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NC Carvalho. VIII CIH.

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DIOGUINHO NAS NARRATIVAS POLICIAIS: UM FACÍNORA DE


“CORPO FECHADO”
Doi: 10.4025/8cih.pphuem.3940

Nilce Camila de Carvalho, UEL

Resumo

Diogo da Rocha Figueira, mais conhecido por Dioguinho, foi


um bandido que atuou no interior paulista no final do século XIX. Seus
crimes foram cometidos entre os anos de 1894 e 1897, a maioria de cunho
político a mando dos poderosos coronéis da região que dominavam as
pequenas vilas e cidades no contexto da cultura cafeeira. Dioguinho
espalhava terror pelas cidades onde passava. Sua fama de bandido cruel e
sanguinário percorreu toda a região de Ribeirão Preto alimentando a
imaginação popular. Sobre a vida, crimes e aventuras de Dioguinho há
cinco narrativas, escritas por delegados, jornalistas e folcloristas, algumas
mesclam relatos orais e documentos escritos atribuindo certo enfoque
Palavras Chave:
local às descrições. Existem também filmes, cordéis, canções, entre outras
representação; bandido
produções. Uma das primeiras obras que representam Dioguinho foi
paulista; narrativas;
escrita por Antônio de Godói, delegado encarregado pela perseguição do
discurso.
bandido em 1897. Dioguinho foi dado como morto nesse ano, porém seu
corpo nunca foi encontrado. Em 1903, quando surgiram boatos acerca da
sobrevivência do bandoleiro, Antônio de Godói publicou uma série de
narrativas no jornal Correio Paulistano intitulada Dioguinho vivo? A partir da
leitura dessas narrativas, posteriormente publicadas em livro, o objetivo
desse artigo é analisar o modo como Dioguinho é representado e o quanto
as características destacadas pelo delegado auxiliou na configuração da
imagem lendária do bandoleiro também transmitidas oralmente.
Considerando a posição de autoridade de Antônio de Godói, é
imprescindível refletir sobre os usos do discurso na sustentação de
posicionamentos políticos e na defesa de uma dicotomia entre sertão versus
cidade.
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Diogo da Rocha Figueira, mais propósitos desse trabalho, essa obra não
conhecido por Dioguinho, foi um é significativa por apresentar uma leitura
bandido que atuou no interior paulista no romanesca envolvendo o personagem e
final do século XIX. Seus crimes foram por não ter a intenção de veracidade.
cometidos entre os anos de 1894 e 1897, As narrativas de Antônio de
a maioria de cunho político a mando dos Godói também assemelham-se aos
poderosos coronéis da região que
folhetins ou mesmo às crônicas policiais1.
dominavam as pequenas vilas e cidades
Juntamente com as narrativas do também
no contexto da cultura cafeeira.
delegado João Amoroso Neto, publicadas
Dioguinho espalhava terror pelas cidades
no Correio Paulistano em 1949, são os
onde passava. Sua fama de bandido cruel
textos mais referenciados e talvez tenham
e sanguinário percorreu toda a região de
sido também os mais lidos, embora hoje
Ribeirão Preto alimentando a imaginação
sejam extremamente raros. Essas
popular. narrativas além de permitirem uma visão
Sobre a vida, crimes e aventuras particularizada do bandido, foram
de Dioguinho há cinco narrativas, escritas transformadas, pelos leitores, no
por delegados, jornalistas e folcloristas, “discurso oficial” por serem oriundas de
algumas mesclam relatos orais e homens da lei.
documentos escritos atribuindo certo Por esse prisma, ambas
enfoque local às descrições. Existem
apresentam-se, indiretamente, ao leitor
também filmes, cordéis, canções, entre como uma possibilidade de análise
outras produções. Uma das primeiras
criminal realizada por “especialistas” a
obras que representa Dioguinho foi
escrita por Antônio de Godói, delegado
encarregado pela perseguição do bandido
em 1897. Dioguinho foi dado como 1 De acordo com Mariza Romero, apesar de a
divulgação de relatos de crimes na Europa
morto nesse ano, porém seu corpo nunca remontar ao século XV (occasionnels), é no século
foi encontrado. XIX que esse tipo de literatura ganha um enorme
espaço na mídia impressa coincidindo com a
Em 1903, quando surgiram crescente industrialização, urbanização (e
boatos acerca da sobrevivência do pauperização) e criminalidade urbana, e também
bandoleiro, Antônio de Godói publicou com o aumento geral nos níveis de alfabetização
uma série de narrativas no jornal Correio em decorrência da escolarização obrigatória.
Paulistano intitulada Dioguinho vivo? A Nesse período, os exemplos mais contundentes
dessa espetacularização da morte e da violência
partir da leitura dessas narrativas, são o francês Petit Journal de Polydore Millaud
posteriormente publicadas em livro com (que durante a cobertura de alguns casos de
o título Dioguinho: narrativa de um cúmplice assassinatos em série chegou a quase seiscentos
em dialecto (1903), o objetivo é analisar o mil exemplares diários) e, do outro lado do
modo como Dioguinho foi representado Atlântico, o periódico americano World de Joseph
Pulitzer que chegou a tiragens de impressionantes
e o quanto as características destacadas oitocentos mil exemplares em 1898. Um pouco
pelo delegado auxiliou na configuração da mais tarde, na imprensa sensacionalista no Brasil,
imagem lendária do bandoleiro também especialmente as crônicas policiais, já são
transmitidas oralmente. encontradas no fim do século XIX em jornais
paulistas, como o Diário Popular (em geral,
Antes das narrativas de Godói, acusando os imigrantes, mendigos e desocupados
João Rodrigues Guião, um médico e pelo aumento da criminalidade) e, mais
escritor da região de Ribeirão Preto, já discretamente, em jornais mais respeitáveis como
O Estado de São Paulo e O Correio Paulistano.
havia publicado um romance Entretanto, essa imprensa sensacionalista só
compreendendo aspectos da vida e ganha contornos de literatura de massa a partir da
história de Dioguinho. Esse romance foi década de 1940 quando houve um aumento
publicado no formato folhetim no Correio significativo nos níveis de alfabetização e de
de Jaú em meados de 1901. Para os urbanização. (ROMERO, 2008, p 105-112 e 115-
118).

