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CONTINUIDADE OPERACIONAL, O

FANTASMA DA VEZ

A avaliação da continuidade das operações de uma companhia ou o “going


concern” é um dos julgamentos mais desafiadores efetuados por sua
administração e por seus auditores independentes. Como fator agravante, cada
vez mais a nova economia tende a impor um ciclo de vida mais curto para as
empresas de determinados setores o que pode aumentar o risco nas avaliações
do going concern.

A complexidade envolvida no processo de avaliação da continuidade das


operações de uma companhia, ganha novos contornos com a recessão global
antecedida e turbinada pela crise sanitária sem data marcada para acabar. É fato
que diversas empresas nacionais e internacionais já pediram água e assumiram
a condição de insolventes. Adicionalmente, diversos setores relevantes estão
em processo de salvamento pelo governo ou regulador, como o caso das
aéreas e das distribuidoras de energia afetadas por uma severa redução de
demanda.

De acordo com o The Conceptual Framework for Financial Reporting emitido


pela IASB e a norma similar brasileira, o pronunciamento conceitual básico
emitido pelo Comitê de Pronunciamento Contábeis (CPC), as demonstrações
contábeis normalmente são elaboradas tendo como premissa que a entidade
está em atividade (going concern assumption) e irá manter-se em operação por
um futuro previsível. Desse modo, parte-se do pressuposto de que a
entidade não tem a intenção, nem tampouco a necessidade, de entrar em
processo de liquidação ou de reduzir materialmente a escala de suas
operações.

Com base no pronunciamento técnico CPC 26 (IAS 1), quando a administração


tiver ciência, ao fazer a sua avaliação, de incertezas relevantes relacionadas
com eventos ou condições que possam lançar dúvidas significativas acerca da
capacidade da entidade continuar em operação no futuro previsível, essas
incertezas devem ser divulgadas.

Ao avaliar se o pressuposto de continuidade é apropriado, a administração deve


levar em consideração toda a informação disponível sobre o futuro, que é o
período mínimo (mas não limitado a esse período) de doze meses a partir da
data do balanço. A conclusão acerca da adequação do pressuposto da
continuidade, pode necessitar da análise de vasto conjunto de fatores
relacionados com a rentabilidade corrente e esperada, cronogramas de
liquidação de dívidas e potenciais fontes alternativas de financiamentos para
que possa suportar sua conclusão de que o pressuposto de continuidade no
futuro previsível é adequado para essa entidade.

Podemos imaginar, de uma forma geral, que a surpresa ou a notícia mais


desagradável que uma companhia pode fornecer aos
seus stakeholders principalmente, aos credores ou investidores é a sua
insolvência. Outros eventos também traumáticos como fraudes ocorridas ou
mesmo erros contábeis quando cometidos pela administração, mesmo
podendo acarretar consequências desastrosas ou prejuízos financeiros
importantes, com certo tempo, a companhia tende a endereçar e sanar os seus
processos e controles internos, as suas demonstrações financeiras e até mesmo,
indenizar terceiros e recuperar a credibilidade.

Porém, no caso da insolvência as consequências geralmente são perdas


generalizadas para os credores e investidores bem como aos acionistas e
demais stakeholders.

Nesse contexto, quando uma companhia se torna insolvente sem que haja uma
adequada revelação nas demonstrações financeiras, divulgadas antes da
materialização de seu estado de inadimplência, quanto a existência de incerteza
relevante da continuidade de suas operações bem como eventual ausência de
correspondente menção no relatório do auditor independente, temos uma
tempestade perfeita para a entidade, sua administração e seus auditores. Esta
falha é um dos piores fantasma que assombra o mercado global financeiro e de
capitais. Essa ausência de divulgação ou menção pelas administrações e seus
auditores é sem dúvida uma exceção pois, em quase a totalidade esmagadora
das situações em que as companhias auditadas se encontram insolvente, tal
fato é devidamente divulgado em nota explicativa e incluído em parágrafo
específico no relatório do auditor. Quando não existe divulgação adequada, o
auditor trata o assunto como uma ressalva e em alguns casos, não opina sobre
as demonstrações financeiras.

Faço aqui uma menção honrosa aos auditores independentes, pois a análise e a
discussão da continuidade com a administração das empresas pode ser um
tema dos mais duros no processo de auditoria das demonstrações financeiras.

