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MATRIZES DO

PENSAMENTO III:
PSICOLOGIA
COGNITIVA
A terceira geração
das terapias
cognitivo-
-comportamentais
Cintya de Abreu Vieira
Maria Beatriz Rodrigues

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Reconhecer as principais mudanças na terceira geração de terapias cognitivo-


-comportamentais.
> Conceituar terapia de aceitação e compromisso de Hayes.
> Demonstrar a aplicação clínica e o manejo terapêutico da terapia de aceitação
e compromisso.

Introdução
As terapias cognitivo-comportamentais passaram por transformações no decorrer
de sua história, e há hoje um consenso de que sua evolução pode ser classificada
em três gerações, ou, como alguns chamam, três ondas de terapias cognitivo-
-comportamentais. Todas têm em comum o fato de serem amparadas em pesquisas
científicas muito valorizadas desde o nascimento da psicologia cognitiva. O que
delimita cada uma das três gerações é como concebem e enfatizam a prática de
intervenção, o comportamento, a cognição, a emoção e a conscientização. Esses
são os pilares sobre os quais se desenvolveram os procedimentos de intervenção
2 A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais

das terapias cognitivo-comportamentais. Além disso, na terceira onda existe um


papel de destaque para a terapia de aceitação e compromisso de Hayes.
Neste capítulo, você vai estudar a terceira geração de terapias cognitivo-com-
portamentais no contexto da psicologia cognitivo-comportamental, examinando
o que essa terceira onda tem em comum e de diferente em relação às anteriores.
Além disso, vai conhecer o conceito da terapia de aceitação e compromisso de
Hayes, suas formas de intervenção e a maneira como se dá sua aplicação clínica.

Mudanças promovidas pela terceira geração


Em meados do século XX, a abordagem teórica e a prática do behaviorismo
dominaram o cenário da psicologia por pelo menos 30 anos. Em certos círculos
acadêmicos, sobretudo nos Estados Unidos, a publicação de um manifesto
behaviorista por John B. Watson em 1913 baniu da psicologia os estudos
sobre o funcionamento mental, com seus “conteúdos mentalistas”, conforme
o autor (WATSON, 1913). A partir de trabalhos clássicos de Pavlov, Thorn-
dike, Hull e Skinner, a psicologia behaviorista buscou se estabelecer como
ciência do comportamento observável, controlável e avaliável por meio de
rigor metodológico. Os termos terapia comportamental e modificação do
comportamento são os definidores de intervenções clínicas da proposta
comportamental, desenvolvidos a partir dos princípios básicos da teoria da
aprendizagem e da análise experimental do comportamento. A partir de 1950,
a terapia comportamental foi reconhecida como uma abordagem sistemática
de intervenção em saúde mental, opondo-se frontalmente à psicanálise, outra
escola de pensamento importante na época (RANGÉ et al., 2011).
Nesse mesmo período, insatisfações com as explicações behavioristas
para o comportamento, sem consideração pelo que se passa na mente hu-
mana, começaram a surgir, inclusive por parte de autores behavioristas como
Edward Tolman (1886–1959) e Edwin Guthrie (1886–1959). Também houve o
desenvolvimento de novas teorias e evidências de pesquisas, como as de
Jean Piaget (1896–1980) sobre o desenvolvimento cognitivo infantil e de Albert
Bandura (1925–2021) sobre aprendizagem social e vicária. Ambos salientaram
o papel das cognições e modelos de processamento de informações no
desenvolvimento, demonstrando empiricamente as limitações do modelo
comportamental. Esses eventos e teorias contribuíram para o nascimento
da psicologia cognitiva (KNAPP; BECK, 2008; SCHULTZ, D.; SCHULTZ, S., 2005).
A psicologia cognitiva retomou conteúdos importantes, investigados
desde a fundação da psicologia como ciência. Portanto, a vertente teórica
pode ser considerada uma síntese de ideias do estruturalismo, das origens
A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais 3

