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03/04/2023, 08:12 Como não ser ator

questões de interpretação

COMO NÃO SER ATOR


No curso de Fátima Toledo, a preparadora de elenco
de nove entre dez filmes nacionais, é proibido
representar
Emilio Fraia  |  Edição 28, Janeiro 2009

O curso dura cinco dias, de segunda a sexta-feira, no


período da manhã. “Olhem os medos, o abismo, o
lado sombrio em vocês: não adianta fazer um trabalho
de ator sem isso”, ensina Fátima Toledo com a voz
firme. O aquecimento, “baseado na bioenergética”, tem
exercícios de meditação e vitalidade, algum
alongamento e cinco minutos de “cachorrinho”. O
“cachorrinho” consiste em ficar de quatro, a língua para
fora, respirando, respirando. Um pedaço de guardanapo
de papel é posicionado no chão, estrategicamente, para
receber as estalactites de saliva.
O próximo passo são quinze minutos de kundalini,
“meditação para liberar a energia primal, que está
aprisionada”. De olhos vendados, pés ancorados no piso
de ardósia, joelhos flexionados, vamos mexendo a
pélvis em um vai-e-vem contínuo, para frente, para trás,
guiado por sons frenéticos de cítara, quase um transe.
“Às vezes a kundalini dá enjôo”, Fátima explica, “ou a
pessoa fica excitada. As mulheres podem ficar
menstruadas antes do tempo. Mas precisamos disso para

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destravar o sensorial, relaxar, soltar a barriga, os lábios,


ficar inteiro. Porque chegamos aqui aos pedaços.”
Fátima Toledo, a preparadora de elenco que orientou
uma centena de atores e não-atores em 35 filmes, entre
eles Pixote, Cidade de Deus e Tropa de Elite, acende
um cigarro. Durante os cinco dias é assim. Ela aparece
no fim do aquecimento (conduzido por um assistente),
quando os colchonetes azuis estão sendo empilhados, e
acende um cigarro. A escola fica em um sobrado no
bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Fátima chega, é
séria, tem cerca de 1,60 metro de altura e o cabelo curto.
Toma café, usa uma calça preta larga, blusa cinza,
havaiana dourada e acende outro cigarro. O primeiro dia
do curso é só de papo, uma introdução ao método.

  

“Para o tipo de trabalho que vamos fazer, o artifício da


atuação é um mal”, diz ela com sua voz rouca. “Neste
método, não existe a idéia de personagem. No cinema
verdadeiro, a pessoa não deve pensar em criar o
personagem, tem que viver realmente a situação. São
situações fictícias, não somos nós, mas também não é
um personagem, porque estamos ali, vivendo aquilo
tudo. Depois do ‘corta’, acabou: o ator volta à sua vida,
mas naquele momento é a própria pessoa quem está
realmente vivendo aquilo.”
Entre os treze alunos, que ouvem tudo sem piscar, tossir
nem soluçar, estão Simone e Vilma, atrizes que vieram

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do Rio para o curso, a cabeleireira Juliana, Camila, uma


administradora, Renato, que estudou relações
internacionais, Itapoã, “mecânico corporal”, Adriano e
Tatiana, recém-formados em uma escola de teatro, e
Angelita, que está ali, como disse, “para se descobrir”.
Fátima Toledo pede desculpas, e avisa que vai acender
outro cigarro. Tem 55 anos, dois cachorros, é alagoana,
foi casada três vezes e não tem filhos. Chegou a São
Paulo com 14 anos. Antes, por causa da profissão do
pai, engenheiro civil dos departamentos nacionais de
águas e esgoto da época, morou em Salvador, Brasília,
Natal e Fortaleza. Estudou comunicação visual no
Mackenzie e frequentou as aulas do ator e professor
russo de teatro Eugênio Kusnet. Sua história no cinema
começa em 1980, com Pixote, de Hector Babenco. Na
época, tinha 27 anos, queria ser atriz e dava aulas de
teatro na Fundação para o Bem-Estar do Menor, a
Febem.

  

Em busca de material para Pixote, Babenco foi algumas


vezes à Febem. Em uma das visitas, passando pela porta
entreaberta de uma sala, viu uma moça e um grupo de
meninos fortes e mal-encarados. “A Fátima fazia um
trabalho de terapia ocupacional com meninos-problema
da Febem”, recordou Babenco, na sala de sua produtora.
“Percebi que ela poderia me ajudar com as crianças do
filme.”

