Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
Tendo em vista a natureza do evento lingüístico de que fez parte a explanação deste
trabalho, Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (ECLAE), propusemo-
nos refletir sobre nosso objeto de estudo, a antonímia, de uma forma mais prática que
teórica, observando algumas possibilidades de exploração desse fenômeno léxico-semântico
em sala de aula.
Como nosso propósito é mostrar que o fenômeno em tela pode ser tratado de maneira
dinâmica e criativa, observaremos que pode ser abordado sob os mais diversos aspectos,
sobretudo como recurso literário, estratégia argumentativa, estratégia referencial com base
em inferência e como simples relação de incompatibilidade de sentidos. Pretendemos,
assim, mostrar o largo quadro de possibilidades de abordagem da antonímia, limitando-nos,
contudo, às postulações teóricas da semântica formal, cuja base buscaremos na proposta de
Lyons (1977).
Embora partilhemos da idéia de que a língua é dinâmica, concreta e socialmente afetada
pelos falantes, deixaremos de abordar, neste trabalho, aspetos de uma semântica mais
pragmática, que poderiam oferecer uma visão mais totalizadora do fenômeno em estudo, se
levassem em conta as condições de produção, a intenção do falante e o processo de
decodificação, tal como nos orientam os trabalhos de Austin (1990) e Searle (1969). A
razão de tal ausência, neste trabalho, está no fato de que, sendo uma breve discussão sobre a
abordagem da antonímia em sala de aula, a semântica formal, por seu rigor, através da
análise componencial e das relações lógicas de (e entre) enunciados, consegue elaborar um
estudo entre palavras e sentenças que proporciona uma idéia mais didática do que vem a ser
esse tipo de relação semântica de oposição de sentidos, que é indistintamente chamado de
antonímia.
apenas pela instrução dos pais, mas que deve constituir um aspecto intrínseco da atividade
mental humana. Também ressaltaram estudos feios em relação ao uso da linguagem pelos
adultos, cujos resultados demonstraram o papel implícito da oposicionalidade. Alguns
trabalhos citados foram os de Osgood (1952); Brewer e Lichtenstein (1974); Hampton e
Taylor (1985); Westcott (1981); Lamiell (1987).
Os autores Rychalak et al (1989) também confirmaram a hipótese de que a
oposicionalidade desempenha um papel importante na cognição. Através de quatro
experimentos realizados, concluíram que os indivíduos: a) reconhecem padrões de oposição
em significados de palavras e de sentenças; b) são propensos a usar a estratégia de
oposicionalidade na solução de um problema; c) conseguem aumentar, através da prática,
sua habilidade em transformar significados de sentenças oposicionalmente; d) podem
reconhecer os significados oposicionais de uma sentença tão rápida e acuradamente quanto
podem detectar as possíveis paráfrases dessa sentença. Segundo eles, isso não prova a
existência de uma oposicionalidade implícita no processo cognitivo humano, mas assegura
que ela está inerentemente ligada à cognição.
Provar ou não a ligação da oposicionalidade à cognição foge aos objetivos deste trabalho. É
tarefa mesmo de outras áreas do conhecimento, mas são observações importantes para
demonstrar a necessidade de continuidade de estudos sobre o tema. A nós, nos interessa a
relevância da antonímia do ponto de vista lingüístico, estudando o valor significativo que
esse tipo de relação semântico – lexical desempenha na organização do léxico das línguas.
A propósito, é significativa a observação de Vilela (1979, p. 194):
Os que se dedicam ao tema fundamentam seus estudos nas contribuições da lógica clássica,
extraindo dela os conceitos de contrário e contraditório. Porém, esses termos têm recebido
diferentes interpretações dos lingüistas. É na interpretação de tais conceitos que reside a raiz
de tantas divergências sobre o assunto, inclusive, as terminológicas.
Através do resumo das propostas seguintes, é possível vislumbrar as posições divergentes
sobre o tema.
– A PROPOSTA DE LYONS
A proposta de Lyons, por seu rigor metodológico, ganhou prestígio. Sua análise sobre o
fenômeno do significado leva em conta não só noções paradigmáticas (campo lexical) como
também relações associativas. Para o autor, as relações lexicais, num dado campo lexical
são estabelecidas a partir de uma série de contrastes existente entre eles. Nesta proposta,
contraste é o termo mais amplo, que engloba todo tipo de relação opositiva: antonímia,
complementaridade, reciprocidade, oposição ortogonal, conjuntos ordenados serialmente,
conjuntos ordenados ciclicamente.
