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O império luso-brasileiro e

a questão da dependência inglesa – um estudo de caso:


a política mercantilista durante a Época Pombalina,
e a sombra do Tratado de Methuen

Francisco José Calazans Falcon


Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense

Palavras-chave Resumo Abstract


mercantilismo, pombalismo, O autor analisa no presente artigo as relações In this paper, the author analyzes the relations
protecionismo, tratados entre Portugal e Inglaterra no século XVIII, between Portugal and England during the 18th
comerciais anglo-lusitanos, com ênfase no período correspondente ao rei- century, with emphasis on the period
companhias de comércio. nado de D. José I, durante o qual afirmou-se corresponding to the reign of D. José I, during
Classificação JEL N43, N46. o poder de seu Secretário de Estado, Sebas- which the Marquis of Pombal, his Secretary of
tião José de Carvalho e Melo (depois Conde State, wielded considerable power. With the
de Oeiras e Marquês de Pombal). Tendo o Treaty of Methuen (1703) as a backdrop, the
Tratado de Methuen (1703) como pano de text addresses the issues which, over successive
fundo, o texto enfoca, ao longo de sucessivos periods, marked the tensions and conflicts in the
períodos, as questões que marcaram as ten- economic and diplomatic relations between
sões e conflitos no âmbito das relações eco- England and Portugal. Special attention is
nômicas e diplomáticas anglo-lusitanas com given to the review of documents of the era, from
especial atenção ao exame de documentos de the National Library of Lisbon and the Lisbon
época existentes na Biblioteca Nacional de Academy of Sciences. Contrary to what a rather
Lisboa e na Academia de Ciências de Lisboa. crystallized tradition teaches us, the British-
Ao contrário do que nos ensina uma tradição Portuguese relations during Pombal’s period are
já um tanto cristalizada, as relações anglo-lusi- rather ambiguous, fluctuating between Portugal’s
Key words
tanas à época de Pombal se revelam bastante dependence with regard to economic interests and
ambíguas, oscilando entre a dependência de British political support, and the defense of
mercantilism, Pombal era,
Portugal em relação aos interesses econômi- trade, manufacturing and agricultural interests
protectionism, Anglo-Portuguese
cos e o apoio político britânico e a defesa dos of the Portuguese crown and its overseas empire.
trade treaties, trade companies.
interesses mercantis, manufatureiros e agríco-
JEL Classification N43, las do reino luso e de seu império ultramarino.
N46.

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12 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

1_ Recordando uma discussão ros, ora para afirmar, ora para negar sua
já antiga: o impacto de Methuen influência sobre os rumos e as caracterís-
sobre o desenvolvimento ticas da história econômica de Portugal e
econômico português do seu império.
Na verdade, o Tratado de Methu-
Não é intenção nossa refazermos aqui o
en foi objeto de críticas e debates desde o
longo itinerário historiográfico das dis-
dia seguinte à sua assinatura, tanto na
cussões e interpretações a respeito do
Inglaterra quanto em Portugal. Tais polê-
Tratado de Methuen (dezembro de 1703).
micas intensificaram-se durante o século
Trata-se apenas de mencionar algumas
XIX e entraram pelo século XX, caben-
obras e autores que possam exemplifi-
do então ao historiador João Lucio de
car em termos contemporâneos a per-
Azevedo, ao escrever, nos anos 20 do sé-
manência dos debates sobre a dependência
culo passado, seu conhecido livro Épocas
inglesa e o papel aí desempenhado pelo
de Portugal Econômico, dar ao VII e último
referido tratado.
capítulo da referida obra o título bastante
O Tratado de Methuen, ou, me-
significativo de “No signo de Methuen”.
lhor dizendo, os tratados firmados em
João Lucio, tal como outros autores an-
1703 entre Portugal e Inglaterra (além da
tes ou depois, associou as cláusulas co-
Holanda, no caso do primeiro tratado)
merciais de Methuen – seus prós e con-
resultaram dos problemas trazidos para a
tras – à nova conjuntura resultante da
política externa portuguesa pela questão chegada do ouro brasileiro:
da sucessão da coroa espanhola, após a
morte de Carlos II. O oiro das minas, que através da Inglater-
Entre nós, foi provavelmente Fer- ra se espalhava pela Europa, preenchia
nando Novais quem melhor examinou as a diferença (o déficit comercial) (Azevedo,
1947, p. 405).
circunstâncias político-diplomáticas e os
problemas econômicos que levaram Por- Esse tipo de associação – entre as
tugal a ceder às pressões anglo-holande- cláusulas de Methuen e o afluxo aurífero
sas e tomar partido contra a França e a das minas do Brasil – estava destinado
Espanha (Novais, 1979, p. 22-31). Antes a uma longa existência, conforme aí se
e após a tese de Novais, no entanto, a alu- punha em relevo uma série de conse-
são ao Tratado de Methuen é uma cons- qüências econômicas decisivas atribuídas
tante entre os historiadores luso-brasilei- àquele afluxo: sua importância para a

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expansão da economia britânica – inclu- em Madri. Logo a seguir, após as duas


sive, como querem muitos, para a reali- páginas iniciais da Profecia, tem início
zação da Revolução Industrial; seu papel de- o “Discurso Político das utilidades que
cisivo para o equilíbrio das finanças régias Portugal pode tirar das suas desgraças”,
e da balança comercial anglo-lusitana e, vindo a seguir uma “Relação histórica do
finalmente, seu impacto sobre o desen- terramoto de Lisboa”.
volvimento da própria colônia (Furtado, Todos esses textos foram duran-
1961, p. 46-47 e 97-101). te muito tempo atribuídos ao Marquês
Nessa linha interpretativa, embo- de Pombal, havendo somente duas exce-
ra de maneira mais sistemática e baseada ções importantes quanto à tal atribuição
em ampla pesquisa documental, merece de autoria na historiografia pombalina:
destaque o livro de Virgilio Noya Pinto – João Lucio de Azevedo e Jorge Borges
O ouro brasileiro e o comércio anglo-português de Macedo, conforme assinala José Bar-
–, sobretudo às páginas 24 a 38, uma vez reto num estudo intitulado “O Discurso
que, segundo o mesmo autor, o impacto Político falsamente atribuído ao Marquês
teria sido não apenas ibérico, mas, acima de Pombal” (Barreto, 1982-1983).
de tudo, mundial, além, é claro, da in- Aliás, parece-nos um tanto inútil a
fluência que teve a mineração sobre a insistência em se atribuir a Pombal um tex-
economia da própria colônia (Pinto, 1979). to como esse do Discurso Político, quando,
Em Portugal, em 1972, Armando desde 1904, um artigo de G. C. Wheeler já
Castro publicou um livro intitulado A do- havia analisado atentamente a questão e
minação inglesa em Portugal, na realidade um demonstrado que o verdadeiro autor fora
breve estudo seguido de uma Antologia de um conhecido escritor e aventureiro cha-
textos dos séculos XVIII e XIX. Interes- mado Ange Goudar, autor de diversas
sa-nos aqui o primeiro desses textos, inti- obras interessantes no contexto setecen-
tulado “Profecia política, verificada no tista (Wheeler, 1904). Na verdade, é até
que está sucedendo aos portugueses pela possível que o Discurso tenha sido escrito
sua cega afeição aos Ingleses”. por encomenda de Pombal, numa prática
Declara-se ainda, na folha de ros- por ele utilizada em várias oportunida-
to, que a referida obra foi escrita depois des, como iremos referir mais adiante.
do Terremoto do ano de 1755, e publica- Jorge Borges de Macedo, no livro
da por ordem superior no ano de 1762, Problemas de história da indústria portuguesa

