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1586 FÓRUM FORUM

Aspectos epidemiológicos das


desigualdades raciais em saúde no Brasil

Epidemiologic aspects of racial


inequalities in health in Brazil

Dóra Chor 1
Claudia Risso de Araujo Lima 2

Abstract Introdução

1 Escola Nacional de Saúde In Brazil, data on education, the labor market, As desigualdades étnico-raciais vêm adquirin-
Pública, Fundação Oswaldo
and the law enforcement and court systems do relevância ainda maior na produção de di-
Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
2 Secretaria Executiva, have already documented that racial discrimi- ferentes perfis de doença em função de recen-
Ministério da Saúde, nation is a structural factor underlying eco- tes e surpreendentes acontecimentos mundiais.
Brasília, Brasil.
nomic and social disadvantages experienced by Em períodos anteriores, a escravidão e a colo-
Correspondência racial/ethnic minorities. However, racial in- nização representaram o contexto em que se
D. Chor equalities in health have received little investi- originaram essas desigualdades, desfavoráveis
Departamento de
gation. According to health indicators presented para minorias populacionais 1. Nas últimas dé-
Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde, in this paper, race is a strong predictor of vari- cadas, guerras por motivos étnicos, religiosos e
Escola Nacional de Saúde ability in mortality. Early mortality is more fre- territoriais, assim como mudanças político-
Pública, Fundação Oswaldo
Cruz. Rua Leopoldo Bulhões
quent among indigenous and black Brazilians; econômicas radicais têm causado a migração
1480, Rio de Janeiro, RJ mortality rates from stroke and especially ma- de milhões de pessoas, que recomeçam suas vi-
21041-210, Brasil. ternal mortality rates are exceedingly higher das como estrangeiros, estranhos, desconheci-
dorinha@ensp.fiocruz.br
among black women; violence occurs predomi- dos. O renovado impacto de barreiras sociais,
nantly among young black men. Lifetime socioe- econômicas e culturais nas condições de vida e
conomic differences across successive genera- saúde de grupos étnico-raciais distintos deve,
tions have been identified as the main cause of portanto, ter lugar destacado na agenda epide-
racial inequality in health. It is also suggested miológica internacional.
that racial discrimination and its impact on No caso do Brasil, que apresenta o maior
health are at the origin of these inequalities. In- contingente de afro-descendentes fora do con-
struments to directly or indirectly measure the tinente africano 2, a escravidão deixou suas
impact of racial discrimination on health are marcas na posição social de sucessivas gerações
discussed. The article suggests that investigation da população negra 3. Quanto aos povos indíge-
of the impact of both social class and race on nas, também foram submetidos à escravidão
health is the most productive approach, both for (antes mesmo do tráfico negreiro), além de epi-
research as well as for policies to address health demias de doenças infecciosas que resultaram
inequalities. em grande mortalidade e desorganização social.
A migração indígena para cidades brasileiras, fe-
Prejudice; Ethnic Groups; Racial Discrimination nômeno mais recente, perpetua sua situação de
marginalidade sócio-econômica 4. Apesar dessa

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realidade, as desigualdades étnico-raciais, no parte dos termos utilizados pela população em


