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Sublimação
– Em relação à troca de objeto
Maria Pompéia Gomes Pires
Resumo
O artigo trata da evolução do conceito de sublimação, ao longo dos escritos de Freud, chegando
à concepção da sublimação como “mudança do objeto da pulsão”, que é considerada pela autora
como um importante ponto de torção do conceito, onde a pulsão se metaboliza em criação.
Palavras-chave
Sublimação, Pulsão, Libido, Pulsão de morte, Dessexualização, Criação, Feminino.
Em 1915, Freud, em um de seus mais im- “Pode ser modificado quantas vezes for
portantes artigos metapsicológicos – “A necessário no decorrer das vicissitudes que a
pulsão e os destinos da pulsão” –, registra pulsão sofre durante sua existência, sendo que
a sublimação como um dos destinos da esse deslocamento da pulsão desempenha pa-
pulsão sendo acompanhada pelo recalque, péis altamente importantes” (Idem).
o retorno em direção ao próprio eu e re- Como característica da pulsão:
versão no seu contrário. “Sua origem em fontes de estimulação
Neste artigo temos a definição de pul- dentro do organismo e seu aparecimento como
são: uma força constante” (FREUD, 1974, v.XIV,
“Conceito situado na fronteira entre o p.138).
mental e o somático, como o representante Ainda nesse artigo, Freud faz uma
psíquico dos estímulos que se originam den- observação importante sobre os destinos
tro do organismo e alcançam a mente, como da pulsão:
uma medida da exigência feita à mente no “Tendo em mente a existência de forças
sentido de trabalhar em consequência de sua motoras que impedem que uma pulsão seja
ligação com o corpo” (FREUD, 1974, v. XIV, levada até o fim de forma não modificada,
p.142). também podemos considerar essas vicissitu-
Nesse mesmo artigo, em relação ao des [os destinos da pulsão] como modalida-
objeto da pulsão, Freud faz as seguintes des de defesa contra as pulsões” (FREUD,
observações: 1974, v.XIV, p.147).
“O objeto de uma pulsão é a coisa em As pulsões criam para o homem um
relação à qual ou através da qual a pulsão é campo de indeterminação e de criação,
capaz de atingir sua finalidade” – ou seja, a diferente da previsibilidade dos instintos.
satisfação (FREUD, 1974, v. XIV, p.143). A aventura do homem, impulsionada pela
O objeto “é o que há de mais variável pulsão, dá-lhe sempre o caráter de errân-
numa pulsão e, originalmente, não está liga- cia.
do a ela, só lhe sendo destinada por ser pecu- O conceito de sublimação sofre alte-
liarmente adequado a tornar possível a satis- rações de seu sentido no desenrolar da
fação” (Idem). obra de Freud, principalmente se consi-
com ele e trazendo-o para dentro do Ego. thos, em seu perene estado de desligação
Introduz aí o conceito de Identifica- dos objetos, pura energia livre, que pro-
ção primária, conceito este que parece ter voca o organismo no sentido de sua de-
intimidade profunda com o que será ex- sorganização e de sua extinção.
posto mais adiante, em relação à criação Freud afirma que o processo de iden-
do objeto. tificação, embora seja um processo estru-
Identificação primária: Parece haver turante do Eu, provoca a desfusão das
uma identificação primária, “... a primeira pulsões, tendo como consequência a liber-
e mais importante identificação de um indiví- dade, em maior ou menor grau, de circu-
duo, a sua identificação com o pai, em sua lação livre de Tanathos, e seus efeitos.
pré-história pessoal. (...) trata-se de uma iden- Afirma também que este processo de
tificação direta e imediata, e se efetua mais desfusão nunca é completo, havendo vá-
primitivamente do que qualquer catexia de rias equações possibilitadoras do equilíbrio
objeto” (FREUD, 1976, v.XIX, p.45-46). ou do desequilíbrio pulsional.
Identificação imediata e sem objeto. Con- Neste momento, torna-se necessária,
ceito que suporta um enigma! para os objetivos deste trabalho, a refe-
Segundo Freud, todo processo de iden- rência ao artigo de Freud “O problema
tificação é acompanhado pela dessexuali- econômico do masoquismo” (1924).
zação da pulsão. E esta tem como conse- Ali, referindo-se à estrutura do psi-
quência fundamental o processo da desfu- quismo humano, afirma a existência de um
são das pulsões Eros-Tanathos. Caracterís- masoquismo erógeno ou primário, fruto da
tica esta que fundamenta o desenrolar do permanência constante de um resto de
processo sublimatório, em relação à troca pulsão de morte, que no exercício de sua
de objeto (FREUD, idem, p.44-45). dinâmica de expulsão para o exterior não
Observa-se que temos o processo da foi ejetada, mantendo-se como intensida-
dessexualização presente na 1ª Tópica e de pulsional perene, no interior do organis-
na 2ª Tópica, mas veremos que seus efei- mo, em sua ação silenciosa e sem parada.
tos são diferentes. Distingue-se do masoquismo femini-
Voltando à 2ª Tópica, falamos do Su- no e do masoquismo moral, pois ambos são
perego. Neste momento, torna-se impor- fruto do recalque, fruto da dominação do
tante lembrarmo-nos da presença de um falo, e se instalam em relação ao superego
Superego normativo, efeito das identifica- com seus imperativos sádicos.