da psicologia e do estudo da consciência, bem como do behaviorismo, pois,


apesar das críticas, apoiava muitos de seus princípios. A perspectiva cognitiva
concentra-se no funcionamento mental e na aprendizagem, ou em como os
indivíduos compreendem, representam e atuam no mundo. Nesse âmbito,
Eysenck e Keane (2017) conceituam psicologia cognitiva como aquela que
investiga os processos mentais que ocorrem quando tentamos entender,
dar sentido e agir no ambiente, incluindo atenção, percepção, memória,
aprendizagem, linguagem, etc. O objetivo dessa linha teórica é compreender
a cognição humana observando suas manifestações por meio de comporta-
mentos e execução de tarefas.
A revolução cognitiva foi um movimento global, um marco para tantas
ciências, e uma mudança de paradigma na psicologia. Nesse sentido, a me-
táfora do computador passou a ser muito adotada para explicar o funcio-
namento mental. Os computadores recebem informação, as transformando
e armazenando para uso posterior, similarmente ao funcionamento mental
humano. Para o entendimento das funções mentais, simples ou complexas, os
psicólogos cognitivistas observam situações cotidianas e questionam como a
percepção, a atenção, a memória, a tomada de decisões, entre tantas outras
funções, ocorrem. A abordagem descreve padrões de processamento para
compreender o funcionamento mental normal, assim como irregularidades
ou alterações (FELDMAN, 2015).
A partir do contexto de surgimento da psicologia cognitiva e de seus
pressupostos, podemos compreender como amadureceram as abordagens
de intervenção conhecidas como terapias cognitivo-comportamentais (TCCs).
As TCCs são inúmeras, compartilham princípios comuns, mas apresentam
também significativas diferenças. Knapp e Beck (2008) atribuem parte dessas
diferenças ao fato de que seus fundadores vieram de diferentes formações e
fundamentos teóricos. Alguns trabalhavam anteriormente com psicanálise e
outros provinham do comportamentalismo. Os mesmos autores reconhecem
três principais proposições em TCC:

„ as de papel mediacional da cognição, em que os comportamentos


disfuncionais são mediados pela cognição e a melhora depende de
mudanças em pensamentos e crenças;
„ as que defendem o monitoramento, a avaliação e a mensuração da
atividade cognitiva;
„ aquelas em que a mudança do comportamento pode ser uma evidência
indireta de mudança cognitiva.
4 A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais

Como ponto e comum, as TCCs partem do entendimento de que os sintomas


e os comportamentos inadequados são mediados pela cognição e, portanto,
as intervenções precisam ocorrer por meio da modificação de pensamentos
e crenças disfuncionais.
Vanderberghe e Sousa (2006) afirmam que a TCC conheceu três ondas. Na
primeira geração, o modelo clássico foi pautado na teoria pavloviana, em que
técnicas de exposição dominavam o tratamento. Representantes atuais da
terapia comportamental clássica, como os programas de tratamento para trans-
tornos de ansiedade usando exposição ao vivo, têm apoio empírico importante.
Já a segunda onda se caracteriza pelo modelo cognitivo racionalista, com base
em processos psicológicos mediados por sistemas de crenças subjacentes.
São as TCCs argumentativas, cuja área de aplicação mais tradicional é a dos
transtornos de humor. Por fim, segundo Lucena-Santos (2018), a terceira onda
de terapias comportamentais, tema deste capítulo, abarca um grande número
de terapias emergentes, que evoluíram a partir das gerações anteriores.

