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Belo Horizonte
2012
Flávia Costa Tótoli
Belo Horizonte
2012
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 616.895
Flávia Costa Tótoli
DO ENLACE ENTRE TOXICOMANIA E PSICOSE:
Os usos do objeto droga
_____________________________________
Profa. Dra. Cristina Moreira Marcos (Orientadora) – PUC Minas
_____________________________________
Prof. Dr. Musso Gracia Greco – UFMG
_____________________________________
Prof. Dr. Luis Flávio Silva Couto – PUC Minas
Aos leitores Musso Garcia Greco e Luis Flávio Silva Couto que acolheram meu
tema e foram guias fundamentais na finalização deste trabalho.
“Na verdade, minhas memórias mais antigas são coloridas com
o medo de pesadelos. Eu tinha medo de ficar sozinho, medo do
escuro, e medo de ir para a cama, por causa dos sonhos em
que um terror sobrenatural parecia sempre a ponto de se
materializar. Tinha medo de que um dia o sonho ainda
estivesse ali quando eu acordasse. Lembro-me de escutar uma
empregada falar sobre ópio, sobre como fumar ópio trazia
belos sonhos, e falei: “Vou fumar ópio quando crescer”.
Quando criança, era sujeito a alucinações. Uma vez acordei
com a luz da manhã bem cedo e vi homenzinhos brincando
numa casa de tijolinhos que eu havia construído. Não tive
medo, só uma sensação de imobilidade e assombro. Outra
alucinação recorrente, ou pesadelo, era sobre “bichos na
parede”, e começou com o delírio de uma febre estranha, não
diagnosticada, que eu tive aos quatro ou cinco anos.
(...) A droga é uma equação celular que ensina fatos de
validade geral ao usuário. Aprendi muito usando a droga: vi a
medida da vida em gotas de solução de morfina. Experimentei
a agoniante privação da doença da droga, e também o prazer
do alívio, quando as células sedentas de droga beberam da
agulha. Talvez todo prazer seja alívio. Aprendi o estoicismo
celular que a droga ensina ao usuário. Já vi um quarto cheio de
viciados em abstinência, silenciosos e imóveis, num sofrimento
solitário. Eles sabiam da falta de sentido em reclamar ou em se
mover. Sabiam que, basicamente, ninguém pode ajudar
ninguém. Não existe chave nem segredo que alguém seja
capaz de lhe dar.
(...) Aprendi a equação da droga. A droga pesada não é, como
o álcool ou a erva, um meio de obter um aumento de prazer na
vida. A droga não é um barato. É um estilo de vida.”
This work focuses in the link between drug addiction and psychosis. The current
clinical practice shows an increase numbers of psychotics who are users of
drugs, which makes us reflect about the drug addiction in the modern times. We
live in a time of the Other who doesn’t exist, the so called liquid modernity, that
is labeled by the decline of the paternal function, what changes the relationship
of the individual in regards to the jouissance. It is from these considerations
that we propose to think the relationship of the psychotic with the drug object.
We start from the hypothesis that the drug use in psychosis can not be thinked
as the same use in the neurosis. While the neurotics are considered the true
junkies, because of the pursuit of consumption as a way to break with the
phallic jouissance, that takes them to an unregulated use of the substance, the
use in psychosis is guided by a different view. In psychosis, the rupture with the
phallus is given in advance, because of the foreclosure of the Name-of-the-
Father, and that makes that the use of toxic substances has a character of
treatment of the jouissance without signification, that invades the individual.
Starting of the theoretical assumption of Freud and Lacan, we intend to show,
through the borromean study of clinical cases found in literature, the various
uses to which the psychotic individual can take advantage of the drug object.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 21
3 A TOXICOMANIA .................................................................................................. 48
3.1 A toxicomania e sua relação com a psicanálise............................................. 49
3.2 A toxicomania e as funções do objeto droga ................................................. 51
3.3 O gozo do toxicômano ...................................................................................... 52
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 91
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 96
21
1 INTRODUÇÃO
1
Este paradigma será explicitado ao longo do texto.
22
caso clínico como objeto de estudo na psicanálise foi inicialmente feito por Freud, na
escrita de suas monografias clínicas. Assim, partimos do pressuposto que o estudo
de caso pode tanto confirmar o universal da teoria, quanto a exceção a ela. A
utilização do caso clínico para o psicanalista pesquisador se desdobra na
possibilidade de ir além da corroboração em direção à investigação.
Por fim, discorremos a respeito da importância do caso clínico para a
pesquisa em psicanálise, e em seguida apresentamos cinco casos de sujeitos
psicóticos e as funções exercidas pelo objeto droga em cada um deles, através de
um estudo borromeano.
25
2
A figura do pai aqui tem sentido de metáfora, aquele que dita a lei e não somente o sentido de pátrio
poder familiar.
3
Expressão utilizada por Jorge Forbes em seu texto “A psicanálise do Homem Desbussolado” (2010).
26
Figura 1 - Esquema L
Lacan reformula o Édipo Freudiano para dar conta do resto de real, e desta
forma surge o discurso capitalista, o discurso do mestre atual:
4
“Con el surgimiento del capitalismo se opera una mutación radical del discurso del amo(...) Lo que
Lacan está dando a entender cuando habla de la mutación del discurso del amo es que a partir de
determinado momento de la historia de lós seres hablantes de occidente surge el capitalismo, se
produce uma transfornación que va a afectar a todas las generaciones subsiguientes, y a partir de
entonces algo del estatuto del sujeto va a cambiar. Este sujeto barrado del discurso del capitalismo
no será ya el mismo que el sujeto dividido del discurso del amo clásico, que es el sujeto del
inconsciente.”
30
5
“Em el discurso capitalista encontramos una inversión de la flecha por la que el sujeto consumidor
en realidad hace un uso de estos significantes amos, de esos significantes fundamentales que ló
determinan. Por ejemplo, podemos ubicar em este lugar al toxicômano, que es el consumidor ideal,
que está buscando esse objeto químico que ló haga olvidar de su falta de gozar, que le permita entrar
en el sueño de uma completud eterna.”