O que de mais significativo há na proposta de Lyons é o seu rigor, aplicando o conceito de
antonímia a apenas um tipo de contraste: o dos opostos graduáveis. Alguns lingüísticos, a
exemplo, de Monteiro (1989), condenam essa proposta, julgando-a bastante delimitadora.
Mas ainda nenhuma vez se levantou acusando-a de não ser esclarecedora. É uma teoria que
desfaz muitos equívocos. Contudo, ela não está isenta de problemas. Uma situação bastante
complexa e não resolvida suficientemente é o caso de alguns pares de opostos que
satisfazem a noção de dois tipos de contraste, como os antipodais, por exemplo, que
também podem admitir a variação de grau (mais atrás, muito adiante).
– A PROPOSTA DE KATZ
Ao identificar a antonímia como qualquer relação de incompatibilidade de sentido, a
proposta de Katz (1972) caminha em sentido inversamente proporcional à de Lyons. O
incoerente está em que as relações de incompatibilidade são muito amplas. Na
incompatibilidade, a afirmação de um elemento de uma série implica a negação de cada um
dos elementos desta mesma série; a negação de um significa a afirmação de cada um dos
demais disjuntivamente, segundo o esquema: X = 1, X ≠ 2,3,4 ... (leia-se: X é igual a 1,
logo X é diferente de 2, de 3, de 4 ou de qualquer outro elemento constitutivo da série dos
numerais cardinais). Exemplo:
Para Katz, o termo antonímia pode ser aplicado a todo tipo de oposição. Reconhece a
existência de antônimos contraditórios (mortal x imortal) e antônimos conversíveis
( ... )
“O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem”
( O bicho – Manuel Bandeira )
O QUERERES
Onde queres revólver sou coqueiro, e onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alto eu sou o chão
E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão
Ah! bruta flor do querer, ah! bruta flor, bruta flor ...
Onde queres o ato eu sou o espírito, e onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo, e onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói, e onde queres tortura, mansidão
Onde queres o lar, revolução, e onde queres bandido sou herói
Eu queria querer-te e amar o amor, construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou, não te quero (e não queres) como és
A riqueza desta canção para o estudo da antonímia está na criação inusitada de seus
antônimos. É um exemplo significativo, para mostrar que há limitação em compreender o
fenômeno apenas como uma relação paradigmática e conceber a língua como algo estático.
Não estamos querendo negar a condição de relação substitutiva da antonímia, estamos
tentando apenas ressaltar o caráter dinâmico dessa relação de sentido, pois está claro que a
muitos dos termos citado na referida canção, descontextualizadamente, não corresponderia
qualquer antônimo.
Houve mesmo, na literatura, uma época fundamental, a barroca em que o contrário se
tornou expressão máxima, por se prestar à tradução do estado de espírito conflitante do
homem europeu do século XVII. O contrário se tornou a figura máxima da estética barroca,
através da antítese e do paradoxo, por ser uma forma de categorização da experiência e
sobretudo por ser um traço presente no ser humano. A antonímia foi um princípio poderoso
que permitiu que os autores barrocos expressassem a angústia, a dilaceração, o conflito e o
desequilíbrio do homem europeu seiscentista dividido entre os prazeres materiais trazidos
pela Renascimento e os valores espirituais reimpostos pela Contra-Reforma.
Os que desejam trabalhar a antonímia em sala de aula, procurando dar um novo sentido ao
estudo do tema, fugindo de exercícios estéreis sobre antônimos, não vão precisar
empreender muitos esforços para encontrar textos que lhes possibilitem tal tarefa. A
literatura é repleta de textos com antonímia, independentemente da estética de que fazem
parte. É possível, também, como já frisamos, trabalhar a antonímia a partir de qualquer
corpus. O que não se aconselha é estudá-la imanentemente, em abstrato, sem o apoio de
um texto. Só a partir de um texto é possível reconhecer certos antônimos, inferir o
significado de alguns, conjeturar sobre a intencionalidade e o valor do emprego de
determinados pares antonímicos bem como refletir sobre as implicações estéticas e sociais
de seu emprego.
Vejamos, respectivamente, um exemplo de antítese e um de paradoxo:
Citamos esse texto por um exemplo prototípico de antítese. Como é um texto bastante
conhecido, é possível que tenha uma boa acolhida pelos alunos, pode até ser contado. É
importante lembrar que tornar como meta apenas a identificação de uma relação de
contraste pode não ser algo significativo. O trabalha a ser desenvolvido com a antonímia
depende da série em que leciona o professor e de seus propósitos.
