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Capoeira

Ginga e Malícia

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Ponto de Cultura de Capoeira Ginga e Malícia, por Edmeia Nascimento

“Vamos invadir a escola, a escola é da comunidade”


(Mestre Marinheiro, griô de tradição oral – Ponto de Cultura Ginga e Malícia - BA)

Respondemos ao convite da Ação Griô e da pedagogia do Velho Criô de Lençóis e


“invadimos” a escola. Como? Acolhendo os educandos com músicas, sentados em
esteiras no chão, sensibilizados, disponíveis, despertos para o novo tão antigo que é a
arte de ouvir, criar, contar, cantar e dançar a tradição oral da nossa cultura, do nosso
saber de matrizes africanas e indígenas. Respondemos ao convite da Ação Griô e da
Pedagogia Griô, do Velho Griô de Lençóis-BA. E assim renascem momentos e histórias
na escola e na comunidade da antiga Baixa da Égua, hoje Rua Neide Gama, onde
velhos mestres e griôs, moradores nascidos e criados no bairro do Engenho Velho da
Federação, contam, cantam e dançam a história do bairro e de suas tradições.

“Eu considero um privilégio ter nascido aqui e ter vivido minha infância e juventude num
tempo em que muitos dos valores de comunidades africanas ainda existiam aqui. Quem
vem morar no Engenho Velho hoje, as crianças, os jovens de hoje, não têm a mínima idéia
de como era essa comunidade antes. Antes era mesmo uma comunidade, com seu jeito
próprio de viver, de educar crianças e jovens, de realizar coisas
coletivamente, de se entre ajudar.”
Macota Valdina, griô de tradição oral, descrevendo a
vida no Engenho Velho da Federação há 50 anos atrás.

Quando iniciamos o projeto Ação Griô na Escola


Engenho Velho da Federação, comunidade da
Baixa da Égua em julho de 2007, foi um salto muito
significativo. O Engenho Velho da Federação é um
grande bolsão de pobreza. A comunidade adquiriu e
adaptou novas maneiras de viver, com sua verdade de
acordo com o tempo presente e que tem seu jeito próprio
de ser. E o que tem de belo nessa comunidade? Tem um
movimento de resistência cultural e social da capoeira, tem o
samba duro, tem o grupo de samba chula, e tem o largo do Bogum,
e as raízes africanas, que se expressam nos templos religiosos (candomblé), na
festa junina, e na percussão dos grupos de samba.

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Então qual é o lugar do griô aprendiz no Engenho Velho ?
A bênção a todos os presentes e ausentes, aos mais novos e aos mais velhos, a todos
os mestres griôs e griôs aprendizes dos Pontos de Cultura do Brasil.

A princípio devo considerar que o trabalho do griô aprendiz perpassa por três eixos:
O primeiro é o ser mediador, essa mediação que se encontra na conquista, na
resistência, e na persistência.

O segundo eixo é o do ser político, socializador e potencializador nas relações étnicas,


políticas e raciais.

O terceiro eixo é o educador contador de história, o


pesquisador, um ser curioso que constrói a sua história
a partir de outras histórias.

O encantamento e a conquista do griô aprendiz


A minha roupa de griô aprendiz está sendo
construída com a oficina de retalho da escola, roupa
de sambadeiras e sambadeiros de samba-chula.
Utilizamos como instrumento da nossa caminhada
o atabaque e o berimbau. As crianças sempre nos
acompanham para o local da aula.

A Ação Griô mexeu com toda a minha vida. Eu,


como professora, já não sei trabalhar sem essa
questão dos griôs, porque, com essa pedagogia,
os professores se vêm de novo como brincantes,
reportam-se à memória emotiva, acabam lembrando
-se de memórias das mães e valorizando seu local
de origem, percebendo-se e reconhecendo sua
ancestralidade e identidade. Eu aprendi a olhar com
outro olhar a sabedoria dos mais velhos, voltar no
tempo, ouvir: isso é muito novo. Na verdade, eu
redirecionei o meu lugar de educadora. Não quero
mais esse achismo de fingir que ensino e meus
educandos fingirem que aprendem. Quando a gente
passa na rua, as crianças já falam: Lá vai o griô!