31
de J.-A. Miller denominou como do Outro que não existe.6” (VASCHETTO, 2005,
p.279, tradução nossa). Segundo Vaschetto, tanto na neurose quanto na psicose
temos no sintoma uma dupla vertente, uma parte variável e outra constante.
Ao teorizarmos acerca do papel exercido pela droga na cena psicótica de
alguns sujeitos, podemos considerar os estudos de Vaschetto (2007) sobre as
“psicoses atuais”. O autor denomina as chamadas psicoses ordinárias de psicoses
atuais como uma maneira de problematizar certas manifestações das psicoses na
chamada época do Outro que não existe. Pois, se a psicose não é justamente um
exemplo de que “não há Outro do Outro”, “as psicoses atuais implicam em uma
clínica pós-psicopatológica” (VASCHETTO, 2007, p.184).
Portanto, no estudo das psicoses atuais, onde o objeto droga se faz presente
em sua conjuntura, devem ser levados em consideração todos os elementos
concernentes à contemporaneidade e às formas atuais dos sintomas.
Trata-se então, neste trabalho, de discutir os enlaçamentos possíveis entre a
psicose e a toxicomania, buscando investigar a função da droga para o sujeito
psicótico, a partir das contribuições teóricas da psicanálise lacaniana, em especial
da sua produção dos últimos 15 anos. Serão abordados os conceitos de psicose,
desencadeamento, estabilização e suplência, a toxicomania e suas relações com a
psicose, o sujeito toxicômano e suas relações com o objeto droga, bem como os
diversos usos que o sujeito psicótico pode fazer desse objeto.
6
“Hablar de formas actuales del sintoma es, a la vez, intentar situar la dimensión del sufrimiento en la
época que J.-A. Miller denomino como del Outro que no existe”.
33
φ M
C P
Fonte: Elaborada pelo autor
Por que a mãe? Porque se o pai sustenta a lei, ela é mediada pela mãe, que é
quem, como já foi dito, coloca o pai como aquele que lhe dita a lei. Por isso a
frustração se caracteriza como a falta imaginária de um objeto real. O ato do pai é
imaginário e frustra a criança da posse da mãe real.
Por fim, vem o terceiro plano, o da privação. Nesse plano o pai se faz preferir
em lugar da mãe, ocupa o lugar anteriormente ocupado por ela. Na medida em que
isso acontece é que se torna possível estabelecer a identificação final, aquela que
leva à formação do Ideal do eu. Para o menino, a proibição do pai, e sua
identificação como Ideal do eu, faz com que ele se identifique como aquele que tem
o falo. Já na menina, o pai como Ideal do eu produz o reconhecimento de que ela
não tem o falo. A saída do Édipo para o menino seria então não ter aquilo que
realmente tem, o falo da mãe, que é o pai e para a menina não ter aquilo que
realmente não tem. Por isso a privação se caracteriza pela falta real do objeto
simbólico. O agente é o pai imaginário e a ameaça é simbólica. A privação é feita
então pelo pai, que priva a mãe do que ela não tem, o falo.
No plano da privação da mãe, o sujeito tem então a opção de aceitar ou
recusar, assumir ou não essa privação exercida pelo pai, ou seja, aceitar ou não o
Nome-do-Pai. Esse ponto é o que Lacan chama de Ponto Nodal e nele quem é
castrado não é o sujeito, mas sim a mãe. Quando a criança não ultrapassa esse
Ponto Nodal, ela mantém certa forma de identificação com o objeto da mãe. Para
essa identificação existem graus, e é precisamente ela que leva o sujeito à neurose,
psicose ou perversão. O sujeito psicótico é então aquele onde o Nome-do-Pai é
foracluído e permanece identificado ao objeto da mãe.
No ensino de Lacan, podemos encontrar dois grandes paradigmas para
abordar a clínica das psicoses: O presidente Schreber, no Seminário 3 (1956) e no
texto “De uma questão preliminar” (1958) – o paradigma de uma psicose
francamente desencadeada; e o escritor Joyce, no Seminário 23 (1975-1976b/2005)
– onde Lacan deduz nele uma estrutura psicótica, sem desencadear. Utilizaremos
da abordagem destes dois paradigmas de acordo com a diacronia apresentada por
Dafunchio (2008) para o ensino lacaniano.
Iniciaremos pelo primeiro paradigma lacaniano da psicose, o paradigma
Schreber. Dois anos depois do Seminário 3, no texto “De uma questão preliminar”,
contemporâneo ao Seminário 5, Lacan lança a luz do que seria sua doutrina a
respeito da psicose. Concebe uma primazia do simbólico sobre o imaginário, através
37
da qual vai se deter nos restos simbólicos da estrutura e como estes afetam o
imaginário. Para isso, usa o texto de Freud sobre o caso Schreber e se dedica a
matematizá-lo (DAFUNCHIO, 2008). Para este intento, cria inicialmente o esquema
R, que retrata como se constrói o campo da realidade em um sujeito neurótico.
FIGURA 6 - O esquema R
FIGURA 7 - Esquema I
Nesse esquema Lacan tem uma concepção deficitária da psicose, déficit esse
simbólico. A psicose se desencadeia quando o sujeito requer o Nome-do-Pai no
lugar do Outro, chamado este que não encontra resposta, tornando presente o furo
38
O encontro com este furo no simbólico, P0, vai abrir por sua vez um furo no
imaginário. Desta maneira o triângulo imaginário se desarma ao ser
habitado por um furo, aí se faz presente a foraclusão do falo. É então que o
7
significante fálico se faz presente para o psicótico. (DAFUNCHIO, 2008,
p.25, tradução nossa.)
7
“El encuentro com este agujero em ló simbolico, P0 , va a abrir a su vez um agujero em lo
imaginario. De esta manera El triángulo imaginario se desarma al ser habitado por um agujero, en el
que se hace presente la forclusión del falo. Es entonces que el significante fálico se demuestra
inexistente para el psicótico.”