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De início, Fátima estudou Stanislavski, procurou no


método do ator e diretor russo exercícios para dar aos
meninos. A coisa não ia bem. Era difícil para as
crianças, recrutadas depois de testes em bairros da
periferia de São Paulo, se habituarem às idéias de
personagem e roteiro. Os prazos começavam a apertar.
Fátima decidiu que leriam O Pequeno Príncipe. Depois,
foram ao zoológico, cada um escolheu um bicho,
ficaram um mês tentando entender como rasteja a cobra,
se o hipopótamo no banho mexe a orelha, e quais
seriam os movimentos e o comportamento dos outros
animais.
“Ali eu resolvi que não tinha roteiro, que não tinha
personagem”, conta. A solução foi fazer com que os
meninos fossem eles mesmos, que agissem e falassem
da forma que sabiam. “Aprendemos que a fala deles
muitas vezes é mais completa do que a criada por
qualquer roteirista.” O seu método começava a surgir,
não a partir de uma teoria, mas de uma necessidade.
 

Para o papel-título, foi escolhido Fernando Ramos da


Silva, de 12 anos. O filme foi indicado para o Globo de
Ouro de melhor filme estrangeiro, em 1982, e alçou o
garoto ao estrelato, incluindo um contrato com a Rede
Globo. Fernando mudou-se com a família para o Rio.
Mas tinha dificuldades para decorar os textos (mal sabia
ler) e não se adaptou à nova rotina. Voltou para
Diadema, envolveu-se em assaltos e aos 19 anos, em
1987, foi morto por policiais dentro de casa.
“Durante muito tempo me senti responsável pelo
Fernando”, disse Fátima Toledo. “A imprensa não o
chamava de Fernando, mas de Pixote; pessoas batiam

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nele, diziam que ele não era o Fernando, mas sim o


Pixote. Ele me ligava chorando. Depois, na Globo,
alguns atores olhavam torto para ele, o maltratavam.”
Fátima contou ainda que, com o tempo, entendeu que “o
destino dele seria o mesmo com ou sem o Pixote“, mas
que o filme fez com que “cumprisse sua missão com um
pouco mais de poesia”. A experiência deixou uma lição:
“Agora, quando fazemos um filme, está claro que não
estamos formando atores.”
 

O curso começa para valer na terça-feira. Fátima


acende um cigarro. Inspirada em exercícios de
Stella Adler (a única atriz americana treinada
pessoalmente por Stanislavski e orientadora de Marlon
Brando no começo da carreira), a fase inicial é o que
Fátima chama de “Quem é você”. Camila é uma das
primeiras. Levanta e, de olhos fechados, deve completar
as frases “Eu sou…” e “Eu estou…”. Deve falar sem
parar e o que vier à cabeça. “Eu sou… insegura.
Inteligente, corajosa. Alta, chata, impaciente.
Verdadeira, curiosa, teimosa, apressada, carinhosa. Eu
estou… no lugar que eu queria estar”, suspira, pára,
começa a chorar. “Eu passei por muitas coisas até ser o
que eu queria ser!” O choro corta a fala, Fátima coloca a
mão sobre o peito de Camila e lhe diz baixinho:
“Preciso acreditar mais em mim, preciso ser mais forte.”
Um a um, nós vamos à frente. A preparadora dá novas
instruções: “Eu amo…”, “Eu odeio…”, “Eu quero…”.
“Paz no mundo, mais arte, educação!”, Vilma grita, no
melhor estilo passeata estudantil. Fátima interrompe:
“Não! Você está mentindo! Essas são coisas impostas,
não é verdade, não está em você.” Os alunos se
sucedem. “Eu amo… minha mãe, ficar sozinha, ter

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esperança, ser entendida.” “Eu odeio… rúcula, quando


me chamam de psicótico, barata, nhoque, meu pé.” No
fim, a mesma mão no peito, a voz baixa, quase um
sussurro: “Eu preciso ser mais forte, eu preciso me
respeitar mais, eu preciso…” Fátima diz que essa parte
do trabalho é uma espécie de diagnóstico. “Vejo se a
pessoa é agressiva, medrosa, se sabe pedir, dizer não.”
A preparadora conta que “a técnica do método é, antes
de mais nada, virar gente”. Esconder-se atrás do
personagem é proibido. “O espectador deve enxergar
pessoas, não atores. A cena é um resultado da vivência.
O personagem impede que a pessoa viva a situação e
descubra o seu próprio depoimento. Stanislavski diz ‘se
fosse eu…’; eu digo ‘sou eu'”, enfatiza.
 