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no século XVIII, questiona as corriquei- no sentido de minimizar bastante a in-


ras interpretações que fazem do Tratado fluência da chamada dependência britâ-
de Methuen o fator responsável pelo in- nica para a compreensão dos problemas
sucesso do desenvolvimento das manu- estruturais e conjunturais da economia lu-
faturas em Portugal no Setecentos. No so-brasileira no final do século XVIII e
capítulo I, ao analisar “A concorrência in- começos do XIX (Pedreira, 1994).
glesa no mercado português, do Conde Por intermédio dessas referências
da Ericeira ao Tratado de Methuen”, Ma- um tanto pontuais, convenhamos, quise-
cedo rejeita a tendência de analisar-se a mos apenas chamar a atenção dos nossos
questão da indústria portuguesa antes e de- leitores para a natureza da polêmica acerca
pois de Methuen, uma vez que tal perspecti- do impacto do Tratado de Methuen, de de-
va não parece corresponder às condições zembro de 1703. Do ponto de vista do
em que se desenrolou a economia da presente trabalho, trata-se somente de si-
época, já que o Tratado não cria para a in- tuar as idéias e práticas propriamente pom-
dústria portuguesa uma situação nova. balinas no curso dessa corrente historiográ-
Ainda segundo o mesmo historiador, fica que se prolonga até o tempo presente.
o acesso a Portugal do ouro brasileiro e,
depois, dos diamantes, criaram uma situ-
ação muito mais compressiva para a in- 2_ A questão da dependência/
dústria do que a difusão dos tecidos ingle- dominação inglesa na segunda
ses de lã, parcialmente compensada com a metade do século XVIII
exportação de vinho (Macedo, 1963, p. 55). – as relações anglo-lusas
Também o historiador Jorge Mi- durante a Época Pombalina
guel Viana Pedreira, no livro intitulado Convém aqui, em primeiro lugar, encarar
Estrutura industrial e mercado colonial. Portu- com cautela certas interpretações que ten-
gal e Brasil (1780-1830), discute, no capí- dem a caracterizar a política pombalina
tulo I – “Surtos e crises. Manufaturas, como radicalmente antibritânica e marcada
Conjuntura e Política Econômica (1670- por uma espécie de nacionalismo econômico
1790)”, onde retoma e aprofunda a aná- hostil à presença inglesa na economia de
lise empreendida por Macedo e, apesar Portugal. Como tivemos oportunidade
de algumas discordâncias com relação de assinalar em A Época Pombalina, a atri-
a esse último, desenvolve sua explicação buição a Pombal de um intuito nacionali-

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zante, hostil à Grã-Bretanha, como fez primeiro deles, ou seja, o das relações eco-
Kenneth Maxwell, parece-nos um pouco nômicas anglo-lusitanas, assim como, em ca-
exagerada e um tanto anacrônica (Fal- ráter complementar, o sétimo e último,
con, 1982; Maxwell, 1968). Conforme relativo ao material produzido após 1777.
destacamos naquele nosso trabalho, de Inclui-se no primeiro grupo uma grande
acordo aliás com outros historiadores tan- variedade de textos, em geral produzidos
to portugueses como brasileiros, é neces- por Carvalho e Melo, correspondentes ao
sário relativizar bastante a interpretação período de 1738 até 1777. O que unifica
do sentido das idéias e práticas pomba- ou confere sentido a essa variedade de
linas concernentes às relações anglo-lu- textos é a permanente contradição que
sitanas, pois, na verdade, elas atendem neles se observa entre a antiga aliança in-
a exigências político-econômicas bastan- glesa e o crescente choque de interesses
te contraditórias. econômicos entre Portugal e Inglaterra.
Os textos produzidos por Sebas- Do ângulo que aqui mais nos inte-
tião José de Carvalho e Melo constituem ressa – as formulações mais tipicamente
uma documentação extremamente rica econômicas – os textos selecionados foram
e que nos oferece uma visão bastante reunidos em fases ou etapas cronologica-
ampla de toda uma constelação de pro- mente sucessivas, ao mesmo tempo em
blemas em relação aos quais o futuro que buscamos selecionar, no âmbito de
Marquês de Pombal foi levado a se mani- cada uma delas, aqueles documentos que
festar mesmo antes de chegar ao poder. consideramos como os mais representa-
Cronologicamente, tais textos abran- tivos das idéias econômicas, ou político-
gem o período situado entre 1738-1739 e econômicas, de Pombal. Teríamos então
as seguintes fases:
1777-1782, isto é, desde a chegada de
Carvalho e Melo a Londres, em outubro a. Londres (1738-1742) e Viena
de 1738, até o período que se seguiu (1745-1749);
à sua demissão, em 1777, quando escre- b. os primeiros anos da governação:
veu suas Inspeções e Apologias, a fim de de- 1750-1762;
fender-se dos ataques e das acusações c. a governação entre 1762 e 1774;
de seus inimigos. d. apogeu e crise da governação –
Entre os sete grupos em que clas- 1775-1777;
sificamos os textos pombalinos (Falcon, e. queda e exílio em Pombal –
1982, p. 280-281), interessa-nos aqui o 1777-1782.

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16 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

2.1_ A primeira fase – Londres cadores ingleses nos portos do Brasil e que em
(1738-1742) e Viena (1745-1749) Inglaterra é hoje impraticável a redução da tarifa
Destaca-se nesse período a correspon- da Alfândega aos termos artigo secreto de 1654.
dência diplomática londrina, na qual Car- Acrescente-se, ainda, que, em uma
valho e Melo registra minuciosamente suas das cópias dos Gravames, consta “Feito
conversações com os ministros ingleses, no ano de 1740 em Londres”, enquanto
assim como os rumores mais diversos que a Exposição dos Fundamentos tem a data
acerca de ameaças aos interesses portu- de 6 de janeiro de 1741. José Barreto, em
gueses na América e na Índia. Queixas e 1986, publicou, em edição da Biblioteca
reivindicações expostas em longas expo- Nacional (de Lisboa) uma coletânea dos
sições misturam-se às elucubrações do Escritos Econômicos de Londres (1741-1742),
enviado de D. João V acerca das reais ou de Sebastião José de Carvalho e Melo, da
supostas maquinações britânicas contra os qual constam várias cartas de oficio e
legítimos interesses e aos direitos de Portugal. particulares dirigidas por Carvalho e Me-
Selecionamos aqui, como dos mais lo a Marco Antonio de Azevedo Couti-
representativos, dois textos constantes do nho e ao Cardeal da Mota. A Relação dos
Códice 635 da Coleção Pombalina da Bi- Gravames está anexada à carta de oficio
blioteca Nacional de Lisboa (fls. 236-274): dirigida a Marco Antonio de Azevedo
a Relação dos Gravames que ao Comércio e Vas- Coutinho, em 2 de janeiro de 1741 (Car-
salos de Portugal se tem inferido e estão atualmente valho e Melo, 1986, p. 33-95).1 1 A Relação dos Gravames...

inferindo por Inglaterra com as infrações que dos Podemos acrescentar a esses dois e a Exposição dos fundamentos...
pactos recíprocos se tem feito por este Segundo Rei- aparecem em vários
textos polêmicos alguns dos temas abor- manuscritos, os mais antigos
no; assim nos atos do Parlamento que publicou, co- dados por Carvalho e Melo em sua cor- em versões integrais e,
mo nos costumes que estabeleceu; e nos outros diver- respondência com Azevedo Coutinho os mais recentes, sob o título
sos meios de que se serviu para fraudar os Tratados de Substancia dos gravames...
e com o Cardeal da Mota, tais como: a
Após compará-los,
do Comércio entre as Duas Nações. desconfiança em relação às verdadeiras resolvemos reuni-los
Vem em segundo lugar, a Exposi- intenções e aos planos da Inglaterra em conforme a seguinte ordem:
ção dos Fundamentos porque El Rei N. S. se relação às disputas luso-espanholas em BNL (Biblioteca Nacional de
acha hoje desobrigado da observância dos artigos, Lisboa), Códice 635,
torno da Colônia do Sacramento; as sus-
fls. 216-231 e 236-274; Códice
a saber 11º do Tratado de 1654 e 11º e 13º do peitas nutridas pelo enviado português 687, fls. 275-282; F.G. (Fundo
Tratado de 1661, que permitem os navios e mer- em relação à fidelidade dos cristãos-no- Geral) 10.513 e 10.514.

