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Aula 6

O PMA e o modelo Van Hiele


de desenvolvimento do pensa-
mento geométrico

Raquel Tavares Scarpelli


Aula 6. O PMA e o modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensamento geométrico

Meta(s)

Esperamos que nesta aula você possa pensar a respeito dos processos
mentais que possibilitam e favorecem o desenvolvimento do pensamento
matemático e como as atividades de ensino podem ser elaboradas a
partir da Teoria do Pensamento Matemático de David Tall e das ideias
do casal Van Hiele para o ensino da Geometria.

Objetivo(s)

Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de:

1. Os processos mentais que constituem o pensamento matemático;

2. A importância de trabalhar uma prática de ensino que fomente ativi-


dades que desenvolvam o pensamento matemático, tanto elementar
quanto avançado;

3. A importância da leitura correta e da escrita, em linguagem ma-


temática, assim como de sua tradução para a Lı́ngua Portuguesa, no
aprendizado da matemática;

4. A consistência das ideias do casal Van Hiele para o ensino de geo-


metria.

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Tendências em Educação Matemática

Introdução

Nas aulas anteriores falamos a respeito de algumas teorias de apren-


dizagem. Algumas eram didáticas. Outras, cognitivas. Documentos
oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Matemática
dos ensinos fundamental e médio (BRASIL, 1997, 1998) e a Base Naci-
onal Comum Curricular (BRASIL, 2017) servem como referência para
a prática docente do professor do ensino básico. Em particular, para o
professor de Matemática. Ambos os documentos mencionam o currı́culo
e as habilidades que se espera que um estudante desenvolva para o
aprendizado deste componente curricular. Porém, como fazer o aluno
desenvolvê-las já é algo pouco discutido neles. De um modo geral, pouco
se menciona a respeito dos processos mentais que envolvem a construção
do pensamento matemático. Por sua vez, caso os professores soubessem
como os alunos raciocinam, poderia preparar suas aulas com atividades
que contemplassem melhor os processos cognitivos inerentes ao apren-
dizado deles.
Mas, será que existe um pensamento matemático ou, de outro modo,
uma forma de pensamento necessário ao aprendizado da matemática e,
ao mesmo tempo, influenciado por ela? Se sim, como esse pensamento
evolui à medida que os conteúdos exigirem mais abstração por parte dos
estudantes? E como o aprendizado da matemática no ensino superior
depende cognitivamente do seu aprendizado no ensino básico? Que
competências e habilidades são necessárias em cada uma dessas etapas?
A matemática está em tudo. Isso você já está cansado de saber. Você
também está cansado de saber que para compreendermos o mundo deve-
mos ser capazes de fazer inferências, ler gráficos e tratar as informações
de maneira correta. A grosso modo, o conhecimento matemático en-
volve habilidades como organizar e interpretar dados, de forma a dar
significado à realidade que nos rodeia. Nas escolas, formaliza-se o pensa-
mento matemático. Mas, esse pensamento já começa a ser desenvolvido
na infância. Por exemplo, na classificação de figuras pelo número de la-
dos, pelo tamanho, pelas cores etc. Na escola, porém, ele passa a ser sis-
tematizado e desenvolvido. Habilidades de classificação, contagem, or-
denação, operações aritméticas, operações algébricas e geométricas, en-
tre outras, fazem parte do que denominamos “pensamento matemático”.
De acordo com Dreyfus (2002) e Tall (2002), o pensamento matemático
pode ser classificado como elementar ou avançado. O primeiro envolve
a manipulação e a operação de objetos matemáticos. Já o segundo,
envolve a definição dos objetos matemáticos por meio de conceitos ma-
temáticos. Ambos estão presentes na aprendizagem da matemática,
inclusive, no ensino básico. Por exemplo, o aprendizado do sistema
decimal envolve operações aritméticas com números naturais. Para a
construção dos números reais, já se faz necessário o aprendizado do
conceito de medida e de incomensurabilidade. Se por um lado, é óbvio

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que a área de um triângulo não muda se o “virarmos de cabeça para


baixo”, por outro lado, não é tão óbvio que dois triângulos distintos que
tenham em comum apenas a medida de uma base e a altura relativa a
elas tenham também a mesma área.