P ara ativar os atores, Stanislavski trabalhava sempre


com uma suposição. No livro A Preparação do
Ator, publicado pela primeira vez em 1936,
exemplificou: “Suponhamos que neste apartamento
tenha morado um homem que ficou louco, e levaram-no
para um hospício. Se ele tivesse fugido e estivesse atrás
daquela porta agora, o que é que vocês fariam?”
Fátima Toledo observa que a falha do “se fosse eu” de
Stanislavski está na “possibilidade de não ser”. “Há a
chance do ator não ser! O ‘eu sou’, por outro lado,
desperta o sensorial imediatamente. É real! É como na
vida!”, diz, e cita como exemplo a preparação do ator
Wagner Moura para o filme Tropa de Elite.
“Stanislavski diria ao ator: ‘Se você fosse o capitão
Nascimento.’ Mas isso tiraria a força do personagem”,
argumenta. “Hoje em dia não temos mais esta
suavidade. As pessoas não estão mais sentindo,
ouvindo, não estão vendo. O ‘se’ dá segurança. Quando

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tiramos o ‘se’, a pessoa toma uma atitude.” Foi o que


Fátima fez para que Wagner Moura virasse o capitão
Nascimento.
Oito alunos estão em pé, em duas filas de quatro. Os da
frente, de costas para os de trás, não podem se virar. O
jogo é: ir ou ficar. Quando a música (meio new age)
chegar ao fim, os da frente vão partir, abandonando os
de trás. Ou vão permanecer com o parceiro, que deve se
concentrar para não permitir que o companheiro da
frente vá embora. Fátima surge, a voz rouca, anda de
um lado para o outro. Tudo é sério. Durante a aula, ela
nunca ri. Gesticula, grave. “Quem vai talvez não volte
[pausa dramática]. E se você não for agora, talvez não
vá mais. Às vezes as pessoas partem porque a gente
deixa, dessa vez, não deixe! [gritando] Ou você olha
para frente e parte, sozinho, ou fica e segue onde está.
Os encontros não devem ser salva-vidas! Respeite você,
depois ame o outro. Se você não for agora, você não vai
nunca mais!” Cinco dos oito participantes choram. Três
decidem partir, um fica.
 

D epois de Pixote, Fátima Toledo ficou dez anos


longe do cinema. Foi trabalhar no departamento
de marketing de um banco onde seu tio era gerente. No
início dos anos 90, porém, Hector Babenco voltou a
cruzar seu caminho. “Você conhece índio?”, perguntou.
Fátima nunca tinha visto um índio na vida. “Então vai
para o Pará.” Era o início de Brincando nos Campos do
Senhor.
Fátima ficou dois meses vivendo em uma aldeia. O
trabalho não diferia muito do que havia feito em Pixote,
mas saíram as crianças e entraram os índios. O desafio
era parecido: fazer com que alguém que jamais

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houvesse pisado em um set de filmagem pudesse


representar. Pouco depois, em 1991, foi convidada para
fazer Medicine Man (no Brasil, O Curandeiro da Selva),
dirigido por John McTiernan, com Sean Connery e
Lorraine Bracco como protagonistas e José Wilker num
papel secundário. Devia, novamente, preparar um grupo
de índios, fazê-los atuar. “Não tinha personagem, eram
os índios mesmo”, conta.
Em Brincando nos Campos do Senhor e Medicine Man,
Fátima entendeu que estava “levantando cenas”. Todo o
trabalho com os índios era feito na aldeia, mas ela não
sabia se conseguiria o mesmo efeito quando fosse para
valer, na frente do diretor. Então, ensaiava as cenas com Levantamento de cenas
com não atores.
os índios, e nesse processo percebeu que nasciam
situações e intenções que não estavam no roteiro.
Babenco e McTiernan deram espaço e Fátima começou
a realizar o que hoje desempenha com regularidade, o
“levantamento de cenas”.
“O trabalho do coach americano é bem diferente”,
ressalta Fátima. Nos Estados Unidos, muitos atores têm
o seu próprio coach, ou então o preparador é contratado
para ajudar o ator a superar problemas como montar a
cavalo, aprender um sotaque ou plantar bananeira.
“Preparação como a da Fátima é uma invenção
brasileira”, considerou Christian Duuvoort, que também
prepara atores – ele tem um método chamado “ator
imaginário” – e foi responsável por treinar parte do
elenco de Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando
Meirelles.
“Hoje, tenho espaço para discutir aspectos do roteiro; os
meus atores podem criar cenas que não estão no
roteiro”, diz Fátima. “O Brasil me deu essa