39
Em seu chamado último ensino, Lacan nos introduz à teoria dos nós, em seus
Seminários 22 (1974-1975/s.d.) e 23 (1975-1976b/2005). No início do Seminário 23:
O Sinthoma, Lacan explica que retomou a antiga grafia da palavra symptôme –
sintoma, e diz que essa maneira marca uma data, da injeição no grego do que ele
chama de lalíngua. Relata que utilizou o brasão dos Borromeu para estabelecer a
condição de sua teoria dos nós, a de que, a partir de três anéis, se fizesse uma
cadeia tal que o rompimento de apenas um, o do meio, tornasse os outros dois livres
um do outro. Estabelece então que o pai é um sinthoma que cria o laço enigmático
do imaginário, do simbólico e do real. Designa também que o Complexo de Édipo é,
enquanto tal, um sintoma. “É na medida em que o Nome-do-Pai é também Pai do
Nome, que tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário.”
(LACAN, 1975-1976b/2005, p.23).
Segundo o autor, o nó borromeano consiste na relação que faz com que tudo
que é envolvido em um de seus círculos acabe envolvendo o outro. Sobre o caráter
fundamental da utilização do nó borromeano, Lacan destaca:
Ele tem o sentido que permite situar o sentido em algum lugar da cadeia
borromeana. [...] O nó é deduzido do fato de que essas três rodinhas de
barbante do imaginário, do real e do simbólico fazem nó. [...] basta que haja
um erro nesse nó de três para que ele se reduza à rodinha. (LACAN, 1975-
1976b/2005, p.89).
imaginário não se produz porque ele o evita por meio de uma suplência, de um
sinthoma que reparará o lapso do nó. O sinthoma é o que repara a cadeia, no caso
dela não mais existir, ou seja, se em dois pontos forem cometidos o que Lacan
chamou de erro. O lapso pode ser corrigido no ponto exato onde ele se produz ou
nos outros dois pontos que têm como consequência. A solução de Joyce para o
lapso é uma reparação sinthomática do mesmo. O que Lacan vai nos mostrar é que
Joyce se faz um Nome Próprio às custas do Nome-do-Pai, se faz um Nome Próprio
através de sua escrita, de seu desejo de ser famoso e de ser estudado pelos
universitários.
Desde o paradigma Joyce não se trata de apontar apenas a construção da
metáfora delirante como solução para a psicose, abriram-se novos caminhos. Com a
perspectiva dos nós abrem-se novos recursos e outras muitas soluções possíveis. É
nesta perspectiva que iremos também considerar a droga, como um recurso possível
encontrado pelo sujeito para fazer suplência em sua psicose. Essa perspectiva nos
permite ainda interrogar qual uso o sujeito faz da droga - um recurso para a
suplência, um elemento do desencadeamento, um modo de gozo, uma significação
entre outras.
2.3 O desencadeamento
sujeito o Nome-do-Pai, que lhe é faltante e como já dito anteriormente, “(...) dá início
a uma cascata de remanejamentos do significante, de onde provém o desastre
crescente do imaginário.” (LACAN, 1958a/1998,p. 584).
O conceito de desencadeamento que nos importa neste trabalho é aquele do
último ensino. Se a cadeia borromeana é um nó feito de buracos, os elos são vazios
e contornados por uma borda. O registro Imaginário é aquele que, articulado com os
registros Real e Simbólico, forma o nó responsável pela organização do mundo
exterior e do mundo interno do sujeito e segundo Souza (1991) sem o qual a
realidade psíquica não poderia se constituir. O Nome-do-Pai é aquele que permite
que os três registros – Simbólico, Imaginário e Real – permaneçam atados.
Assim, Lacan localiza o desencadeamento como algo que desata o nó. Se o
nó é composto pelos registros Real, Simbólico e Imaginário, amarrados e
sustentados por algo, no caso da psicose esse “algo”, antes do desencadeamento,
são as bengalas imaginárias que na ocasião do mesmo não bastam na chamada ao
Nome-do-Pai e deixam os registros soltos, à mercê do Imaginário.
Se os registros RSI precisam de algo que os amarre e não fazem essa
amarração por si mesmos, é necessário que algo a faça. É preciso uma ação
suplementar, que, no caso da psicose, não é feita pelo Nome-do-Pai, como na
neurose, mas sim por algum outro significante que sustenta o sujeito antes do
desencadeamento. A ruptura do significante que faz essa amarração é uma resposta
do sujeito frente ao gozo fálico: como é o caso do recurso à droga, que em alguns
casos pode levar o sujeito ao desencadeamento.
Soler (2007) diz que a psicose apresenta constantemente casos de
desencadeamentos repentinos, inesperados, e os chama de desencadeamentos-
surpresa. A autora afirma que para se pensar ao nível da causação da psicose é
preciso não levar em conta só o Nome-do-Pai foracluído, pois a foraclusão por si só
não é causa suficiente da psicose. Segundo a autora “é preciso uma causa adjunta
para que se desencadeie a psicose, é preciso uma causa complementar, a qual é
ocasional.” (SOLER, 2007, p.200). É essa causa ocasional que produz um apelo ao
Nome-do-Pai e torna sua falta eficiente, e esse apelo se produz pelo encontro de
Um pai real. Um com letra maiúscula, como escreve o próprio Lacan.
44
2.4 A suplência
8
Colette Soler utiliza o exemplo da metáfora delirante de Schreber, que através de sua transformação
na mulher de Deus, consegue se situar diante de sua psicose. A ver mais na página 202 do livro O
inconsciente a céu aberto da psicose.
45
9
“Aquí este sinthome con “forma de oreja” repara de modo borromeo y al mismo tiempo los dos
lapsus producidos, impidiendo que los tres registros se vayan cada uno por su lado.”
