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Grupo 3 - Treinamento dos curandeiros populares

Em geral, os curandeiros populares possuem pouco treinamento formal em


relação às faculdades de medicina ocidentais. As habilidades geralmente são
adquiridas pelo aprendizado com um curandeiro mais velho, pela experiência
com certas técnicas ou condições, ou pela possessão de um poder de cura inato
ou adquirido. As pessoas podem tornar-se curandeiros populares de diversos
modos:

1. Herança – ter nascido em uma “família de curandeiros”, algumas vezes de


muitas gerações.

2. Posição dentro da família, como o “sétimo filho de um sétimo filho” na Irlanda.

3. Sinais e presságios no nascimento, como uma marca de nascença ou “chorar


no útero” ou ter nascido com a membrana amniótica envolvendo o rosto (o “caul”
na Escócia).

4. Revelação – a descoberta de que alguém “tem o dom”, o que pode ocorrer


como uma experiência emocional intensa durante uma doença, um sonho ou um
transe. Em casos extremos, como Lewis destaca, a vocação pode ser anunciada
por “um estado inicialmente descontrolado de possessão: uma experiência
traumática associada a um comportamento de êxtase ou de histeria”.

5. Aprendizado com outro curandeiro – um padrão comum em todas as partes


do mundo, embora o processo possa durar muitos anos.

6. Aquisição de uma habilidade específica sem auxílio de outros, como o sahi do


Iêmen, os médicos do mato (bush doctors) quenianos e outros tipos de
injecionistas. Os aspirantes a curandeiros populares modernos podem hoje
adquirir seus conhecimentos de cura em livros, cursos por correspondência ou
mesmo internet.

Na prática, essas formas de cura popular tendem a se sobrepor; por exemplo,


alguém nascido em uma “família de curandeiros” e com certos sinais e
presságios ao nascimento ainda pode precisar refinar seu “dom” por meio de um
longo aprendizado com um curandeiro mais velho. Em alguns casos, os
curandeiros também podem ser qualificados como enfermeiros ou outros
profissionais de saúde. Um estudo estimou, por exemplo, que na África do Sul
quase 1% dos enfermeiros africanos também trabalha em meio turno como
curandeiro tradicional. Embora a maioria dos curandeiros populares trabalhe
individualmente, existem redes informais ou associações de curandeiros, que
propiciam a troca de técnicas e informações e a monitoração do comportamento
de cada indivíduo. Uma dessas redes entre os adivinhos zulus ou isangomas é
descrita por Ngubane. Eles se reúnem regularmente para compartilhar ideias,
experiências e técnicas; cada adivinho tem a oportunidade de encontrar ex-
alunos, professores e aprendizes entre os adivinhos da vizinhança, bem como
entre aqueles que atuam em locais mais distantes. Estima-se que, em um
período de três a cinco anos, um adivinho pode fazer contato com mais de 400
colegas adivinhos em todo o sul da África (embora, recentemente, como
mencionado adiante, eles tenham começado a formar suas próprias
organizações profissionais, estando sujeitos a movimentos do governo para
licenciá-los e regulamentá-los). Em outras situações, como os bairros negros de
baixa renda nos Estados Unidos, diversos curandeiros podem ser ministros de
uma igreja espiritualista, que também atua como uma associação de
curandeiros. Nos círculos de cura suburbanos descritos por McGuire, quase
todos os participantes têm a chance de ser curandeiros e pacientes em várias
ocasiões; assim, esses grupos sobrepõem o limite entre a cura popular e informal
e fornecem um meio para a troca de informações e experiências entre um grupo
de curandeiros.