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possibilidade. Lá fora, é difícil o preparador ir para


o set.”
Ela conta que no roteiro original de Casa de Alice, do
diretor Chico Teixeira, havia uma cena em que uma
personagem se refugia na área de serviço e prepara um
veneno para dar à adolescente que está de caso com o
seu marido. Depois, no que seria uma reviravolta
interna, desiste de dar o veneno. “Para quê?”, Fátima
questionou. “Vai ser um caminho complicado. Mostrar
alguém que pensou em matar e desistiu. Por que tudo
isso? Por que essa pessoa não explode de uma vez e não
coloca toda sua dor em cima da outra personagem?”
Teixeira concordou em eliminar a cena do
envenenamento. “Não é que estivesse mal-escrita, é que
‘levantando’ a gente vê que não funciona”, conclui
Fátima.
Ela fala que não tem condições de levantar todas as
cenas de um filme. Por isso, os diretores entregam a ela
uma lista das que consideram as mais importantes.
Muitas são trabalhadas na própria escola, na Vila
Mariana. Quando estão prontas, Fátima chama o diretor.
Ele faz ajustes, corrige, dá o tom, muda a marcação.
Antes de rodar, ela vai ao set com o diretor e os atores,
ainda sem a câmera, e repassam as cenas.
 

O primeiro cigarro do dia tem um gosto especial.


Fátima se apóia na janela e bate as cinzas. Olha
para os alunos. O curso, que custa 1 200 reais, simula as
etapas do trabalho de Fátima em um filme. É uma
miniatura do método. Começa com o “Quem é você”;
passa por exercícios que trabalham idéias como a
partida, o amor, o abandono, o ódio, a dor (sentimentos
e situações arquetípicos, segundo a preparadora); e

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culmina no “levantamento de cenas”. Estamos na


quarta-feira e Fátima avisa que precisa de um pouco
mais de “Quem é você” para conhecer melhor a turma.
Diz não estar satisfeita porque as pessoas estão muito
defensivas, “precisam mostrar mais verdade!”.
Um grupo de alunos vai à frente e Fátima distribui
bexigas. Cada aluno recebe três bexigas. Deve encher
cada uma delas com um sonho, algo importante, que se
queira muito, realmente sério. É preciso cuidar desse
sonho, não deixar que ele escape. É preciso mantê-lo
por perto e nas mãos. Você tem lutado por ele?, ouve-se.
Alguns abraçam as bexigas, acariciam; outros
equilibram na ponta dos dedos; Juliana faz
embaixadinha. A bexiga de Camila estoura. Ela começa
a chorar.
Outro grupo de alunos observa, esperando para atacar.
O exército recebeu instruções secretas para, quando for
dado o sinal, correr e estourar os sonhos dos colegas. Os
soldados se preparam, alongam, estalam os dedos, o
pescoço. Angelita, vaidosa, pergunta: “Meu nariz está
sujo?” Olham fixamente para o flanco inimigo, onde se
ninam bexigas, sonhos crescem e tudo é colorido e
mágico. Fátima abre espaço para o pelotão e grita:
“Vai!” O que se vê então é a maior batalha desde
Waterloo, só que com bexigas coloridas. Angelita é
implacável, não deixa sobrar nada, esmaga os sonhos
verdes, os vermelhos, trucida (com as unhas) os
amarelos. Tiros espoucam. A guerra é sangrenta.
Entre os escombros, um farrapo de sonho (laranja)
agoniza. Ao fim do ataque, Angelita faz um balanço da
ofensiva: “Sobre os sonhos da minha colega”, diz, “eu
vi que ela estava ali, com todo cuidado com o
balãozinho dela; eu fui assim e tipo cheguei na vida dela