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vos portugueses, ou judeus, como pre- 2. enumeração de algumas Máximas


fere tratá-los, sobretudo diante do fato gerais do comércio, a fim de que se
de estarem o Brasil e as conquistas espa- possa avaliar o “verdadeiro obje-
nholas cheias de judeus cuja vinculação tivo dos Atos do Parlamento e os
familiar com Londres e Amsterdã tor- danos que padecemos nos grava-
naria bastante suspeita sua fidelidade às mes que se lhes seguiram”.
coroas de Portugal e Espanha; as enor- 3. os tratados que estabelecem a na-
mes diferenças, em termos de custos, vegação dos vassalos de Portugal
entre as manufaturas inglesas e aquelas para os domínios da Inglaterra,
instaladas em Portugal, com evidentes livre e sem limitação, acompa-
desvantagens para os portugueses; o pro- nhados de uma análise dos impe-
jeto para a criação de uma Companhia dimentos opostos pelos ingleses
(de Comércio) da Índia Oriental elabo- àquela navegação e os conseqüen-
rado pelo Cavaleiro Clealand, em 1743, tes prejuízos causados a Portugal.
e por ele (Carvalho e Melo) remetido ao 4. a Exposição dos Gravames.
Cardeal da Mota. Observe-se, logo de saída, que os
A Relação dos Gravames compreen- chamados Gravames, bastante reais por si-
de quatro partes principais: nal, têm, pelo menos, um lado positivo
para Portugal: o descumprimento pelos
1. apresentação do problema das re-
ingleses das cláusulas relativas ao acesso
lações entre Portugal e Inglaterra de vassalos portugueses aos portos britâ-
– enquanto o primeiro arca com nicos justifica a proibição de entrarem
todos os ônus e as desvantagens, navios e mercadorias da Inglaterra nos
a segunda usufrui de tudo aquilo portos do Brasil, isto é, os impedimentos
que lhe parece vantajoso, sempre ao gozo de direitos geram prejuízos, que,
alegando, para eventuais quebras por sua vez, justificam o não-cumpri-
dos compromissos firmados, a mento também dos tratados pelos portu-
soberania do parlamento inglês e gueses naquilo que lhes seria prejudicial.
o respeito a costumes intocáveis, o Querendo expor às autoridades de
que, no entender de Carvalho e Lisboa a verdadeira natureza dos com-
Melo, constitui verdadeira fraude portamentos das autoridades britânicas,
das convenções recíprocas. Carvalho e Melo tenta apresentar-lhes

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aquelas que, no seu próprio entendimen- lor intrínseco. Contra o que pa-
to, constituem as Máximas gerais do comér- rece à primeira vista, se prova
cio que formam o espírito da Nação Inglesa: esta Máxima por muitas razões
que são demonstrativas;
1. não é a quantidade absoluta senão
5. toda Nação deve procurar no co-
a respectiva (relativa) que decide
mércio que faz receber os gêneros
das riquezas e das forças de qual-
alheios em materiais indigestos
quer Nação;
e crus e transportar os próprios
2. entre dois Estados que têm uma
para os introduzir nos domínios
Balança desigual no negócio re-
estranhos depois de serem digeri-
cíproco, se considera que aquele
dos e beneficiados pelas manufa-
de cuja parte está a diminuição fa-
turas. São muitas as razões e inte-
ria um notório interesse quando
resses que provam esta Máxima;
anualmente lançasse ao mar em
6. sendo tão grandes os interesses do
ouro um peso competente à pro-
comércio com os estrangeiros,
porção da vantagem ou da maioria
são ainda maiores os seus lucros
que sobre ele ganha o outro Esta-
quando ele se faz para as pró-
do com quem faz o comércio;
prias colônias. Não só é este o
3. o puro ganho que pode provir de
comércio mais útil mas também
qualquer Ramo do comércio não
o menos arriscado.2
é o único objeto de quem nele
trafica. Principal ou juntamente se Depois de haver assim decifrado
deve atender à navegação que o os princípios que norteiam a política bri-
mesmo comércio pode ocasionar. tânica, Carvalho e Melo passa a analisar
E com grande razão porque a na- os impedimentos e os prejuízos causados aos
vegação mercantil é a fonte de on- portugueses e que constituem a própria
de derivam as riquezas dos povos; essência dos Gravames.
4. ensina pela experiência com um Os impedimentos consistiam em ve-
aparente paradoxo que o comér- xações e discriminações impostas pelos
cio de mercadorias grosseiras e ingleses aos navios, mercadorias, mari-
volumosas é mais vantajoso a um nheiros e comerciantes lusos que aporta- 2 BNL, Códice 635,
Estado do que o dos gêneros vam à Inglaterra, ou que de seus portos fls. 216-231 e 236-274; Códice
mais finos e preciosos no seu va- tentavam extrair algum produto – o que 687, fls. 275-282.

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tornava impossível a utilização de barcos ses e irem estes por conta dos comissários
portugueses no tráfico com os portos ingleses debaixo dos navios emprestados,
britânicos, donde se conclui que: com o que perdemos ali a parte do comércio
que sempre nos tratados se reservou precí-
A falta de nossa navegação, ou impossibi- pua a respeito dos vassalos deste Reino.3
lidade que para ela constituíram os impe-
dimentos acima referidos, foi a verdadei- A exposição dos fundamentos dá se-
ra causa da ruína do nosso comércio e não qüência ao discurso dos gravames, adu-
somente o Tratado de 27 de dezembro de zindo, porém, novos argumentos. Em
1703, causando aquela impossibilidade primeiro lugar, há as circunstâncias que
gravíssimos e essenciais prejuízos à Coroa comandaram a assinatura dos já referidos
e aos particulares deste Reino. tratados com a Inglaterra – na verdade,
A seguir, são expostos em seqüên- extorquidos à fraqueza e à necessidade
completas em que se achava mergulhada
cia numérica os referidos prejuízos, os
a nação portuguesa –, tanto assim que,
quais poderíamos assim sintetizar: os co-
com o passar do tempo, foram os mes-
missários levaram para fora do Reino o
mos ingleses percebendo a exorbitância
ouro que resultou dos seus ganhos à cus-
daquelas convenções e não quiseram exi-
ta dos comerciantes e armadores lusos,
gir o seu cumprimento, mesmo porque,
na medida em que eles se apropriaram
também caberia aos portugueses, pelo
dos fretes e seguros, obtiveram lucros
Tratado de 1703, exigir acesso à América
como fornecedores e também como
inglesa. O comportamento inglês não se-
compradores dos produtos locais, finan-
ria fruto apenas da eqüidade, mas tam-
ciando assim e dominando a produção
bém da conveniência política, já que não
agrícola, impedindo por todos os meios
desejavam perder o seu tradicional ami-
a construção de navios em Portugal, e,
go e aliado; por razões muito parecidas,
em suma, especulando tanto em Lisboa
aliás, Portugal teria rejeitado as ofertas
quanto em Londres com o sacrifício da de alianças feitas pela França e pela Es-
pobreza dos lavradores e comerciantes panha. Argumenta, ainda, o mesmo dis-
nacionais, com reflexos até mesmo no curso com o fato de terem mudado as
tráfico da metrópole com as colônias. circunstâncias que haviam levado aos re-
13° prejuízo: Faltaram por aqueles prin- feridos tratados, uma vez que, com as
cípios os frutos que deviam ir passar ao descobertas de ouro e diamante no Bra-
3 BNL, Cód. 635, fls. 236-274. Brasil por conta dos lavradores portugue- sil, mudaram também as bases do co-