Lucena-Santos (2018) aponta que foi Steven Hayes o responsável por


difundir a ideia da evolução da TCC em três gerações sucessivas. Por
sua vez, Rangé et al. (2011) resumem os pontos principais do desenvolvimento
dessas três gerações. Segundo essa classificação temporal, a primeira geração
desenvolveu-se na década de 1960, num contexto em que predominavam as
terapias baseadas na teoria da aprendizagem e nas contingências de reforço.
A segunda geração evoluiu nos anos 1970, no contexto de crescimento da psico-
terapia cognitiva e na gradativa integração de suas práticas com as da terapia
comportamental. Já na década de 1980, a ênfase recaiu sobre o reconhecimento
das emoções na aprendizagem e na adaptação, resultando na consolidação do
modelo cognitivo-comportamental. Esse modelo sinalizou a importância e a
interdependência de comportamentos, cognições e emoções no desenvolvimento
de sintomas e, portanto, no processo terapêutico.
Por fim, a terceira geração desenvolveu-se por meio de estudos de pesqui-
sadores das abordagens comportamentais e cognitivas nas décadas de 1980
e 1990, até alcançar sua consolidação na década de 2000. As novas técnicas
propostas são embasadas em um referencial teórico que enfatiza o papel da
conscientização plena, da aceitação, da linguagem e da difusão cognitiva.

Portanto, a terceira geração reformula e sintetiza as propostas prévias,


além de direcioná-las para temas e domínios já valorizados por outras
tradições terapêuticas, buscando melhorar seus resultados. Essas novas
intervenções se aventuraram em áreas tradicionalmente consideradas me-
nos empíricas no âmbito do trabalho clínico, como mindfulness, desfusão
cognitiva, aceitação, valores de vida, entre outros.
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De acordo com Rangé et al. (2011), as terapias da terceira geração in-


cluem, entre outras, a terapia de aceitação e compromisso (acceptance and
commitment therapy — ACT), a terapia dialética comportamental (dialectical
behavioral therapy — DBT) e a terapia cognitiva baseada em conscientização.
Dentre essas modalidades, a ACT demonstra ter alcançado substancial impacto
entre terapeutas e pesquisadores, como revelam o número de trabalhos
publicados, a diversidade de situações clínicas em que os estudos são con-
duzidos e os resultados positivos relatados sobre a aplicação e a eficácia
clínica de suas técnicas. O modelo da ACT surgiu dos estudos de Steven Hayes
e colaboradores e se sustenta na também nova teoria do quadro relacional.
Essa abordagem é empírica, sensível ao contexto e às funções do fenômeno
psicológico, e não apenas à sua forma, e também dá ênfase a estratégias de
mudanças experienciais e contextuais.
Ademais, métodos desenvolvidos na primeira geração, como a ativação
comportamental, foram revistos com assunções que se encaixam nas propos-
tas da terceira geração, surgindo em novas e robustas formas (HAYES; PISTO-
RELLO, 2015). Outros métodos comumente utilizados em tradições espirituais
e meditativas foram manualizados e desenhados a partir de intervenções
baseadas em evidências, como o mindfulness (atenção plena). Há também
a adoção de métodos e práticas contemplativas de todos os tipos, como o
programa de redução de estresse e a terapia focada na compaixão.
De acordo com Guilhardi (2012), a terceira onda das TCCs que surgiu nos
Estados Unidos tem algo em comum com as anteriores, inclusive com a terapia
comportamental operante, embora haja também muitas diferenças. Contudo,
Lucena-Santos (2018) esclarece que é possível o uso compartilhado das
mesmas técnicas de tratamento das terapias de segunda e de terceira onda,
pois podem ser compatíveis, ainda que mediante técnicas e embasamentos
teóricos distintos. Pode-se concluir que os terapeutas de terceira onda se
mostraram mais ecléticos do ponto de vista técnico, o que pode propiciar
diferentes resultados clínicos. A autora ressalta que, de forma geral, as terapias
de terceira geração, assim como as de segunda, reconhecem a importância
dos processos cognitivos e verbais em suas teorias de psicopatologia e de
intervenção terapêutica.
Vimos até aqui como surgiram as TCCs de terceira geração, a partir das
características que as diferenciam das duas ondas anteriores. A seguir, exa-
minaremos o conceito da ACT de Hayes, uma proposta consagrada na nova
geração de TCCs.
6 A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais

Características da ACT
Na seção anterior, discorremos sobre a consolidação da psicologia cognitiva
na psicologia como ciência. Fica patente que se trata de uma abordagem que
discute elementos que estavam relegados a um segundo plano, mas que nunca
deixaram de ter relevância para os objetivos da ciência. Dessa forma, pela
demanda de elaborações sobre o funcionamento mental e suas interações
com o comportamento, a psicologia cognitiva tem crescido rapidamente e
obtido reconhecimento, quer empiricamente, quer como intervenção clínica.
Em pouco mais de 50 anos, a abordagem já está na terceira geração de pro-
postas, o que também, e acima de tudo, significa aprimoramentos e abertura
para inovações. Entrando mais especificamente na práxis das propostas,
examinaremos a terapia de aceitação e compromisso (ACT) de Steven Hayes
(1948–), central na terceira geração de TCC.
De acordo com Hayes, Pistorello e Biglan (2008), a ACT relaciona processos
de aceitação e atenção a processos de compromisso e mudança comporta-
mental para a criação de uma flexibilidade psicológica. Segundo Cordioli e
Grevet (2019), a ACT — que deve ser pronunciada como a palavra em inglês
“act” (ação) e não como soletramento A-C-T — é uma terapia comportamental
que utiliza mindfulness e aceitação, assim como estratégias de mudança
comportamental e o compromisso com valores para favorecer a flexibilidade
psicológica. A base teórica dessa terapia é a teoria do quadro relacional, que é
um pressuposto da linguagem e da cognição preciso e empiricamente sólido.
Há de fato um robusto corpo de evidências a respeito da eficácia da ACT em
vários quadros de patologias. A ACT apresenta solidez empírica e histórico
de aplicação de seus princípios a diferentes problemas comportamentais,
sendo seus resultados — os processos de mudança nas intervenções — con-
siderados eficazes.

Perez et al. (2013) explicam que a expressão teoria dos quadros


relacionais foi amplamente empregada como tradução de relational
frame theory (RFT) (sendo, inclusive a tradução proposta pela Association for
Contextual Behavioral Science e por Hayes, Pistorello e Biglan (2008)). Também
é correto usar a expressão teoria das molduras relacionais, por duas razões:
primeiro, porque a tradução literal de frame é moldura; segundo, porque o
termo moldura é conceitualmente mais condizente com a metáfora concebida
pelos autores para explicar o operante estudado pela RFT.
Ainda de acordo com Perez et al. (2013), a RFT indica que, além de apren-
dermos a relacionar estímulos arbitrariamente como se fossem equivalentes
ou iguais (“Essa bandeira representa o Brasil”), aprendemos a relacioná-los
A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais 7

de outras formas, por oposição (“Felicidade é o oposto de tristeza”), diferença


(“Paixão é diferente de amor”), comparação (“Bach é melhor do que Vivaldi”),
hierarquia (“A análise do comportamento faz parte da psicologia”), etc. Além
disso, também estabelecemos relações espaciais (“O livro está sobre a mesa”),
temporais (“A Idade Média veio antes do Renascimento”), de causalidade (“Se
você ultrapassar o limite de velocidade, então receberá uma multa”) e relações
dêiticas ou que dependem da perspectiva do falante e do ouvinte (“Se eu fosse
você, ligaria para ele já!”). O comportamento de estabelecer relações arbitrárias
é o operante estudado pela RFT e tem sido chamado de resposta relacional
arbitrariamente aplicável (RRAA).