Figura 6.1: Ilustração de triângulos de mesma área


Fonte: autora(2020)

O aprendizado da matemática requer, inevitavelmente, uma sucessão


de processos mentais sofisticados. Mas, que processos são esses e como
explorá-los didaticamente? Nas próximas seções buscaremos elucidar
possı́veis respostas para essas perguntas.

As origens do pensamento matemático abstrato

Já vimos o conceito de transposição didática. A grosso modo, cor-


responde aos processos de transformação de saberes matemáticos ci-
entı́ficos em saberes matemáticos escolares. Esse conceito está no cerne
do trabalho dos professores de matemática da rede básica, uma vez
que a matemática que ensinam é a dos ensinos fundamental e médio.
Apesar de serem nı́veis de ensino mais elementares, a compreensão dos
fundamentos matemáticos que dão origem a tais saberes envolve pro-
cessos avançados de pensamento. Por exemplo, o(a) docente precisa
compreender a linguagem formal e abstrata que faz parte da construção
dos números reais, mesmo que não a adote nas salas de aula das esco-
las. Por outro lado, que processos mentais envolvem o aprendizado da
matemática pelos alunos dos ensinos fundamental e médio e como deve
o(a) professor(a) focar-se neles para a realização correta da transposição
didática? Em outras palavras, como elaborar atividades que desenvol-
vam os processos mentais dos alunos, de modo que possam comprender
os conteúdos matemáticos?
Visando à compreensão dos motivos que explicam as dificuldades
de muitos universitários no aprendizado da matemática no ensino su-
perior, muitos educadores matemáticos têm se debruçado em pesqui-
sas a respeito do Pensamento Matemático Avançado (PMA). O Pensa-
mento Matemático Avançado surgiu na década de 1980, como produto
do evento The International Group for the PME (Psychology of Math-
matics Education), que tinha como objetivo a produção de uma obra

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Tendências em Educação Matemática

que o fundamentasse. Como consequência, criou-se também o Advanced


Mathematical Thinking Group (IGLIORI; ALMEIDA, 2013) que, em
português, significa “Grupo Pensamento Matemático Avançado”. Sua
origem remonta a análise de caracterı́sticas do pensamento matemático
presente no aprendizado dela no nı́vel superior de ensino.
Muitos foram os autores a caracterizarem, a seu modo, o “Pen-
samento Matemático Avançado”, com destaque para Dreyfus (1991),
Tall (1991), Sfard (1991) e Dubinsky (1991). Para Dreyfus (1991)
e Tall (1991), o Pensamento Matemático Avançado (PMA) está pre-
sente no aprendizado de inúmeras definições matemáticas complexas
nos mais variados nı́veis escolares, principalmente nos últimos anos
do ensino médio e no ensino superior. Cabe mencionar que Dreyfus
(1991) apresentou uma distinção muito tênue entre o PMA e o Pen-
samento Matemático Elementar (PME), argumentando haver tópicos
matemáticos avançados apresentados de forma elementar assim como
pensamento matemático avançado em tópicos matemáticos elementa-
res (a matemática avançada focar-se-ia nas abstrações advindas de de-
finições e nas deduções).
Para Dreyfus (2002),o PMA se caracteriza como uma série de pro-
cessos de representação, visualização, generalização, dentre outros, que,
agindo conjuntamente, visam a classificar, conjecturar, induzir, anali-
sar, sintetizar, abstrair ou formalizar. Segundo o autor, o mais impor-
tante processo mental é o da abstração.
Por sua vez, Tall (2002) defende que o PMA envolve o uso de estru-
turas cognitivas produzidas e desencadeadas por uma grande variedade
de atividades matemáticas. A transição do pensamento matemático ele-
mentar (PME) para o pensamento matemático avançado (PMA) parte
das percepções de objetos e de ações sobre eles, por meio de dois de-
senvolvimentos paralelos: do visuo-espacial para o formal-dedutivo e da
formulação de conceitos apartir da manipulação simbólica. Para o pes-
quisador, muitas das atividades que ocorrem no PMA também ocorrem
no PME, mas a possibilidade de definição formal e de dedução é um
fator inerente ao primeiro.

