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A griô aprendiz Linete Matias

A gente já desenvolvia atividades com os mestres da cultura popular. Já havia um


diálogo dentre o “saber popular” e o “saber científico”. Tínhamos mesmo que escrever
esse projeto para a Ação Griô e nos dar a oportunidade de conhecer e dialogar com
instituições que tinham trabalhos afins.

Nasci na cidade de Piaçabuçu, AL, em um povoado chamado Potengy (rio de


camarões). Não tinha asfalto nem luz elétrica. Quando alguém ficava doente, ia pra
casa de um rezador ou logo procurava na mata ou no quintal plantas que curavam.
Não tinha TV e, quando era noite, as pessoas sentavam em suas portas para
conversar, contar histórias. Chegou luz elétrica e as pessoas foram mudando seus
hábitos. Já não sentam em suas portas pra conversar. Em 1999, chegou uma oficina
de canto-coral no Potengy e, aos cânticos da Igreja Católica, misturam-se músicas
diferentes, cantigas de roda, cirandas...
Em 2000, aos quinze anos, fui convidada a participar do grupo de artes integradas
Caçuá. Lá, percebo hoje, em função da Ação Griô, já existia a roda das idades que
Líllian Pacheco identifica na pedagogia griô: no grupo havia pescadores, poetas
populares, pifeiro, estudantes universitários, professores, crianças e adolescentes.
Fui vivendo sem questionar nada. Tudo era comum e diferente. O pífano, antes usado
nas procissões, ocupava outro espaço também. Composições havia com facilidade da
cabeça do pifeiro Cícero Lino. Fui, até sem perceber, tomando posse das coisas que já
eram minhas, mas que, de certa forma, estavam esquecidas, adormecidas em mim.

A partir de então, conversava com outros pifeiros, cantadores de


côco, com mestres da cultura popular relacionados à música.
Em 2002, conheci o contador de histórias Luciano Pontes.
Foi quando lembrei das histórias que as pessoas contavam
quando não tinha luz no meu povoado. E essas histórias
ficavam o tempo todo dentro de mim gritando:
“Conta-me!!!! Conta-me!!!!” Contei-as. E outras vivem a
aparecer e pedem para que eu as conte.
Neste lugar de griô aprendiz criado pela pedagogia griô,
tive e estou tendo a oportunidade de ouvir, contar e
recontar as histórias tão apaixonantes desses mestres
e griôs, agora bem mais próximos de mim e do Ponto
Olha o Chico.
Estou aprendendo a sistematizar esses saberes e a
possibilitar sua propagação.

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Em Piaçabuçu potencializamos a convivência social. Entendemos que somos um
coletivo e temos descendência africana, indígena, portuguesa. Ao fazermos essas
informações chegarem às pessoas, fazemos com que haja uma potencialização da
convivência humana e étnico-cultural. Nenhum desenvolvimento se fará com qualidade
se não houver a valorização da cultura popular e o fortalecimento da identidade das
pessoas. No nosso Ponto, mobilizamos a comunidade através de trabalhos com os
temas cultura e meio ambiente e contribuímos para a organização do povo ribeirinho,
através da articulação em rede de comunicação e trocas de experiências, de forma
que cada um se perceba protagonista consciente de sua história. Isso só acontece
quando me conheço e ao outro, valorizo a mim e a minha história, quando respeito e
valorizo a história do meio a que eu pertenço.

Seu Círero Lino, pifeiro, vivia reclamando que não tinha aluno, que ninguém mais
queria aprender esse instrumento, que ele mandava os meninos irem para a casa dele
e nenhum aparecia. Durante o ano de 2008, ele chegava ao Olha o Chico perguntando
que dia poderia utilizar o espaço para dar aula de pífano, porque havia muito menino
indo aprender na casa dele.

Os mestres e griôs da cidade ficavam dentro de suas próprias bolhas. De lá, eles
repassavam o seu saber. Não havia construção. Para o mestre era aquilo e pronto.
Talvez nós também estivéssemos em bolhas, sem perceber.

Questionávamos se podíamos propor mudanças na forma de repasse de conhecimento


dos mestres, e de que forma intervir durante suas falas quando era necessário
otimizar o tempo e concluir o raciocínio, pois eles devaneiam e não estão muito
preocupados com o tempo.