A ACT foi criada por Hayes no fim dos anos 1980, a partir de suas investiga-
ções sobre comportamento governado por regras e equivalência de estímulos.
Hayes escreveu o primeiro manual sobre seu método em 1999, juntamente com
Kelly Wilson e Kirk Strosahl, reeditado em 2012. Tal modalidade terapêutica
se destaca por ter promovido uma significativa quantidade de material empí-
rico, na forma de estudos e pesquisas, bem como por tratar de sentimentos,
sensações e pensamentos como bases para a nova proposta. A filosofia por
trás dessa abordagem é o contextualismo funcional (SABAN, 2015).
O contextualismo funcional é a visão que entende o conjunto dos fenôme-
nos como uma totalidade, cada qual pertencente a um determinado contexto.
Portanto, tudo que acontece não pode ser visto isoladamente, pois cada
fenômeno está estreitamente ligado e relacionado com seu contexto. Logo,
para entender o comportamento humano é preciso olhar para a situação em
que ele ocorre. O critério de verdade dessa filosofia é o pragmatismo. Aquilo
que funciona e que atende a um objetivo é considerado verdade. Uma vez
que o único objetivo é prever e influenciar os fenômenos, os conceitos que
atendem a esse objetivo são vistos como verdadeiros.
Em relação à ACT, os conceitos explanatórios dizem respeito à análise do
comportamento, incluindo a teoria das molduras relacionais, também chamada
de teoria dos quadros relacionais. A ACT faz uso de termos intermediários,
como aceitação, desfusão, flexibilidade psicológica, entre outros, a fim de
que a prática da terapia seja acessível ao público não familiarizado com o
behaviorismo (SABAN, 2015). Essa, aliás, é uma característica distintiva das
TCCs: investem no caráter didático e educacional da terapia, além do rela-
cionamento próximo com o terapeuta.
O entendimento da ACT sobre psicopatologia e infelicidade decorre princi-
palmente do modo como a linguagem e a cognição agem com as circunstâncias
da vida, tornando a pessoa inapta a persistir ou a fazer mudanças em práticas
e concepções que sustentam valores antigos. Essa inflexibilidade ocorre
quando a pessoa usa suas ferramentas da linguagem em situações em que são
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inúteis, ou quando as usa de modo ineficaz no contexto adequado (RANGÉ et


al., 2011). Dessa forma, o modelo de psicopatologia da ACT, e seu sofrimento
associado, decorre da inflexibilidade psicológica. Nessas circunstâncias, o
indivíduo tem uma gama reduzida de possibilidades de ação, o que recebe o
nome de restrição de repertório.

É parte de nossas vidas lidar com duas problemáticas principais:


precisão e tempo. Do ponto de vista do evolucionismo, os seres
humanos aprenderam a evitar eventos aversivos, e essa habilidade é central
para nossa sobrevivência. Assim, a sobrevivência depende de precisão e controle
do estímulo, mesmo levando em consideração a possibilidade de frustração de
desejos. Como espécie, fomos selecionados a responder a estímulos, mas temos
o diferencial do comportamento verbal, da linguagem.
De acordo com a teoria das molduras, como aponta Saban (2015), o advento
da linguagem possibilitou tratarmos as palavras como estímulos verbais. Ocorre
que uma palavra não tem nada a ver com seu referente em termos físicos. Somos
treinados pela comunidade verbal a tratar as palavras como se fossem coisas e
a relacionar classes de estímulos. A outra questão é o tempo: nossas ações são
afetadas pelo que acontece logo em seguida; portanto, quanto mais rápida for
a consequência de uma ação, mais ela controlará a ação. Paradoxalmente, se,
por um lado, a linguagem amplifica os estímulos aversivos, também permite
que sejamos controlados por consequências atrasadas.

Saban (2015) afirma que, de acordo com a ACT, quando passamos por uma
experiência dolorosa, tendemos a nos fechar. Por si só, a experiência dolorosa
isolada, ou sofrimento limpo, é algo inerente à vida. O “se fechar”, a restrição
de repertório, a inflexibilidade psicológica e a diminuição das possiblidades
de ação representam o sofrimento sujo, ou seja, de segunda ordem na ACT.
É este que gera os problemas psicológicos, as restrições às fontes de re-
forço positivo e também as psicopatologias. A ideia de que o sofrimento e o
desconforto fazem parte da vida é o pano de fundo da abordagem. Assim, a
terapia não tem o objetivo de eliminar esse tipo de sentimento, apenas de
modificar o sofrimento que influencia os comportamentos e afasta os valores.
Aqui é importante ter claro os sofrimentos decorrentes de contingências
que não podemos mudar, para possibilitar novas formas mais adaptadas de
relacionamento com tais contingências (CORDIOLI; GREVET, 2019).
Em relação à restrição de repertório, Lucena-Santos (2018) afirma que
o fenômeno da fusão cognitiva é um dos processos centrais no modelo de
inflexibilidade psicológica da ACT e tem sido consistentemente associado a
diversos indicadores de sofrimento psicológico. Esse processo consiste em
um apego excessivo ao conteúdo de pensamentos, regras e/ou crenças, os
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quais são frequentemente percebidos como afirmações literais e precisas da