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partir de uma “metodologia” investigativa de Diogo durante os três anos em que


que pretende relatar apenas a veracidade mais cometeram crimes. Nenhuma das
dos fatos. No primeiro caso, a obras traz informações precisas sobre ele,
representação do bandido foi baseada no apenas afirmam que era negro, filho de
testemunho de um membro do bando e ex-escravos do Estado de Minas Gerais,
depois foi “filtrada” pelo delegado que que foi preso pouco antes de
maior autoridade e conhecimento teria encontrarem Diogo e que auxiliou nas
sobre o assunto. No segundo caso, quase buscas policiais através de seus
cinquenta anos depois, outro delegado depoimentos. Antônio de Godói o
teve a incumbência de analisar a vida e os entrevistou na prisão (fator que contribui
crimes de Dioguinho e, para cumprir tal para o caráter de verdade de suas
tarefa, ele dispôs-se dos relatos policiais narrativas) pouco antes do encontro de
da época, da narrativa de Antônio de Diogo com a escolta. Na obra de João
Godói e de entrevistas com pessoas Garcia, Dioguinho – matador de punhos de
“idôneas” que conheceram o bandido e renda, o Curytibano é descrito de forma
com alguns familiares do mesmo. bastante idealizada: é um espoliado social,
que pelas circunstâncias acabou entrando
Com a intenção de perceber as
no bando, mas que não era simplesmente
motivações do delegado e autor Antônio
um assassino. Um dos narradores dessa
de Godói, analiso nesse artigo a obra
obra chega a apelidá-lo de “anjo negro”
Dioguinho: Narrativa de um cumplice em
(GARCIA, 2002, p. 210).
dialecto por mostrar-se paradigmática na
construção da imagem popularizada do Antônio de Godói afirma no
bandoleiro e por servir de parâmetro à prefácio que o Correio Paulistano
produção de João Amoroso Neto, cuja encomendou essas narrativas devido à
obra resgatou o personagem e deu polêmica que causou a prisão de um
abertura para muitas outras produções criminoso em Minas Gerais (1902), o
que se seguiram. qual muitos acreditavam ser o Dioguinho.
O delegado Antônio de Godói Em 1903, havia se passado seis anos que
foi o responsável pela diligência enviada à o bandido tinha sido dado como morto,
região de Ribeirão Preto para a captura de entretanto, a imaginação popular
Diogo da Rocha Figueira em 1897. Seu alimentava lendas que desafiavam a
versão oficial da polícia, o que motivava
livro narra a história do personagem e o
“sucesso” das buscas policiais. Sucesso os jornais a investirem no tema.
que é exaltado, mas que, de certa forma, Ao escrever suas narrativas, o
fracassa diante da “invulnerabilidade” de delegado considera essa visão popular:
Dioguinho. Inicialmente, as narrativas,
divididas em vinte e oito capítulos, foram Até hoje não se extinguiu
publicadas num período de dois meses no inteiramente, nos sertões do oeste
de São Paulo, o terror que por lá
jornal Correio Paulistano (1902-1903) sob o espalhára, a custo de muito sangue,
título “Dioguinho vivo?” e depois foram o famoso bandido Diogo da Rocha
reunidas em um único volume2 que Figueira, o DIOGUINHO. A
anunciava, na capa, a autoria de João das figura desse homem cruel,
Mattas, o Curytibano, capanga de Diogo. exagerada em seus contornos
sinistros pela imaginação do povo,
Curytibano esteve com o bando
ainda percorre mysteriosamente os
campos e as aldeias tranquilas,
2 Sobre a primeira edição não há informações, a infundindo vagas apprehensões e
2a edição de 1903 pertence à Livraria Central de despertando sobresaltos. Ninguem
Ribeirão Preto e a 3a edição de 1915 (post mortem), o viu com seus próprios olhos,
provavelmente caseira, não indica a cidade em que depois do conhecido epilogo das
foi publicada e modifica o nome do autor para suas façanhas, no rio Mogy-guassú,
Silvestre da Matta.