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e pá, estourei. Ela olhou para mim e não teve ação, senti
no olhar, consegui enxergar dentro dela, lá no fundo,
que ela teve raiva, mas não conseguiu pôr para fora,
sabe.” A comandante Fátima é taxativa: “Você não
ajudou!” Angelita abaixa a cabeça, estica entre os dedos
um pedaço de sonho, dos azuis, e suspira: “Mas eu
tentei…” Fátima Toledo busca o que chama de
“verdade”: “Às vezes, a pessoa não está habituada a
reagir. Na vida, nos submetemos a muitas coisas. Você
falava [fazendo voz de idiota]: ‘Eu destruí seu sonho, eu
destruí seu sonho’, e ria. O correto seria [gritando]: ‘Eu
destruí seu sonho! Reage! Pelo amor de Deus bate em
mim! Faz alguma coisa comigo, porra! Você viu o que
eu fiz com você? Quer que eu faça de novo?’ Você tinha
que ter ajudado a pessoa a reagir.”
 

E m 2002, com Cidade de Deus, Fátima Toledo


ganhou fama. Para o diretor Fernando Meirelles,
não há diferença entre o trabalho de Fátima Toledo e o
de um coach tradicional. “Os coachs trabalham sempre
em áreas específicas”, disse. “O tom da interpretação, o
ritmo das cenas e tudo mais é decidido pelo diretor.
Sempre. Lá fora e aqui.” Em O Jardineiro Fiel,
Meirelles decidiu não usar um preparador porque se
tratava de um elenco experiente. Ensaio sobre a
Cegueira teve uma preparação para todos os extras que
interpretariam cegos. “O elenco principal também
participou, mas eram exercícios para ajudá-los a se
habituarem a fazer os movimentos sem enxergar; não
envolvia cenas do filme”, contou.
“Em Cidade de Deus, Fátima trabalhou por três
semanas com os personagens principais, sobretudo nas
cenas dramáticas”, lembrou Meirelles. “Ela veio para

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arrancar de cada um deles o máximo de emoção


possível, sempre com aquela intensidade típica da
Fátima.”
Cada diretor tem uma forma de se relacionar com o tipo
de preparação que Fátima Toledo propõe. Para cineastas
como Sérgio Machado e José Padilha, ela é mais do que
um “coach tradicional”. “Karim Aïnouz, eu e o Walter
Salles estamos muito interessados neste tipo de
atuação”, comentou Machado. “Nunca suportei ver uma
cena em que percebo que os atores estão atuando. Tenho
ojeriza a isso, faz com que eu me lembre de que estou
vendo um filme, e não vivendo uma experiência.”
Em Tropa de Elite, de José Padilha, muitas das cenas
dramáticas nasceram da interação de Fátima com os
atores. Nos extras do DVD do filme, Padilha disse: “A
Fátima é uma pessoa intuitiva, talvez haja uma técnica
profunda por trás disso. Eu não sei porque eu não
entendo.”
Machado conta que, quando fez Cidade Baixa, percebeu
que Fátima estava lá para “ajudá-lo com o filme que
queria fazer”. “Não se trata de uma terceirização do
trabalho do diretor”, disse. “Ela me ajudou a chegar
onde eu queria. Foi marcante. A intensidade da Fátima
contagiou todo mundo”, recordou. “Quando a Fátima
queria fragilizar a Alice Braga, fazia um trabalho de
pressão, colocava uma pessoa deitada em cima dela. Eu
tinha na equipe um maquinista que era lutador de jiu-
jítsu. Ele ajudava, ficava em cima da Alice, que
começava a chorar de um jeito… A Alice ali, com as
roupas pequenas da personagem, tentava se mexer, o
maquinista a imobilizava, ela chorava, se fragilizava.
Tudo no maior respeito. Aquilo era muito comovente. A
Alice estava ali chorando, se entregando, isso fez com
que toda a equipe também se entregasse. É por isso que

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no Cidade Baixa o espectador vê uma paixão tão


