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pedagogia griô

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Família Grãos de Luz e Griô de Lençóis:
Márcio Griô, Líllian Pacheco, Ciro, Tainã (o novo griô) e
Mestre Aurino (sanfoneiro de oito baixos da comunidade
quilombola do Remanso - Lençóis - BA)

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Com a palavra Líllian Pacheco - A pedagogia griô
Por Líllian Pacheco, criadora da pedagogia griô, educadora biocêntrica e coordenadora
do Grãos de Luz e Griô e da Ação Griô Nacional

“Para cada estrela no céu, existe um diamante na terra, e cada diamante tem o seu
dono” Mito da cultura garimpeira de Lençóis, Chapada Diamantina, Bahia, Brasil

... terra do diamante, esse grão que brilha e encanta com sua luz, terra do Grãos
de Luz, lugar onde os meninos e meninas, grãos de luz de Lençóis, todos os dias
aprendem a juntar ciência com tradição oral e com as diversas linguagens artísticas;
lugar onde elas entram pelo portão e dizem: “eu quero estudar aqui também, meus
amigos me disseram que aqui é bom, porque tem um monte de coisa para a gente
aprender e fazer.” E tem mesmo. São oficinas de fotografia, cinema, computação
e artes gráficas, comunicação, artes plásticas, trilhas griôs, teatro de bonecos,
artesanato em retalhos, gestão financeira, música. Cada dia se inventa mais, tudo
permeado pela pedagogia griô.

Mas, e griô, o que é ?

“O griô vem da África. Ele ensina o que aprendeu com seus avós (tocar instrumento,
contar nossas histórias, mitos, cantigas de rodas...) e também tudo que aprendeu em
outros cantos. O griô aprende ouvindo, caminhando.” Hueverton, Etevan, Taiarca, Ianca,
Renilza, Rose, crianças das oficinas do Grãos de Luz e Griô.

O Griô é um caminhante, cantador, poeta, contador de histórias, genealogista,


mediador político, um “dieli”, que na língua bamanan do Mali, noroeste da África,
significa “sangue que circula”. É um educador popular que aprende, ensina e se torna
a memória viva da tradição oral. Ele é o sangue que faz circular os saberes e histórias,
as lutas e glórias de seu povo, dando vida à rede de transmissão oral de uma região e
de um país. A palavra abrasileirada griô vem de griot em francês, que traduz a palavra
Dieli na língua bamanan. É um conceito proposto pelo Grãos de Luz e Griô que vem
complementar o conceito de Mestres dos Saberes tão utilizado no Brasil. O conceito de
mestre nos remete ao sábio, ao curador, ao iniciador das ciências da vida, das artes
populares e dos ofícios artesanais, é diferente do Griô.

E Griô no Brasil? o que é? Atravessando o atlântico negro, voltando para a Mãe África,
na região em que o Brasil se encaixa como um jogo de quebra cabeça do pangea, a
gente se reencontra na história e no encanto da rede de transmissão oral.

“Lá, nos sertões da África, entre aldeias distantes, caminham mulheres e homens
aprendendo e ensinando os saberes daquele povo. São griôs. E quando os griôs
chegam nas aldeias, as crianças, os jovens, os pais, as mães e os avós sentam na
roda, e está aberto o ritual do contador de histórias.“ Palavras de chegada do Velho Griô
nas comunidades de Lençóis e de todo o Brasil.

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Caminhada e vivência da comissão nacional
de griôs e mestres da Ação Griô na TEIA 2008, Brasília - DF

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Dos sertões da África para os sertões da Bahia, o Grãos de Luz e Griô reinventa o
griô, através do Velho Griô, essa figura mítica, caminhante, essa biblioteca viva da
tradição oral que entrega a sua corporeidade para aprender e ensinar a história e
a cultura de seu povo. Esse arquétipo que revela o poder de nossa ancestralidade
guardada nas comunidades de re existência da África e da América pré-colombiana
no Brasil. Ele chega caminhando de surpresa em cada comunidade e escola,
reverenciando os velhos, cantando, dançando e brincando de roda, contando história
e mitos com as crianças e adolescentes, mães, pais, avós, educadores e merendeiras,
todas as idades na Roda da Vida.

Tendo a oralidade africana e indígena como inspiração e sabendo que o caminhante


aprende com todas os saberes e fazeres das comunidades e culturas orais que
formam o povo brasileiro, O Grãos de Luz e Griô reinventa o griô e sua pedagogia,
a pedagogia griô. Através da pedagogia griô, a comunidade e a escola sentem
e reconhecem a riqueza cultural da magia, do encanto, do poder e da sabedoria
ancestral de sua tradição oral, traduzindo-a, reiterpretando-a e integrando-a com as
ciências, com o universo da escrita e com a economia local. Não enquanto folclore,
mas enquanto pedagogia, sabedoria, ritual de vínculo e aprendizagem, crescimento,
arte, ciência, mito, cultura, além de uma economia comunitária que estrutura valores
da identidade humana nas comunidades do Brasil.

