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Perspectiva

Profissionalismo médico no novo milênio: uma carta do médico

Projeto da Fundação ABIM, Fundação ACP–ASIM e Federação Europeia de Medicina Interna*

Aos nossos leitores:Escrevo brevemente para apresentar o
Projeto de Profissionalismo Médico e seu principal produto, a Carta
de Profissionalismo Médico. A carta aparece impressa pela primeira
vez nesta edição daAnuaise simultaneamente emThe Lancet. Espero
que olhemos para sua publicação como um divisor de águas na
medicina. Todos os envolvidos com cuidados de saúde devem ler o
estatuto e refletir sobre seu significado.
A carta é o produto de vários anos de trabalho de líderes da
Fundação ABIM, da Fundação ACP-ASIM e da Federação Europeia de
Medicina Interna. A carta consiste em uma breve introdução e
justificativa, três princípios e 10 compromissos. A introdução contém a
seguinte premissa: As mudanças nos sistemas de prestação de cuidados
de saúde em países do mundo industrializado ameaçam os valores do
profissionalismo. O documento transmite essa mensagem com uma
brevidade assustadora. Os autores aparentemente não sentem
necessidade de defender essa premissa, talvez porque acreditem que
seja uma verdade universalmente aceita. Os autores vão além,
afirmando que as condições da prática médica estão tentando os
médicos a abandonar seu compromisso com a primazia do bem-estar do
paciente. Estas são palavras muito fortes. Se eles são estritamente
verdadeiros para a profissão como um todo é quase irrelevante. Cada
médico deve decidir se as circunstâncias da prática estão ameaçando sua
no globo lerá a carta. Este documento representa as tradições da
medicina em culturas diferentes daquelas do Ocidente, onde os
autores da carta exerceram a medicina? Esperamos que os leitores
de todos os lugares se envolvam em um diálogo sobre a Carta, e
oferecemos nossas páginas como um local para esse diálogo. Se as
tradições da prática médica em todo o mundo não são congruentes
umas com as outras, pelo menos podemos progredir na
compreensão de como os médicos em diferentes culturas entendem
seus compromissos com os pacientes e o público.
Muitos médicos reconhecerão nos princípios e compromissos da
carta o fundamento ético de suas relações profissionais, individualmente
com seus pacientes e coletivamente com o público. Para eles, o desafio
será viver de acordo com esses preceitos e resistir aos esforços para
impor uma mentalidade corporativa a uma profissão de serviço ao
próximo. Forças que estão muito além do nosso controle nos levaram a
circunstâncias que exigem uma reafirmação da responsabilidade
profissional. A responsabilidade de agir de acordo com esses princípios e
compromissos recai diretamente sobre nossos ombros.
—Harold C. Sox, MD, Editor

adesão aos valores que a profissão médica preza há muitos milênios.
Três Princípios Fundamentais preparam o terreno para o cerne
da carta, um conjunto de compromissos. Um dos três princípios, o
princípio da primazia do bem-estar do paciente, data dos tempos
antigos. Outro, o princípio da autonomia do paciente, tem uma
história mais recente. Somente na última parte do século passado
as pessoas começaram a ver o médico como um conselheiro,
geralmente um entre muitos, de um paciente autônomo. De acordo
com essa visão, o centro do atendimento ao paciente não está no
consultório médico ou no hospital. É onde as pessoas vivem suas
vidas, em casa e no local de trabalho. Lá, os pacientes fazem as
escolhas diárias que determinam sua saúde. O princípio da justiça
P
os médicos de hoje estão frustrados com as mudanças nos
sistemas de prestação de cuidados de saúde em praticamente
todos os países industrializados que ameaçam a própria natureza e
os valores do profissionalismo médico. Reuniões entre a Federação
Europeia de Medicina Interna, o Colégio Americano de Médicos–
Sociedade Americana de Medicina Interna (ACP–ASIM) e o Conselho
Americano de Medicina Interna (ABIM) confirmaram que as opiniões
dos médicos sobre profissionalismo são semelhantes em sistemas
bastante diversos de prestação de cuidados de saúde.
Compartilhamos a visão de que o compromisso da medicina com o
paciente está sendo desafiado por forças externas de mudança em

social é o último dos três princípios. Exorta a profissão a promover nossas sociedades.
uma distribuição justa dos recursos de saúde. Recentemente, vozes de muitos países começaram a
Há razões para esperar que os médicos de todos os pontos pedir um senso renovado de profissionalismo, que

Ann Intern Med.2002;136:243-246.