A passagem do pensamento matemático elementar para o pen-


samento matemático avançado envolve a transição: do descrever
para o definir, do convencer para o provar de uma maneira lógica
com base nas definições. [...] é a transição da coerência da ma-
temática elementar para a consequência da matemática avançada,
com base em entidades abstratas que o indivı́duo precisa construir
através de deduções das definições formais (TALL, 2002, p. 20).

Enquanto para Tall, o PMA é desenvolvido no ensino superior, para


Dreyfus ele pode ser desenvolvido em qualquer nı́vel de ensino.

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No que diz respeito à Psicologia da Aprendizagem, Tall e Vinner


(1981) defendem que o tópico mais relevante é a conceituação, ou seja,
a construção dos conceitos. Entretanto, nem sempre é fácil perceber se
um estudante está considerando corretamente um determinado conceito.
Visando ao estudo de como se dá o processo de conceitualização por
parte dos alunos, esses autores desenvolveram as ideias de conceito-
imagem (concept image) e de conceito-definição (concept definition). O
conceito-imagem é qualquer coisa não verbal que o estudante associa ao
nome do conceito. Já o conceito-definição é a explicação do conceito de
modo exato pelo estudante. Para tal, o aluno fará sempre uso de um
conceito-imagem.
Como o processo de conceitualização envolve uma sequência de con-
ceitos transitórios que, uma vez usados para novos conceitos passam a
funcionar para estes como objetos de conhecimento, Gray e Tall (1994)
criaram o termo proceito (procept) como meio de identificar a dualidade
de sı́mbolos matemáticos (que ora são processo, ora são conceito/objeto)
e o definiram da seguinte forma: “Um proceito elementar é a amálgama
de três componentes: um processo que produz um objeto matemático
e um sı́mbolo que é utilizado para representar um processo ou um ob-
jeto” (GRAY; TALL, 1994). Como exemplo de um proceito temos a
expressão “8 + 3”,que representa tanto o processo de somar quanto o
conceito de soma.
Watson e Tall (2002) apresentaram três esferas associadas ao desen-
volvimento do pensamento matemático, a saber:
1. Esfera conceitual-corporificada: baseada nas percepção e reflexões
sobre as propriedades de objetos;
2. Esfera proceitual-simbólica: baseada na ação e simbolização de
conceitos;
3. Esfera axiomático-formal: baseada em definições formais e em
demonstrações.
Na próxima seção, detalharemos alguns dos processos mentais que
fazem parte do pensamento matemático e apresentaremos alguns exem-
plos de atividades de ensino em que eles ocorrem.

Atividade 1

Na sua opinião, de que forma a compreensão dos processos mentais que


constroem o pensamento matemático dos alunos orientaria a prática
docente no ensino de um determinado conteúdo. Dê exemplos.

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Tendências em Educação Matemática