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mas há sempre quem tenha ouvido escolta, sendo que foi o Joaquim
a <<alguem>> que o viu, (também capanga de Diogo) quem teve
affirmação vehemente de que elle que seguir os policiais e ajudar na caça ao
ainda vive... (MATTAS, 1903, p. 5). Dioguinho. Há várias lacunas como essa
A fama de Dioguinho, de no decorrer da obra e um erro crasso,
bandido valente, cruel e invulnerável, se pois Curytibano não poderia saber a
espalhara e a ausência de seu corpo deu trajetória final realizada nem por Diogo
margem para todo tipo de crença, nem pela escolta porque já estava preso.
principalmente a de que ele havia fugido Ademais, há momentos em que o autor
e a de que voltaria para se vingar daqueles se esquece do “dialeto” empregado na
que o tinha traído. Diante de tal lenda, escrita e modifica a grafia das palavras
narrativas que recontassem a história do que vinha utilizando.
personagem certamente obteria sucesso O narrador começa o relato a
de público. Ao ser escrita por Godói, ela partir da emboscada contra um ex-
teria ainda mais autenticidade por tratar- delegado de Mato Grosso de Batatais, Zé
se de uma pessoa que havia tido contato Venâncio. Esse, de acordo com Selma
com toda a preparação e “desfecho” da Siqueira de Carvalho (1988)3, foi um dos
diligência, que havia escrito os relatórios últimos crimes cometidos por Dioguinho,
policiais e entrevistado os capangas sucedido apenas pelo “crime do
presos. Cerrado”. O autor deixa de lado a
Ainda no prefácio, “antes de dar suposta iniciação romântica do
a palavra a Curytibano”, a quem, ele personagem no mundo do crime. Não há
afirma autoritariamente, “faço falar em crimes honrosos, nem atos de Diogo que
toda a narrativa”, Antônio de Godói encorajem uma leitura mais romantizada.
reitera que Depois de matar Zé Venâncio e
seu companheiro de estrada (o fazendeiro
A história que ahi se narra é
perfeitamente veridica. Todos os
Zé Maia), Diogo e mais dois capangas se
factos e a sequencia delle são puseram em fuga:
inteiramente reaes, e não foi sem
Quando sahimos da tocaia, seu
trabalho que consegui reunil-os e
Dioguinho foi na frente quebrando
achar-lhes o fio. De forma que ao
o matto, assobiando, até adonde
menos um merito não se pode
estavam os alimaes, e ganhamos a
negar a este trabalho: o da
estrada de Matto Grosso. Seu
veracidade (MATTAS, 1903, p. 6).
Diogo parece que vinha da missa,
O compromisso com a verdade diabo de homem! - alegre que só
é o veículo propulsor da narrativa. A vendo. Aquilo não havia perdiz que
iniciativa de colocar Curytibano como sahisse de ponta de aza que elle
não derrubasse. Era só tumba... e
narrador faz parte da concepção de que
terra! Uma hora lá perto de uma
este teria mais familiaridade para relatar o bica, onde nós paramos para beber
cotidiano do bando e as práticas o damnado até acertou num cobre
criminosas de Dioguinho, no entanto, o que o Joaquim atirou p'ra o ar!
discurso que embasa a obra é apenas o do (MATTAS, 1903, p. 10)
autor. A construção do narrador deixa
bastante a desejar. Durante alguns A representação de Diogo,
capítulos Curytibano conta os crimes de nesse trecho, é a de um homem
Diogo e as perambulações do grupo pelo insensível, para o qual nada significava
sertão paulista. Após o momento em que matar dois homens, visto que aparentava
ele é preso pela polícia, e Dioguinho foge
com o irmão para a Fazenda Santa
Eudóxia, sua narrativa acompanha a 3Socióloga autora da pesquisa Dioguinho: estudo
de caso de um bandido paulista (1988).