É natural que as administrações das companhias acreditem de forma genuína na


continuidade normal de seus negócios mesmo quando existe alguma dúvida
significativa ou não. A administração geralmente acredita na renovação de seus
contratos comerciais, nas receitas estimadas e em novas captações de recursos
para o reforço do caixa, porque faz parte de sua crença em sua competência, na
viabilidade e nos valores da companhia. Nesse contexto, as projeções de
receitas, lucratividade e de caixa podem conter esse ingrediente da crença dos
administradores. Não se pode perder de vista como citado por Ernest
Hemingway que inventar é ótimo, mas você não pode inventar nada que não
aconteceria na realidade. Naturalmente o autor faz tal citação para a arte de
escrever, porém, podemos considerar também como válido na necessária
missão de projetar o futuro de uma companhia assumida por seus executivos
financeiros e administradores.

Com isso, o trabalho do auditor agrega um componente de complexidade e de


especificidade para criticar uma projeção financeira futura e não uma
demonstração financeira levantada em determinada data ou período. As Firmas
de auditoria contam com competente estrutura de profissionais especialistas
em finanças corporativas, para auxiliar nas avaliações das projeções efetuadas
pelas companhias, o que não diminui a complexidade da tarefa.

Além da crença genuína da administração das companhias que acreditam na


continuidade normal de suas operações, não se deve minimizar um importante
fator de resistência em aceitar que eventualmente existe uma dúvida
significativa quanto a continuidade qual seja, a sua confissão para o mercado
que o sinal mudou para o amarelo. Essa confissão, por meio de divulgação nas
notas explicativas, de fato pode trazer uma série de dificuldades financeiras e
operacionais para as companhias. Ao serem noticiados por essa incerteza, os
fornecedores poderão aumentar o risco de crédito da companhia impondo
dificuldades em vender a prazo, novas captações ou financiamentos podem
ficar mais custosos ou até mesmo inviabilizados e acionistas, em especial os
minoritários, podem se tornar hesitantes e até mesmo, beligerantes. Isso sem
contar em possíveis perdas de talentos para o mercado. Assim de forma
consciente ou mesmo inconsciente, a administração da companhia tende a não
enxergar ou a negar a incerteza de continuidade mesmo existindo um ambiente
jurídico de responsabilização. É claro que ao informar que existe uma dúvida
significativa quanto a continuidade de suas operações, não necessariamente
quer dizer que a companhia está ou estará insolvente. No entanto, é sinalizado
que existe uma razoável possibilidade de acontecer tal fato no futuro próximo.

Quando uma companhia se torna insolvente, além das dificuldades operacionais


e de caixa é requerido uma dolorosa negociação com seus credores e
acionistas. Se isso já não fosse um drama, em não raros casos de insolvência a
alta administração é trocada de forma parcial ou mesmo integral. E a reboque
quando o novo CEO e/ou CFO assumem, as práticas e as estimativas contábeis
são revisadas e eventualmente alteradas, trazendo mais um ingrediente para a
confusão já devidamente instalada. As provisões com processos judiciais, a
realização e mensuração de ativos e outras contas de balanço são
minuciosamente revisadas e testadas, isso porque a nova administração tem
uma tendência de chegar com o mindset de “limpar o balanço”. E neste
ponto, todo cuidado é pouco para diferenciar o que são novas estimativas do
que é um erro contábil que acarreta reapresentações de demonstrações
financeiras. Nesse particular, novas e profundas discussões são mantidas com
auditores, reguladores, conselho fiscal, comitê de auditoria e até mesmo
acionistas. A tragédia grega está completa!

Adicionalmente, na prática, os fatores para uma companhia se declarar


insolvente pode incluir questões específicas ou interesses de seus acionistas e
administradores. Por exemplo, no Brasil, assim como em diversas outras
jurisdições, existe a lei de recuperação judicial. A Lei 11.101 de 2005 disciplina a
recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da
sociedade empresária. Note que atualmente, tal legislação está sendo objeto de
revisão por meio de um projeto de lei em discussão no congresso
nacional. Considerando o arcabouço jurídico, o pedido e a homologação de
uma recuperação judicial introduzem uma série de proteções financeira e
jurídica de forma a contribuir na preservação das operações da companhia em
recuperação. Nesse ambiente, é factível supor que a administração de uma
companhia em dificuldades financeiras não deverá esperar a extinção de seu
caixa para requerer a recuperação judicial. Por exemplo, se uma determinada
companhia projeta que tem caixa para honrar seus compromissos para os
próximos quatorze meses e que a partir do décimo quinto mês se tornará
inadimplente, provavelmente, a administração não vai esperar acabar o seu
caixa e poderá antecipar o pedido de recuperação judicial após seis ou sete
meses de consumo de caixa, por exemplo. Isso porque mesmo em um estágio
de recuperação judicial a empresa necessita de determinado montante de caixa,
para fazer frente a novos compromissos e obrigações que são contratados após
a homologação da recuperação. O caixa sempre será um importante fator ou
trunfo das empresa nas negociações com credores e acionistas que se fazem
presente em uma recuperação judicial. Assim, podemos concluir que o fato de
uma empresa possuir uma projeção de caixa suficiente para doze ou mais
meses não impede que a mesma entre com pedido de recuperação em um
tempo significativamente inferior.