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“O nosso Brasil cresceu, depois que o homem amostrou,
o grande e pequeno mestre desse projeto griô.
Seja bem vindo todo mestre griô,
afirmar nossa cultura que o ministro pensou.
Governador assinou, senador e deputado.
Com nosso projeto aprovado, nossa cultura mudou”
Letra da Música de Cícero Lino.
A pedagogia do Grãos de Luz e Griô, criada por Líllian Pacheco, foi como um
espeto que furou as bolhas. Juntos, estamos aprendendo a conviver e a interagir.
Aprendemos a respeitar os saberes dos griôs e mestres e eles aprenderam a respeitar
nossos saberes. Percebemos o quão é importante dialogar, expor outro ponto de vista;
ouvir e ser ouvido. Não importa quem e em que “classificação” essa pessoa está. Há
um respeito e uma valorização mútua. Estamos construindo um novo saber. Não era
assim, mas hoje existe respeito e carinho dos educadores para com os mestres e
griôs. Muitas vezes, nem é necessária a mediação do griô aprendiz nas vivências das
escolas. Coordenadores pedagógicos e professores estão assumindo o lugar de griô
aprendiz, o que se faz possível graças aos encontros de estudo sobre a pedagogia
griô, em que estes discutem sobre as atividades nas escolas junto com mestres, griôs
e alunos, não apenas os conveniados pela Ação Griô, mas com todos os mestres e
griôs identificados pelas escolas em sua cidade, bairros e povoados.

E isso tem funcionado. No Povoado Penedinho, a escola municipal fez um


encontro com seus mestres. Só fomos convidados. Os
mestres vão às escolas, a escola vai aos mestres.
Uma vez no mês, elas param para rodas de
contação de histórias, apresentação de
danças e folguedos, conversas com mestres
convidados, etc. Isso se da não de forma
aleatória, mas a partir de uma ação
pensada e inserida nos planos de aulas
das escolas, para que venham a compor o
processo de ensino-aprendizagem.

Em se tratando da questão curricular,


especificamente, nem o município nem
o estado têm um currículo definido. Um
grupo, formado pelos coordenadores
municipais e sob facilitação de uma
consultora contratada (Joana Dark), vem
se reunindo periodicamente, duas vezes
ao mês, para estudo e, dentre outros
itens em pauta, estudam a construção de
um currículo para o município. São esses
mesmos coordenadores que integram o
grupo de estudo sobre a pedagogia griô.

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O pedir a bênção antes de todas as atividades, invocar a presença dos espíritos de luz,
dos meus ancestrais... tem me ajudado a ter paz e calma na mediação das vivências.
Minhas vestes, em geral, lembram a etnia africana, com cores fortes e contrastantes,
mas poderia associá-las à indígena, pelos adereços; à cigana, pelos seus enfeites, etc.

Logo no começo da Ação Griô, e mesmo antes dela, o uso do figurino e a construção
de um personagem dava-me a segurança necessária para mobilizar a comunidade e
falar de idéias nas quais eu acreditava, mas que talvez ainda não tivessem sido de
fato incorporadas como crenças e verdades a serem respeitadas por todos. É como se
fosse vergonhoso ser diferente e isso, de certa forma, me incomodava. Hoje percebo
com orgulho que sou diferente – que em verdade todos são, ou deveriam ser se não
se moldassem a um senso comum. Confio em minhas crenças, no que posso fazer
para mudar o mundo para melhor.

Minhas vestes para vivência da Ação Griô são parecidas e, às vezes,


a mesma roupa que uso no dia a dia. Quero dizer, com isso, que não
considero a roupa que uso como griô tão diferente. Gosto muitas vezes
de escolher com carinho um figurino para esse trabalho – ou outro –
mas, acima de tudo, eu sou Linete, pessoa, igual e, ao mesmo tempo,
diferente de todos.

Será que todos os griôs devem usar roupas diferenciadas das que
utilizam em seu cotidiano? Gosto de saber que a roupa que estarei
usando vai facilitar que as pessoas olhem para mim e escutem o
que estou falando, mas gosto também quando, em um trabalho
feito em círculo, as pessoas têm dificuldade de perceber quem está
mediando. Com uma vestimenta muito diferente,
isso não acontece.