âmbito da saúde, têm sido pouco investigadas perguntas abertas, utilizadas para autoclassifi-
no Brasil, ao contrário de outros campos como cação étnico-racial 1,3. É possível que a ascen-
o da educação, mercado de trabalho e justiça. são do movimento social negro e o debate so-
Por exemplo, somente em 1995/1996 o campo bre políticas de promoção da igualdade racial
raça/cor foi incluído em dois sistemas de regis- no Brasil contribuam cada vez mais para dimi-
tro contínuo (Sistema de Informação sobre nuir “tendências branqueadoras” de autoclas-
Mortalidade e Sistema de Informação sobre sificação étnico/racial.
Nascimentos), de acordo com as categorias ado-
tadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística – IBGE (Portaria n. 3.947/GM. Diário Indicadores de saúde segundo
Oficial da União 1999; 14 jan). A análise e inter- raça/etnia no Brasil
pretação desses dados ainda são escassas na li-
teratura epidemiológica nacional ao contrário Nesse tópico, alguns indicadores de saúde são
de outros países, como Estados Unidos e Ingla- apresentados de acordo com o recorte étnico-ra-
terra, onde a raça/etnia tem sido um importante cial. No caso da mortalidade específica por gru-
eixo no estudo das desigualdades de saúde 5,6. pos etários, foram selecionadas as faixas etárias
Duas questões costumam ser citadas como de 15-29 e 40-69 anos de idade, a título de exem-
obstáculos ao estudo de desfechos de saúde se- plo. A fonte de dados de mortalidade foi o Siste-
gundo o recorte étnico-racial no Brasil: a defini- ma de Informação sobre Mortalidade (SIM –
ção de raça e os problemas de classificação 7,8. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/sim/dados/cid
Tradicionalmente, o conceito de raça era 10_indice.htm, acessado em 05/Mar/ 2004); pa-
definido em termos de diferenças supostamen- ra os nascidos vivos, utilizou-se o Sistema de In-
te genéticas entre grupos. No entanto, os enor- formações sobre Nascimentos (SINASC – http://
mes avanços ocorridos na biologia molecular, tabnet.datasus.gov.br/cgi/sinasc/dados/nov_in-
nas últimas décadas, permitiram estimar que dice.htm, acessado em 05/Mar/2004); e para os
apenas 7,0% do total da variação genética hu- denominadores dos indicadores, foi utilizada a
mana é encontrada entre as raças 9,10. Além população do Censo Demográfico, disponibili-
disso, um número muito reduzido de diferen- zada pelo IBGE (http://www.sidra.ibge.gov.br/
ças genéticas relacionadas a condições de saú- bda/tabela/listabl.asp?z=t&o=1&i=P&e=1&c=
de foi identificado até agora entre os grupos ét- 1646, acessado em 05/Mar/2004).
nico-raciais 9. Entretanto, embora não seja útil O preenchimento do campo raça/cor no
como categoria biológica, raça é um importan- SIM e no SINASC vem melhorando continua-
te constructo social, que determina identida- mente (Figura 1). Em 2001, a proporção igno-
des, acesso a recursos e a valorização da socie- rada foi 13,7% no SIM e 11,9% no SINASC, ní-
dade. Assim, interagindo com outros marcado- veis compatíveis com investigações que in-
res de posição social (exemplo: gênero, educa- cluam essa característica.
ção, renda), a raça contribui para a maior ou Em que pesem as potenciais limitações dos
menor exposição a diferentes riscos à saúde 11. dados (exemplo: critérios adotados para classi-
Um dos problemas de classificação mais ficação de raça na declaração de óbito; propor-
freqüentemente citado refere-se à ausência de ção variável de raça/etnia ignorada em deter-
consenso quanto à melhor categorização étni- minadas causas de mortalidade), é possível
co-racial no Brasil, assim como em outros paí- evidenciar um padrão semelhante àquele iden-
ses 12. Ao considerarmos raça/etnia como con- tificado em pesquisas anteriores, realizadas em
ceitos sócio-culturais, entretanto, a idéia de um algumas regiões do país 4,13,14,15: as categorias
“padrão-ouro” não se aplica: trata-se de encon- raciais predizem, de forma importante, varia-
trar a classificação mais adequada a cada con- ções na mortalidade. Os piores indicadores de
texto histórico-social, bem como a estratégia mortalidade, em termos de sua distribuição etá-
(exemplo: autoclassificação vs. classificação ria (Figura 2) ou magnitude de causas evitáveis
realizada por terceiro) que alcance resultados de óbitos (exemplo: mortalidade materna), são
adequados aos objetivos de cada investigação. apresentados por pretos e indígenas. Além dis-
No Brasil, diversos autores têm chamado a so, a proporção de óbitos por causas mal defi-
atenção para o fato de que as categorias utili- nidas e também aqueles sem assistência médi-
zadas nos censos do IBGE (branca, preta, ama- ca podem ser considerados evidências das di-
rela, parda, indígena) correspondem à maior ferenças entre os grupos étnico-raciais, no que

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Figura 1

Proporção de informações (%) ignoradas no campo raça/cor no Sistema de Mortalidade (SIM)


e no Sistema de Nascidos Vivos (SINASC). Brasil, 1996/2001.

100
Óbitos (Brasil)

Nascidos vivos
80 (Brasil)
Nascidos vivos
(capitais)

60

40

20

% 0
1996 1997 1998 1999 2000 2001

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde e Sistema de Informações sobre Nascimentos.

Figura 2

Mortalidade proporcional por idade segundo raça. Brasil, 2001.

100
Branca

Preta
80
Amarela

Parda
60

Indígena

40

20

% 0
<1 1-4 5-19 20-49 50 e + Faixa etária (anos)

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde.