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tranquilidade e até certa beatitude: como digam ao delegado que os dois


quem acaba de vir de uma missa. O deram cabo um do outro e que veja
narrador destaca a pontaria do bandido e lá: si não fizer ansim, digam-lhe
insere uma cena clássica que poderia que eu lá vou pregar uma bala
figurar em qualquer filme de faroeste justinho na bocca.
americano: acertar, com um tiro, uma E foi voltando as costas já
moeda jogada ao ar. enrolando um cigarro, numa
A insignificância do crime para indifferença damnada, como si
fossem uns cachorros aquelles
o bandoleiro é ainda ressaltada quando
desgracionados de caboclos!...
Curytibano diz que “p'ra ver o que era o (MATTAS, 1903, p. 30)
tal Dioguinho. Aquillo p'ra elle, fazer uma
morte, era mesmo que beber agua” e Esse episódio demonstrar a
menciona que ele tinha “carta-branca” frieza de Dioguinho inclusive para com
para o crime porque “sabia que tinha a seus companheiros. O narrador sente
costa bem guardada. Eu nunca vi um uma condolência maior porque se tratava
homem tão protegido!” (MATTAS, 1903, de pessoas de seu grupo, seus colegas, e
p. 10). indigna-se frente à atitude de Diogo em
não demonstrar a mínima consideração
Dioguinho é apresentado como
por aqueles que o seguiam dia a dia. De
um “homem de veneta”, que ninguém
modo particular, Curytibano se depara
tinha coragem de peitar, um homem
com uma cena em que Diogo demonstra
protegido por pessoas poderosas, que
o valor que eles, os capangas, tinham para
não tinha pudor de matar; uma pessoa
ele: eram como cachorros desgraçados.
fria que considerava a morte uma
banalidade. Essa visão é reforçada A desculpa de que um havia
quando ocorre a morte de dois capangas matado o outro, e sua recomendação ao
de seu bando: Antônio Soldado e delegado de Cravinhos demonstra o
Baianinho. poder que ele tinha sobre as autoridades
locais. A rede de relações formada entre
Segundo Curytibano, Baianinho
agentes da lei (juiz, delegado, cabos) e
era “a bem dizer a menina dos olhos” de
coronéis fazendeiros era o meio de
Dioguinho e, no capítulo nove, depois de
sustentação de homens como Dioguinho.
uma confusão em que Antônio Soldado
E como havia essa organização em prol
mata o Baianinho, e Diogo, por não
da impunidade, aqueles que eram
aceitar aquele tipo de desentendimento
atingidos pelas ações desse bandoleiro
dentro do bando, atira em Antônio
tinham todos os motivos para temer.
Soldado, a resolução fria de Diogo deixa
o narrador estarrecido: Após tentar entender o
comportamento criminoso de Diogo,
Eu fechei os olhos. Quando eu abri Curytibano comenta um pouco sobre o
a vista foi co' tiro e o Soldado que medo que percorria a população de
foi debruço sobre o corpo do
Cravinhos:
Baianinho.
P'ra dizer a verdade, eu não sabia
Que havera de ser; era ansim
que impaca era aquella do seu
mesmo. Mas êta homem aquelle
Diogo. O homem parecia mesmo
seu Diogo!
que não tinha coração nas
Fresco, sem tremer, elle deu co'a profundezas do peito. Era
ponta da bota no corpo do extrambolico, a mais não poder. A
Soldado, ansim mode que com um gente via q'a cabeça delle tinha, mal
despreso, e disse p'ra um de nós: comparando um formigueiro. E
aquillo era uma exturdeza; quem lá
- Leva tudo isto p'ra Cravinhos e podia entender um homem assim?

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Vancê vá escutando e depois diga com um dos pés pisando o