grande.”
Bruno Barreto interrompeu um trabalho com Fátima –
no recém-lançado Última Parada 174, candidato
brasileiro a uma indicação ao Oscar de melhor filme
estrangeiro em 2009 – por acreditar que seu método
reduz os espaços de criação do diretor. “O maior prazer
que tenho ao filmar é dirigir o ator. Ele tinha que vir
preparado, mas não pronto. Com a Fátima, ele vem
quase pronto. O diretor pode intervir muito pouco”,
afirmou.
Barreto disse que para ele os ensaios com os atores são
muito importantes. “É quando a dramaturgia começa a
sair do papel e ganhar vida. Respeito o trabalho da
Fátima, mas levantar cenas é um momento crucial. Isso
deve ser feito pelo diretor, não por outra pessoa”,
comentou. “Acho que o modo como se conduz os atores
imprime uma marca nos filmes. Bergman, Antonioni,
Nelson Pereira: os atores têm funções distintas para
cada um destes cineastas.”
Na opinião de Barreto, “não é preciso transformar o ator
em um farrapo humano para que ele renda bem”. “Nem
sempre a verdade é verossímil. Tem ator que chora
facilmente, mas isso não significa que vamos ter uma
boa cena”, explicou.
Durante as entrevistas de seleção de pessoas para
viverem os personagens de Última Parada 174, Barreto
disse ter acontecido algo que o incomodou. “Nos vídeos
de seleção, os candidatos se apresentavam, um a um. O
assistente da Fátima, fora do quadro, perguntava o
nome, a idade, porque o candidato estava ali etc. Num
dos vídeos, lá pelas tantas, a voz dizia: ‘Na verdade,
aqui é a polícia, sabemos que você está envolvido com

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drogas.’ A pessoa tomava um susto. Tremia, apavorada.


Então, a voz dizia que era mentira, que aquilo fazia
parte do teste. Isso me incomodou, é brincar um pouco
demais com a cabeça das pessoas”, concluiu.
Fátima Toledo nega o episódio. “Essa acusação é de
uma irresponsabilidade cruel”, disse. “Quero que ele
prove, mostre essa fita.”
Para Hector Babenco, “Fátima impõe um modelo de
atuação que é a marca dela, e no qual o diretor,
vampiristicamente, absorve os resultados”. “Ela injeta
autoconfiança nos não-atores. No Pixote, isso foi
importante para que os meninos se relacionassem de
igual para igual com a gente.”
Nos filmes que dirige, Babenco disse achar interessante
que alguém faça um trabalho anterior, de relaxamento.
“Mas não quero ninguém ensaiando o meu ator”,
definiu. “Não cresci brincando com uma câmera de
vídeo, comecei trabalhando em teatro, minha formação
vem de trabalhar com os atores.” Para ele, o preparador
de elenco virou uma função tão corriqueira quanto a de
um figurinista, maquiador ou continuísta. “Os diretores
não conseguem mais conceber um filme sem essa
função”, comentou.
Carlos Reichenbach, que trabalhou com Fátima Toledo
em Dois Córregos e Garotas do ABC, disse que
“o coach estimula o essencial em qualquer ator
estreante: concentração e disciplina”. Mas fala que nem
sempre “os atores profissionais gostam de se submeter
ao treinamento do preparador”.
Exemplo disso é o “manifesto” que o ator Pedro
Cardoso divulgou no último Festival do Rio. Nele,
Cardoso criticava a perda de autonomia do ator e
questionava a opção de diretores em trabalhar com

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preparadores de elenco. Dizia que “o haver agora no


mercado desses amestradores de atores faz parte da
desautorização do ator como autor do seu próprio
trabalho”. “Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é
o ator que faz?!”, ironizou Cardoso.
Sérgio Machado enfatizou que Karim Aïnouz e ele não
têm nenhum interesse em trabalhar com atores que a
princípio rejeitam o método de Fátima Toledo. “Tem
ator que chega e fala: ‘Se for com a Fátima, eu não
faço.’ Então eu digo: ‘Até mais, amigo.’ A Fátima nos
dá atores à flor da pele. Quando se está à flor da pele, é
mais fácil ficar alegre, ficar triste. A pessoa fica
disponível, grita e chora mais facilmente.” Aïnouz tem
dúvidas, no entanto, se o método funcionaria em uma
comédia. “E tenho curiosidade em saber como a
Fernanda Montenegro trabalharia com a Fátima.”
 