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diz respeito ao acesso aos serviços de saúde e/ anos de idade (Figura 5). No entanto, pretos e
ou tratamento. Por exemplo, em 2001, a propor- pardos morrem cerca de duas vezes mais por
ção de óbitos sem assistência médica entre os agressões do que os brancos, com taxas de mor-
indígenas foi de 9,0%, comparada a 6,0% entre talidade de 136, 111, e 72 por 100 mil habitan-
brancos. Os mesmos grupos apresentaram a pior tes, respectivamente (Figura 3). Acidentes de
e a melhor proporção de causas mal definidas: transporte, suicídios e doença por vírus da imu-
25,0% entre os indígenas e 10,0% entre brancos. nodeficiência humana (HIV) constituem as ou-
Apesar da melhoria da esperança de vida ao tras causas importantes, sem diferenças expres-
nascer, que já ultrapassa os 70 anos de idade, a sivas entre os grupos raciais.
tradicional Curva de Nelson de Moraes ainda A magnitude da mortalidade entre mulhe-
capta importantes diferenças na mortalidade res jovens (15 e 29 anos de idade) é substancial-
proporcional segundo faixas etárias entre os mente menor do que aquela apresentada pelos
grupos étnico-raciais (Figura 2). O melhor perfil homens do mesmo grupo etário (< 8 por 100
é apresentado pela raça amarela, com a menor mil habitantes) (Figura 4). Embora a taxa de
proporção de óbitos em menores de um ano mortalidade por doença por vírus da imunode-
(3,0%) e a maior proporção na população com ficiência humana (HIV ) entre mulheres pretas
mais de 50 anos de idade (82,0%). No outro ex- seja cerca de duas vezes maior do que entre
tremo, encontra-se a população indígena, com pardas ou brancas, o pequeno número de óbi-
a maior mortalidade infantil relativa (17,0%) e tos nessa faixa etária não permite valorizar es-
a menor mortalidade proporcional no grupo sa diferença.
mais idoso (47,0%). Brancos, pretos e pardos O perfil de mortalidade dos grupos raciais
situam-se próximos à raça amarela em relação nos homens entre 40 e 69 anos de idade tam-
à proporção de óbitos infantis, enquanto pre- bém é diferente (Figura 5): entre pretos, predo-
tos e pardos estão em posição intermediária no minam as doenças cerebrovasculares, mais as-
que tange à mortalidade relativa entre maiores sociadas à pobreza em períodos precoces da vi-
de 50 anos de idade. Chama a atenção, ainda, a da do que a doença isquêmica do coração 16,17.
situação de jovens e adultos jovens (entre 20 e Esta, por sua vez, representa a primeira causa
49 anos) pardos e pretos, cuja mortalidade pro- de óbito entre brancos. Doenças do fígado, aci-
porcional é mais elevada e exibe padrão distin- dentes de transporte e diabetes mellitus com-
to daquele observado nos outros grupos. pletam as causas mais importantes nesse grupo.
Nas Figuras 3 a 6, apresentamos as cinco Nas mulheres pretas, entre 40 e 69 anos de
primeiras causas de óbito por sexo, nos dois idade, a taxa de mortalidade por doenças cere-
grupos etários selecionados, incluindo apenas brovasculares (115 por 100 mil) é cerca de duas
brancos, pretos e pardos. Isso porque a popu- vezes maior do que entre brancas (58 por 100
lação e o número de óbitos relativamente pe- mil) e pardas (54 por 100 mil) (Figura 6). Da
quenos na raça amarela e indígena fornecem mesma forma, a mortalidade por doença hi-
taxas instáveis. Por exemplo, a taxa de mortali- pertensiva e por diabetes mellitus é muito mais
dade por AIDS entre as jovens (15-29 anos de expressiva entre as mulheres pretas. Quanto à
idade) da raça amarela foi a mais alta (10,3 por mortalidade por neoplasia maligna de mama,
100 mil), comparada aos outros grupos raciais, a magnitude é equivalente entre brancas (28
embora apenas dez óbitos tenham ocorrido em por 100 mil) e pretas (22 por 100 mil), e maior
2000. Além disso, observamos também que o do que em mulheres pardas (14 por 100 mil).
número de informações ignoradas no campo Cabe destacar ainda a importante diferen-
raça/cor do SIM varia segundo a causa especí- ça entre as taxas de mortalidade materna nas
fica de óbito, o que torna ainda mais difícil hie- capitais, cujas informações são consideradas
rarquizar a magnitude da mortalidade no caso de melhor qualidade do que aquelas relativas
dos grupos menos numerosos. Assim, estudos ao conjunto do país. Entre as mulheres pretas,
adicionais são necessários, com maior período em 2001, a taxa foi cerca de sete vezes maior
de observação, para a comparação de todos os (275 por 100 mil nascidos vivos) do que entre
grupos étnico-raciais. mulheres brancas (43 por 100 mil nascidos vi-
Entre os homens de 15 a 29 anos de idade, vos), ou pardas (46 por 100 mil nascidos vivos)
chama a atenção, em primeiro lugar, a mortali- (dados não apresentados graficamente).
dade por agressões nos três grupos raciais, cuja
magnitude elevada não seria esperada entre
indivíduos tão jovens. De fato, o nível alcança- Desigualdades raciais em saúde: por quê?
do por agressões nesse grupo etário é seme-
lhante à mortalidade observada, por outras Características genéticas (vide Introdução) e
causas, entre os mais velhos, na faixa de 40 a 69 diversidade cultural têm contribuído pouco