47
Soler (2007) aponta ainda que podem existir diversos tipos de solução para a
psicose. A solução que consiste em cobrir a coisa com uma ficção apensa a um
significante ideal funciona em muitos casos, mas não exige forçosamente a
inventividade delirante do sujeito. Um tipo de solução pode ser aquela que permite
ao sujeito novamente deslizar sobre o significante que fazia seu mundo sustentar-se,
e pode vir de um encontro que vem corrigir o da perda desencadeadora. De acordo
com a autora, nesta solução o sujeito não inventa, mas toma emprestado do Outro
um significante que lhe permite, pelo menos por algum tempo, cobrir com um ser de
pura conformidade o ser imundo que ele tem a certeza de ser.
A solução que a autora coloca como civilizadora da coisa pelo simbólico é
também via de sublimações criacionistas, e a mesma cita como exemplo
sublimações convocadas na psicose por nomes conhecidos como Joyce, Rousseau
e Van Gogh, e diz que elas têm uma função análoga a que é o delírio para
Schreber.10
Existem ainda outros tipos de solução que não usam o simbólico, mas
procedem de uma operação real sobre o real do gozo não aprisionado na rede da
linguagem. Assim pode ser considerada a obra, onde se deposita um gozo que é
transformado até se tornar estético, enquanto o objeto produzido impõe-se ao real.
Vimos, então, considerações a respeito da modernidade líquida e como essa
perspectiva traz um outro olhar para os estudos a respeito do enlace entre
toxicomania e da psicose. A partir da leitura da teoria lacaniana a respeito da
psicose concluímos que desde o paradigma Joyce novos caminhos podem ser
traçados no que se concerne ao seu estudo e ao lugar que o objeto droga ocupa
para os sujeitos psicóticos.
10
Ver mais na página 188 do livro O inconsciente a céu aberto na psicose de Colette Soler.
48
3 A TOXICOMANIA
11
“la condición del sujeto depende de lo que tiene lugar en el Outro”
49
Miller nos diz ainda que a afirmação lacaniana da droga como o que permite
romper o casamento do sujeito com o pequeno-pipi12 não é uma definição própria
para a toxicomania, mas uma definição a respeito da droga e seus usos. Através
disso podemos inferir que, para a psicanálise, é mais importante a relação que o
sujeito estabelece com a droga do que conceituar a toxicomania em si.
Assim, inferimos que o relevante nesse contexto é estabelecer as relações
entre o objeto droga e o sujeito, e não um esforço em construir uma definição
psicanalítica própria para a toxicomania.
Santiago (2001) afirma sobre as relações do objeto droga e seus efeitos, que
estão vinculadas às particularidades do sujeito. Segundo o autor, para a psicanálise
o sujeito faz a droga e não o contrário. O recurso à droga não é então exclusividade
do fenômeno descrito pela psiquiatria, a toxicomania. Por isso é importante frisar
que cada sujeito denominado toxicômano possui sua relação singular com o objeto
droga.
Parece-nos ainda necessária uma ressalva sobre a questão do sujeito que faz
uso de drogas, bem exemplificada por Gianesi: “Quando se fala sobre o discurso em
análise e sobre essa função atribuída ao objeto droga, relativa ao seu efeito de
prazer ou até de gozo, pressupõe-se a castração, a insígnia fálica, (...) supõe-se o
sujeito neurótico.” (GIANESI, 2005, p.128). Santiago (2001) afirma sobre essa
mesma questão, que o psicótico busca algo diverso na droga, busca a anexação do
significante.
A psicose também não entrou classicamente na psicanálise. Freud
contraindicava o tratamento psicanalítico para as psicoses, dentro das premissas
fundamentais da psicanálise, como associação livre, interpretação e outras. “É dizer
12
Expressão usada por Lacan para dizer do encontro do sujeito com o falo, que será desdobrada
mais a frente, neste mesmo capítulo.
51
Nem a psicose nem a toxicomania têm sido fáceis para a psicanálise [...].
Tanto o campo das psicoses como o campo das toxicomanias tem
requerido uma abordagem teórica e clínica que se renova constantemente e
que têm sido arduamente trabalhadas pelos psicanalistas que seguem a
Freud e Lacan. (ZAFFORE, 2005, p. 93).
Fica claro então, que para a psicanálise a toxicomania não está ligada a
nenhuma estrutura clínica especificamente, pois segundo Laurent (1994), o uso de
drogas introduz a noção de ruptura com o gozo fálico, o que é insuficiente para
definir ou conecta-la a uma estrutura clínica. “O uso da droga aponta, portanto, para
a possibilidade de uma ruptura com o gozo fálico, sem que haja necessariamente a
foraclusão do Nome-do-Pai, desvinculando, assim, a noção de toxicomania da de
estrutura clínica.” (LISITA E ROSA, 2011, p.267).
13
“ En este sentido las dependencias promueven en general el divorcio entre el sujeto y el Outro y la
elección del objeto en el lugar vacío dejado en el Otro por el naufragio histórico del ideal, según una
lógica que Jacques-Alain Miller há explicado en L’Autre qui n’existe pás.”
52
Outro aquilo que foi perdido, roubado dele. A dependência estrutural do Outro
simbólico designa exatamente a alienação do sujeito em relação ao Outro.
Já a segunda forma de dependência, a patológica, implica ao contrário da
primeira, na existência do objeto-substância. A força desse objeto se dá porque
implica um não à castração, o que o deixa demasiadamente próximo do sujeito. É
esse excesso de proximidade que exclui o Outro, e sinaliza problemas de separação
do sujeito em relação ao Outro já mencionado.
