este grupo explora uma
dimensão do sentimento humano que nunca esteve ao alcance do Egito ou da Mesopotâmia.

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