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20 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

mércio anglo-lusitano. Finalmente, argu- como comerciantes, banqueiros,


menta o autor do texto que os Atos do advogados, médicos, tudo enfim
Parlamento, ao infringir diversas cláusu- que leva Carvalho e Melo a escre-
las daqueles tratados, acabaram por alte- ver: “Não duvido que haja alguns
rar-lhes a substância, visto que “os Tra- Cristãos-Novos muito bons cató-
tados são como que corpos cujas partes licos, mas estes são raros, como
compõem um todo não se podendo mu- os milagres e os auxílios eficacís-
dá-las sem modificar ao mesmo tempo simos”.6 Daí então a grande sus-
aquele todo”.4 peita do autor: estando o Brasil e
Quanto à correspondência, há sem dú- as conquistas de Espanha cheias
vida um número razoável de tópicos inte- de judeus, certamente eles dariam
ressantes a destacar, especialmente alguns apoio aos ingleses, quando mais
que parecem estar sempre presentes às não fosse em função das suas vin-
preocupações do Enviado de D. João V: culações familiares e pessoais com
1. os receios quanto a um suposto Londres e Amsterdã;
projeto inglês para ocupar Bue- 3. em carta particular ao Cardeal da
nos Aires, cuja realização traria in- Mota (29/9/41), Carvalho e Melo
contáveis prejuízos para Portugal compara as manufaturas inglesas
– aumento do contrabando, amea- ao exemplo da Real Fábrica das
ça para o Rio Grande, controle Sedas, de Lisboa, e sublinha al-
sobre a erva-mate consumida nas gumas diferenças importantes, a
minas peruanas –, daí ser reco- começar pelo dimensionamento
mendável a rejeição das ofertas de no seu entender excessivo de tais
auxílio armado da Inglaterra con- empreendimentos em Portugal.
tra a Espanha, no caso da disputa Temos aí na realidade uma inte-
da Colônia do Sacramento;5 ressante análise empírica das di-
2. certa imagem negativa a respeito ferenças entre o sistema inglês
do judeu cuja presença universal das manufaturas dispersas, em
em todas as nações cristãs, sobre- função do trabalho doméstico e
tudo na Inglaterra e na Holanda, do putting out system, e o sistema 4 BNL, Cód. 687, fls. 275-282.
ou disfarçados de cristãos nos colbertista, baseado em grandes 5 BNL, Seção Pombalina,
países católicos, sempre errantes, edificações, concentração de arte- Cód. 655 , fls. 6 v. a 18.
6 BNL, Códice 656, fl. 13 v.
eles e os seus cabedais, atuando sãos, isto é, de manufaturas con-

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centradas. Curiosamente, Carva- lenta aos motins ocorridos na cidade do


lho e Melo critica os comercian- Porto, em 1757, contra a criação da Cia.
tes lusos por não se darem ao Geral da Agricultura dos Vinhos do Alto
trabalho de estudar as Máximas Douro; o atentado contra D. José I, em
e Regras do Negócio, razão do insu- 1758, e o processo dos Tavoras e de ou-
cesso de todos os projetos em tros membros da alta nobreza acusados
Portugal, já que seria incompatí- de participar da conspiração regicida; a
vel a dimensão excessiva com a expulsão dos padres da Cia. de Jesus, em
busca do lucro pelos negociantes. 1759, e, ainda, as complicações causadas à
Só o patrocínio régio pode por isso mes- política portuguesa pela Guerra dos Sete
mo levar a bom termo uma iniciativa Anos (1756-1763), uma vez que esse con-
como aquela (fábrica das sedas) que já flito veio agravar as disputas com a Espa-
causava inveja entre ingleses e france- nha, sobretudo na região do rio da Prata, e
ses, desejosos de arruiná-la. Deve-se, acabou por provocar a invasão do territó-
portanto, zelar pelo seu abastecimento rio português em 1762, forçando o gover-
de seda crua, proibindo exportações pa-
no luso, mais uma vez, a recorrer ao auxí-
ra a Inglaterra e intermediando a venda
lio militar e financeiro da Inglaterra.
desse mesmo material de Castela para
Londres, inclusive com lucros, naquela A criação de companhias de co-
conjuntura altista.7 mércio para o Grão-Pará e Maranhão e
para Pernambuco e Paraíba provocou rea-
No entanto, anos mais tarde seria
ções não apenas de setores mercantis lu-
exatamente esse modelo que ha-
sos, mas, sobretudo, dos comerciantes
veria de preponderar nas iniciati-
ingleses. A questão do abastecimento de
vas mais importantes de Pombal,
cereais também agravou as relações an-
tendo como objetivo o desen-
glo-lusitanas, já que constantes mano-
volvimento manufatureiro sob o
bras de especulação e açambarcamento
patrocínio régio.
de grãos foram postas em prática por
2.2_ A segunda fase – os primeiros comerciantes britânicos, contrariando o
anos da “governação”: 1750-1762 disposto no Regulamento do Terreiro do
Período dos mais agitados e decisivos, Trigo. A esse respeito, aliás, é significati-
pois foi então que tiveram lugar o Terre- vo um texto atribuído a Carvalho e Melo
7 BNL, Cód. 635, fls. 228. moto de Lisboa, em 1755; a repressão vio- e intitulado Compêndio histórico do que tem

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22 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

passado em Lisboa sobre a insistência de alguns conservar mas estreitar a amizade entre
negociantes ingleses e holandeses que de acordo Mim e El Rei Britânico”, sem perder de
com outros portugueses pretenderam em diferen- vista que o interesse inglês é maior pelo fa-
tes ocasiões fazer na mesma cidade um violento to de gozarem os seus negociantes gran-
monopólio do Pão (1753).8 des privilégios em Portugal e que sem eles
A fim de melhor ilustrarmos a si- “padeceria grande quebra o comércio e o
tuação em que se achavam então as re- conceito publico da Nação Inglesa”.
lações com a Inglaterra, selecionamos Em nota escrita à margem do do-
aqui dois documentos muito significati- cumento, o próprio Carvalho e Melo
vos: a Instrução para D. Luiz da Cunha recomenda que o enviado fique muito
(Manuel) que partiu para Londres9 e as Me- atento ao que se passa no Parlamento de
mórias Secretíssimas para o Ministério de Lon- Londres a respeito do que ali procurarem
dres,10 sendo ambos os textos datados de inovar ou tiverem inovado em prejuízo
12 de agosto de 1752. do comércio desses Reinos e dos vassa-
A Instrução para D. Luiz da Cunha los deles. No entanto, logo a seguir, vem
Manuel arrola alguns princípios gerais, ti- uma observação taxativa:
picamente mercantilistas, acoplados a di- Deveis saber que a Aliança entre esta Co-
versas considerações e recomendações roa e a da Inglaterra é tão antiga como
respeitantes às relações entre Portugal natural e que se acha firmada pelo Trata-
e Inglaterra. Ao primeiro tipo pertence, do da Grande Aliança do ano de 1703,
pelo qual se estipulou uma liga perpétua
por exemplo, a seguinte máxima:
que se acha na sua observância.
Sendo certo que a Balança do Comércio é a As memórias secretíssimas para o Mi-
que hoje regula a Balança do poder da Eu- nistério de Londres seguem o mesmo ca-
ropa; e que do individual conhecimento do
minho tortuoso, aparentemente contra-
estado do comércio de cada potência depen-
ditório, da Instrução acima: oficialmente,
de a justa estimação que se pode fazer de
deve-se persuadir aos ingleses que Portu-
suas forças presentes e empresas futuras;
gal deseja conservar sua amizade e alian-
aplicareis um especial cuidado em averi- 8 BNL, Seção Pombalina,
ça, dada a existência de interesses recí- Códice 639.
guar e me informareis por vias particulares.
procos; em segredo, porém, Carvalho e 9 BNL, Seção Pombalina,
Ao segundo grupo acima mencio- Melo aponta a verdadeira natureza da Cód. 610, fls. 74-77.
nado correspondem algumas recomenda- política inglesa e, a seguir, indica os remé- 10 BNL, Seção Pombalina,