O objeto-substância promete ao sujeito uma felicidade absoluta, pois se
configura como uma substância real, que se pode encontrar no mercado, ao
contrário do objeto causa do desejo, que não se pode encontrar senão como forma
de resto da Coisa que incita o desejo. Por isso a dependência patológica não tem a
ver com o amor pelo Outro, mas sim com o ódio mortal desse Outro, pois o amor
requer a perda do objeto para que se possa buscá-lo no Outro. O objeto que
escraviza o toxicômano é “(...) um objeto mais Coisa que objeto.” (RECALCATI,
2003, p.153, tradução nossa)14. A substância faz com que o objeto perdido esteja
sempre presente, mesmo quando ausente. “Na verdade, enquanto o símbolo se
baseia na ausência da Coisa, no assassinato da Coisa, a dependência da presença
e do consumo infinito do objeto mata o símbolo.” (RECALCATI, 2003, p.154,
tradução nossa).15
A análise dos casos clínicos nos permitirá abordar as diversas funções
exercidas pelo objeto droga na psicose, casos esses que serão apresentados no
próximo capítulo.
14
“Es un objeto más Cosa que objeto”.
15
“En efecto, mientras el símbolo se funda sobre la ausencia da la Cosa (Bion), en el asesinato de la
Cosa (Lacan), la dependencia de la presencia y del consumo infinito del objeto mata al símbolo”
53
16
“Esta posicíon de antiamor del sujeto da cuenta de uma práctica pulsional – como lê del
toxicômano – que se consuma como empuje del sujeto por alcanzar um goce puro, no mellado por las
leyes del significante, um goce absoluto, um goce del ser.”
54
Assim, há primeiro o gozo do Outro antes da Lei, depois a Lei que o interdita
e enfim o gozo fálico depois da Lei, resultado da cifragem do gozo corporal pelo
significante. Então, a linguagem incide sobre o corpo, implicando em um vazio, e
essa “dupla operação”, diz Espinha (2004) “é a produção de ‘um furo’17 nesse real”.
17
Em “O nó do trauma, da linguagem e do sexo” Sandra Espinha se refere ao vazio deixado no real
do corpo pelo significante como sendo “um vazio”, que tem a consistência de um Um.
55
que tenta controlar sua dependência da substância – essa mesma divisão em uma
forma menos subjetivada.
Segundo Recalcati (2003), em concordância com Lacan, o Outro extrai algo
do sujeito ao mesmo tempo em que lhe doa algo. Rouba o gozo e lhe doa um duplo
consolo, o consolo do símbolo na condição de eliminar a Coisa do Gozo pela ação
do Outro18, e o consolo do desejo, que só existe devido à falta, ao vazio.
Nas patologias da dependência falham tanto o consolo do símbolo como o do
desejo. No lugar da metáfora simbólica se apresenta a Coisa como tal, e no lugar da
metonímia do desejo se impõe o gozo sempre igual, da mesma Coisa. “Ao se
rebelar perante o roubo do Outro o sujeito não pode se valer sequer da doação
desse Outro: o símbolo é assassinado pela Coisa, e o desejo é inundado pelo gozo.”
(RECALCATI, 2003, p.151, tradução nossa) 19. Por isso no objeto droga sobrevive a
Coisa, e o sujeito tenta preservá-la como propriedade sua. A droga seria, segundo o
autor, um nome da Coisa e não do objeto perdido.
A causa da dependência é então a transformação da mesma na ‘Coisa objeto
de desejo’, que inundado pelo gozo, posiciona o sujeito no círculo vicioso de desejar
a Coisa/droga para alcançar tal gozo.
No que diz respeito às teorizações acerca da toxicomania no ensino
Lacaniano, Hugo Freda (1997/2005) em intervenção feita no Seminário de Miller O
Outro que não existe e seus comitês de ética, aponta que existem exatamente seis
referências à toxicomania. Aponta que ainda que essas referências não constituam
uma teoria, oferecem certa concepção do fenômeno que deverá ser extraída pelos
psicanalistas com o objetivo de orientar sua prática.
É preciso constatar também que Lacan nunca fala do toxicômano, mas sim
de intoxicação, de toxicomania, de droga, de haxixe, de experiência vivida
por alucinógenos. Deve postular-se, pois, que o toxicômano se encontra no
interior desses termos, que há que construí-lo, inventa-lo, deixa-lo apto à
20
psicanálise, o que implica de alguma maneira abrir-lhe nossa prática.
(FREDA, 1997/2005, p. 304, tradução nossa).
18
“Cosa del goce por obra del Outro” expressão utilizada por Recalcati na página 151.
19
“Al rebelarse ante el robo del Outro el sujeto no puede valerse siquiera de la donación del Outro: el
simbolo es asesinado por la Cosa, el deseo es inundado por el goce.”
20
“Es preciso constatar además que Lacan nunca habla del toxicômano, pero si de intoxicación, de
toxicomanía, de droga, de hachís, de experiencia vivida por alucinógenos. Debe postularse, pues,
que el toxicômano se encuentra en el interior de estos términos, que hay que construirlo, inventarlo,
volverlo apto al psicoanálisis, ló que implica de alguna manera abrirle nuestra práctica.”
56
21
Samadhi é para o budismo o estado de controle completo das funções da consciência.
57
22
“La función y el nuevo estatuto de estas sustâncias hacen que se haya modificado la noción de
toxicomania: el carácter policial original se transforma en orientación epistemosomática y redefine la
noción de la droga como producto de la ciência.”
23
“Aunque el tono de broma se hace sentir, se produce, sin embargo, um vaciado del sentido: la
droga no es una fuente de saber.”
24
“De allí la fórmula: todo lo que permite escapar a este matrimonio es evidentemente bienvenido, ló
que explica, por ejemplo, el éxito de la droga.”
58
De acordo com Naparstek (2008) se o sujeito está casado com seu órgão em
detrimento do Outro sexo, ele faz a fuga do gozo fálico, e pode encontrar dois
caminhos para sair dessa posição: pela via do significante no campo fálico – o que
possibilitaria uma análise – ou pelo caminho do real, como tentativa de se enfrentar
com a pulsão, subtrair-se do órgão quando ele se apresenta como insuportável,
traumático.