si eu não falo a verdade. estomago do desgraçado e olhando
p'ra cara delle, que revirava os
Oia, fazia uns par de dias que elle olhos numa careta de quem morre.
tinha atirado o Soldado. Nos
Cravinhos p'ra que dizer? foi um Seu Diogo ria e eu vi que elle
zum-zum feio no povo medroso. segurava ainda numa das mãos a
Bastava falar no nome de seu franqueira que foi do turco, toda
Diogo e tudo tinha uns arrepio cheia de sangue, até o cabo.
assim como maleiteiro. A justiça
empacou e que mais havia de E seu Diogo ria enquanto o sangue
fazer? Botou terra nas boccas dos ia escorrendo numa banda do peito
defuntos e ficou tudo por isso não de seu Arlindo, a cada acalcada que
que não soubesse que seu Diogo lhe fazia com o pé na barriga.
estava alli mesmo no Capão
Escuro (MATTAS, 1903, p. 31). Depois, o homem estava acabando,
seu Diogo tirou o pé de cima delle
Fica explícita a cumplicidade de e me fallou:
que gozava Diogo para suas ações
Curytibano, meu cabra, derrama
criminosas. Ele tinha o aval de pessoas
kerosene neste porco, quero pelar
influentes e de autoridade locais, o bicho, p'ra não ficar carniça aqui
inclusive, estes eram também criminosos nem p'ra urubú.
que se escondiam atrás de um valentão
que se orgulhava da fama que possuía e E eu fui fazendo; que remedio?
do medo que espalhava. Como aponta
Maria Sylvia de Carvalho Franco, ser E seu Diogo estava rindo, a me
falar: - Ensopa, ensopa mais; na
valente era uma condição para a
cara mesmo, na cabeça, no corpo
afirmação pessoal onde se confundiam a inteiro.
violência com destemor e virtude
(FRANCO, 1997, p. 55). E o infeliz não tinha feito o
derradeiro termo!
A última morte realizada por
Diogo foi o crime do Cerrado: o E o sangue misturou com o
espancamento de Balbina e a morte de kerosene numa tintura vermelha,
Arlindo4. Ao contar esse episódio, o que pintou elle todo inteirinho.
narrador define seu julgamento acerca da
personalidade do bandoleiro Atrás disso seu Diogo riscou um
phosphre. Prompto (MATTAS,
caracterizando-o como uma pessoa
1903, p. 55).
descontrolada que se comprazia no
crime. No momento em que Dioguinho A frieza do personagem e sua
vê o trem que traz Arlindo, Curytibano atitude diante da dor alheia são
diz que ele “foi-se levantando, já meio ressaltadas pela crueza dos detalhes
risoho, c'aquelle mesmo riso ruim que descritos de maneira sensacionalista. O
elle tinha” (MATTAS, 1903, p. 52). bandido é um celerado que ri enquanto
Depois de balear o Arlindo, Dioguinho tortura e mata. Essa representação, grosso
pede a Curytibano a lata de querosene modo, vai de encontro ao leitor curioso e
ávido pelas histórias de um bandido
Eu voltei c'a lata. Seu Diogo estava famoso e pela atração sádica da dor e da
morte, sobretudo, da morte violenta.
4 Esse crime foi narrado em quase todas as obras Dioguinho. Narrativas de um
por ter sido o último homicídio praticado por
Diogo, porém o nome da vítima era Marciliano
cúmplice em dialeto traz também
Fogueteiro. Provavelmente o autor mudou o representações interessantes sobre o
nome do personagem em razão da proximidade cotidiano do bando, a cultura caipira, a
do crime com a publicação da obra.

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prática recorrente de homiziar simbologia, inclusive a ideia de que o