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Caminhando na escola, com Ginga e Malícia
“Ação Griô é um negócio importante, ensina muitas coisas importantes.
Tem música, dança, brincadeira, teatro...
Lá no mar tem uma pedra, nessa pedra mora uma índia.
Eu sou negra. Eu gosto de ser negra.
Mas tem gente que não gosta. Mas eu gosto de ser negra e dos índios”
Emília, 10 anos

A princípio, conquistar a escola não foi lá muito fácil. O corpo, docente se manteve
muito resistente ao Projeto, ao contrário das crianças. No início, houve alguma
estranheza, resistência, que a cada dia está acabando. A educadora é uma
aposentada e ela retornou para a escola por encantamento em relação ao projeto.
Utilizamos os contos africanos e outros contos. Chamamos de aula espetáculo e
caminhada. O material didático são as pessoas. Fizemos algumas reuniões e encontros
temáticos sobre a importância do Projeto para a escola e para a comunidade. A
primeira capacitação aconteceu com a presença de todos os professores, direção da
escola, coordenação pedagógica, mestres griôs e a griô aprendiz do Ponto de Cultura
Pierre Verger, com as contribuições ilustres de Dona Cici e Jucélia Teixeira. Contamos
também com os mestres griôs do Ponto de Cultura Ginga e Malícia.

Na posição de griô aprendiz, fiquei bastante satisfeita com a receptividade da


escola. Saudamos os professores com cantigas e arrumamos a sala em círculo.
Colocamos esteiras no chão, nas paredes. Penduramos objetos (pandeiros,
fantoches, cabaças, berimbaus...). Os professores, a diretora e a
coordenação, de pés descalços, sentaram nas
esteiras, olhando uns nos olhos dos outros,
e, atentamente ouviram a história de
Dona Cici. Pedimos a bênção e fomos
abençoados. Cantamos, dançamos e
ficamos emocionados. E, assim, fomos
caminhando e aprendendo com os
mestres, com os professores, com a
comunidade.

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Como se dá esse aprendizado ?

“A Ação Griô ensina a ser griôzinho aqui. Griôzinho é ser griô pequeno.
Eu sou uma griôzinho. Meu nome é Michele, uma aluna do Griô.”
A Pedagogia Griô é a pedagogia que o Ponto de Cultura Ginga e Malícia abraçou.
Resgata os costumes, os saberes, através da capoeira, teatro, música e folguedos.

Redirecionar o olhar e partilhar conhecimento popular. Os trabalhos da griô aprendiz e


dos mestres griôs se dão principalmente através da espontaneidade e do sentimento.
O educador griô propõe levar à sala de aula o brincar, o jogo, os rituais africanos e
indígenas, o que pode ocorrer com um instrumento, um acessório, um chapéu, uma
espada de madeira, uma flor, um sapato, etc. As atividades acontecem e o círculo
gira o tempo todo. As histórias vão ganhando forma, os personagens vão surgindo, os
corpos vão significando, os olhares se afirmando e o ritual acontece. A musicalidade é
fundamental, assim como as longas pausas, que constituem o momento sagrado.

“Nós já brincamos da brincadeira do pisa no milho, que o mestre Dunga de Lençóis-


BA ensinou ao Velho Griô. Nós já cantamos a música da pedra da índia, que mãe Rosa
de Lençóis-BA ensinou para o Velho Griô. E também os índios vieram aqui na escola e
dançaram. Contaram histórias dos indígenas e dos negros. Fizemos passeata pelo bairro e
o teatro do bumba-meu-boi.”
Sabrina, 3ª série

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Referências da construção de uma pedagogia

“A Ação Griô ensina coisas interessantes: histórias do bairro, coisas da vida, a cultura
africana, a literatura de cordel. Fiz uma caminhada pelo bairro. Fomos na rádio. Pretendo
fazer mais passeata com os professores griôs, e quero me esforçar para ser
uma menina griô.”
Adriana, 11 anos

Através da rede de Pontos de Cultura da Ação Griô na Bahia, construímos um espaço


de articulação dialógica, através da sistematização das capacitações continuadas
na escola, com o intercâmbio entre os outros Pontos de Cultura de Salvador que
integram o Projeto Ação Griô. Reunimos os mestres a fim de avaliar cada contribuição,
descobrindo no que a escola, junto com a comunidade, pode contribuir para
diversificar o processo de ensino e aprendizagem.

Esse espaço que criamos valoriza a ancestralidade, o saber ouvir e falar, a capacidade
de esperar, escutar o silêncio, sentir a nossa espiritualidade, e quebrar tabus e
ressentimentos; um lugar de seres humanos, feito com humanos e para humanos.