A droga tem seu lugar em alguns casos aí, quando o sujeito toxicômano
rejeita o gozo fálico, que é castrado e repleto de falta, para em seu lugar colocar a
droga, que supostamente o aliviaria dessa falta. Lacan (1976a) explica essa
afirmação dizendo que tudo que permite escapar desse casamento é evidentemente
bem vindo, pois ele causa uma angústia, daí a droga como aquela que rompe com o
casamento do sujeito com o falo. Por este motivo o recurso à droga torna tão difícil o
diagnóstico diferencial da toxicomania para a psicanálise, pois esse recurso camufla
a relação do sujeito com o falo.
A droga seria um tipo de resposta a um momento lógico do sujeito, o
momento da castração, da angústia. Ao invés de haver o caminho da formação do
sintoma que faria um laço simbólico - como uma fobia no caso de Hans – o sujeito
faz, como diz Grossi (2000), o curto-circuito – que é o caminho mais rápido - da
droga.
Essa elaboração nos leva diretamente à problematização lacaniana da droga,
pois se a droga é o que permite romper o casamento com o “pequeno-pipi”, é então
o que promove um rompimento do sujeito com o gozo fálico. Ainda que a afirmação
lacaniana seja levada em conta como um norte no estudo das toxicomanias, Miller
(1995) atenta que ela não serve como definição para a toxicomania, mas sim para
definir a droga em seu uso.
É importante ressaltar que o recurso à droga tanto na neurose quanto na
psicose se refere à posição do sujeito com relação ao Outro e ao gozo, mas a
função do objeto droga se difere nas duas estruturas, pois o gozo extraído do objeto
não é o mesmo. Na neurose a droga pode promover uma ruptura com o gozo fálico,
sem que haja a foraclusão do Nome-do-Pai, permitindo ao sujeito experimentar um
novo tipo de gozo, um gozo cínico que rechaça o Outro, que recusa que o próprio
gozo do corpo seja metaforizado. É uma forma de desviar o desejo do Outro, da
castração do Outro, através de um curto-circuito (MILLER,1995). Na psicose a droga
não promove essa ruptura com o gozo fálico, na medida que ela é dada de antemão,
60
pois já existe a foraclusão. É fundamental ressaltar que a direção dada por Lacan a
respeita da ruptura do casamento do sujeito com o pequeno-pipi não permite
abordar o uso da droga na psicose.
Existe então uma diferença entre o uso da droga na neurose e na psicose.
Acerca desta discussão, Laurent (1991) em seu texto Estabilizaciones en las
psicosis, questiona a definição de Lacan de que a droga seria aquilo que permite
romper o matrimônio do sujeito com o falo, para apontar seu uso na psicose, porque
não seria possível localizar a droga como ruptura, uma vez que esta já está dada
estruturalmente. Isto permite pensar que o gozo do psicótico com a droga se faz de
maneira diferente do neurótico. A droga, na psicose, parece exercer uma função
bem específica, a de tratar o gozo sem significação que invade o sujeito.
Santiago (1992), no livro O homem embriagado, ao falar do valor
identificatório do significante na toxicomania, diz que esse significante pode tornar-
se para certos sujeitos, objeto de uma escolha. Ser toxicômano seria um recurso em
face do impasse de uma neurose ou mesmo de uma psicose. Segundo o autor, “o
traço clínico marcante do fenômeno toxicomaníaco traduz-se na tentativa do sujeito
em obter a produção, mais ou menos regulada, de sua separação dos efeitos da
alienação significante.” (SANTIAGO, 1992, p.8).
O real do corpo se situa em torno do gozo fálico. Os toxicômanos esbarram
com o casamento que todo sujeito deve contrair, do gozo fálico com o seu corpo.
Segundo Santiago (1992), o recurso imperioso à droga é apenas um pretexto para
fazer prevalecer a vontade de infidelidade do toxicômano em face dessa
acomodação do gozo fálico, que o incomoda. Como já explicitado, essa
acomodação se dá na verdadeira toxicomania, aquela encontrada na neurose. Na
psicose isto não é pertinente. O sujeito psicótico pode se valer da droga para vários
usos.
Se a tese da ruptura com o gozo fálico não autoriza abordar o uso da droga
na psicose, a teoria dos nós o permite, e explora o uso que este sujeito faz do
objeto. É com o objetivo de ilustrar alguns desses usos que apresentaremos no
capítulo seguinte uma discussão através do modelo borromeano, de casos clínicos
de psicóticos e os usos que cada um faz do objeto droga.
61
Nos casos de psicóticos que consomem, essa ruptura com o Outro não se
verifica. Não se verifica que a droga venha a romper com o falo, a romper
com o Outro, senão o contrário. São encontrados casos onde os psicóticos
consomem, mas mais como um modo de enlaçar-se ao Outro e não de
romper com o Outro. Por excelência, na psicose se vê que não há inscrição
do falo, não há falha senão a ausência da inscrição fálica, a consequência
da ausência do significante do Nome-do-Pai. Na psicose há uma ruptura
26
radical com o falo. (ZAFFORE, 2008, p. 96, tradução nossa)
25
“Un psicótico que se drogue no va a ser para nada ló mismo que un neurótico – aunque consuman
incluso la misma sustancia y las mismas cantidades.”
26
“ En los casos de psicóticos que consumen, esta ruptura con el Otro no se verifica. No se verifica
que la droga venga a romper con el falo, a romper con el Otro, sino ló contrario. Él há encontrado
casos donde lós psicóticos consumen, pero, más bien, como un modo de enlazarse al Otro y no de
romper con el Otro. Por excelencia, na las psicosis se ve que no hay inscripción del falo, no hay falla
sino ausencia de inscripción fálica, a consecuencia de la ausencia del significante del Nombre del
Padre. En las psicosis hay uma ruptura radical con el falo.”
62
27
“La adicción para un psicótico podría ser perfectamente una respuesta, un modo de nombrarse, un
modo de otorgarse un ser(...) Ser adicto puede ser perfectamente un modo de metaforizar el goce.”
63
28
“La gradual pero firme incorporación del nudo en la última parte de su enseñanza encuentra en ello,
nos parece, su razón más relevante.