* Esta carta foi escrita pelos integrantes do Projeto Profissionalismo Médico: Fundação ABIM: Troy Brennan, MD, JD (Cadeira de Projeto), Brigham and Women's Hospital, Boston, Massachusetts;
Linda Blank (Equipe do projeto),Fundação ABIM, Filadélfia, Pensilvânia; Jordan Cohen, MD, Associação de Faculdades de Medicina Americanas, Washington, DC; Harry Kimball, MD, Conselho
Americano de Medicina Interna, Filadélfia, Pensilvânia; e Neil Smelser, PhD, Universidade da Califórnia, Berkeley, Califórnia. Fundação ACP–ASIM: Robert Copeland, MD, Southern Cardiopulmonary
Associates, LaGrange, Geórgia; Risa Lavizzo-Mourey, MD, MBA, Fundação Robert Wood Johnson, Princeton, Nova Jersey; e Walter McDonald, MD, American College of Physicians–American Society
of Internal Medicine, Filadélfia, Pensilvânia. Federação Europeia de Medicina Interna: Gunilla Brenning, MD, University Hospital, Uppsala, Suécia; Christopher Davidson, MD, FRCP, FESC, Royal
Sussex County Hospital, Brighton, Reino Unido; Philippe Jaeger, MB, MD, Centre Hospitalier Universitaire Vaudois, Lausanne, Suíça; Alberto Malliani, MD, Università di Milano, Milão, Itália; Hein
Muller, MD, PhD, Ziekenhuis Gooi-Noord, Rijksstraatweg, Holanda; Daniel Sereni, MD, Hôpital Saint-Louis, Paris, França; e Eugene Sutorius, JD, Faculteit der Rechts Geleerdheid, Amsterdã, Holanda.
Consultores Especiais: Richard Cruess, MD, e Sylvia Cruess, MD, McGill University, Montreal, Canadá; e Jaime Merino, MD, Universidad Miguel Hernández, San Juan de Alicante, Espanha. Canadá; e
Jaime Merino, MD, Universidad Miguel Hernández, San Juan de Alicante, Espanha. Canadá; e Jaime Merino, MD, Universidad Miguel Hernández, San Juan de Alicante, Espanha.