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Por Dalva Castro
Antes da Ação Griô, a cidade já vinha trabalhando em
sua rede de educação as questões ambientais. E pensar
o ambiente é pensar as pessoas que aí habitam, seus
valores e práticas sócio-culturais. Assim, a Ação chegou
com uma energia forte e contagiante, materializou-se
com facilidade no som do pífano, nos passos e cantos do
guerreiro e reisado, na delicadeza das bonecas de pano, nas
plantas que curam, ocupando as salas de aulas, os pátios
das escolas e ecoando pela cidade. O pai de uma aluna
do Penedinho, que não conhecíamos, nos relatou que nos
conhecia através da filha dele, que era muito tímida e passou a se expressar a partir
da pesquisa em que ela passou a cantar canções de trabalho em sua comunidade.
Vários alunos passaram a participar dos grupos de folguedos:
Guerreiro e Reisado.

Desde quando o projeto foi escrito estava, claro que haveria relação com as escolas,
mas não imaginávamos que essa relação fosse ganhar proporções tão mágicas. É
ainda incalculável a proporção que se firma nesta cidade – e nas outras 10 cidades
ribeirinhas de Alagoas. São Planos de Trabalhos de Escolas planejados sob novas
perspectivas. São mestres, griôs, coordenadores e alunos sentados juntos e pensando
sobre que tipo de escola se quer e de que forma construí-la – nos encontros mensais
sobre a pedagogia griô. É uma cidade se re-encantando com seus saberes, suas
belezas vivas.
As escolas, que já vinham buscando a relação com a comunidade, encontraram
nessa ação simples e forte a possibilidade de trazer os pais para o convívio desse
ambiente. São rodas de conversas em que os pais contam histórias sobre a cidade,
em que mestres, orgulhosos, repassam seus saberes. Buscamos a construção de um
ambiente de respeito, independente de raça, crença, opções sexuais, partido político,
grau de instrução, etc. Em uma escola apenas (estadual) chegou a ser discutida a
questão específica da religião, propondo a retirada da disciplina do horário escolar e
organizando momentos de espiritualização ao início do expediente, e de seminários
com representantes das diversas expressões espirituais presentes na cidade: cristã
(católica e protestante), espírita, umbandista, etc.
O diálogo efetivo entre o currículo e os saberes de tradição oral tem, por sua vez,
provocado transformações bastante significativas, como fica claro no texto de
apresentação inserido em um dos Planos de Trabalho elaborados para 2008, o da
Escola Municipal Deraldo Campos:

“Partindo de nosso contexto, que é a falta do espaço físico e a


possibilidade de transformar toda a comunidade em espaço
efetivo de construção do saber, nosso Plano de Trabalho se
pauta na construção coletiva de trilhas temáticas, a partir
das quais serão planejadas atividades pedagógicas para
alunos e de melhoria da qualidade de vida para comunidade”.
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“A última vez que vi o Reisado, deixe eu
dizer bem, em 60, eu tinha 6 anos.
No mês de abril, eu fui embora pra
Colégio. Minha mãe morreu e minha vó
veio buscar a gente: eu e a minha irmã.
Passei 2 anos lá... Dá 62, né? Quando
nós voltou... Em 63! Foi em 63 o último
Reisado! Eu tinha 9 anos quando vi o último
Reisado lá no Retiro. O Mateus era o finado Zé
Preto. Esse já morreu. Quem cavou a covinha dele foi
eu. Tá enterradinho lá no Retiro. O Reisado era lá no Retiro.
Quem fazia era um rapaz que tinha, chamado... não tenho bem
lembrança o nome dele. Vou perguntar. Já morreu.