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1590 Chor D, Lima CRA

Figura 3

Taxas de mortalidade segundo raça, cinco primeiras causas. Homens, 15-29 anos de idade. Brasil, 2000.

160
Agressões

140
Acidentes de transporte
120
Afogamento e submersões
100 acidentais

80 Lesões autoprovocadas
voluntariamente

60 Doença por HIV

40

20

0
Branca Preta Parda

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Figura 4

Taxas de mortalidade segundo raça, cinco primeiras causas. Mulheres, 15-29 anos de idade. Brasil, 2000.

8
Agressões

7
Acidentes de transporte
6
Doença por HIV
5

4 Lesões autoprovocadas
voluntariamente

3 Doenças cerebrovasculares

0
Branca Preta Parda

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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EPIDEMIOLOGIA DAS DESIGUALDADES RACIAIS EM SAÚDE 1591

Figura 5

Taxas de mortalidade segundo raça, cinco primeiras causas. Homens, 40-69 anos de idade. Brasil, 2000.

160
Doença isquêmica
do coração
140
Doenças cerebrovasculares
120
Doenças do fígado
100

80 Acidentes de transporte

60 Diabetes mellitus

40

20

0
Branca Preta Parda

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Figura 6

Taxas de mortalidade segundo raça, cinco primeiras causas. Mulheres, 40-69 anos de idade. Brasil, 2000.

160
Doenças cerebrovasculares

140
Doença isquêmica
120 do coração

Diabetes mellitus
100

80 Neoplasia maligna
da mama

60 Doença hipertensiva

40

20

0
Branca Preta Parda

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade, Ministério da Saúde e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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1592 Chor D, Lima CRA