ções interessantes: o enviado deve “não só dios mais adequados. Cód. 610, fls. 78-97.

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Francisco José Calazans Falcon 23

A verdadeira natureza da política as vexações que os ingleses nos


inglesa consiste em intrigar Portugal con- fazem nos cansem de sorte que
tra a Espanha, fazendo-nos crer que esta nos obriguem a buscar os france-
é a maior inimiga de Portugal, e assim os ses, é outro bom motivo para que
ingleses nos persuadem aos seus fins, já que, a Corte de Londres se modere nas
sob a sua dependência, tida como neces- vexações que costuma fazer e per-
sária, o que fazem é abusar dos portugue- mitir aos seus vassalos contra os
ses, tomando-lhes o comércio externo e interesses de S. Majestade”;
o interno, ou seja, a própria substância das 2. é preciso levar em conta, por outro
forças do Reino. Assim, em face desse gran- lado, a conjuntura política inter-
de mal de que Portugal “enfermou desde nacional, e, nesse caso, “as cir-
os princípios deste século”, os únicos re- cunstâncias em que hoje se acha a
médios possíveis são os seguintes: nosso respeito a Corte de Lon-
1. deixar transpirar com muita habili- dres são mais para emudecer do
dade que o comércio e os portos que para falar” (referência indire-
de Portugal não têm equivalentes ta aos recentes acordos da Ingla-
na Europa para a Inglaterra, ao terra com a França e a Espanha,
passo que a sua aliança pode ser os quais tornavam menos neces-
suprida (pelos portugueses) com sária, por ora, a aliança lusa);
a da França. Caso repiquem com 3. a importância (e urgência) dos
ameaças à América, deve-se res- problemas relativos à Índia Orien-
ponder que jamais poderão esta- tal para as relações anglo-lusita-
belecer-se permanentemente, por nas, dado o fato de serem cons-
vários motivos, como bem o de- tantes as usurpações praticadas
monstrou a tentativa holandesa. pelos britânicos da Companhia
Deve-se acenar com o desejo fran- Oriental Inglesa contra as posi-
cês de firmar um tratado seme- ções portuguesas;
lhante ao de 1703, o que arruina- 4. “as violências que Inglaterra tem
ria a venda dos panos e mais lani- feito ao comércio deste Reino ne-
fícios ingleses, porque “os france- cessitaria de um grosso volume
ses são de melhor gosto e mais para se exprimirem”. O discurso
baratos”, além do “receio de que repete nesse passo os argumen-

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24 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

tos já apresentados na Relação 2.3_ A “governação” entre 1762 e 1774


dos Gravames, ou seja, em sínte- Talvez tenha sido esse espaço de tempo
se, enquanto cabe a Portugal a o mais difícil das relações anglo-lusas
parte onerosa dos tratados, a In- durante o período pombalino. Em termos
glaterra “sem algum encargo e estruturais, o que mais contribuiu para es-
sem a menor despesa percebe o se fato foi a evidência, cada vez maior para
interesse de que os mesmos tra- o governo português, do progressivo de-
tados são susceptíveis”; clínio dos rendimentos coloniais como um
5. mas, acima de tudo, é preciso todo, a começar pela diminuição da pro-
“conservar a boa inteligência en- dução do ouro e dos diamantes do Brasil.
tre as duas Cortes... fazer o Mi- Tal fato repercutiu seriamente sobre a es-
nistro ver pelas suas práticas e trutura das finanças da Coroa, sobretudo
pela regularidade dos seus proce- do ponto de vista do sistema tributário, e
dimentos que deseja conservar a das atividades mercantis, afetando seria-
recíproca amizade”; mente o comércio com a Inglaterra, na
6. enfim, é preciso zelar por aqueles medida em que cada vez mais se restringia
que são protegidos em Londres a capacidade lusa de importar produtos
de S. M. Fidelíssima: os primei- britânicos, visto que, até então, o déficit
ros seriam os mestres de navios da balança comercial vinha sendo ampla-
e mercadores nacionais, embora, mente compensado através das remessas
conforme reconhece o autor des- em metal precioso.
sas Memórias, se trate de uma ta- Enquanto os comerciantes ingle-
refa quase impossível por causa ses, sobretudo aqueles estabelecidos em
de “quatro insuperáveis impedi- Portugal, reagiam às medidas tomadas
mentos que necessitariam de uma pela governação pombalina para fazer fa-
longa dissertação para se deduzi- ce à crise, atribuindo todos os problemas
rem”; os segundos seriam os por- às práticas protecionistas e de fomento
tugueses que residem em Lon- implementadas por Pombal, a invasão es-
dres e são obrigados a pagar os panhola, em 1762, forçou Portugal a re-
impostos e até contribuições para correr ao auxílio militar e financeiro bri-
as paróquias, quando em Portu- tânico. Mesmo depois de terminado o
gal os súditos ingleses gozam de conflito na Europa, persistiram as ten- 11 BNL, Seção Pombalina,

total isenção.11 sões na região do Prata, levando Pombal Cód. 610, fls,78, 80, 91, 93 e 95.

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Francisco José Calazans Falcon 25