Vivo hoje, que eu lembro, tem a Gruinaura e a Socorro, das mais velha.
Os que tem agora nem nunca viram essa brincadeira. Além da Guinaura,
tem outra mulher lá que brincava no Reisado, nesse reisado que existia lá no Retiro.
Tá bem velhinha. O nome dela é Creuza, mas ela não brinca com a gente não. Ela
brincava no tempo dela moça. A gente lá começou porque a Guinaura já sabia brincar.
Aliás, a mestra e a contra-mestra, que é a Guinaura e a Socoro, elas já brincavam
quando eram crianças. Então elas me convidaram pra nós fazer assim... a brincadeira.
Então começemo a chamar as meninas e vamos ver se nós consegue fazer. Mas, com
fé em Deus, nós vamos fazer, nem que fique só 4 num lado e 4 no outro, e a mestra
e a contramestra, mas nós vamos fazer. Eu tô esperando para ver quem fica e quem
não fica. Uma brincadeira dessa, hoje, você sabe, uns começa a ensaiar, aí na outra
semana já não vai, aí entra outra na outra semana. Eu tô preferindo
mais as crianças. É para brincar quem quiser, mas eu tô preferindo
as crianças. É porque a criança que vai ficar com o nosso saber.

Nós já estamos ficando velhos. Aí, se nós não fizer agora,


se não ensinar as crianças, acaba. Hoje em dia, a gente
procura um palhaço, um mateus, não tem. Acabou. Os
três que brincavam lá no Retiro tá tudo enterrado lá no
cemitério. A gente chama os meninos, eles não querem,
não sabem. A gente coloca só pra representar, mas eles
não sabe. Foi parando e o povo foi esquecendo.”

Entrevista feita por Dalva com Seu Pagode, em


18/08/2007, do Reisado do Penedinho

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A pedagogia griô, ainda que em construção, foi incorporada pelos educadores do
Olha o Chico e, a partir daí, tem se propagado e vem influenciando todos os projetos
trabalhados por este Ponto de Cultura. Na medida em que os mestres e griôs passam
a discutir sobre a educação local (nos encontros da pedagogia griô), sobre políticas
públicas (nos encontros da REDE NUDAP, Núcleo da Dircussão e Ação Permanente) e
a assumir cargos de diretoria em organizações (a exemplo de Seu Correia,
griô voluntário / contador de histórias, escolhido como diretor de
comunicação do Olha o Chico), acreditamos que estejam ocupando
importantes lugares políticos e sociais em suas comunidades.

No projeto encaminhado, a Ação Griô contempla quatro estruturas


educadoras: Viveiro Educador de Plantas Medicinais, Bonecas de
Pano, Banda de Pífano e Guerreiro Aprendiz. Com o desenvolver
das ações, mais uma estrutura surgiu, o Reisado. E muitos outros
saberes vêm sendo vivenciados, como: as canções de trabalho, casa
de farinha, olaria, lendas, etc. Os mestres e griôs têm dominado essa prática das
vivências. Eles têm estado nas escolas sem a presença do griô aprendiz, recebendo
todo um acompanhamento dos coordenadores e professores da rede.

Somos sementes na terra. Germinar e crescer é nossa missão. Mas, por algum
motivo, muitas de nós paramos de crescer a certa altura da vida. Onde chegamos,
podemos ver o que nos é necessário para viver. Mas a semente carrega a força de
toda sua ancestralidade. E ainda que tenham se passado muitos e
muitos anos, chegará um dia em que a semente lembrará que já teve
sonhos. Sonhos de ser árvore com muitas flores, de fertilizar com
muitas outras sementes aquela terra, de onde ela não precisava sair
para viver com intensidade, pois sua missão era germinar
e crescer e, para crescer, ela só precisava viver com
intensidade e isso tinha liberdade para fazer.

“Somos sementes carregadas de sonhos e a Ação Griô

veio nos lembrar que temos liberdade de sonhar.”

Caminho do Rio São Francisco

Representante institucional: Vicentina Dalva Lyra de Castro


Griô aprendiz: Maria Linete Matias
Educador(es): Educadores e coordenadores pedagógicos da Rede NUDAP –
Núcleo de Discussão e Ação Permanente
Escola: REDE NUDAP - 14 Escolas da Rede Municipal, uma particular
e uma da rede estadual
Mestres e griôs envolvidos na Ação: José Gomes dos Santos,
Maria de Lourdes dos Santos, Manoel dos Santos (Pagode), Cícero Lino dos
Santos, João Francisco dos Santos (Ferrete), Mestra Guinaura, Zé Correia.

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