realidade. Nesse sentido, a fusão cognitiva tem sido considerada um importante
processo psicológico envolvido na manutenção dos sintomas depressivos.
A esse respeito, Saban (2015) afirma que “dar razão” e insistir em afirma-
ções literais da realidade significa colocar os sentimentos como as causas
dos comportamentos. Isso faz com que o indivíduo se esquive do que sente,
o que o impede então de resolver a situação. A partir daí, continua a se sentir
mal, entrando em um ciclo, esquivando-se novamente, etc. Se, com a terapia,
o indivíduo conseguir avaliar cada situação, isso o levaria a relacionar even-
tos e compará-los a partir de determinada característica, restringindo-os e
não percebendo outras características dos eventos. Essa ação transforma a
função dos estímulos em aversivos, uma vez que compara o melhor ou pior,
bom ou ruim, divertido ou chato, entre outros.
Após examinar a ACT no âmbito das TCCs de terceira geração e suas prin-
cipais características, a seguir veremos como ela se aplica na clínica, seu
manejo terapêutico, modelo de terapia e técnicas de intervenção frente ao
sofrimento humano.

Aplicação clínica e manejo terapêutico da


ACT
Em relação à intervenção clínica da ACT, temos primeiramente que pensar
numa situação aversiva, que causa sofrimento, e em que o sofrimento em si
torna-se aversivo e contamina estímulos semelhantes em ações, sentimentos
e pensamentos. A partir de um evento aversivo, chamado de sofrimento limpo
ou de primeira ordem, surgem outros que se tornam aversivos, os sofrimentos
sujos de segunda ordem. O sofrimento limpo faz parte da vida; o sofrimento
sujo deve-se prevenir (SABAN, 2015).
O primeiro objetivo estratégico da ACT é treinar para viver o momento
presente, sem as amarras das vivências passadas. Isso é feito em contato
direto com os estímulos atuais, em detrimento das experiências adquiridas
em contingências passadas. Parte-se do princípio de que o maior desafio do
ser humano é olhar para o mundo sem a nuvem das experiências anteriores,
capaz de enxergar as coisas como se fossem vistas pela primeira vez. Os
eventos são sempre novos ou modificados e deveriam provocar uma maior
amplitude de repertório, uma abertura maior às possibilidades de ação e,
consequentemente, maior adaptabilidade (SABAN, 2015).
O segundo objetivo da ACT é promover uma vivência aberta a emoções,
sentimentos, pensamentos e memórias sem se esquivar deles e, dessa forma,
10 A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais

sem limitar a experiência com o mundo. Nesse âmbito, a capacidade de


relacionar estímulos, formar classificações e integrá-las pode atrapalhar o
ser humano na experimentação da singularidade da vida.
Por fim, o terceiro objetivo é priorizar o que é importante, ainda que os
resultados demorem e sejam alcançáveis somente quando o indivíduo se
desvencilha de reações automáticas e deixa de se esquivar das situações.
Segundo Hayes, Pistorello e Biglan (2008), são seis os processos de inter-
venção central da ACT — contato com o presente, valores, ação de compro-
misso, eu como contexto, defusão e aceitação — e que a combinação deles
tem por finalidade a flexibilidade psicológica (Figura 1). Em outras palavras,
eles formariam a habilidade do ser humano consciente de experimentar por
completo os resultados emocionais e cognitivos, de poder persistir e alterar
seu comportamento, a partir dos valores escolhidos.