bandoleiros, o crime por encomenda, a ofício era o de civilizar, repelindo o
relação de compadrio estabelecida com estado de selvageria em que
base no favor e uma exaltação cotidianamente vivia-se nesses lugares
incondicional da escolta organizada para isolados. Nas palavras do historiador,
a captura do bandoleiro. Essa última é
um dos pontos cruciais que demonstra as O crime aparece como uma marca,
particularidades do discurso pretendido uma nódoa do sertão. Os jornais
da Capital descreviam os
pelo delegado Antônio de Godói. assassinatos ocorridos no interior
Entre outros elementos de de São Paulo como os mais
destaque, sobressai a descrição da ação violentos e repugnantes,
implacável que os soldados, “cabras de alimentando o imaginário dos
estimação”, “pessoal de circumstancia”, leitores com bandidos sanguinários
e figuras tenebrosas chamadas pela
“matreiros” que “sabiam armar armadia”,
grande imprensa de “facinorosos”.
realizam sob o comando do “doutor Saídos dos bancos da faculdade de
Godói”, um “homem de resolução”: direito, os delegados seguiam para
o interior como se estivessem
Não precisa dizer que vinha
levando para a parte mais atrasada
mandando o povo o tal seu Godoy,
da sociedade a prevalência de lei
delegado, que pelo retrato delle que
sobre o mandonismo local, ou seja,
um soldado me fez muito depois
a própria essência do Estado
de passado tudo aquillo, era um
moderno. De fato, o cenário rural,
mocinho desempenado, do tempo
cercado de ameaças e assassinatos
e da praça, com cara de allemão e
por encomenda, acabou por nutrir
uns olhinhos vivos meio apertados,
um espírito de corpo entre os
mocinho de resolução (MATTAS,
delegados que se colocavam como
1903, p. 77).
imbuídos de uma “missão
O delegado, enquanto autor da civilizadora” (MARTINS, 2013, p.
obra, coloca-se como um mocinho com 83).
todas as características consideradas de A narrativa de Godói está
homem “de bem”: decidido, de aparência inserida nesse contexto em que a polícia
europeia, enfim, “civilizado”. Um sujeito de carreira ainda não havia sido
que se dispôs a ir para uma região constituída e que o delegado era indicado
interiorana a fim de (re)estabelecer a por chefes políticos locais ou pelo PRP
ordem num lugar onde, por contraste, (Partido Republicano Paulista) e
reina a barbárie. Curytibano fala de respondiam aos interesses dos ricos
Godói como se apenas o tivesse produtores de café. Com o governo de
conhecido de ouvir falar, não Campos Sales (1898-1902), Cardoso de
mencionando as entrevistas que cedeu ao Almeida foi nomeado para secretário da
delegado enquanto esteve preso. Apesar justiça e propôs iniciativas que
de tal deslize reduzir ainda mais a contribuíam para a modernização do
qualidade das narrativas, ele intenciona aparelho policial, cujo modelo seguia a
demonstrar que a fama do delegado se polícia francesa e inglesa, sociedades
propagava de boca a boca, consideradas sinônimos de civilização
principalmente entre os mais populares. (MARTINS, 2013, p. 41).
Marcelo Martins (2013) discute Antônio de Godói foi o
em sua tese o conceito de “civilização do delegado indicado para chefe de polícia
delegado” e demonstra como a ida para por Cardoso de Almeida. De acordo com
uma missão no interior representava um Martins, ele foi um dos maiores
“rito de passagem” para esses oficiais. Tal defensores da profissionalização da
exercício carregava uma série de polícia, da adoção de um método

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investigativo baseado na criminologia E isso tambem não foi nada ainda.


europeia e nos preceitos da polícia O bonito é que, não demorou
científica (MARTINS, 2013, p. 42). Tal nada, aquelle desaforado do
nomeação ocorreu por volta do ano de soldado voltava p'ra fóra, trazendo
1903/1904, época em que as narrativas na frente aos soccalão, seguro pelo
peito, um homem que atôa queria
foram publicadas no Correio Paulistano e, fincar pé (MATTAS, 1903, p. 85-
em seguida, reunidas em livro. 86).
Em Dioguinho. Narrativa de um
O homem que retiraram a força
cumplice em dialecto, a exaltação da iniciativa
de dentro da casa e que espancaram antes
do “doutor Godói” é essencial para se
de saber quem era, não era o Dioguinho.
compreender a estrutura sob a qual a
Todo esse ato demonstra o poder
obra é construída: o bem versus o mal, a
exercido pela escolta policial que
civilização versus a barbárie, a cidade versus
pretendia impor autoridade com sua
o campo, o progresso versus o atraso,
presença e ação repressora sob os demais
entre outras dicotomias semelhantes que
segmentos sociais, inclusive sob pessoas
podem ser pensadas a partir do mote
que não estavam envolvidas na questão,
principal de o mocinho versus o bandido.
como era o caso desse homem que, por
Nesse âmbito, há um episódio não querer abrir a porta, teve a casa
interessante que ilustra o momento em invadida.
que a escolta chega a uma casa suspeita,
O caso mostra não apenas a
isolada no meio do mato, e a atitude de
arbitrariedade e a violência da polícia,
um dos soldados serve ao personagem
mas também o quanto isso era
Joaquim (ex-capanga de Diogo que
naturalizado e aceito como um
auxiliava os policiais na captura ao
comportamento legítimo. A narrativa que
bandido) como comparação em relação
prevalece é, por incrível que pareça, a da
ao que ele considerava como valentia:
valentia do soldado responsável por essa
Seu doutor mandou derrubar a ação. O nível de marginalização e
porta abaixo, o homem não abria barbarismo atribuído aos sertanejos é
mesmo. tamanho a ponto de simplesmente soar
como normal a sua exclusão de qualquer
Um daquelles cuéras de S. Paulo, direito ou cidadania simbolizando a
cabra memo de tutano, só disse submissão completa do “selvagem
ansim p'ra seu doutor, com sua
licença, e foi fastando p'ra trás, p'ra
interior” perante a “civilizada capital”.
trás e de repente frechou p'ra A narrativa que finaliza a obra
porta, lascando a cabeça e os de Godói parece, a princípio, render certa
hombros na foia da dita, que veio homenagem a Diogo com um final de
abaixo com um baruião. Sojeito de forte apelo popular que revela um
merecimento o tal soldado!
Dioguinho invulnerável:
O Joaquim quando viu aquillo
A canôa tomou rumo da margem
ficou sabendo com quem tratava e
opposta, vencendo a correnteza.
que pela primeira vez o negro ficou
com vergonha das bravuras de Nisto, um soldado da escolta
força que elle andou fazendo. Isso, lembrou-se que tinha se esquecido
afinal, não era nada em de engatilhar a carabina e, fazendo
comparação do que o diabo do isso, seu Diogo ouviu o tréc, tréc
soldado fez. O homem tafuiou p'ra do cão que alevantava, descofiou,
casa à dentro, no escuro, veja bem, poz-se em pé na canôa e abriu o
no escuro, em termo de levar u'a peito mostrando um bentinho.
carga de chumbo memo na cara ou
de ir espetar o buxo nalguma faca. Foi hora