O ator e diretor de teatro Mário Bortolotto é contra o


método. “Fátima pega não-ator, faz os caras
repetirem o que fazem na vida real, parece que é
trabalho de ator, mas não é”, comentou. “Quando pega
ator de verdade, faz os caras sofrerem para render uma
coisa que eles poderiam render só com o trabalho deles.
Não tenho nada contra o não-ator, o que eu não quero é
submeter o cara a uma tortura psicológica para
conseguir o resultado. Vejo os atores reclamando muito,
mas não fazem isso publicamente porque ela virou uma
grife. É uma pessoa forte no cinema nacional, então
ninguém fala mal, senão não vai ser chamado para o
próximo filme.” Bortolotto disse que o que mais gosta
quando está atuando é de “brincar de ser e não ser de
verdade”. “A Fátima Toledo faz você acreditar que está
vivendo as situações para valer. Ela tira toda a graça da

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brincadeira”, explicou. “Sem falar que ela trabalha


muito a coisa do improviso, né? O roteiro é
praticamente ignorado em prol de uma suposta
espontaneidade do tipo ‘falem com suas próprias
palavras’.”
Para o diretor Antunes Filho, do Centro de Pesquisa
Teatral, o CPT, os atores dos filmes nacionais “fazem
bem a ação externa”. “Mas e a ação interna?”,
questionou. “Posso induzir você a chorar, mas isso não
quer dizer que você seja ator. Estou utilizando você de
forma domesticada.”
No mesmo ano em que Cidade de Deus chegou aos
cinemas, em 2002, foi lançado Desmundo, de Alain
Fresnot. Nele, Fátima preparou a atriz Simone
Spoladore. Em um dos principais exercícios propostos
pela preparadora, Simone tinha que ficar dentro de um
quadrado de fita crepe, vendada, durante horas. “Parti
de uma cena do roteiro, em que a personagem é presa
em um porão. Eu precisava buscar esse sentimento de
prisão”, argumentou. “Queria ver como a Simone
reagiria. O ator não imagina que aquele quadrado é o
porão, não sabe o que estou fazendo.”
Fátima não costuma dar os diálogos do roteiro para os
atores lerem (em Tropa de Elite, nenhum dos atores
recebeu o roteiro com os diálogos. O roteiro com as
situações da trama não foi dado a André Ramiro, mas
Wagner Moura recebeu. Em O Céu de Suely e Cidade
Baixa, os atores leram o roteiro, mas sem os diálogos).
“Se o ator sabe”, Fátima defende, “ele começa a atuar.
Quero que venha à tona a loucura da própria pessoa. É a
prisão da própria Simone que vai preencher o filme.
Quando o ator olha para a referência de prisão que tem,
ele começa a construir. Agora, se você fica dentro do

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quadrado, sem fazer nada, vendado, tem uma hora que


você grita: ‘Que porra é essa, me tira daqui, vai tomar
no cu!’ Quero que a prisão se torne algo físico.”
O procedimento de não dar o roteiro para os atores é
comum nas preparações do diretor britânico Mike
Leigh, de Segredos e Mentiras, de 1996. O que difere é
que Leigh é o diretor, e é a partir do trabalho com os
atores que a trama vai sendo construída. “Mike Leigh
nunca escreve uma linha de roteiro”, disse o cineasta
Mauro Baptista. “Ele seleciona um grupo de atores e
tem em mente apenas uma idéia sobre o filme, às vezes
nem isso. Aluga uma locação e começa a se reunir
separadamente com cada ator, a conversar, a criar os
personagens.”
Fátima Toledo diz que para cada situação usa uma
estratégia. “Às vezes, o ator precisa do meu carinho, daí
eu dou minha distância. Às vezes, quer minha distância,
dou meu carinho.” Para a atriz Carla Ribas, de Casa de
Alice, o caminho foi o da distância. “Eu dizia: ‘Como
você é chata, você é muito chata, pára de chorar, é
muito ruim trabalhar com você.'” Fátima acende um
cigarro e conta que fazia isso porque Carla precisava
entrar no universo do filme, “o mundo da periferia, do
abandono”. “Quero a pessoa vulnerável”, disse. “Mas
não é psicologia. O método é estritamente físico, não
quero saber da vida da pessoa.”
Esse método parece ganhar força em um contexto que,
para Ilana Feldman, pesquisadora da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, “é
caracterizado pelo apelo cada vez mais intenso à
produção e dramatização da realidade, quando a
linguagem desapareceria como construção para surgir