Processos mentais associados ao pensamento ma-


temático e aplicações

Nesta seção falaremos a respeito de alguns processos mentais pre-


sentes no pensamento matemático. Comecemos com dois deles que são
fundamentais: a representação e a abstração. Um bom aprendizado
em matemática requer uma representação coerente de conceitos e o co-
nhecimento de exemplos, de contraexemplos, bem como de aplicações
(DREYFUS, 2002). Nem sempre os alunos conseguem passar de uma
representação à outra.Vimos na Aula 5 que um adequado aprendizado
da matemática faz uso de uma diversidade de registros de representação
semiótica e que os alunos devem conseguir transitar bem entre elas. En-
quanto a representação faz parte tanto do PME quanto do PMA, a abs-
tração faz parte dos processos envolvidos no PMA. Em outras palavras,
se um aluno conseguiu atingir o estágio da abstração, então ele está
em um nı́vel avançado do pensamento matemático. Segundo Dreyfus
(2002), para um estudante poder abstrair, são também necessários os
processos de generalização e de sı́ntese. A generalização parte de casos
particulares, identifica aspectos comuns e amplia seu domı́nio de vali-
dade. Já a sı́ntese, reúne partes que formam um todo. Nem sempre os
alunos possuem tal habilidade e cabe ao professor criar situações para
densevolvê-la fazendo perguntas aos discentes, sem jamais responder
por eles. É importante que o aluno enfrente o processo de construção e
aja sobre as atividades propostas. Um exemplo de generalização ocorre
no ensino das inetgrais definidas para o cálculo das áreas sob o gráfico
de uma função, em um dado intervalo. Parte-se do cálculo das somas
das áreas definidas por retângulos abaixo ou acima do gráfico para,
em seguida, tomar o limite. O conceito de integral definida faz uso de
cálculos de áreas conhecidas, ou seja, parte de casos particulares.
Ao fazerem uso de conceitos-imagens, é natural que a intuição também
conduza o pensamento matemático avançado. Entretanto, ter uma in-
tuição não é suficiente. É preciso respaldá-la por meio de uma argu-
mentação lógica refinada, isto é, formal. Essas demonstrações permeiam
todo o ensino da matemática, desde o ensino básico até o ensino supe-
rior. Por mais que nem sempre se utilize uma linguagem rigorosa, o
aspecto dedutivo deve se mostrar presente a partir de conceitos e de-
finições já conhecidos. Por exemplo, o entendimento do algoritmo das
divisões sucessivas para a obtenção do máximo divisor comum (mdc)
entre dois números exige um bom conhecimento da aritmética dos restos
de uma divisão. Do contrário, não se consegue compreender o algoritmo
e, consequentemente, o porquê de o mdc entre dois números poder ser
determinado por ele.
De acordo com Domingos (2003), a demonstração ao nı́vel formal
consiste em provar afirmações relacionadas com definições de conceitos

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matemáticos formais onde certas propriedades dos conceitos são da-


das enquanto outras precisarão ser deduzidas. Nem todo aluno tem o
hábito de realizar demosntrações. Então, a escolha do caminho a ser
percorrido em uma demonstração pode ter um alto grau de dificuldade
para alguns. É importante que os professores de matemática trabalhem
gradativamente a argumentação em sala de aula. Afinal, à medida que
os anos escolares vão passando, os conceitos se tornam cada vez mais
complexos e exigem um desenvolvimento mais profundo dos processos
mentais necessários à sua formulação.
Por fim, é salutar diferenciarmos os processos de sı́ntese e de análise.
Enquanto a sı́ntese produz um todo tomando como base o estudo de
suas partes constituintes, a análise toma o todo como base para analisar
as partes constituintes.

Atividade 2

Ao trabalhar com a construção dos números reais, é necessário que os


professores de matemática apresentem aos alunos a definição de um
número irracional. Por que, ao começar por definı́-lo como aquele cuja
representação decimal infinita não é periódica, o(a) docente pode es-
tar dando pouca importância aos processos mentais de contrução do
pensamento matemático pelos alunos?

O modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensa-


mento geométrico

Muitos professores reclamam sobre a dificuldade que muitos alunos


apresentam no aprendizado de geometria, uma vez que se habituam ao
uso excessivo de fórmulas.
Essa questão não ocorre somente no Brasil. Em particular, também
se via na Holanda, fato que levou os professores holandeses Pierre Ma-
rie (que lecionavam no ensino médio) a estudarem isso mais detalha-
damente, com o objetivo de encontrar uma solução (JAIME; GUTI-
ERREZ, 1990). Sob a orientação do educador matemático Hans Freu-
denthal, eles decidiram pesquisar o ensino de Geometria para alguns
alunos de 12 e 13 anos, enfatizando a manipulação de figuras. Após
concluı́rem o doutorado na Universidade de Utrecht, o resultado desta
pesquisa foi publicado e aperfeiçoado, dando origem à Teoria de van
Hiele (CROWLEY, 1996).
O modelo de desenvolvimento geométrico e as fases de aprendiza-
gem nele descritas propõem a identificação do nı́vel de maturidade
geométrica dos alunos e aponta os caminhos que devem seguir para
avançarem em seu aprendizado em geometria. Para tal, a Teoria de