Processos de mudança de
comportamento e compromisso

Contato com
o presente

Aceitação Valores

Flexibilidade
psicológica

Desfusão Ação de
compromisso

Eu como contexto

Processos de
conscientização e aceitação

Figura 1. Modelo ACT de intervenção.


Fonte: Adaptada de Hayes, Pistorello e Biglan (2008).
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Segundo Saban (2015), os três objetivos da ACT se decompõem no modelo


do hexágono de flexibilidade psicológica ilustrado na Figura 1:

„ O centro da figura corresponde à primeira estratégia de treinar o


controle do momento presente e como perceber esse momento (eu
como contexto).
„ A segunda estratégia está representada do lado esquerdo, que é a
aceitação do que acontece dentro da própria pele, e como os eventos
são percebidos como comportamentos e não como realidades prontas,
já vividas (desfusão).
„ A terceira estratégia está contemplada no lado direto da figura, es-
clarecendo o que é importante para o indivíduo (valores) e a forma de
persegui-lo (ações de compromisso).

Essas etapas são um resumo dos objetivos terapêuticos. A mobilidade


do trabalho terapêutico está representada pelas linhas do hexágono e pela
forma como se pode transitar por todos elas. Na prática, os objetivos são
trabalhados em conjunto, e quando um necessita de mais atenção, é focado.
Já a ordem de descrição de cada etapa reflete, em geral, a organização das
necessidades de atenção e priorização, levando em conta o sofrimento e
limitações na vida do indivíduo. Entretanto, cada caso deve ser avaliado
individualmente e dentro do que é apresentado pelo indivíduo nas sessões.

Outro ponto importante é que a terapia geralmente começa com


duas etapas introdutórias que não estão representadas no hexágono.
Esse momento introdutório da terapia também é importante para consolidar
o vínculo entre cliente e terapeuta, estabelecendo uma relação de confiança
para que o cliente se sinta em condições de prosseguir gradativamente para
as próximas etapas do tratamento.

Quando o cliente chega à terapia, ele não quer mais se sentir ansioso,
depressivo, irritado ou angustiado, mas precisará perceber que fugir dos
sentimentos e pensamentos é uma solução apenas momentânea e que não
funcionará a médio e longo prazos. Trata-se de uma fase do tratamento que
é aversiva, mas indispensável. Essa aversão se dá porque a vida da pessoa
está tomada por esses sentimentos — e não pelo procedimento em si. Logo,
é relevante que o terapeuta dê espaço para que a pessoa se veja e se sinta
mal com suas esquivas experienciais. Outro aspecto importante dessa fase
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do processo terapêutico é que ela valida o que o indivíduo vem sentindo e


passando em sua vida (SABAN, 2015).

Durante a semana, ele provavelmente observará as esquivas com mais clareza e,


possivelmente, relatará nas próximas sessões que se observou fazendo as ações
do exercício. Este é o indício de que o treino generalizou-se para fora da sessão
e que podemos seguir com o tratamento. Caso isso não ocorra, novos exercícios
deverão ser feitos [...]. Inúmeros exercícios e metáforas se encontram em manuais,
e é aconselhado fazer sempre um exercício diferente do outro para trabalhar a
variabilidade comportamental. Já com o uso de metáforas é melhor utilizar apenas
uma que faça sentido para o cliente. Às vezes, o próprio cliente apresenta sua
própria metáfora, que é uma descrição física das relações que ocorrem nas con-
tingências. E uma história que retrata várias situações. Uma metáfora clássica de
desesperança é a do “buraco” [...] achada em diversos manuais (SABAN, 2015, p. 197).