64
Freud foi o responsável por decantar a clínica e transmitir o caso através dela.
O caso clínico não se limita ao paciente, mas refere-se ao encontro que a clínica
promove.
Os casos clínicos podem estar presentes em uma pesquisa como exemplo ou
problema. São escolhidos pelo autor de uma pesquisa como método e sua aceitação
é justificada além da exemplificação quando assumem um conjunto suficiente do
que Vorcaro apud Kuhn (2010) chama de “exemplos tipo” que podem modelar sobre
eles sua pesquisa ulterior, sem precisar haver acordo sobre o conjunto das
características que fazem deles exemplos tipo.
As monografias clínicas de Freud constituem por si só um método científico e
essa afirmação é explicitada por Allouch (1995) por meio de três justificativas: O
caso histórico delimita um campo cujo método não cessa de se significar na
abordagem do caso; O caso provoca uma transmissão feita do exercício subjetivo
que o ato de relatar o caso faz valer, o método é o relato do caso; O caso aparta o
saber adquirido de casos precedentes, inscrevendo o que há de traço propriamente
metódico, o saber adquirido, em vez de ser aplicado, deve ser recusado. Esta última
nos leva diretamente à especificidade de cada caso clínico, do mesmo modo como
utilizaremos o caso clínico para indicar a especificidade do papel da droga na
história clínica de cada sujeito.
Se a maior preocupação no estudo de caso é a objetividade e a empiria, no
caso da pesquisa psicanalítica essa preocupação deve ser relativizada, afinal Lacan
(1960-1961/1992) no Seminário 8 nos diz que o objeto da psicanálise não é
66
objativável, mas objetalizável, é insólito e, como tal, traz a marca de um lugar vazio
que faz existir o sujeito. Podemos encontrar a continuação do pensamento de Lacan
acerca da distinção entre objetividade e objetalidade no Seminário 10 (1962-
1963/2005). É devido a essa distinção que a empiria do estudo de caso em
psicanálise não deve ser usada somente para confirmar ou refutar a teoria, mas para
fazê-la evoluir. Para Castro (2010), é nessa conexão que o psicanalista pesquisador
pode fazer do estudo de caso algo além de uma metodologia usual de pesquisa.
“Para problematizar o lugar do caso clínico na pesquisa em psicanálise, é
preciso considerar que a importância do caso clínico é a de permitir recolher nele,
inicialmente, a função da literalidade do escrito.” (VORCARO, 2010, p.14). A
utilização do caso clínico em uma pesquisa produz interrogações não só relativas à
operacionalidade da psicanálise para o tema escolhido, mas também para o sujeito
ao qual a clínica se dirige.
O que faz do caso clínico um método de problematização dentro da
psicanálise é a função de transbordar o saber adquirido com os ensinamentos do
caso, tornando-o capaz de ultrapassar o que já foi explicitado pela teoria
psicanalítica.
A escrita do caso deve então ser feita após o término da análise do sujeito,
pelo risco da busca de reconhecimento científico funcionar para o analista como
uma resistência à cura. A função da escrita na clínica psicanalítica é interrogar o que
ela tem de imaginário e de aleatório com o objetivo de transmitir o singular do sujeito
e do ato psicanalítico.
Castro (2010) aponta que essa recomendação freudiana indica a existência
de uma tensão entre a condução do tratamento e a pesquisa científica. O tratamento
psicanalítico é praticado a partir do método da associação livre, o mais
desprendidamente possível das resistências do eu. Já o estudo de caso é marcado
pela escrita e se enquadra na maior parte das vezes no discurso científico-
universitário.
O caso clínico cobra da psicanálise duas funções caras, a função da
literalidade do escrito e a função de exponenciar o saber adquirido com os
ensinamentos do caso, tornando-o um problematizador da carga imaginária presente
na generalização teórica da doutrina psicanalítica (VORCARO, 2010). Se tal função
é cara à psicanálise, ela se justifica, pois só na literalidade da narrativa escrita do
caso podemos reconhecer o que há de singular na clínica. O método clínico torna-se
tributário da consideração de cada caso como constituindo um método próprio de
inscrição do sujeito no laço social.
A utilização do caso clínico para o psicanalista pesquisador se desdobra na
possibilidade de ir além da corroboração em direção à investigação. Se é no estilo
da escrita que o psicanalista pesquisador tem chance de dar cor ao caso clínico
(CASTRO, 2010), é no estilo da escrita lacaniana dos nós que daremos nossa cor
aos casos relatados na literatura.
68
momento Ricardo se diz curado por um “milagre”. Nas suas significações, na luta
entre o bem e o mal, o bem triunfa na figura de um Deus que o curou: “(...) Deus
entrou na minha barriga e atingiu minha consciência, me curou.” (MACHADO, 2000).
A partir da metáfora delirante o paciente consegue uma estabilização pela via
do significante, faz uma espécie de remendo na malha significante onde havia um
furo, produzido pelo desencadeamento, quando alcança uma estabilização entre o
significante “a arte de amar”, que o desestabilizou, e o significado do “Deus que
cura”, do delírio. A metáfora delirante funciona para esse sujeito como algo que
amarra novamente o registro Imaginário aos outros dois, o Simbólico e o Real.
supondo ter algum tipo de aparato eletrônico instalado em sua cabeça.29” (Bousoño,
2009, p.79, tradução nossa).
Relata o autor que durante muito tempo Miguel dependia dos movimentos de
D., achando que poderia retornar ao convívio familiar. Como D. lhe cobrava
constantemente a pensão de seus filhos, as preocupações por sua situação
econômica e por sua realização pessoal foram ganhando protagonismo, no lugar da
busca por uma resposta. Assim inicia sua estabilização, começa a delimitar a
questão do tratamento, que se converte em um lugar onde deposita e dialetiza o que
constrói. Verifica sua potência sexual em outras relações e reduz a dimensão desse
dano a uma ameaça com a qual agora consegue conviver e não o assusta como
antes.