Nesse texto, por exemplo, poder-se-ia lidar com a antonímia sob diversos aspectos, entre
eles: averiguar se a relação de contraste que se estabelece entre os termos é de natureza
semântica única ou diversa; discutir se há, efetivamente, ações contrárias em todos os pares;
observar se a relação de oposição de sentido que se estabelece entre os pares tem a mesma
tipologia; a partir da adjetivação possível a alguns pares, discutir sobre a importância da
noção de escala e do perigo da polarização; observar como se dá a distribuição da antonímia
pelo inventário aberto do léxico português, buscando apreender as especificidades dos pares
de substantivos opostos no referido texto (Por que nenhum par desses substantivos é
concreto ou primitivo? Que comportamento semântico-gramatical devem ter os
substantivos (e também os adjetivos e os verbos) para que sejam passíveis de oposição
lexical antonímica?); cogitar a importância da relação entre campo lexical e escolha dos
termos constitutivos dos pares em oposição; analisar a possibilidade de um dos termos dos
pares em contraste servir com inferência para a apreensão do significação do outro.
O mesmo procedimento analítico, além de outros, pode-se aplicar à canção a seguir:
Monte Castelo
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal.
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade.
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrario a si é o mesmo Amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem.
Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor.
A escolha desse texto também se deu por sua popularidade lidar, em sala de aula, com
textos conhecidos influi positivamente em sua acolhida. Monte Castelo, como vemos,
dialoga, afirmativamente, com um soneto camoniano e com um trecho de primeira epístola
do apóstolo Paulo aos coríntios. O paradoxo, ao unir as idéias díspares, acentua o tom
conflituoso expresso pelos antônimos.
Fora da literatura, também encontramos bons exemplos do emprego da antonímia, como no
texto a seguir:
Por razão de ordem técnica, não conseguimos expor essa peça publicitária em sua
totalidade, como deveria ser feito. Perdoem-nos a lacuna, pois sabemos que, no texto
publicitário, linguagem verbal e não verbal se relaciona harmonicamente, para dar a idéia
do todo. Nessa peça publicitária sobre o Banco Real, a relação antonímica concede à
nomeação (Banco) Real uma força maior, através da predicação conseguida como termo
Real. A posição ocupada pelos termos virtuais e Real como também a ambigüidade
sugerida pelo último acentuam o contraste, a distinção entre o Banco Real e os demais. O
importante é chamar a atenção para o uso intencional das oposições presentes no texto
(muitos x só um; virtuais x Real) e para o emprego de toda a linguagem verbal (o valor do
verbo ser, por exemplo) e não verbal (a pontuação e as imagens – que tivemos de suprimir
do referido texto.).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A antonímia é um fenômeno importante no funcionamento da linguagem e na
categorização da experiência. Não obstante tal significância, o tema ainda não foi
suficientemente estudado. Apesar dos esforços de alguns semanticistas, sua complexidade
ainda não permitiu uma descrição mais consensual. A delimitação do conceito de
antonímia, para uns, representados por Lyons, é bastante restrito e aplicado a apenas um
tipo de contraste; para outros, os da linha de Katz, é extremamente amplo e igualado a
qualquer tipo de incompatibilidade semântica.
Na maior parte de nossas gramáticas e de nossos dicionários, essa divergência de posturas
quanto à delimitação do conceito de antonímia converte-se em confusão. Conceitos
imprecisos, lacunosos, equívocos quanto à classificação de determinados tipos de contraste
e subjetividade permeiam o tratamento oferecido à questão. Esse estado de coisas provoca
uma conseqüência mais grave: a idéia de que a antonímia é um conceito pouco relevante
para a compreensão do universo semântico da língua. Daí a pouca reflexão sobre o assunto
em sala de aula, quando é estudado, e a forma estéril de sua abordagem.
Não se está perdendo de vista, aqui, a complexidade da questão. O que se está enfatizando
é a necessidade de se empreender maior esforço para o oferecimento de uma descrição mais
adequada e menos confusa nos manuais que se destinam ao ensino da língua materna no
Brasil. Justamente por reconhecer a complexidade do assunto, procurando deixar de lado as
facetas idiossincráticas que lhe são relativas, excluímos, deste texto, dados significativos
que poderiam possibilitar uma noção mais global do tema, como a intenção do falante e a
situação de enunciação, a fim de oferecer uma visão mais objetiva do fenômeno em
enfoque.
REFERÊNCIAS