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EXISTE PSICANÁLISE BRASILEIRA?

A história e o legado de Lélia Gonzalez


Essa questão questiona a própria existência de psicanalistas brasileiros, do
apagamento, do recalque da vinda da psicanálise para o Brasil. Assim como duvidar da
atuação de Lélia Gonzalez (1935-1994) como psicanalista. Ela foi militante do movimento
negro e feminista, fundando o Movimento Negro Unificado em 1978, atuando fortemente em
torno das questões culturais, colocando em questão quem somos como brasileiros e
brasileiras. Por isso, é importante resgatar a memória, memória essa que Lélia deixou marcas.
A memória diz de um estranho-familiar, como articula Freud, e Lélia nomeia como um não-
saber que conhece.
Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz
presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar
de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que
memória inclui. (GONZALEZ, Lélia, 2020, p. 78)

O apagamento não se dá por inteiro, deixa falhas, resquícios em que se resgata com a
memória. “Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura; por isso, ela fala através
das mancadas do discurso da consciência (GONZALEZ, 2020, p. 79).” Os atos-falhos dão
espaço para o retorno daquilo que foi recalcado a tempos, estando sempre ali aquele
conteúdo, mas sem ser acessado. O recalque aqui podemos ilustrar como o apagamento da
história do Brasil, como um encobrimento. Enquanto que os atos-falhos se apresentam como
falhas na linguagem, como as mancadas no discurso que Lélia fala, isso diz do pretuguês,
conceito a ser trazido em seguida. Atos-falhos aqui, entende-se como as mancadas do
discurso da consciência que traz a autora, como trocar palavras, inverter a ordem, falar algo
de forma equivocada, mas que inconscientemente teve uma razão para ser falada.
Me inspirando também em bell hooks (2021) a partir de seu livro Pertencimento: uma
cultura do lugar, resgatar memórias de um lugar, de um povo, atravessa o nosso
pertencimento. Se sentir num não-lugar retrata marcas de uma memória social e coletiva, que
diz do passado e é presente ao mesmo tempo.
Atentar que a história da Psicanálise brasileira é invisibilizada, construída por pessoas
negras como Juliano Moreira, Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez,
Isildinha Batista, Cida Bento. Conceber o racismo como sintoma social é reconhecer a sua
forma estrutural original, mas não somente, que perpassa de inconsciente a inconsciente. Essa
invisibilidade é culpa da branquitude e por consequência, do embranquecimento no Brasil.
Nos reconhecer e nos racializar enquanto pessoas brancas e analistas brancos, permeados pela
branquitude é o que devemos, entretanto, saber que assim como Lélia nos aponta, somos
todos ladinos amefricanos e ameríndios e isso nos constitui enquanto cultura brasileira.
Portanto, o racismo é o sintoma da neurose cultural brasileira, e ele se assume como forma de
denegação, no qual negamos fazer parte da amefricanidade.
O mito da democracia racial diz muito sobre, pensando que o racismo teve fim com a
miscigenação, como Gilberto Freyre coloca, mas é aí que a discriminação racial se situa, e
Lélia questiona essa democracia racial, sendo um mito, pois o racismo nunca teve fim.
A amefricanidade e o pretuguês se tornaram um dos conceitos fundamentais deixados
por Lélia. A amefricanidade se trata de uma identidade afro-latina-americana, como um
resgate das bases identitárias, tendo etnias apagadas a força numa diáspora, com os povos se
espalhado e se separado pelo Brasil, pois unidos eram uma ameaça para a cultura brasileira
do embranquecimento. Ao resgatar essas memórias hoje é como tentar unificar o que um dia
foi separado, é trazer a consciência o que foi recalcado, como o retorno do recalcado que
sempre retorna uma hora ou outra como concebemos na psicanálise.
O pretuguês dá notícia de resquícios na linguagem que deixaram marcas, como
mancadas no discurso da consciência em que Lélia situa, resgatando a memória do pretuguês,
que é a africanização da língua portuguesa, sendo colocado também como a língua do infans,
como infantil, por ter a ideia de falar “errado”, considerando o certo como o português
europeu que tentou fazer de sua língua a nossa. Podemos assim pensar em como a língua se
relaciona com as formações do inconsciente, sendo estruturadas como linguagem.
Lélia nos diz que as “formações do inconsciente não são exclusivamente europeias e
brancas” (GONZALEZ, 1988, p. 69). Por isso, devemos considerar como se constitui um
sujeito não europeu e sim brasileiro, divergindo do que a teoria freudiana e lacaniana nos
endereçou até então. Freud nos dá indícios de que há uma tentativa de trabalhar acerca dos
fenômenos sócio-culturais e políticos, o que não ocorreu em seguida, tendo a psicanálise a se
tornar eurocêntrica e elitista, ignorando as questões sócio-culturais e políticas. Hoje vemos a
importância do trabalho de Lélia, finalmente, por ter resgatado a cultura do nosso próprio
território através da psicanálise, mas que apenas recentemente ela teve voz, e cada vez mais
se vê ela sendo lida nos meios psicanalíticos. O que gera um questionamento em torno disso:
por que psicanalistas estão lendo tanto Lélia agora?
No texto da Lélia: A mulher negra na sociedade brasileira, a língua se torna um meio
de transformação cultural que não têm reconhecimento, através do pretuguês ter sido
instaurado na linguagem brasileira, e quem executa essa instauração é a mãe preta, a babá do
brasileiro branco, junto do pai João que trazem a cultura africana para o brasileiro branco,
como valores e crenças.
Em Racismo e sexismo, a forma como a autora vai desvendar o racismo e o desejo no
Brasil é apresentada por três figuras: a mulata, a doméstica e a mãe preta. Ao destacar a mãe
preta aquela que transmite o pretuguês, é ela “quem vai dar uma rasteira na raça dominante”
(GONZALEZ, 1984, p. 235). Existem imagens que registram o ocultamento da figura da mãe
preta como babá, como forma de não remeter a constituição subjetiva da criança.
IMAGENS
Reconhecer o poder da babá como agente social – e não mais apenas como substituta
da mãe no romance familiar – teria exigido de Freud uma elaboração distinta do
complexo de Édipo que alcançaria uma outra disposição dos elementos masculino e
feminino, pois o ocultamento da babá se desdobra na atribuição, em separado, do
poder da punição social ao pai e do poder de suscitar o desejo sexual à mãe.
(SILVEIRA, 2022, p. 6)
O que Gonzalez nos aponta com isso é a presente ausência da mãe preta no
pensamento de Freud, o que consiste na denegação do racismo, se tornando parte da neurose
cultural brasileira. Logo, Rita Segato (2006) em O édipo brasileiro, nos traz a compreensão
de uma dupla negação através do complexo edipiano: de raça e de gênero, com o racismo e
misoginia presentes, negando a existência da mãe preta, enquanto mulher negra como
instauradora da cultura brasileira, contrariando a democracia racial pertinente. Ainda, a autora
reflete: “a perda do corpo materno, ou castração simbólica no sentido lacaniano, vincula
definitivamente a relação materna com a relação racial, a negação da mãe com a negação da
raça e as dificuldades de sua inscrição simbólica” (SEGATO, 2006, p. 16). O que consiste na
maternidade e racialidade denegadas, denunciando o racismo e a misoginia presentes.
A teoria edipiana de Freud preservada por Lacan, deixou dívidas por conta do
apagamento da babá na criação e desenvolvimento psicossexual da criança branca de classe
média. “(...) Freud recoloca a mãe como objeto do desejo e o pai como sujeito do poder social
e econômico e, assim, violentamente fecha a porta do romance familiar para esse intrusivo e
inadmissivelmente poderoso membro da classe trabalhadora feminina”. (McCLINTOCK,
2010, p. 152). É graças à mãe preta que nos constituímos enquanto sujeitos do inconsciente,
na cultura brasileira, e é ela quem nomeia o pai enquanto inscrição do Nome-do-pai na
criança, inconscientemente.
Portanto, é graças a Lélia que podemos ter a consciência dessa neurose cultural
brasileira hoje, partindo da teoria do complexo de Édipo em que ela opera, se relaciona entre
o simbólico e a masculinidade, problematizações centrais dentro de sistemas sociais
patriarcais, desapropriando mulheres ao espaço público, principalmente negras. Para concluir,
nos resta estender essa questão de que existe uma psicanálise brasileira acerca dos povos
indígenas, que tem um outro apagamento, principalmente em torno da psicanálise, ainda com
tantas etnias para serem consideradas e suas linguagens, algo fundamental para a teoria
analítica.