para explicar os fortes contrastes da morbi- Silva que revelaram que a disparidade de renda
mortalidade de acordo com o recorte étnico- entre brancos e negros não é explicada somen-
racial 9. Por outro lado, há evidências de que te por diferenças de capital humano (exemplo:
diferenças sócio-econômicas, que se acumulam sexo, idade, escolaridade) e os resultados de
ao longo da vida de sucessivas gerações, consti- sua própria investigação sobre maior evasão
tuem explicação fundamental – embora não ex- escolar de crianças negras quando comparadas
clusiva – para as desigualdades étnico-raciais a seus irmãos mais claros convergem no senti-
em saúde no Brasil e em outros países 4,9,18,19. do de evidenciar alguns dos mecanismos atra-
Na Inglaterra, o quarto Inquérito Nacional vés dos quais a discriminação racial afeta as
de Minorias Étnicas de 1999 evidenciou dife- condições de vida dos brasileiros negros.
renças importantes no risco de adoecer entre Uma vez que as evidências indicam que a
imigrantes indianos, africanos e asiáticos, oriun- discriminação racial é um dos fatores estrutu-
dos do Paquistão ou de Bangladesh, e imigran- rantes das desvantagens econômicas e sociais
tes oriundos do Caribe 5. O ajuste estatístico enfrentadas por minorias étnico-raciais no Bra-
por indicadores de condições materiais de vida sil, como captar seus efeitos na saúde? A discri-
reduziu, mas não eliminou essas diferenças, minação racial tem sido definida como trata-
demonstrando que não explicam totalmente o mento diferenciado em função da raça (ou em
excesso de risco. Nos Estados Unidos, em 1995, função de outros fatores insuficientemente jus-
os filhos de mulheres negras apresentaram tificados), que coloca em desvantagem grupos
maiores taxas de mortalidade infantil e baixo raciais específicos 22. Nos Estados Unidos, me-
peso ao nascer do que os filhos de mulheres didas diretas de discriminação racial já foram
brancas. Estratificando-se pela escolaridade incorporadas a estudos epidemiológicos, por
materna, as diferenças raciais persistiram e meio de questionários específicos, possibili-
apresentaram padrão inesperado, já que, no tando a identificação de suas associações com
estrato de maior escolaridade, observou-se a hipertensão arterial, depressão e auto-avalia-
maior diferença entre mães brancas e negras. ção do estado de saúde 23,24. Nessas investiga-
Assim, comparando-se negras e brancas com ções, observou-se um padrão consistente de
nível secundário incompleto, a mortalidade in- desvantagem para os negros, que relataram ex-
fantil foi duas vezes maior entre as negras; no periência direta de discriminação racial.
caso das mulheres com curso universitário Em estudo longitudinal conduzido entre
completo, essa diferença foi três vezes maior 20. funcionários de uma universidade no Rio de
Segundo Krieger 21, na origem de grande Janeiro – Estudo Pró-Saúde –, itens específicos
parte das desigualdades étnico/raciais, encon- a respeito de discriminação por raça, entre ou-
tra-se a discriminação racial, com seus efeitos tras características, foram incorporados a um
próprios na saúde. De acordo com essa propo- questionário multidimensional e autopreenchí-
sição, a desvantagem econômica e social seria vel 25. Nesse estudo, estimou-se chance 50,0%
um dos mecanismos através do qual a discri- maior de hipertensão arterial (OR = 1,50; IC95%:
minação contribui para as desigualdades ra- 1,06-2,13) entre funcionários que se autoclassi-
ciais de saúde. A maior exposição a substâncias ficaram, em conjunto, como pretos, negros ou
tóxicas em ambientes menos saudáveis, a as- pardos, e que relataram experiência direta de
sistência à saúde inadequada ou degradante e discriminação racial, comparados ao mesmo
as experiências diretas de atos ou atitudes de conjunto racial que não relatou esse tipo de ex-
discriminação seriam outros meios pelos quais periência. A magnitude dessa associação va-
a discriminação racial exerceria seu impacto riou inversamente com o nível de escolaridade
nessas desigualdades. (associação mais forte entre participantes com
primeiro grau ou menos), sugerindo que con-
dições sócio-econômicas desfavoráveis poten-
Existe discriminação racial no Brasil? cializam o efeito da discriminação racial no ris-
co de hipertensão. Segundo os autores, além
Desde a década de 70, cientistas sociais brasi- dessa possível interação com as condições ma-
leiros têm investigado as desigualdades raciais teriais de vida, a relação entre a discriminação
por meio da comparação da mobilidade social, racial e a hipertensão arterial ocorreria por
grau de instrução e inserção no mercado de tra- meio do estresse crônico, que tem efeito direto
balho, entre outras características. Segundo sobre os níveis da pressão arterial e pode in-
Telles 1, os estudos de Carlos Hasenbalg, José fluenciar também os comportamentos de saú-
Pastore e Nelson do Valle e Silva que demons- de relacionados à hipertensão (exemplo: con-
traram ampla desvantagem para os negros na sumo de álcool, dieta, sedentarismo). De for-
mobilidade social, estudos de Nelson do Valle e ma adicional, a assistência médica discrimina-