Portanto, a análise quanto a necessidade de inclusão de divulgação de incerteza


relevante quanto a continuidade nas notas explicativas e menção no relatório
do auditor deve considerar não somente as projeções financeiras, mas, esta
suscetibilidade da intenção dos administradores e principalmente, dos
acionistas bem como as características dos contratos e de vencimento de
dívida. O caso pode ficar ainda mais intrincado, em uma corporação sem
controle definido permitindo a existência de interesses dissonantes entre
acionistas e os tradicionais conflitos de agência.

A norma de auditoria internacional e brasileira que trata sobre continuidade


operacional é a NBC TA 570 (ISA 570). De acordo com a norma, “as
responsabilidades do auditor são as de obter evidência de auditoria apropriada
e suficiente com relação à, e concluir sobre a, adequação do uso, pela
administração, da base contábil de continuidade operacional na elaboração das
demonstrações contábeis e concluir, com base na evidência de auditoria obtida,
se existe incerteza relevante sobre a capacidade de continuidade operacional da
entidade”.

O Financial Reporting Council – FRC, regulador dos auditores e contadores do


Reino Unido, passou a requerer a partir de setembro de 2019 procedimentos
mais robustos por parte da administração das companhias e de seus auditores
independentes na avaliação do going concern em relação a norma internacional
considerando que invariavelmente, os grandes escândalos contábeis e as
alegadas falhas dos auditores, são acompanhadas de questões
envolvendo going concern.

No atual ambiente regulatório brasileiro existe espaço para avanços e melhoria


na avaliação da continuidade efetuadas pelas empresas. Uma sugestão seria a
introdução de regulamentação por parte da CVM – Comissão de Valores
Mobiliários para exigir uma divulgação dessa avaliação efetuada pelas
Companhias nos relatórios da administração (previsto no artigo 133 da Lei nº
6.404/76 e recomendações da CVM por meio do Parecer de Orientação CVM nº
15/87) preparados anualmente por empresas listadas no regulador. Ao inserir
tal avaliação no relatório de administração, o envolvimento da diretoria
estatutária e do Conselho ficaria melhor estabelecido bem como a do conselho
fiscal cujas atribuições incluem opinar sobre tal documento. O detalhamento
dessa divulgação poderia ser mais detalhado para aquelas empresas com um
maior nível de endividamento. Nos formulários de referência exigidos pela CVM,
no seu capítulo dez, são apresentados comentários diversos dos diretores das
companhias abertas no entanto, não tem a abrangência e o peso de uma
conclusão direta que poderia ser requerido no relatório de administração com
afirmação que a entidade não tem a intenção, nem tampouco a necessidade,
de entrar em processo insolvência ou de reduzir materialmente a escala de suas
operações. Adicionalmente, a norma contábil que regula a divulgação em nota
explicativa de dúvidas significativas quanto a continuidade quando aplicável,
não especifica critérios aplicáveis e a decisão quanto a avaliação acaba por ficar
sob a batuta dos contadores e dos auditores.

Me parece que atualmente a tarefa de avaliar se existem dúvidas significativas


quanto a continuidade das operações de uma companhia está muito
concentrada no auditor independente e não naqueles que possuem a
responsabilidade primária de fazê-la. Ora, pelo que eu sei é o cachorro que
abana o rabo e não ao contrário. Essa tarefa que é uma das mais sensíveis para
as companhias inseridas no mercado de capitais, deveria ser endereçada e
formalizada diretamente por quem tem de fato a responsabilidade da condução
e estratégia dos seus negócios. Seria uma implementação de uma boa prática
de governança corporativa, trazendo mais transparência e confiança para o
mercado de capitais.

José Luiz de Souza Gurgel

8 de junho de 2020

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