A Última Floresta (2020) - Trailer

De todo modo, a cultura indígena é também apagada, e é importante considerar que


antes do Brasil ser quilomba ele foi aldeia, e isso retrata diversas etnias indígenas que foram
os primeiros brasileiros a habitar nosso território enquanto povos originários, e portanto
diversas formas de linguagem, e isso aparece como uma lacuna na psicanálise, não tendo
tanto acesso à essa cultura, que diz muito do nosso território. Contudo, reflorestar o nosso
imaginário é uma colocação significativa para pensarmos sobre o contato com nosso território
e o inconsciente, ter um lugar no mundo como símbolo de pertencimento, devolvendo essa
potência da vida como traz Ailton Krenak (2022) em seu livro O futuro é ancestral. Acredito
que seja uma saída, quem sabe uma cura, seja para a terra, seja para nós. Entretanto, é preciso
criar uma ponte que sirva como pontos de conexão entre a coletividade, como uma rede.
Pensei em trazer a psicanálise brasileira em torno desse recorte de raça, etnia e
território, mas ainda podemos abranger para autores brasileiros que tem o recorte de gênero
em destaque, porém prefiro deixar para outro módulo em que abordaremos mais sobre a
interseccionalidade de forma mais abrangente.
Referências

GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. Por um feminismo afro-


latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios, Márcia Lima.
1ª edição - Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.

_______________. A categoria político-cultural da amefricanidade. Por um feminismo


afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios, Márcia
Lima. 1ª edição - Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.
_______________. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-
econômica. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos.
Organização: Flavia Rios, Márcia Lima. 1ª edição - Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.

_______________. A democracia racial: uma militância. Por um feminismo afro-latino-


americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios, Márcia Lima. 1ª
edição - Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.

HOOKS, bell. Pertencimento: uma cultura do lugar. Tradução: Renata Balbino. Editora
Elefante, 2021

KRENAK, Ailton. O futuro é ancestral. Companhia das letras: São Paulo, 2022.

McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.


Traduzido por Plínio Dentzien. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

SEGATO, Rita. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 2006. (Série Antropologia)

SILVEIRA, Léa. “A mãe preta e o Nome-do-pai: Questões com Lélia Gonzalez”. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e79996, 2022.

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