a pressionar os ingleses a prestar ajuda garantia do comércio anglo-lusitano. A


mais efetiva contra o perigo espanhol, tal discussão sobre a imunidade usufruída
como se pode verificar através da corres- pelos comerciantes ingleses tem a ver
pondência entre Carvalho e Melo e Mar- com a forma pela qual se dava a saca do
tinho de Melo e Castro.12 ouro, em geral por intermédio do packet
Em 1766, apareceu em Londres boat – o navio que fazia a ligação direta e
um documento contra a política pom- regular entre o porto de Lisboa e o de
balina com o seguinte título: Memorials Falmouth. Quanto às companhias de co-
of British consul and factory at Lisbon.13 Os mércio, é provável que o endividamento
antecedentes e as características desse do- de comerciantes lusos para com colegas
cumento, assim como sua inserção no lon- ingleses incluísse a participação de capi-
go debate travado entre os porta-vozes tais destes últimos nas compras de ações
da Feitoria Britânica e as autoridades lu- efetuadas por aqueles – embora esse seja
sas, entre 1752 e 1766, foram analisados um ponto a respeito do qual não existe
por Sir Richard Lodge (1933). consenso entre os historiadores. Temiam
O descontentamento dos comer- também os ingleses a perda dos ganhos
ciantes ingleses vinha já de muito tempo auferidos com a intermediação, caso as
e nele se misturavam as queixas contra companhias fossem adquirir na Inglaterra,
ações mais ou menos esporádicas das au- diretamente, as mercadorias que deveriam
toridades contra a saída do ouro dos por- vender no Brasil. A política monopolista
tos lusitanos, e a insatisfação dos comer- das companhias tenderia sempre a man-
ciantes britânicos em face dos privilé- ter sob controle o volume geral do co-
gios concedidos às recém-criadas com- mércio, prejudicando o possível cresci-
panhias de comércio, os quais logo foram mento das exportações de manufaturas
denunciados como discriminações con- britânicas, além de excluir os barcos in-
tra os mercadores ingleses. gleses do tráfico com as áreas coloniais.
Na realidade, no entanto, a ques- Há, ainda, alguns outros pontos a
tão fundamental, embora nem sempre sublinhar nesse verdadeiro discurso antilu-
12 BNL, Seção Pombalina, explicitamente mencionada, era a saída sitano: temiam os ingleses a perda do con-
Códice 612. dos metais preciosos de Portugal. Embora trabando do Prata, e, portanto, a perda
13 BNL, Seção Pombalina, legalmente proibida, tal extração jamais do fornecimento da prata; ora, se tal vies-
Códices 93 e 94. deixou de ocorrer, constituindo-se em se a ocorrer, a balança comercial seria

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26 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

alterada, uma vez que as companhias a mesmo Comércio, ou não tinha nascido, ou
reduziriam ao par, fazendo cessar prova- se achava quase inteiramente arruinado.
velmente as exportações de ouro para a Continuando, o documento con-
Inglaterra; enfim, tinha-se como provável clui que a alegação era inverídica e, ainda,
que a elevação dos preços das mercado- se as companhias não tinham acionistas
rias importadas pelas companhias para as ingleses, foi por culpa do desinteresse
colônias far-se-ia acompanhar de um au- dos próprios vassalos britânicos, uma
mento equivalente dos produtos coloniais, vez que elas não os excluíram da sua ins-
em detrimento dos lucros dos ingleses. tituição (Carvalho e Melo, 1823, tomo
Convém aqui lembrar, talvez como III, p. 192 et seq.).
simples curiosidade, que foram os ingle- Em 1767, uma enxurrada de pan-
ses que nesse documento fizeram refe- fletos que eram autênticos libelos foram
rência a uma suposta intenção pombalina publicados pela Bolsa de Londres contra
de criar ainda mais duas companhias de a política econômica pombalina, tendo
comércio, uma para a Bahia e outra para um deles um título muito sugestivo: Pen-
o Rio de Janeiro, alegação essa não com- samentos ocasionais sobre o comércio português e
provada através de fontes lusas. Aliás, o a inexperiência de conservar a Casa de Bragança
contrário parece ser muito mais exato, no trono de Portugal, com uma completa discus-
visto que, em 1769, nas respostas às 24 são da perniciosa natureza de algumas novas leis
queixas do governo inglês, a 8ª delas, con- Pragmáticas concernentes ao comércio moderna-
tra as companhias do Grão Pará e Ma- mente feitas neste Reino.14
ranhão e de Pernambuco e Paraíba, que Em 1768, foi publicado em Lon-
teriam provocado um endividamento ge- dres, no London Chronicle, um artigo inti-
ral, tanto de portugueses quanto de ingle- tulado O presente estado da nação britânica,15
ses, teve a seguinte resposta: no qual o autor destaca o declínio do co-
mércio com Portugal, declínio esse que é
[...] é fato notório que a Corte de Lisboa
atribuído às medidas econômicas lusas,
não teve alguma intenção de esterilizar ou
diminuir o comércio com o estabelecimento prejudiciais aos comerciantes britânicos,
14 Academia das Ciências
das companhias, pois, não as formou para o que estaria a exigir prontas providên-
de Lisboa, Ms. 167,
a Bahia e o Rio de Janeiro onde o mesmo cias do governo inglês. Série Vermelha.
comércio estava florescente para o comum Em 1769, provavelmente, foram 15 BNL, Códice 636, fls.
benefício; mas sim para os Países onde o redigidas as Respostas que o Marquês de 57v-62v.

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Francisco José Calazans Falcon 27

Pombal, então Conde de Oeiras, deu às 24 gar, a alegada diminuição do comércio de


Queixas que o governo inglês fez ao de Portu- Portugal com a Inglaterra também não
gal (Carvalho e Melo, 1823, tomo III, procede, pois:
p. 182 et seq.). As respostas lusas têm sem-
1. “foi verificado, com certeza numé-
pre como principal argumento a tese de
rica e física que tem crescido o
que os procedimentos do governo portu-
número de habitantes de Portu-
guês estiveram sempre de acordo com as
gal, e nas suas ilhas não há falta,
leis do Reino e não desrespeitaram, ao
mas redundância de gente, o mes-
contrário das alegações inglesas, os legíti-
mo ocorrendo no Brasil”;
mos direitos dos comerciantes britânicos.
2. cresceu assim o consumo das fa-
Às constantes reclamações britâ-
zendas de comércio, com ele,
nicas respondeu, em 1770, Carvalho e
portanto, a entrada de mercado-
Melo com o chamado Discurso Anglo-Lu-
rias estrangeiras, o que se prova
sitano,16 o qual o próprio Oeiras mandou
“verter para o idioma inglês e publicar pelos registros da Alfândega de
em Londres”.17 Lisboa e do Consulado de Saída,
Logo de início, o leitor é devida- entre 1766 e 1770.
mente informado das reais intenções e Quanto às fábricas estabelecidas
características do Discurso Anglo-Lusitano: pelos lusitanos, a primeira coisa a ser ob-
um “honesto e imparcial” comerciante servada é que:
anglo-lusitano, revoltado com as acusa-
os Estabelecimentos Econômicos que Por-
ções então difundidas contra “as notá-
tugal tem feito para dar ocupação aos seus
veis brechas que se teriam feito ao co-
Vassalos ociosos foram fundados naquele
mércio britânico em Portugal”, apura os Direito Divino, Natural, e das Gentes que
fatos, como “zeloso patriota certo do útil autoriza qualquer particular Pai de Famí-
comércio e dos recíprocos interesses lia para empregar os seus familiares e cul-
que unem a ambas as ditas nações” e tivar suas terras como julga que é mais con-
conclui então que, primeiro, não houvera veniente ao bem de sua família e casa sem
16 BNL, Códice 636, fls.
qualquer alteração das pragmáticas de D. que haja quem tenha a menor ação para
5-23v., 70v. e 77-80. Pedro II, exceto aquelas que beneficia- lho impedir, Direito do qual nenhuma Na-
17 BNL, Códice. 635, fl.449v., ram precisamente a Inglaterra e a Holan- ção culta duvidou até agora e que é reconhe-
e Códice 692, fl. 82-95. da pelo Tratado de 1703. Em segundo lu- cido pelo citado panfleto de 1768.