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Tendências em Educação Matemática

van Hiele estabelece que o desenvolvimento do pensamento geométrico


ocorre em cinco nı́veis hierárquicos. Tais nı́veis originaram-se a partir
dos estudos de Piaget e se constituem de quatro fatores atuantes no
processo de desenvolvimento cognitivo: maturação, experiência com o
mundo fı́sico, experiências sociais e equilibração. Porém, cabe ressal-
tar que em sua teoria, Van Hielefoca-se nos processos de ensino e de
aprendizagem (BRAGA; DORNELES, 2011).
Cada um dos cinco nı́veis de ensino envolve a compreensão e uti-
lização de conceitos geométricos de uma maneira diferente, o que se
reflete na forma de interpretá-los, defini-los, classificá-los e fazer de-
monstrações. Os nı́veis são sequenciais e ordenados de tal forma que
não se pode pular nenhum.
Segundo Crowley (1996), os nı́veis de raciocı́nio podem ser descritos
conforme o quadro a seguir:

Figura 6.2: Nı́veis de aprendizadem da Teoria de Van Hiele


Fonte: Crowley(1996)

Além das caracterı́sticas particulares de cada nı́vel de raciocı́nio, há


algumas propriedades globais da teoria de van Hiele que valem a pena
ser mencionadas. Para Crowley (1996, p. 4), “essas propriedades são
particularmente significativas para educadores, pois podem orientar a
tomada de decisões quanto ao ensino”. São elas:

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1. Sequencial
O aluno deve, necessariamente, passar por todos os nı́veis, uma vez que
não é possı́vel atingir um nı́vel posterior sem dominar os anteriores.
2. Avanço
A progressão ou não de um nı́vel para outro depende mais dos métodos
de ensino e do conteúdo do que da idade ou maturação biológica do
estudante.
3. Intrı́nseco e Extrı́nseco
Os objetivos implı́citos num nı́vel tornam-se explı́citos no nı́vel seguinte.
4. Linguı́stica
Cada nı́vel tem sua própria linguagem e um conjunto de relações interligando-
os.
5. Combinação inadequada
O professor e o aluno precisam raciocinar em um mesmo nı́vel. Caso
contrário, o aprendizado não ocorre. Deste modo, o professor, o mate-
rial didático, o conteúdo e o vocabulário devem estar compatı́veis com
o nı́vel cognitivo do aluno.
Para completar a descrição da teoria, vamos expor agora a proposta
didática de Van Hiele para auxiliar os alunos no avanço do pensamento
geométrico. Como já foi mencionado, os van Hiele afirmam que o pro-
gresso ao longo dos nı́veis depende mais da instrução recebida do que da
maturidade do aluno. “Portanto o método e a organização do curso, as-
sim como o conteúdo e o material usados, são importantes áreas de pre-
ocupação pedagógica” (CROWLEY, 1996, p. 6). Tendo isso em mente,
eles propuseram uma sequência didática de cinco fases de aprendiza-
gem: (1) Visualização, (2) Análise, (3) Dedução informal, (4) Dedução
formal e (5) Rigor. De acordo com Silva e Candido (2014), tem-se:

Nı́vel 1 (Visualização ou Reconhecimento): - O aluno tem per-


cepção global das figuras: na observação de um conjunto de figuras,
cada uma delas é observada isoladamente e é dada atenção a seus atri-
butos irrelevantes;
- Percepção individual: o aluno observa o objeto e o associa à figura,
sem reconhecer que ela faz parte de uma classe. A figura é observada
por suas partes;
- As descrições das figuras são feitas através de comparações de objetos
com formas geométricas;
- O vocabulário é básico para poder fazer descrições das figuras, sem a
utilização de propriedades das formas geométricas;
- As descrições são feitas pelos aspectos fı́sicos e posição no espaço.

Nesse estágio inicial, os alunos raciocinam basicamente por meio de con-


siderações visuais. Conceitos geométricos são levados em conta como
um todo, sem considerações explı́citas das propriedades dos seus com-
ponentes. Assim, figuras geométricas são reconhecidas pela aparência

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Tendências em Educação Matemática

global, podendo ser chamadas de triângulo, quadrado, etc., mas os alu-


nos não explicitam as propriedades de identificação das mesmas. Um
aluno, nesse nı́vel, pode aprender o vocabulário geométrico, identificar
formas especı́ficas, reproduzir uma figura dada, etc. (KALLEF, 1994)

Nı́vel 2 (Análise): - Os alunos começam a perceber conceitos geométricos,


analisando caracterı́sticas das figuras. Observam a figura não como um
todo, mas identificam suas partes, propriedades geométricas e percebem
as consequências das propriedades;
- Há utilização dessas propriedades para resolução de problemas;
- Dão demonstrações por meio de exemplos;
- Não relacionam diferentes propriedades entre figuras diferentes e ainda
não entendem definições;
- Utilizam-se de muita observação e experimentação.