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A escolta disparou uma descarga Godói porque não aparece em nenhuma


cerrada. Só sei Joãozinho cahiu outra produção acerca de Dioguinho. Se
morto n'agua, que seu Diogo, em considerado o compromisso que o autor
pé, benzia-se, fazendo o signal da havia assumido com a “verdade”, pode-se
cruz. A canôa, sem governo, foi pensar então que, nesse momento, ele
descendo o rio de mansinho. A
fusilaria roncava e a gente só via o
“adere” abertamente a uma “perspectiva
barui das balas que batiam no peito ficcional” para narrar o episódio insólito
de seu Diogo e cahiam no rio – da invulnerabilidade do bandoleiro.
plof! plof! plof! Viram que bala não A leitura particular do autor foi
pegava no homem, mas foram moldada por seus interesses e por suas
seguindo, os da escolta,
idiossincrasias. Patt Garret, delegado que
acompanhando a canôa pela
margem e disparando, sempre, à
matou Billy the Kid e escreveu a obra que
queima-roupa, cada tiro que se tornou a principal sobre esse
parecia uma roqueira; mas seu bandoleiro, tinha também o objetivo de
Diogo continuava em pé, sereno, corrigir falsas informações, de destacar as
sem um tremor de corpo, a virtudes do cowboy norte-americano e
bemzer-se e a fazer o signal da relatar a verdade “num inglês inteligível”
cruz, a mode que como uma figura e “sem exageros” (GARRET, 2011, p.
malina. 26), no entanto, produziu o livro que
mais auxiliou na construção da lenda e do
Nisto as aguas do Mogy
encresparam-se, numa baruieira. mito em torno de Billy the Kid devido ao
Um trovão reboou feio pelo acentuado valor que ele atribuiu às
espaço. As descargas succediam-se. práticas criminosas do bandido e às fugas
Rabearam relampagos e foi mirabolantes, as quais visavam
desabando o temporal. propositadamente, assim como na obra
de Godói, engrandecer o perseguidor.
[…]
Nesse epílogo das façanhas de
Os soldados da escolta, dando a Dioguinho, é possível pensar, num
ultima descarga, mal tiveram tempo primeiro momento, que o autor aderiu à
de fugir perseguidos de perto pela ideia de criar uma história bem ao gosto
innundação que crescia sempre, popular aproveitando-se das lendas
num escachoeiramento medonho (sobre a hipótese de Dioguinho estar
de tormenta.
vivo) que ainda circulavam. Sem excluir
E só, lá no rio, como um essa hipótese, tal desfecho também pode
mandingueiro, em pé sobre a ser entendido como o ápice da posição
cânoa, com o peito descoberto conservadora, conformista e derrotista do
onde se via o bentinho sagrado, e a delegado, segundo a qual não adiantaria o
cabeça rodeada de relampagos, preparo e o poder das escoltas enviadas
Dioguinho fantastico e ao sertão paulista que a barbárie não seria
sobrehumano, fugia levado pelo extirpada, pelo contrário, continuaria lá
impeto da torrente... com seu domínio sobre a população
O cadaver de seu Joãozinho, meio inculta e incivilizada, resistindo a
corpo fóra d'agua, escoltava a qualquer tentativa de mudança.
canôa, balouçando a cabeça Não se pode esquecer que o
ensanguentada, sinistramente.
narrador é o Curytibano, sujeito
E desappareceram (MATTAS, ignorante que acreditava em um
1903, p. 111). Dioguinho “asseparado”, místico. Nesse
âmbito, a intenção do autor talvez tenha
Esse final épico e sobrenatural é sido a de ridicularizar aquela sociedade
uma recriação particular de Antônio de com suas gabarolices e seus habitantes