Utilizamos como referência para fortalecer a nossa pesquisa pedagógica as linhas de


vivência da identidade humana propostas por Rolando Toro, precursor da Educação
Biocêntrica: a Vitalidade - o potencial que nos faz estar na vida com coragem,
disposição, alegria e entusiasmo; a Criatividade - possibilidade de criar, de
participar, de transformar e de expressar os sentimentos; a Afetividade
– o sentimento da relação afetiva, da amizade, do amor, do vínculo, da
solidariedade e do altruísmo; a Transcendência - busca pela harmonia, pelo
equilíbrio e sentimento de que fazemos parte da criação divina, fazemos
parte do cosmo. Nasce um novo educador, que exige uma mudança existencial,
uma nova maneira de ver o mundo, um novo paradigma, ao contrário daquele
que reproduz o currículo que o sistema de educação propõe às escolas, que é
castrador, que impõe um enquadramento militarista e etnocêntrico, com valores e
visão unilateral, que leva a um processo de embranquecimento e exclusão.

Educação é também descoberta de saberes extra-sala de aula (academia).


É o fazer, refazendo, com emoção, afetividade, experimentação e busca de
novos métodos. É um caminho que nos deixa à vontade para “curiosear” as
várias possibilidades de transformar a sala de aula, oportunizando os saberes
que compõem a nossa diversidade cultural. A escola é vista aqui como local
de encontro que pode ser resignificado, afetuoso, um local que nos conduz às
reflexões a partir do pensar dos educandos e educadores, que nos permite saber
um pouco mais da história de cada um.

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Trata-se de uma pedagogia que transcende o tempo, que inova e compartilha
saberes, que nos faz descobrir o nosso lugar de origem, descortinar os mitos,
refazendo a estética da sala de aula. Educação de tradição oral, dialógica, política,
em que o ensinamento é compartilhado a partir de coisas concretas – ensinamento
dos princípios e valores. Uma educação que protagoniza. O real é o aqui e o agora,
passado, ancestralidade presente que constrói o futuro. Educação das relações étnico-
raciais e inserção das culturas afro e indígena. Educar vivenciando as manifestações
culturais, identificando a sua história como história da comunidade.

Valorização da família, solidariedade, cuidado com o outro, o ato de pertencimento,


religiosidade, descendência, ancestralidade. Respeitar os mais velhos e identificá-los
como mestres e griôs de tradição oral: sabedoria popular. A Ação Griô vem resgatar a
figura do velho que é sábio que entende dos segredos da vida, que vincula e veicula o
saber da ancestralidade, da tradição.

São contadores e cantadores das tradições orais. São caminhantes que não
desistem, nem com as tempestades, nem com o sol escaldante. Estão sempre
atentos. Seu canto de viola, o cordel, os repentes, as quadras, os mitos africanos,
as lendas indígenas, as cantigas de ninar, as rodas, cirandas, maracatus e sambas
vão repassando, cuidando para que aqueles que aprendem não esqueçam jamais
quem são: sua origem, sua história, seus antepassados, seus ancestrais africanos e
indígenas.

“A aula da Ação Griô é boa. Tem bumba-meu-boi. Tem caminhada, o teatro, a dança
indígena, a aula de história africana, a capoeira.
Nas aulas, tem o professor Nelito, Marinheiro, Braço de Ferro, Lia Vera, Macota,
Mel. Tem tudo isso e tem aula de percussão e de várias coisas.”
Alessandro, 12 anos

E, assim, nasce um novo momento, uma nova história na escola e na comunidade


da antiga Baixa da Égua, hoje Rua Neide Gama, em que velhos mestres e griôs,
moradores, muitos nascidos e criados no bairro do Engenho Velho da Federação,
contam, cantam e dançam a história do bairro e de suas tradições.

Ponto de Cultura Instrumento de Educação -


Grupo de Capoeira Ginga e Malícia - Simões Filho - BA
Representante institucional: Valcir Batista Lima
Griô aprendiz: Edmeia Pereira Nascimento / Luanda Marcelo Lima / Diego Alcântara / Rosenildo Moreira
Educadora: Eliana Maria Spositivo Paiva dos Santos
Mestre e griôs envolvidos na Ação: Lia S. Paiva / Manoel Bispo dos Santos

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