www.annals.org 5 de fevereiro de 2002 Annals of Internal Medicine Volume 136 • Número 3243
PerspectivaCarta do Profissionalismo Médico
é ativista na reforma dos sistemas de saúde. Respondendo a
este desafio, a Federação Europeia de Medicina Interna, a
Fundação ACP–ASIM e a Fundação ABIM uniram esforços
para lançar o Projeto de Profissionalismo Médico
(www.professionalism.org) no final de 1999. Essas três
organizações designaram membros para desenvolver um “
charter” para abranger um conjunto de princípios aos quais
todos os profissionais médicos podem e devem aspirar. A
carta apóia os esforços dos médicos para garantir que os
sistemas de saúde e os médicos que trabalham neles
permaneçam comprometidos com o bem-estar do paciente
e com os princípios básicos da justiça social. Além disso, a
carta pretende ser aplicável a diferentes culturas e sistemas
políticos.
PREAMBLE
O profissionalismo é a base do contrato da medicina com a
sociedade.Exige colocar os interesses dos pacientes acima dos
interesses do médico, estabelecer e manter padrões de
competência e integridade e fornecer aconselhamento
especializado à sociedade em questões de saúde. Os princípios
e responsabilidades do profissionalismo médico devem ser
claramente compreendidos pela profissão e pela sociedade.
Essencial para este contrato é a confiança pública nos médicos,
que depende da integridade de ambos os médicos
individualmente e de toda a profissão.
Atualmente, a profissão médica enfrenta uma explosão de
tecnologia, mudanças nas forças do mercado, problemas na
prestação de cuidados de saúde, bioterrorismo e globalização.
Como resultado, os médicos acham cada vez mais difícil cumprir
suas responsabilidades com os pacientes e a sociedade. Nestas
circunstâncias, reafirmar os princípios e valores fundamentais e
universais do profissionalismo médico, que permanecem ideais
a serem perseguidos por todos os médicos, torna-se ainda mais
importante.
A profissão médica em todos os lugares está inserida
em diversas culturas e tradições nacionais, mas seus
membros compartilham o papel do curador, cujas raízes
remontam a Hipócrates. De fato, a profissão médica deve
enfrentar complicadas forças políticas, legais e de mercado.
Além disso, existem amplas variações na prestação e na
prática médica por meio das quais quaisquer princípios
gerais podem ser expressos de maneiras complexas e sutis.
Apesar dessas diferenças, temas comuns emergem e
formam a base desta carta na forma de três princípios
fundamentais e como um conjunto de responsabilidades
profissionais definitivas.
2445 de fevereiro de 2002 Annals of Internal Medicine Volume 136 • Número 3
FUNDAMENTALPRINCÍPIOS
Princípio da primazia do bem-estar do paciente.Este
princípio é baseado em uma dedicação para servir o interesse
do paciente. O altruísmo contribui para a confiança que é
central na relação médico-paciente. As forças do mercado, as
pressões sociais e as exigências administrativas não devem
comprometer esse princípio.
Princípio da autonomia do paciente.Os médicos devem
respeitar a autonomia do paciente. Os médicos devem ser
honestos com seus pacientes e capacitá-los a tomar decisões
informadas sobre seu tratamento. As decisões dos pacientes
sobre seus cuidados devem ser primordiais, desde que essas
decisões estejam de acordo com a prática ética e não levem a
demandas por cuidados inadequados.
Princípio da justiça social.A profissão médica deve
promover a justiça no sistema de saúde, incluindo a distribuição
justa dos recursos de saúde. Os médicos devem trabalhar
ativamente para eliminar a discriminação na assistência à
saúde, seja com base em raça, sexo, status socioeconômico,
etnia, religião ou qualquer outra categoria social.
COMOET DEPPROFISSIONALRRESPONSABILIDADES
Compromisso com a competência profissional.Os médicos devem
estar comprometidos com a aprendizagem ao longo da vida e ser
responsáveis por manter o conhecimento médico e as habilidades
clínicas e de equipe necessárias para a prestação de cuidados de
qualidade. Mais amplamente, a profissão como um todo deve se esforçar
para garantir que todos os seus membros sejam competentes e deve
garantir que os mecanismos apropriados estejam disponíveis para que
os médicos alcancem esse objetivo.
Compromisso com a honestidade com os pacientes.Os
médicos devem garantir que os pacientes sejam completa e
honestamente informados antes de consentir o tratamento e
após o tratamento. Essa expectativa não significa que os
pacientes devam estar envolvidos em cada decisão minuciosa
sobre cuidados médicos; em vez disso, eles devem ter o poder
de decidir sobre o curso da terapia. Os médicos também devem
reconhecer que, na assistência à saúde, às vezes ocorrem erros
médicos que ferem os pacientes. Sempre que os pacientes
forem feridos como consequência de cuidados médicos, os
pacientes devem ser informados imediatamente, pois a falha
em fazê-lo compromete seriamente a confiança do paciente e
da sociedade. Relatar e analisar erros médicos fornece a base
para prevenção e im-
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estratégias de melhoria e para compensação adequada às
partes lesadas.
Compromisso com a confidencialidade do paciente.Ganhar a
confiança dos pacientes requer que as salvaguardas de
confidencialidade apropriadas sejam aplicadas à divulgação das
informações do paciente. Este compromisso se estende a discussões
com pessoas que agem em nome do paciente quando não for
possível obter o consentimento do próprio paciente. Cumprir o
compromisso com a confidencialidade é mais urgente do que
nunca, devido ao uso generalizado de sistemas eletrônicos de
informação para compilar dados de pacientes e uma disponibilidade
crescente de informações genéticas. Os médicos reconhecem, no
entanto, que seu compromisso com a confidencialidade do paciente
deve ocasionalmente ceder a considerações imperativas de
interesse público (por exemplo, quando os pacientes colocam outras
pessoas em risco).
Comprometimento em manter relações adequadas com os
pacientes.Dada a inerente vulnerabilidade e dependência dos
pacientes, certas relações entre médicos e pacientes devem ser