ções edípicas, que enuncia sem parada “Tu Após esta explanação, gostaria de foca-
deves”, ideal kantiano, e o Superego que lizar a sublimação em relação ao objeto da
exige o gozo – “goza!” – sadiano, gozo que, pulsão, na 2ª Tópica. A sublimação se dife-
sem parada, exige o despedaçamento do rencia do recalque. E diferentemente do re-
corpo até a morte. calque, implica na satisfação da pulsão.
Ambos são alvos da pulsão de morte. Como se daria este circuito? É o que
Por quê? tentaremos demonstrar.
O aparelho psíquico na 2ª Tópica é Como já foi mencionado, o processo
regido pela pulsão de morte, que exige a de sublimação como destino de uma pul-
baixa da tensão a nível zero. Ou seja, que são em seu exercício carrega consigo, ne-
a pulsão se esgote na satisfação total, com- cessariamente, dois outros processos que
pletando seu circuito. lhe são afins: a simbolização e a criação.
Em “O Ego e o Id”, Freud, descreven- Vejamos:
do o conflito pulsional, fala da pulsão. Segundo Joel Birman, podemos dizer
Eros-Tanathos. Eros, promovendo liga- que, na 1ª Tópica, a sublimação está liga-
ções, como marca de seu destino. Tana- da ao campo da representação, ou seja, se
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Maria Pompéia Gomes Pires
faz pelo desvio de uma representação se- zio este que tem relação com a intensida-
xual a outra que lhe é equivalente, sim- de pulsional.
bolicamente, entretanto com caráter não Vazio e intensidade que promovem a
sexual. Há assim um processo de dessexu- desconstrução do sujeito, pela perda das
alização cuja energia é utilizada no senti- representações anteriores, que lhe assegu-
do da criação cultural. ravam a permanência do si-mesmo.
Na 2ª Tópica, entretanto, o campo O processo de desconstrução tem
representacional é substituído pelo cam- como efeito o contato com o mais fundo
po das intensidades. Com a introdução da do si-mesmo, ponto de exclusão interior,
pulsão de morte, emerge a hipótese da in- ex-centricidade interna, coincidindo com
tensidade pulsional sem representação a vivência do desamparo e a queda no
(desde que a pulsão de morte é silenciosa, campo do masoquismo.
não faz ligação, não há representação). O problema econômico do masoquis-
O 1º campo pode ser considerado mo, pois, diferencia aí o masoquismo eró-
como estruturante do aparelho psíquico, geno ou primário do masoquismo femini-
levando à tendência ao equilíbrio, atra- no e do masoquismo moral.
vés das representações equacionadoras da A criação do objeto pode fazer-se no
tensão interna. Eros–Tanathos. domínio do masoquismo moral ou do ma-
O 2º campo pode ser considerado soquismo feminino, como experiência psí-
como desestruturante, onde o aparelho quica.
psíquico vê-se destinado ao excesso e às Estas duas formas de masoquismo se
intensidades. caracterizam por indicar ainda a presença
Em 1932, no “Esquema da Psicanáli- do registro fálico e a dominância do princí-
se”, Freud nos oferece a definição de su- pio do prazer como ordem de funcionamen-
blimação: to do psiquismo. Pois, segundo Lacan, o
“Um determinado tipo de modificação da princípio do prazer nada mais é do que o
finalidade [meta] e de mudança de objeto (...) funcionamento da cadeia do significante.
é descrito por nós como sublimação” Se a criação do objeto se fixa neste registro
(FREUD, 1994, v.XXII, p.99). pulsional, a criação se faz a expensas do
Com esta definição, fica lavrado o criador, que se vê atormentado pelo sadis-
destino da sublimação como associado à mo do Superego, havendo o brilho da cria-
emergência da criação. ção, mas também o sofrimento do criador.
Se a pulsão rompe o vínculo com o Criação, mas ainda não sublimação.
objeto, no circuito pulsional, impõe-se a Para que o processo sublimatório se faça,
necessidade da criação de um novo obje- torna-se necessária mais uma torção. Qual
to. Impõe-se a incerteza quanto ao novo seja, um salto até o masoquismo erógeno
objeto, impõe-se a lida com o desamparo ou primário.
psíquico, impõe-se a relação direta com o Segundo J. A. Miller, masoquismo eró-
campo das intensidades. geno ou primário é o nome freudiano para
Não se trata então de um novo obje- o gozo, lacaniano.
to colhido através do deslocamento pulsi- A sublimação se faz, então, no regis-
onal para outra representação, pois este tro do gozo. Faz-se havendo satisfação da
deslocamento só denuncia a repetição do pulsão.
mesmo símbolo. Não há, na verdade, mu- Neste campo, a desconstrução do su-
dança de objeto. jeito atinge o nível das intensidades, num
Aqui se trata de outra coisa. Trata-se para além do princípio do prazer. Pois, a
da criação de um novo objeto, pois o que referência fálica se desfaz e a criação se
há, então, é o vazio representacional, va- faz, para além das representações.
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Sublimação – Em relação à troca de objeto
Keywords
Sublimation, Drive, Libido, The death drive,
Desexualization, Creation, Female.
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