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tória poderia também dificultar o diagnóstico são do campo raça/cor em outros bancos de
e o controle da hipertensão. dados nacionais, além do SIM e SINASC (exem-
Se questionários específicos constituem plo: Sistema de Informações Hospitalares e
medidas diretas de discriminação, o estudo da Módulo de Procedimentos de Alto Custo/Com-
distribuição de exposições e desfechos de saú- plexidade), que tornará possível o contraste de
de segundo raça/etnia possibilita sua avaliação perfis epidemiológicos ao longo do tempo e
indireta. Essa proposição baseia-se no fato de ainda a avaliação da eqüidade na utilização de
que, em análises de exposições e desfechos se- procedimentos diagnósticos e terapêuticos, te-
gundo raça, a discriminação racial estaria sub- ma bastante explorado em outros países 26.
jacente às desigualdades encontradas 21. Em estudos epidemiológicos, a preocupa-
ção com erros de classificação deve ser cons-
tante. Em relação a exposições – entre elas, ra-
Comentários finais ça/etnia –, desfechos e co-variáveis, é preciso
tentar identificar a direção do erro e especular
É possível sugerir algumas hipóteses para expli- a respeito de seu impacto nos resultados en-
car a escassez de investigações epidemiológicas contrados. Assim, diante das amplas desigual-
a respeito da distribuição de agravos segundo dades raciais já identificadas em outras dimen-
raça/etnia e também sobre sua associação com sões sociais, não nos parece razoável deixar o
desfechos de saúde no Brasil: (1) a aceitação do tema inexplorado em função das limitações de
“mito da democracia racial”, que pode ter in- estratégia (exemplo: autoclassificação vs. clas-
fluenciado a carência de perguntas acadêmicas sificação por entrevistador) ou da operaciona-
relacionadas à raça/etnia, consideradas pouco lização do constructo. Segundo Bastos 27 (p.
relevantes, desnecessárias, e até incorretas do 15-6), a incorporação da classificação do IBGE,
ponto de vista ideológico; (2) as dificuldades de aos estudos no âmbito da saúde, “...seria já de
classificação étnico-racial e a necessidade de li- grande valia, no sentido de mapear o terreno
dar com erros de medida; (3) a oposição entre para análises futuras mais refinadas”.
“classe ou raça”, como se o estudo da dimensão No âmbito da pesquisa epidemiológica, a
sócio-econômica contemplasse o conjunto de oposição classe social ou raça, como explica-
significados da dimensão étnico-racial. ções mutuamente exclusivas, não tem contri-
As evidências empíricas já acumuladas a buído para a compreensão abrangente das de-
respeito das amplas desigualdades étnico-ra- sigualdades de saúde. Em sociedades como a
ciais no Brasil, a atuação dos movimentos so- brasileira, na qual relações de classe são racia-
ciais organizados e o amplo debate a respeito lizadas e relações raciais são dependentes da
do tema vêm resultando em gradual desmisti- classe social, a pesquisa epidemiológica deve
ficação da idéia de “democracia racial” no Bra- buscar elucidar o impacto, na saúde, das desi-
sil. Assim, acreditamos que as desigualdades gualdades sócio-econômicas e raciais. O estu-
étnico-raciais em saúde passarão a ocupar um do das inter-relações entre essas dimensões
papel mais expressivo na agenda de pesquisas parece ser um caminho mais promissor tanto
epidemiológicas no país, a fim de preencher do ponto de vista do conhecimento científico
importante lacuna no conhecimento das con- quanto de políticas públicas direcionadas a mi-
dições de saúde da população. Nesse sentido, norar as desigualdades de saúde.
uma etapa importante a ser cumprida é a inclu-

Resumo

Evidências empíricas nas áreas de educação, trabalho Entre as possíveis causas das desigualdades étnico-ra-
e justiça indicam que a discriminação racial é fator ciais em saúde, destacam-se as diferenças sócio-eco-
estruturante das desvantagens econômicas e sociais nômicas que se acumulam ao longo da vida de suces-
enfrentadas por minorias étnico-raciais no Brasil. sivas gerações. Sugere-se que a discriminação racial,
Apesar disso, as desigualdades étnico-raciais, no âm- com seus efeitos próprios na saúde, encontra-se na ori-
bito da saúde, têm sido pouco investigadas. Apresen- gem de grande parte dessas desigualdades. Instrumen-
tam-se indicadores que demonstram que as categorias tos diretos e indiretos de avaliação do impacto da dis-
raciais predizem, de forma importante, variações na criminação racial na saúde são discutidos. Propõe-se
mortalidade. A mortalidade precoce predomina entre que o estudo do impacto, na saúde, das inter-relações
indígenas e pretos; os níveis de mortalidade materna e entre classe social e raça é um campo promissor para a
por doenças cerebrovasculares são mais elevados entre investigação e intervenção nas desigualdades de saúde.
as mulheres pretas; e no capítulo das agressões, os ho-
mens jovens pretos apresentam ampla desvantagem. Preconceito; Grupos Étnicos; Discriminação Racial

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(5):1586-1594, set-out, 2005


1594 Chor D, Lima CRA

Colaboradores Agradecimentos

D. Chor planejou o artigo, realizou a análise de dados Estudo financiado pelo Conselho Nacional de Desen-
e redigiu o texto final. C. R. A. Lima tabulou, analisou volvimento Científico e Tecnológico (CNPq 471129/
os dados apresentados e participou da redação do 03-8).
texto final.

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