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confundida com as coisas, quando é o próprio ‘real’ que


parece falar”.
Feldman lembrou que em 2007 os documentários
constituíram cerca de metade dos lançamentos de filmes
nacionais. E citou ainda os reality shows, como O
Aprendiz e Big Brother, as imagens amadoras nos
telejornais (como forma de validar a “verdade” da
notícia), o cartaz do filme Tropa de Elite que dizia “uma
guerra tem muitas versões, esta é a verdadeira”, “além
do boom de um certo realismo vinculado à impressão de
autenticidade das imagens amadoras” (flagras, vídeo-
cassetadas, pegadinhas, amadorismos no YouTube).
Segundo a pesquisadora, a busca é por “um espetáculo
que simule sua não-encenação, cujo efeito almejado
seria a produção de uma impressão de autenticidade e
de um valor de verdade que sejam tomados como
inequívocos e inquestionáveis.” O “não atuar”, evocado
por Fátima Toledo, contribuiria para essa impressão de
autenticidade nos filmes.
Karim Aïnouz, que trabalhou com Fátima em O Céu de
Suely e mais recentemente na minissérie para a
televisão Alice (em parceria com Sérgio Machado),
pensa que essa busca tem a ver com a teledramaturgia
nacional e com o modelo de interpretação dos atores de
televisão. “A novela é tão distante da verdade que, no
cinema, os diretores e espectadores acabam tendo uma
avidez por experiências físicas reais”, disse. “Por isso, o
trabalho da Fátima é importante.”
Em uma sequência de Linha de Passe, de Walter Salles,
um motoboy em fuga sequestra um carro, desses
grandes, blindados, dirigido por um homem rico, de
terno. Ambos estão apavorados por razões distintas.
Antes de libertar o homem, o motoboy diz aos gritos

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para que o sequestrado olhe para ele. “Olha para mim,


olha para mim!”, berra o ator.
Os gritos de “olha para mim” surgiram em um exercício
proposto por Fátima. “É o exercício de ser olhado”,
contou ela. “O Walter transformou em cena.” Segundo
ela, “hoje em dia, o espectador está anestesiado, em
transe”, e precisa ser acordado. “Os gritos tiram o
homem engravatado e o espectador desse transe, dessa
anestesia e faz com que olhem para si mesmos.” Walter
Salles, que também a contratou para Central do Brasil,
considera que um elenco preparado por Fátima adquire
“uma densidade” rara. “Nenhum ator mente. Todos
passam a habitar os seus personagens de forma
visceral”, afirmou. “Ela potencializa o que está no
papel. Basta ver os filmes e atores premiados nos
últimos anos no Brasil. Fátima está quase sempre por
trás deles.”
 

E m 2010, Fátima Toledo espera se lançar como


diretora com um longa-metragem cujo título
provisório é Sobre a Verdade. Verdade, que para Fátima
Toledo “não é apenas uma forma de trabalhar, mas de
viver”. “É poder dizer ‘eu amo’ sem medo de dizer ‘eu
amo'”, afirma. “Muita gente fala: ‘Você é uma pessoa
intensa.’ Não é que eu seja intensa, é que eu vivo na
verdade, digo o que tenho que dizer, faço o que tenho
que fazer, e a verdade para a maioria das pessoas tem a
ver com intensidade.”
Na sexta-feira, último dia do curso, algumas cenas são
levantadas. A primeira é de O Céu de Suely, com as
alunas Angelita, Tatiana e Simone. A segunda é do
filme Cidade Baixa. Adriano e Itapoã se enfrentam em
um braço-de-ferro. Fátima tenta trabalhar exercícios de

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atração e repulsão. No filme, os personagens de Wagner


Moura e Lázaro Ramos são amigos, mas brigam e
disputam a mesma mulher. Na cena, preparada na sala,
nos fundos da casa na Vila Mariana, Itapoã perde o
braço-de-ferro. Adriano está dormindo, tem uma arma
(de plástico) embaixo do travesseiro e Itapoã precisa
demovê-lo da idéia de matar alguém. Brigam, caem no
chão, Itapoã tenta pegar a arma. Adriano se defende.
Fátima grita “corta!”, comenta que Adriano “atuou”,
que ainda há um pouco de atuação ali e que isso a
afastou dele.
No mesmo dia, uma das alunas, Juliana, não aparece.
Desistiu do curso. Na véspera, Vilma e ela tentaram
apresentar a cena de O Céu de Suely em que duas
personagens se abraçam e se beijam, na cama. “Travei”,
conta a aspirante a atriz, depois, por telefone. “Tentei
levar adiante, mas acho que não ficou legal.” Juliana
lamenta ter desistido do curso. “Eu devia ter ido no
último dia, acabei ficando sem o diploma.”

Emilio Fraia
Emilio Fraia, jornalista e escritor, é co-autor, com Vanessa
Barbara, do romance O Verão do Chibo, lançado pela
Alfaguara.

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