Nesse nı́vel, os alunos raciocinam sobre conceitos geométricos, por meio


de uma análise informal de suas partes e atributos através de observação
e experimentação. Os estudantes começam a discernir caracterı́sticas
das figuras geométricas , estabelecendo propriedades, que são então
usadas para conceituarem classes e formas.Porém eles ainda não expli-
citam interrelações entre figuras ou propriedades . (KALLEF, 1994)

Nı́vel 3 (Dedução informal ou classificação): - Os alunos con-


seguem fazer interrelações entre as propriedades de uma figura e com-
pará-la com outra. Por exemplo, um quadrado é um retângulo pois,
tem todas as propriedades de um retângulo;
- Podem realizar classificações inclusivas;
- Descrevem corretamente conceitos e tipos de figuras;
- Possuem raciocı́nio dedutivo informal;
- Podem entender uma demonstração, mas não são capazes de elaborar
uma de forma rigorosa.

Nesse nı́vel, os alunos formam definições abstratas, podendo estabelecer


interrelações com as propriedades das figuras (por exemplo, um qua-
drilátero com lados opostos paralelos necessariamente possui ângulos
opostos iguais) e entre figuras (por exemplo, um quadrado é um retângulo
porque ele possui todas as propriedades do retângulo). Podem também
distinguir entre a necessidade e a suficiência de um conjunto de propri-
edades no estabelecimento de um conceito geométrico . Assim, classes
de figuras são reconhecidas, inclusão e interseção de classes são enten-
didas; entretanto, o aluno nesse nı́vel não compreende o significado de
uma dedução como um todo, ou o papel dos axiomas. Provas formais
podem ser acompanhadas, mas os alunos não percebem como construir
uma prova, partindo-se de premissas diferentes.(KALLEF, 1994)

Nı́vel 4 (Dedução formal): - Os alunos conseguem fazer distinção

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entre postulados, teoremas e definições;


- Elaboram demonstrações formais sem decorá-las;
- São capazes de ter uma visão global das demonstrações;
- Percebem que podem chegar ao mesmo resultado mediante diferentes
formas de demonstração;
- São capazes de formular enunciados de problemas;
- Utilizam linguagem precisa.

Nesse nı́vel, os alunos desenvolvem sequências de afirmações deduzindo


uma afirmação a partir de uma outra ou de outras. A relevância de tais
deduções é entendida como um caminho para o estabelecimento de uma
teoria geométrica. Os alunos raciocinam formalmente no contexto de
um sistema matemático completo, com termos indefinidos, com axio-
mas, com um sistema lógico subjacente, com definições e teoremas. Um
aluno nesse nı́vel pode construir provas (e não somente memorizá-las)
e percebe a possibilidade de desenvolver uma prova de mais de uma
maneira. (KALLEF, 1994)

Nı́vel 5 (Rigor): - Os alunos estão aptos a estudarem sistemas axiomáticos


distintos do usual;
- São capazes de fazer comparações entre diferentes sistemas axiomáticos.

Nesse nı́vel, os alunos avaliam vários sistemas dedutivos com um alto


grau de rigor. Comparam sistemas baseados em diferentes axiomas e
estudam várias geometrias na ausência de modelos concretos. São ca-
pazes de se aprofundarem na análise de propriedades de um sistema
dedutivo, tais como consistência, independência e completude dos axi-
omas. (KALLEF, 1994)