Porém, apesar de suas muitas vantagens, é importante não ter uma visão
romântica demais sobre os curandeiros populares em geral. Como todos os
outros prestadores de cuidados de saúde, inclusive médicos e enfermeiros,
existem aqueles que são incompetentes, ignorantes, arrogantes ou gananciosos,
ou que possuem uma visão muito reducionista da má saúde e de como ela deve
ser tratada. E mais, nem todos os curandeiros populares provêm da comunidade
em que trabalham nem todos estão familiarizados com seu funcionamento social
interno. Algumas das técnicas que eles usam também podem ser muito
perigosas para seus pacientes. O uso de agulhas não-esterilizadas pelos
injecionistas, por exemplo, pode levar a abscessos cutâneos graves, bem como
à disseminação da hepatite B ou da síndrome da imunodeficiência adquirida
(AIDS). Alguns de seus remédios à base de ervas foram relatados como
causadores de doenças graves ou mesmo morte. Assim, é importante considerar
os curandeiros populares de modo equilibrado e evitar tanto a idealização quanto
a crítica excessiva. Por um lado, deve-se evitar o que Lucas e Barrett denominam
visão arcádica – ver esses curandeiros e as comunidades onde atuam como de
alguma forma “naturais” e holísticos, vivendo em harmonia pacífica com a
natureza e uns com os outros. Todavia, por outro lado, considerá-los “bárbaros”
– vê-los e a suas comunidades como de algum modo primitivos, degenerados,
incompetentes e subdesenvolvidos – também é impreciso. Na maioria dos casos
de cura popular, a verdade situa-se em algum ponto entre os dois extremos.

“Profissionalização” dos curandeiros populares

A relação entre os setores popular e profissional geralmente tem sido marcada


por sentimentos mútuos de desconfiança e suspeita. A maioria dos médicos
tende a ver, nos curandeiros populares, trapaceiros, charlatães, feiticeiros ou
farsantes, que representam um perigo para a saúde dos seus pacientes. Cada
vez mais (e muitas vezes com relutância), porém, as autoridades médicas têm
reconhecido que, apesar de seus problemas inerentes, os curandeiros populares
possuem algumas vantagens óbvias para o paciente e sua família, sobretudo ao
lidar com problemas psicológicos. Em muitos países em desenvolvimento, os
curandeiros populares tradicionais estão sendo incorporados marginalmente ao
sistema médico – algumas vezes contra sua vontade. A iniciativa nesse sentido
geralmente parte da Organização Mundial de Saúde (OMS) ou de governos
nacionais, ou algumas vezes dos próprios curandeiros. Em 1978, a OMS emitiu
sua famosa declaração de Alma-Ata de “Saúde para todos no ano 2000”. Sua
principal proposta era a provisão mundial de cuidados primários abrangentes de
saúde, que forneceriam serviços preventivos, curativos e de reabilitação a um
custo razoável. Porém, com recursos financeiros escassos, populações
crescentes e recursos médicos limitados, a tarefa era quase impossível e
recentemente tornou-se ainda mais difícil em função de novas doenças como a
AIDS. Um resultado disso foi um olhar novo para a medicina tradicional,
redefinindo-a como um aliado potencial do sistema médico, e não como um
inimigo.