Outra parte da etapa introdutória ao tratamento pela ACT é quando o


cliente percebe que o controle é o problema, e não a solução; a partir do
momento em que deixar de fugir das sensações, dos sentimentos, dos pen-
samentos e das memórias, estará pronto para treinar a aceitação.
Segundo Hayes, Pistorello e Biglan (2008), a aceitação consiste em um
movimento ativo e consciente de aceitar os eventos pessoais sem tentati-
vas de mudá-los. A aceitação não tem uma finalidade em si mesma, mas é
usada como método para aumentar as ações baseadas em valores. Sobre a
desfusão cognitiva, os autores comentam que consiste em alterar as funções
indesejáveis de pensamentos ou outros eventos íntimos, e não de mudar
suas formas, frequência e sensibilidade situacional. A queda na crença ou
vínculo aos eventos íntimos é o resultado da desfusão, e não uma mudança
imediata na frequência.
Estar presente é outro dos processos de intervenção da ACT. Segundo
Saban (2015), trata-se de ficar sob o controle do momento presente, do mundo
como ele se apresenta, o que é alcançado por meio de treino de observação
de pensamentos, sentimentos, sensações corporais e memórias. Conforme
Hayes, Pistorello e Biglan (2008), o eu como contexto é parcialmente im-
portante, pois o indivíduo pode se encontrar consciente de seu fluxo de
experiências e não necessariamente vincular-se a ele. O eu como contexto é
estimulado pela ACT por meio de exercícios de conscientização, metáforas
e processos experienciais.
Sobre o processo da intervenção valores, Hayes, Pistorello e Biglan (2008)
apontam que a ACT faz uso de uma diversidade de exercícios que ajudam o
paciente a escolher a direção da vida em diferentes áreas e reduzir as escolhas
por evitação. Na conveniência social ou fusão, esse processo não consiste
A terceira geração das terapias cognitivo-comportamentais 13

num fim em si mesmo, mas num método que permite meios mais eficazes
para uma vida de valores mais consistentes e cruciais.
Por fim, a ACT proporciona o desenvolvimento de padrões mais abran-
gentes de ação efetiva ligados aos valores escolhidos por meio das ações de
compromisso. Em síntese:

A ACT é uma terapia comportamental que compreende as ações como presentes


e em relação ao seu contexto (contextualismo funcional). Seu modelo de psico-
patologia é a esquiva experiencial. O sofrimento existe por uma restrição, uma
limitação das ações do indivíduo que fica preso em tentar se esquivar do que pensa
e sente. Isso ocorre porque existem alguns contextos em que somos treinados de
que o problema está em nossos sentimentos e pensamentos, que eles devem ser
eliminados, e não de que o problema em si gerou tais pensamentos e sentimentos.
Esses contextos são a fusão cognitiva, evitar, avaliar e dar razão. Em outras palavras,
considerar as palavras como uma realidade, evitar pensamentos, sentimentos,
sensações e memórias, julgar e considerar os sentimentos e pensamentos como
causas de nossas ações (SABAN, 2015, p. 215).

Neste capítulo, você acompanhou a evolução da terceira geração das TCCs,


desde como elas surgiram até seu amadurecimento. Também aprofundou os
conhecimentos sobre a terapia de aceitação e compromisso de Hayes, co-
nhecendo os pressupostos teóricos que embasam esse modelo terapêutico e
compreendendo como ela se dá na prática a partir de exemplos e de descrições
de suas etapas. A aplicação e as estratégias desse tipo de TCC contribuem
para o conhecimento mais aprofundado dessas terapias de terceira geração,
muito em voga hoje na oferta psicoterapêutica.

Referências
CORDIOLI, A.; GREVET, E. Psicoterapias: abordagens atuais. 4. ed. Porto Alegre: Artmed,
2019.
EYSENCK, M.; KEANE, M. Manual de psicologia cognitiva. 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
FELDMAN, R. Introdução à psicologia. 10. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015.
GUILHARDI, H. J. Considerações conceituais e históricas sobre a terceira onda no Brasil.
In: ENCONTRO BRASILEIRO DE PSICOLOGIA E MEDICINA COMPORTAMENTAL, 21., 2012,
Curitiba. Anais... Curitiba: ABPMC, 2012. Disponível em: https://itcrcampinas.com.br/
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Leituras recomendadas
ANDERSON, J. R. Psicologia cognitiva e suas implicações experimentais. Rio de Janeiro:
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