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28 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

Ora, prossegue o mesmo Discur- mas isso não ocorreu, e a melhor


so, bastaria o uso da Razão natural para prova, acrescenta o Discurso, são
compreenderem que não podia haver as quantias em dinheiro sonante
chegado à imaginação do governo sério que continuaram a chegar ao Ban-
de Portugal a extravagante idéia de fazer co de Londres, pois apenas a quan-
independentes das Nações Estrangeiras tia transportada nos packet boats
os seus fornecimentos: foi igual (em Libras) a 3 552 574,
em quatro anos. Logo, trata-se de
1. por uma impossibilidade física, vis-
uma impostura marcada pela in-
to que, com suas fábricas, Portugal
gratidão e engendrada por inte-
poderia, quando muito, atender a
resses mercantis e pecuniários.
um ou dois doze avos do seu con-
sumo (metrópole e domínios); Prosseguindo, o Discurso refuta a
2. porque depois daquele ano de questão dos alegados prejuízos causados
1766 tem mostrado o tempo ami- pelas companhias de comércio ao co-
go (posto que lento) da verdade mércio inglês, demorando-se em minu-
com certeza numérica e física, o ciosas explicações sobre a atuação tanto
assim muito que é inatendível a da Cia. do Grão Pará e Maranhão quanto
diferença que se quis persuadir da Cia. de Pernambuco e Paraíba, che-
que as referidas Fábricas faziam gando sempre à conclusão de que elas só
contra o Comércio geral, como trouxeram “prosperidades e progressos”
a insubsistência da notável dimi- tanto para o Comércio de Portugal quan-
nuição que se ameaçou aos seus to para o da Inglaterra.
Interessados ausentes (o que se Diante da alegação de que Portu-
prova pelos mesmos registros ci- gal pretenderia criar mais duas compa-
tados anteriormente); nhias, uma para a Bahia e outra para
3. na verdade, aliás, não teria sido o Rio de Janeiro, fazendo ao comércio inglês
surpreendente se realmente hou- grande estrago, o texto repete os argumen-
vesse ocorrido aquela diminui- tos já mencionados: “Não tem el Rei de
ção do comércio, tendo em vista Portugal nenhum interesse em estabele-
os danos causados pelo terremo- cer para elas uma Companhia como se
to, as despesas da reconstrução quer supor”, já que a situação dos seus
de Lisboa e da Guerra de 1762; territórios é totalmente diversa daquela

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Francisco José Calazans Falcon 29

que existia nas áreas abrangidas pelas por ocasião da chegada a Lisboa de Ro-
companhias já instituídas, e a melhor bert Walpole, como embaixador extra-
prova dessa afirmativa foi a supressão ordinário. No entanto, o motivo ostensivo
das frotas e a declaração do comércio li- de tal visita foi a disputa dos exportado-
vre para os vassalos de S. M. entre aque- res de vinhos do Porto, ingleses em mai-
les lugares e o Reino. oria, com a Cia. Geral da Agricultura das
Finalmente, a questão dos chama- Vinhas do Alto Douro acusada de práti-
dos comissários volantes. A proibição de co- cas nocivas ou discriminatórias em rela-
missários particulares, ou volantes, irem nas ção aos interesses do comércio britânico
frotas para o Brasil, tida pelos ingleses co- – é claro, contrárias aos tratados em vigor.19
mo prejudicial aos seus interesses, justifi- Bem no estilo da governação pombalina,
ca-se em função dos danos causados por respondeu-se aos ingleses através de uma
tais comissários aos comerciantes hones- Dedução Compendiosa do que a Junta da Com-
tos do Brasil e do Reino, uma vez que eles panhia Geral da Agricultura das Vinhas do
não passavam de aventureiros a serviço de Alto Douro praticou sobre as ordens respectivas
casas de segunda categoria em Portugal. à qualificação e vendas dos Vinhos da ultima co-
Acrescente-se, ainda, que os ingleses são lheita do ano próximo passado de 1771.20
os primeiros a temer e opor dúvidas quan- Nesse último texto – Dedução Com-
to à ida de comissários portugueses aos pendiosa... – há uma análise das verdadei-
portos da Inglaterra para adquirir direta- ras intenções dos comerciantes ingleses,
mente mercadorias para as companhias as quais seriam contrárias ao espírito e à
de comércio, conforme rumor que circu- letra do Tratado de 1703, com base no ar-
lara e logo provocara protesto britânicos gumento de que a compra dos vinhos é
18 Arquivo Histórico ao tempo de Lord Kinnoul (1760). a contrapartida da entrada dos lanifícios,
Ultramarino, Cód. 1193, Já implícita em diversas queixas logo, não podem eles pretender arrui-
e Arquivo Nacional da Torre anteriores sobre a proibição dos comissá- nar a agricultura e o comércio dos vi-
do Tombo, Manuscritos
da Livraria, 3. rios volantes, a questão dos impedimentos nhos sem causar sérios prejuízos à eco-
19 BNL, Seção Pombalina, impostos pelos portugueses à ida de na- nomia de Portugal e, por conseguinte, ao
Códices 637-638. vios estrangeiros aos portos de suas co- comércio dos lanifícios, atingindo assim
20 ANL, Códice 692, fls. 69-81.
lônias, reacendeu-se na década de 1770,18 a própria Inglaterra.

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30 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

2.4_ Apogeu e crise da internas, graças ao florescimento das


“governação” – 1775-1777 manufaturas; na segunda parte, a prospe-
A partir de 1772, aproximadamente, as ridade do comércio interno é vista como
questões econômicas foram aos poucos
um fato que se baseia nos produtos das
perdendo o lugar de destaque que haviam
manufaturas nacionais, das quais o co-
ocupado até então nas relações anglo-lu-
merciante-empresário é o principal agen-
sas, uma vez que, com o agravamento das
te impulsionador, assegurando, além do
tensões luso-espanholas na América meri-
mais, o total aproveitamento da capaci-
dional, sobretudo na Colônia do Sacra-
dade profissional inegável dos artífices
mento, se tornou cada dia mais urgente
portugueses; por último, vem o estado
contar com a aliança inglesa para fazer fa-
do comércio externo no qual só se en-
ce às pretensões hispânicas. Temos aí
contram saldos extremamente positivos
uma tendência das mais evidentes na cor-
respondência diplomática entre Lisboa e a mencionar: a extração e a comercializa-
Londres, pelo menos até 1777.21 ção dos diamantes, a solução dos proble-
Por outro lado, em 1775, por oca- mas do açúcar e do tabaco, a valorização
sião da inauguração da Estátua Eqüestre do sal, do couro, dos atanados, da sola
de D. José I, Pombal, nas suas Observações e das vaquetas, o surto espetacular dos
Secretíssimas, ao exaltar na verdade seus pró- vinhos do Douro, os gêneros do Pará
prios feitos, assinala com júbilo os grandes e do Maranhão (cacau, café, arroz, algo-
progressos realizados na esfera do comér- dão, gengibre, cravo), a “restituição do
cio externo em benefício dos vassalos de comércio da Ásia aos vassalos do dito Se-
S. M. (Azevedo, 2004, p. 333 et seq.). nhor, sem sujeição ao monopólio de uma
Do ponto de vista de sua avaliação Companhia e sem desembolso da moeda
da economia lusa, o discurso pombalino nacional”, e, em conclusão, afirma Pom-
desdobra-se em três partes principais: o bal no mesmo discurso, “S. M. fez o co-
estado das artes fabris ou ofícios mecânicos, que mércio externo mais opulento do que na
são os braços e as mãos de todos os Estados; o es- época de D. Manuel e de D. João III,
tado do comércio interno; e o estado do comércio mostrando-se que as especiarias daquela
externo. Na primeira parte, o balanço não época se acham com muitas vantagens
poderia ser mais otimista: passou-se da excedidas pelas referidas preciosíssimas
importação de tudo do estrangeiro ao produções da América” (Carvalho e Me- 21BNL, Seção Pombalina,
atendimento de todas as necessidades lo, 1823, tomo III, p. 12-24). Códices 637 e 638.