Em 1978, a OMS recomendou que a medicina tradicional fosse promovida,


desenvolvida e integrada sempre que possível com a medicina científica
moderna, mas destacou a necessidade de assegurar respeito, reconhecimento
e colaboração entre os praticantes dos vários sistemas envolvidos. Os recursos
humanos que a OMS esperava recrutar incluíam herbalistas, praticantes de
medicina aiurvédica, unani ou ioga, curandeiros tradicionais chineses como os
acupunturistas e vários outros. Atenção especial foi dedicada à seleção e ao
treinamento das parteiras tradicionais que já fazem o parto de cerca de dois
terços dos bebês no mundo (ver Capítulo 6). Last destaca que agora, como
resultado dessas duas declarações, “a profissionalização potencial dos
praticantes tradicionais firmou-se na pauta de ações”. O autor observa que houve
um crescimento rápido no número de organizações de praticantes,
especialmente na África. Algumas organizações (como os isangomas zulus)
operam principalmente como redes informais, enquanto outras atuam como
grupos de pressão ou igrejas, ou cultos que oferecem cura. Já diversas
organizações, como a Zimbabwe National Tradicional Healers’ Association,
foram reconhecidas pelo governo como corporações profissionais propriamente
ditas, com poderes exclusivos para educar, avaliar, licenciar e disciplinar seus
membros. Na África do Sul, a lei governamental Tradicional Health Practitioners
Bill de 2004 criou um Conselho para supervisionar o licenciamento e a
regulamentação dos cerca de 200.000 curandeiros tradicionais africanos no país
– que são consultados por cerca de 70% da população – com o objetivo de
assegurar “a eficácia, a segurança e a qualidade dos serviços tradicionais de
cuidados de saúde”. Para muitos curandeiros populares, o processo de formar
uma “profissão” (ver adiante) frequentemente também tem sido uma resposta à
competição desigual do sistema médico. Ao criar uma associação profissional,
eles esperam obter avanços em seus interesses e nos de seus clientes, melhorar
os padrões, elevar seu prestígio, ganhar poder e apoio oficial e definir uma área
de cuidados de saúde que somente eles podem fornecer. Todavia, isso
freqüentemente é problemático. Por um lado, há evidências de que, em muitos
países em desenvolvimento, o número real de curandeiros tradicionais está
declinando, em parte devido à educação, à urbanização e à ruptura das
comunidades. Além disso, como Last salienta, os curandeiros tradicionais (em
especial do tipo sagrado) são um grupo demasiado disperso e seu conhecimento
e prática estão muito enraizados nos contextos locais para serem padronizados
efetivamente. Eles também têm noções específicas de legitimidade, que derivam
principalmente das tradições de sua comunidade e seu próprio carisma, e não
de alguma burocracia governamental distante. Para muitos de seus clientes, “a
legalidade de uma prática é menos importante do que o padrão moral do
praticante ou sua confiabilidade”. Até certo ponto, essa profissionalização dos
curandeiros tradicionais é paralela a um processo semelhante que está
ocorrendo entre os curandeiros alternativos e complementares nas sociedades
ocidentais (ver adiante). No leste da Europa, desde o século XVIII, os feldshers
russos também percorreram um longo caminho, de curandeiros populares locais
(frequentemente ex-médicos do exército) para seu status mais recente como
auxiliares de médicos que muitas vezes trabalham no cuidado primário ou em
obstetrícia, sobretudo em áreas rurais. Em contraste, seus equivalentes em
outros países do leste europeu, como os cyruliks da Polônia, em grande parte
desapareceram. Velimirovic vê a iniciativa da OMS quanto à medicina tradicional
como bem-intencionada porém mal-orientada. Ele argumenta que sua
integração no setor formal (profissional) dos cuidados de saúde desde 1978 “não
contribuiu virtualmente em nada para resolver os monumentais problemas de
saúde do mundo em desenvolvimento” ou para atingir a meta de “Saúde para
todos até o ano 2000”. Isso se deve em parte ao fato de, na proposta da OMS,
a definição de medicina tradicional nunca ter sido clara ou consistente. Nem sua
presunção acrítica da eficácia da medicina tradicional foi justificada, pois ignorou
suas muitas falhas e problemas, como sua incapacidade de curar malária, cólera,
febre amarela e outras doenças.

Em muitos casos, os pontos de vista dos curandeiros tradicionais acerca da


doença e seus tratamentos eram tão prejudiciais para a saúde que eles próprios
eram parte do problema. E mais, em muitos países em desenvolvimento, a
medicina tradicional “frequentemente não é tão benquista entre as pessoas
quanto os planejadores de saúde acreditam”. Com a possibilidade de escolha,
muitas pessoas preferem consultar médicos de estilo ocidental, e não os
curandeiros tradicionais ou trabalhadores de saúde não treinados da
comunidade – mesmo que isso envolva muitas despesas e longas viagens.

Apesar desse ponto de vista, é importante enfatizar que há exemplos de


colaboração bem-sucedida entre os curandeiros tradicionais e o sistema médico
oficial, especialmente quanto à prevenção da AIDS, às parteiras tradicionais, ao
planejamento familiar, à promoção da terapia de reidratação oral, ao tratamento
da doença mental e ao tratamento e reabilitação dos drogaditos.

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