A princípio, seu consumo de álcool é regular e frequente, ainda que moderado
e consome cocaína esporadicamente. Esses consumos constituem uma parte
importante de seus conflitos com as mulheres que o cercam, sua mãe, sua ex-
mulher e sua atual parceira. Em certa ocasião retoma descontroladamente o
consumo de álcool e cocaína, retornando ao “verdadeiro descontrole”. Aceita com
dificuldade o retorno do uso da medicação quando verifica que ela não mais provoca
o mesmo efeito de antes.
Recorda que inicia o uso de drogas na adolescência, logo quando uma
namorada termina com ele por outro homem que consumia substâncias tóxicas. Em
uma tentativa de recuperar sua masculinidade, recorre às drogas para tentar
responder virilmente ao rompimento. A droga neste primeiro momento funciona para
o sujeito como uma tentativa de substituição do acesso ao gozo fálico que não podia
ter, dada a foraclusão do Nome-do-Pai, fornecendo a ele uma identificação viril.
“Durante os anos que se seguem à sua separação, o consumo de tóxicos de
Miguel passou por diferentes etapas com relação à intensidade, mas a função que
ele dá a esse consumo mantém uma regularidade.”30 (BOUSOÑO, 2009, p.81,
tradução nossa). Utiliza a droga em saídas com os amigos, que diz escolher para
seu deleite, e elas têm para ele uma função social, ou de deixá-lo mais desperto no
29
“Esta inquietud lo llevó a ponerse a estudiar computación para tratar de entender cómo le
transmitían la información, suponiendo que tenia algum tipo de aparato eletrónico instalado en su
cabeza.”
30
“Durante lós años que siguen a su separación, el consumo de tóxicos de Miguel pasó por diferentes
etapas en relación a la intensidad, pero la función que el da a ese consumo mantiene uma
regularidad.”
78
trabalho. Verbaliza que sem o consumo não encontra sequer um pouco de prazer
que sente merecer, e necessita dele para não se sentir abatido.
Miguel dá uma função social ao consumo das drogas e encontra nelas uma
estabilização precária de sua psicose. O uso de drogas parece cessar o delírio, onde
não conseguiu uma metaforização. Se o trabalho do delírio, a metáfora delirante não
lhe foi viável, utiliza-se do objeto droga para fazer uma amarração, ainda que
precária, de seus registros e enlaçá-los novamente.
31
“Esta estrella era comandada por un Organismo especial llamado ‘el Heptágono’ a través del cual
se informaban de todos sus movimientos.”
32
“lo que conduce al oficial a reproducir – sin saberlo- las voces que lo atormentaban, acusándolo de
drogadicto y recordándole que ‘hay policía civil que te vigila!’. Es este el momento de su segunda
internación, que gira en tomo a una idea: ‘el sello del pasaporte’.”
86
33
“Podemos reconocer allí un automatismo mental, donde la significación está planteada y
confirmada en el Otro, trampa de la homofonia mediante, aquello de ló que viene escapando
reaparece en los signos del lenguaje: él sabe que no es Stalin, pero su certeza sostiene que son los
otros los que pueden tomarlo como tal.
34
‘Antifetaminas no son la causa de mi enfermar, ya antes escuché las vocês, iba em colectivo. Fue
la primera vez que las escuché y me desmayé’. Podemos confirmar las antifetaminas como una forma
de respuesta al episodio alucinatório. Una solución al proceso de su enfermedad.
87
5 CONCLUSÃO
bem localizado no caso clínico escrito, mas da mesma maneira de Miguel, podemos
supô-lo em vista de seu diagnóstico de psicose. Após a aparição dos fenômenos
elementares característicos da psicose, a droga entra como uma tentativa de
estabilização.
Em uma articulação com o saber faltoso do pai, indica uma tentativa do
sujeito de suprir o Nome-do-Pai e amarrar novamente os registros. Tentativa essa
que fracassa e é substituída pelo simbólico do desenho, que no trabalho com a
psicanalista que o atende faz a suplência do Nome-do-Pai foracluído, estabelecendo
um limite para o seu gozo.
No quinto e último caso abordado nesta dissertação, mostramos Pr, um
quadro de psicose relacionado ao uso de drogas. Nesse caso, o uso de drogas
associado ao álcool possibilita ao sujeito a entrada no laço social, proporcionando
uma espécie de estabilização. O encontro com a dificuldade de se adaptar ao idioma
é o que faz ao sujeito não conseguir responder ao Nome-do-Pai faltoso e assim
produz um lapso em seu nó. Em seguida surgem os episódios alucinatório, e Pr
utiliza-se das drogas como uma espécie de resposta a esses fenômenos.
O uso do objeto proporciona uma espécie de estabilização que amarra os
registros real e imaginário, ainda que de maneira frouxa. Quando os episódios
alucinatórios cessam, acontece o surgimento do delírio e o início de sua significação
como “homem eleito”. A passagem ao ato vem então, como um intento de
estabilização efêmero, fazendo a tentativa de amarração do real e do imaginário,
juntamente com a droga e o álcool. A partir do desenvolvimento do delírio, dá-se a
metáfora delirante e o sujeito encontra a significação para o significante de “homem
eleito”, que lhe permite estabelecer um diálogo com as vozes delirantes e se
tranquilizar.
Ao fim desse estudo pudemos confirmar a hipótese de que o objeto droga tem
funções diferentes para o sujeito psicótico, funções essas que se revelam na
maneira como ele lida com o gozo sem limites, fora da significação fálica. Vimos
através do estudo borromeano dos casos diversos exemplos dessas funções.
Mas as questões suscitadas ao longo da construção deste trabalho não
acabam aqui. Não se pode ignorar que o uso da droga e suas diversas funções na
psicose trazem consigo consequências não menos devastadoras para o sujeito. Que
consequências são essas? Se a droga pode funcionar como um sinthoma, como
aquilo que faz novamente a amarração dos registros soltos do sujeito psicótico, isso
95
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