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ingênuos e supersticiosos que ainda Dioguinho, são unânimes em revelar a


acreditavam em eventos sobrenaturais trajetória de um facínora sanguinário e
dessa ordem. em camuflar convenientemente os seus
cúmplices (os mandantes e os protetores),
É difícil propor acertadamente o
o descaso do governo, o preconceito
objetivo de Antônio de Godói devido ao
social e xenofóbico e o despreparo do
problema de se saber quem, de fato, está
aparelho policial.
narrando. No entanto, as hipóteses
mencionadas corroboram para a O “resgate” do personagem em
construção de um Dioguinho perverso, 1949 foi crucial para as releituras
sádico, selvagem, louco e inatingível, de produzidas nas décadas seguintes, as
uma sociedade supersticiosa e de uma quais tiveram como ponto de partida as
polícia que, apesar de preparada, não narrativas de João Amoroso Netto, mas
conseguiria incutir a “ordem” e o “bom incluíram elementos que ressignificaram a
senso” devido ao estágio acentuado de figura do bandoleiro. Pensado nesse
atraso daqueles núcleos urbanos do aspecto, essas três primeiras obras (em
interior paulista. menor instância a de João Rodrigues
Sem preocupar-se com uma Guião) elaboraram os principais
parâmetros para as representações que se
escrita mais aprimorada, Antônio de
Godói insere um narrador que, sendo seguiram, já que a imagem predominante
nessas narrativas impressas destoa do
membro do bando de Dioguinho e não
tendo nada a perder, revela tudo sobre o Dioguinho que, de acordo com Selma
Carvalho (1988), figura nos autos dos
personagem. João das Mattas
(Curytibano) representaria a crença e as processos. O personagem foi “editado”
histórias populares existentes sobre o para figurar nos jornais e seus contornos
bandido. Ele narra alguns dos crimes, a básicos transformaram-se em pretexto
louvada perseguição policial e o para essas narrativas que geraram um
misterioso “fim” do personagem. A personagem a partir de histórias oriundas
ideologia que perpassa a narrativa é bem da oralidade, porém filtradas por
clara ao retomar a dicotomia entre sertão ideologias e idiossincrasias. De qualquer
e cidade enquanto barbárie versus forma, essas narrativas são relevantes
civilização. Ao apresentar um narrador para se compreender as variadas
interpretações e usos que a figura de
que acredita na invulnerabilidade de
Dioguinho, o discurso de Godói Dioguinho recebeu, as quais acabaram
envereda-se por uma visão pessimista que por marcá-lo, em alguns pontos,
considerava a ignorância e a superstição definitivamente.
que reinava nas regiões isoladas do sertão
Referências
paulista como entraves para o progresso e
para a tão sonhada civilização. AMOROSO NETTO, João. História completa
“Dioguinho vivo?” é a pergunta que e verídica do famoso bandido paulista Diogo
intitula as narrativas do delegado da Rocha Figueira mais conhecido pelo
publicadas no Correio Paulistano. A dúvida cognome de Dioguinho. São Paulo: Gráfica da
rua do Hipódromo,1949.
relativa à existência do temido
bandoleiro, aliada ao épico final narrado CARVALHO, Selma Siqueira. Dioguinho:
por Curytibano, metaforiza a concepção estudo de caso de um bandido paulista.
Dissertação de mestrado, PUC-SP, 1988.
do autor de que apesar das tentativas
“civilizatórias”, continuavam vivas as FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens
crendices populares e o atraso dos livres na ordem escravocrata. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997.
sertanejos.
GARCIA, João. Dioguinho. O matador de
A narrativa de Godói, assim punhos de renda. São Paulo: Editora Casa
como as outras sobre o bandido Amarela, 2002.

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GARRET, Pat. Billy the Kid. Tradução de civilização do delegado: modernidade, polícia e
Rosaura Eichenberg. Porto Alegre: L&PM, 2011 sociedade em São Paulo nas primeiras décadas da
República, 1889-1930. São Paulo: [Tese de
GUIÃO, João Rodrigues. Dioguinho: romance.
doutorado em História]. USP, 2013.
São Paulo: Editora: ao Autor, 1954.
ROMERO, Mariza. Inúteis e perigosos: o
MATTAS, João das. Dioguinho: narrativa de um
“Diário da Noite” e a representação das classes
cúmplice em dialecto. Ribeirão Preto: Livraria
populares, São Paulo (1950-1960). São Paulo:
Central, 1903.
[Tese de doutorado em História], PUC-SP, 2008.
MARTINS, Marcelo Tadeu Quintanilha. A

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