Para encerrar esta seção, cabe mencionar que do ponto de vista do


trabalho docente, as principais caracterı́sticas de sua prática durante as
cinco fases de aprendizagem são, segundo Crowley (1996):
1. Interrogação informada Professor e aluno conversam e desenvol-
vem atividades sobre os objetos de estudo do respectivo nı́vel. Aqui
se introduz o vocabulário especı́fico do nı́vel, são feitas observações e
várias perguntas. É uma fase preparatória para os estudos posteriores.
2. Orientação dirigida Atividades são desenvolvidas para explora-
rem as caracterı́sticas de um nı́vel e isso deve ser feito com o uso de
material selecionado e preparado pelo professor.
3. Explicação Agora, o papel do professor é de somente orientar o
aluno no uso de uma linguagem precisa e adequada. Baseando-se em
experiências anteriores, os alunos revelam seus pensamentos e modifi-
cam seus pontos de vista sobre as estruturas trabalhadas e observadas.
4. Orientação livre Diante de tarefas mais complexas, os alunos
procuram soluções próprias que podem ser concluı́das de maneiras di-

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Tendências em Educação Matemática

ferentes. Assim, eles ganham experiência ao descobrirem sua própria


maneira de resolver tarefas.
5. Integração Nesta fase, o aluno relê e resume o que foi aprendido,
com o objetivo de formar uma visão geral da nova rede de objetos e
relações. Assim, o aluno alcança um novo nı́vel de pensamento.

No Brasil, uns dos primeiros trabalhos de divulgação da Teoria de


Van Hiele foi apresentado pelo professor Nilson José Machado no livro
”Matemática e Lı́ngua Materna”, publicado pela Editora Cortez em
1990. Em 1992, uma aplicação do modelo foi publicada pelo Projeto
Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na apostila intitu-
lada ”Proposta de Geometria segundo a teoria da van Hiele”(KALEFF
et al., 1994).

Atividade Final

No Fórum da Semana, comente sobre o seu aprendizado em Geome-


tria nos ensino fundamental e médio. Seu(sua) professor(a) propunha
atividades que desenvolviam o seu pensamento geométrico? Se sim,
quais?

Conclusão

De tudo que foi exposto nesta aula, pudemos concluir que o pen-
samento matemático é composto de processos mentais elaborados que
precisam ser desenvolvidos pelos alunos a partir de situações didáticas
adequadas.

Resumo da aula

Na aula de hoje você pôde refletir sobre a complexidade do pen-


samento matemático e sobre as habilidades necessárias para o seu de-
senvolvimento. Além disso, você viu que compete aos professores de
matemática (ou que ensinam matemática) propoem atividades que au-
xiliem os estudantes a avançarem nesse sentido. Em particular, pôde
conhecer a Teoria de Van Hiele, que é, sobretudo, uma teoria didática
para o ensino de geometria.

Informações sobre a próxima aula

Dando prosseguimento às questões relativas à construção do pensa-


mento, na próxima aula falaremos sobre a Teoria das Atividades e os

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Aula 6. O PMA e o modelo Van Hiele de desenvolvimento do pensamento geométrico

processos de mediação.

Leituras recomendadas

CARMO, Paulo Ferreira do. Pensamento matemático avançado: como


essa noção repercute em dissertações e teses brasileiras? 2018. 128f.
Tese (Doutorado em Educação Matemática) — Faculdade de Ciências
Exatas e Tecnologias. Pontifı́cia Universidade Católica de São Paulo.
São Paulo

COSTA, Conceição. Processos mentais associados ao pensamento ma-


temático avançado: visualização. In: ENCONTRO DA SEÇÃO DE
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE
CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, 11, 2002, Coimbra, Portugal. Anais...
Coimbra, Portugal, 2002, p. 257-273.

FIORENTINI, Dario; LORENZATO, Sergio. Investigação em Educação


Matemática: percursos teóricos e metodológicos. 3 ed. rev. Campinas:
Autores Associados, 2012.

KIRNEV, Debora Cristiane Barbosa. Dificuldades evidenciadas em re-


gistros escritos a respeito de demonstrações matemáticas. 2012. 113f.
Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Educação Matemática)
— Centro de Ciências Exatas. Universidade Estadual de Londrina.
Londrina.

Referências

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pensamento geométrico no Ensino Fundamental. Educação Matemática
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BRASIL, Parâmetros curriculares nacionais - ensino médio: matemática.


Brası́lia: MEC, 1997.

BRASIL, Parâmetros curriculares nacionais - terceiro e quarto ciclos


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BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.


Brası́lia, 2017.

CROWLEY, M. L. Aprendendo e Ensinando Geometria. São Paulo,


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DOMINGOS, António. Compreensão de conceitos matemáticos avançados:


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