evitadas. Em particular, os médicos nunca devem explorar os
pacientes para qualquer vantagem sexual, ganho financeiro
pessoal ou outro propósito privado.
Compromisso com a melhoria da qualidade do atendimento.Os
médicos devem se dedicar à melhoria contínua da qualidade dos
cuidados de saúde. Esse compromisso envolve não apenas manter a
competência clínica, mas também trabalhar em colaboração com
outros profissionais para reduzir o erro médico, aumentar a
segurança do paciente, minimizar o uso excessivo de recursos de
saúde e otimizar os resultados do atendimento. Os médicos devem
participar ativamente no desenvolvimento de melhores medidas de
qualidade de atendimento e na aplicação de medidas de qualidade
para avaliar rotineiramente o desempenho de todos os indivíduos,
instituições e sistemas responsáveis pela prestação de cuidados de
saúde. Os médicos, tanto individualmente quanto por meio de suas
associações profissionais, devem assumir a responsabilidade de
auxiliar na criação e implementação de mecanismos destinados a
incentivar a melhoria contínua da qualidade dos cuidados.
Compromisso com a melhoria do acesso aos cuidados.O
profissionalismo médico exige que o objetivo de todos os sistemas
de saúde seja a disponibilidade de um padrão de atendimento
uniforme e adequado. Os médicos devem se esforçar individual e
coletivamente para reduzir as barreiras aos cuidados de saúde
equitativos. Dentro de cada sistema, o médico deve trabalhar para
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Carta do Profissionalismo Médico Perspectiva
eliminar barreiras de acesso baseadas em educação, leis,
finanças, geografia e discriminação social. Um compromisso
com a equidade envolve a promoção da saúde pública e da
medicina preventiva, bem como a defesa pública por parte
de cada médico, sem preocupação com o interesse próprio
do médico ou da profissão.
Compromisso com uma distribuição justa de recursos
finitos. Ao mesmo tempo em que atendem às necessidades de
pacientes individuais, os médicos são obrigados a fornecer
cuidados de saúde baseados no gerenciamento sensato e
econômico de recursos clínicos limitados. Eles devem estar
empenhados em trabalhar com outros médicos, hospitais e
pagadores para desenvolver diretrizes para cuidados com boa
relação custo-benefício. A responsabilidade profissional do
médico pela alocação adequada de recursos requer a evitação
escrupulosa de exames e procedimentos supérfluos. A
prestação de serviços desnecessários não apenas expõe os
pacientes a danos e despesas evitáveis, mas também diminui os
recursos disponíveis para outros.
Compromisso com o conhecimento científico.Grande parte
do contrato da medicina com a sociedade baseia-se na
integridade e no uso adequado do conhecimento científico e da
tecnologia. Os médicos têm o dever de defender os padrões
científicos, promover a pesquisa e criar novos conhecimentos e
garantir seu uso adequado. A profissão é responsável pela
integridade desse conhecimento, que é baseado em evidências
científicas e na experiência do médico.
Compromisso em manter a confiança por meio do
gerenciamento de conflitos de interesse.Profissionais
médicos e suas organizações têm muitas oportunidades de
comprometer suas responsabilidades profissionais
buscando ganhos privados ou vantagens pessoais. Tais
concessões são especialmente ameaçadoras na busca de
interações pessoais ou organizacionais com indústrias com
fins lucrativos, incluindo fabricantes de equipamentos
médicos, seguradoras e empresas farmacêuticas. Os
médicos têm a obrigação de reconhecer, divulgar ao público
em geral e lidar com conflitos de interesse que surjam no
curso de suas atividades e deveres profissionais. As relações
entre a indústria e os líderes de opinião devem ser
divulgadas, especialmente quando estes últimos
determinam os critérios para conduzir e relatar ensaios
clínicos, redigir editoriais ou diretrizes terapêuticas ou atuar
como editores de revistas científicas.
5 de fevereiro de 2002 Annals of Internal Medicine Volume 136 • Número 3245
PerspectivaCarta do Profissionalismo Médico
Compromisso com as responsabilidades profissionais.
Como membros de uma profissão, espera-se que os médicos
trabalhem de forma colaborativa para maximizar o atendimento
ao paciente, sejam respeitosos uns com os outros e participem
dos processos de autorregulação, incluindo remediação e
disciplina de membros que falharam em cumprir os padrões
profissionais. A profissão também deve definir e organizar o
processo educacional e de estabelecimento de padrões para
membros atuais e futuros. Os médicos têm obrigações
individuais e coletivas de participar desses processos. Essas
obrigações incluem o envolvimento na avaliação interna e a
aceitação do escrutínio externo de todos os aspectos de seu
desempenho profissional.
SUMÁRIO
A prática da medicina na era moderna enfrenta desafios
sem precedentes em praticamente todas as culturas e
sociedades. Esses desafios centram-se no aumento das
disparidades entre as necessidades legítimas dos pacientes, a
2465 de fevereiro de 2002 Annals of Internal Medicine Volume 136 • Número 3
recursos disponíveis para atender a essas necessidades, a
crescente dependência das forças de mercado para transformar
os sistemas de saúde e a tentação dos médicos de abandonar
seu compromisso tradicional com a primazia dos interesses dos
pacientes. Para manter a fidelidade do contrato social da
medicina durante este período turbulento, acreditamos que os
médicos devem reafirmar sua dedicação ativa aos princípios do
profissionalismo, o que implica não apenas seu compromisso
pessoal com o bem-estar de seus pacientes, mas também
esforços coletivos para melhorar os cuidados de saúde sistema
para o bem-estar da sociedade. Esta Carta do Profissionalismo
Médico pretende encorajar tal dedicação e promover uma
agenda de ação para a profissão médica que seja universal em
escopo e propósito.
Solicitações de reimpressões únicas:Linda Blank, ABIM Foundation, 510
Walnut Street, Suite 1700, Filadélfia, PA 19106-3699; e-mail, lblank
@abim.org.
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