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Francisco José Calazans Falcon 31

2.5_ A queda e o exílio em Tais escritos oferecem ao leitor uma


Pombal – 1777-1782 perspectiva bastante pessoal das grandes
Após a morte de D. José I, Carvalho e linhas que formam o desenho das práti-
Melo pediu a D. Maria I a dispensa dos cas pombalinas ao mesmo tempo que
seus serviços (concedida pelo Decreto de nos dão acesso a muitas das idéias que as
4 de março de 1777) e recolheu-se à sua tinham norteado, do ponto de vista do
propriedade em Pombal. Desencadearam- próprio Pombal.
se então os ódios, os processos contra os Já quase ao findar o ano de 1777,
atos por ele praticados, assim como con- aparecem as chamadas Cartas Inglesas, ou
tra os bens que teria indevidamente acu- melhor, Cartas que escreveu o Ilmo. e Exmo.
mulado. No intuito de defender-se, a si e Sr. Marquês de Pombal, Sebastião José de Car-
a sua administração, o Marquês de Pom- valho e Melo, estando no seu retiro de Pombal:
bal produziu extensos documentos – as em que descreve todo o governo do Sr. Rei D. José I.
Apologias e as Inspeções.22 Nas primeiras,
As quais cartas o mesmo Marquês quer afe-
ele se defende de cada uma das acusações
tar não serem suas, e serem-lhe mandadas de
contra ele assacadas pelos seus inimigos
Londres no idioma inglês.23 Ao tomar co-
– são cerca de 15 apologias, a respeito
nhecimento (sic), alguns meses mais tar-
de assuntos os mais variados, constantes
de, do teor dessas cartas, o Marquês
do Códice 695 da BNL. Quanto às Ins-
apressou-se em redigir um Compêndio his-
peções, num total de oito, trata-se de ba-
tórico e analítico do Juízo que tenho formado...
lanços minuciosos sobre cada um dos
no qual comenta os temas por elas abor-
setores abrangidos pela governação pom-
dados, sempre concordando com a subs-
balina, entre os quais se destacam:
tância das afirmações, mas negando que
_ lª Inspeção – Do governo interior e do fosse ele o seu autor.
Real Erário; Continuamente assediado por ca-
22 As Apologias encontram-se
no Códice 695, BNL, Seção
_ 4ª Inspeção – Sobre o Comércio Na- lúnias e processos de seus desafetos, Pom-
Pombalina, fls. 44-180; as cional; bal respondeu com violência a alguns
Inspeções encontram-se, as sete _ 5ª Inspeção – Sobre o Estabeleci- deles, como foi o caso do Libelo Famoso de
primeiras, no mesmo Códice, mento das Artes Fabris e Manufatu- Lesão Enormíssima, movido pelo Benefi-
fls. 19-31 e 232-380; a última
encontra-se no Códice 691,
reiras do Reino; ciado Jacinto de Oliveira de Abreu e Lima,
BNL, fls. 74-88. _ 7ª Inspeção – Dedução Compendio- antigo Provedor do Tabaco, e também
23 Códice 470, BNL, sa dos Contratos da Mineração dos o Libelo Infame, de Francisco Caldeira Ga-
Seção Pombalina. Diamantes. lhardo de Mendonça. Pombal adotou co-

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32 O império luso-brasileiro e a questão da dependência inglesa – um estudo de caso

mo principal pressuposto da sua defesa a emanam todos os cabedais que podem fazer
total identificação de seus atos com a um reino opulento, rico e respeitado sem
vontade de D. José I, não lhe competin- nunca se diminuir a torrente das riquezas e
do, portanto, assumir a responsabilidade prosperidades que dele se derivam.
por eles. Tal identificação, real ou apenas E ainda:
alegada, entre Pombal e o falecido mo-
narca, teve ainda o inconveniente de tra- Sendo o ouro o mais importante de todos os
gêneros, porque em si contém cabedal apu-
zer a público matérias que constituíam se-
rado, sólido, perpétuo e independente de to-
gredo de Estado, especialmente no caso
das as contingências e perigos do comércio;
da Contrariedade com que contestou aque-
porque a estimação uniforme e universal de
le Libelo Infame, daí resultando, por deter-
todas as Nações do Mundo estabeleceu nele
minação de D. Maria I, a abertura de pro-
a medida mais justa para regular os preços
cesso contra o antigo ministro, em 26 de de todas as mercadorias; e porque é o nervo
setembro de 1779. O processo arrastou- mais forte de todos os Estados para susten-
se ao longo de dois anos e concluiu pela tar o vigor enquanto dure nos seus tesouros
culpa de Pombal e sua condenação; toda- a segurança deles...24
via, atendendo ao precário estado de saú-
de do velho Marquês dos serviços por ele Quanto às Dezessete Caras e ao Com-
prestados ao seu falecido pai, a Rainha pendio Histórico que as comenta e respon-
assinou Decreto perdoando Pombal, em de, parece certo admitir-se que aquelas
6 de agosto de 1781, mas obrigando-o a foram escritas sob a orientação de Pom-
manter total silêncio. bal, sendo obra inteiramente sua o segun-
Desse conjunto de textos produzi- do. Em termos gerais, esses textos reite-
dos por Pombal após seu afastamento do ram a visão pombalina a respeito da sua
poder, vamos aqui destacar somente dois maneira de caracterizar a situação da agri-
deles: a 4ª Inspeção – Sobre o Comércio Na- cultura, do comércio e das manufaturas
cional, e as Dezessete Cartas em associação antes e após as providências por ele to-
com o respectivo Compêndio Histórico. madas. Lembra bastante o teor das Obser-
Na Inspeção sobre o Comércio Na- vações Secretíssimas e repete em muitos pas-
cional, afirma Pombal: sos o que se encontra nas Inspeções. A
tônica permanece a mesma:
Nada pode ser mais útil e necessário a um
Estado do que o Comércio. Porque ele é a o negócio e o comércio de Portugal foi outro 24 BNL, Seção Pombalina,

mais caudalosa e inexaurível Fonte de que objeto da atenção do Ministro: ele sabia Cód. 695, fls. 232-380.

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Francisco José Calazans Falcon 33

que um país, cujas constantes importações Confrontando-se esses dois dis-


excediam tanto as exportações, como Por- cursos, algumas contradições aparecem
tugal, devia evidentemente vir a perecer como inevitáveis: no discurso anglo-lusi-
(Carvalho e Melo, 1823, tomo II, p. 149) .
tano, as medidas mercantilistas devem
sempre ser equacionadas em função da
sua necessária compatibilização com as
3_ Observações finais exigências dos compromissos assumidos
Da Relação dos Gravames ao Compêndio His- com a Inglaterra; já no discurso mercan-
tórico desenvolve-se o discurso da gover- tilista, a quebra da dependência econô-
nação pombalina na perspectiva das re- mica e a auto-suficiência aparecem como
lações político-econômicas de Portugal objetivos prioritários, numa clara oposi-
com a Inglaterra. Temos aí um discurso ção à Inglaterra.
repetitivo, assistemático, no qual ficam
na sombra aquelas questões que não se
ousa dizer, ou que não podiam ser ditas.
Na realidade, trata-se de dois discursos
mais ou menos imbricados: o discurso
anglo-lusitano e o discurso mercantilista.
O discurso anglo-lusitano envol-
ve uma dupla conotação: certa visão do
atraso da economia portuguesa diante
das nações mais ricas e a ambivalência
que caracteriza toda a teoria e a prática da
aliança inglesa.
O discurso mercantilista está em
dia com os componentes principais da
respectiva ideologia em diversas partes
da Europa. Seu ponto principal é a refe-
rência à balança comercial, entendida
no seu sentido mais amplo de balanço
de pagamentos.

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