O processo de mobilização, articulação, ensino e aprendizagem da Ação Griô Nacional


é inspirado em práticas pedagógicas da tradição oral, sistematizadas no livro
”Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida”. A Ação Griô propõe a pedagogia
griô que facilita o encanto, a participação e a celebração da vida através de diversas
práticas que podemos reconhecer como didáticas e vivenciais:

- caminhadas
- oficinas dos saberes
- cortejos
- rituais de cantos e danças
- espaços de convivência e criação coletiva
- ofícios artesanais
- aulas espetáculo
- círculos de cultura
- encontros dialógicos
- rodas da vida e das idades
- rodas de prosa
- danças do trabalho
- danças de celebração
- bênçãos
- rodas de contação de histórias de vida, mitos e causos
- mutirões

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Caminhada e vivência da comissão nacional de griôs e mestre da Ação Griô, na TEIA
2008, Brasília - DF

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Todas essas e outras diversas práticas são organizadas na vivência da pedagogia griô
como um ritual de segredos e mistérios, ciências e mitos, cantigas, danças e histórias
de vida que contam sobre a ancestralidade e a identidade de uma gente que resiste e
re existe como cidadão brasileiro. O modelo da vivência está referenciado no modelo
de vivência da biodança e da educação biocêntrica, adaptado para as linguagens
da tradição oral (ver os modelos de vivência apresentados a seguir, e conceitos da
educação biocêntrica e da biodança).
Quem participa se redescobre redescobrindo o Brasil e sua grande família étnico-
cultural. A vivência não se dá como espetáculo para ser assistido, mas como espaço
de intimidade e expressão com a erudição da cultura oral de griôs e mestres
brasileiros.
A vivência da pedagogia griô é afetiva e cultural e facilita o diálogo entre as idades,
entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-culturais, interagindo saberes
ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento
e de projetos de vida que tenham como foco o fortalecimento da identidade e a
celebração da vida. Nessa pedagogia, inspirada na tradição oral dos griôs do Mali na
África e dos griôs e mestres do Brasil, propõe-se a criação do lugar do griô aprendiz
na comunidade. A primeira referência de griô aprendiz criada no Brasil é o Velho Griô
de Lençóis.
“Quando o vi naquele lugar, à beira de um riacho, ao pé de umas bananeiras e de um
(se não me engano) jacarandá lindo, ... vi que a figura do Velho Griô saiu do livro,
no qual sempre olhamos, para tornar-se figura viva e concreta à nossa frente. Suas
palavras tinham uma simplicidade e uma força de história vivida de suas experiências
de caminhadas e aprendizagens ...” Vander, griô aprendiz - De Olho na Cultura
Seu papel é de um educador alegre e afetivo que chega de surpresa, “invadindo
e ocupando” escolas e comunidades através do encantamento e da mediação dos
saberes da tradição oral com os saberes que estão sendo elaborados nas escolas
e universidades. O Velho Griô é um educador aprendiz que canta e conta histórias
do povo de cultura lençoense, brasileira, indígena e africana em rodas de vivências,
músicas e danças que sensibilizam e integram a escola e a comunidade. Velho porque
Velho é o símbolo da sabedoria da vida; e Griô, porque representa esta figura do
noroeste da África, que caminha entre comunidades aprendendo e ensinando a cultura
da região. Quando o Griô conta e canta, as pessoas se reconhecem, porque ele fala
dos avós, bisavós, que interligam a história e a vida daquele povo, suas lutas e glórias.
Este convite expressa a simplicidade da pedagogia griô a todos griôs aprendizes da
Ação Griô nacional, como diz Linete, griô aprendiz do Olha o Chico “a pedagogia griô
do Grãos de Luz e Griô é como uma bolha que se furou”.
Assim como o Velho Griô, todo griô aprendiz aprende com as diversas tradições
orais do Brasil e reinventa ou reencontra o seu arquétipo, aquele que é a melhor
expressão de si mesmo e de sua sabedoria ancestral que é reflexo de sua caminhada.
Por mais que ele já saiba, por mais que tenha aprendido com griôs e mestres do
Brasil, ele guarda e compartilha com humildade sua sabedoria com o título de griô
aprendiz. Ainda que a oralidade africana seja uma referência de aprendizagem muito
importante, não se trata de reeditar no Brasil o griô africano, ou formar os griôs
aprendizes como o africano. O Velho Griô, por exemplo, é um caminhante que nasceu
no sertão nordestino, neto de uma rendeira, de um tropeiro vendendor de rendas, e
de um safoneiro de 8 baixos.
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Vivência da pedagogia griô no encontro de
comunidades das Trilhas Griô do Nordeste -
Lençóis, 2008

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Ele tem em suas referências simbólicas, espirituais e ancestrais negros, índios,
portugueses, grupos étnicos do Brasil. Sua roupa reflete o reiseiro, o sertanejo,
o tocador rural, e seus símbolos traduzem a diversidade de sua caminhada e
aprendizagem. Ele se tornou uma referência da pedagogia griô para a construção do
lugar dos griôs aprendizes regionais e dos griôs aprendizes dos pontos de cultura do
Brasil, na missão de garantir a costura da rede de transmissão oral do nosso país,
através do reencanto dos estudantes das novas gerações que estão sendo formadas
nas escolas públicas, pelo reencontro consigo mesmos e com a sua ancestralidade,
pela descoberta do sentido da vida que a celebre comum - comunidade.

“... fui direcionado pelo Velho Griô para vários elementos da natureza, como as aves,
o ar, a lembrança do útero materno, ao adentrarmos em uma gruta, nos fazendo
restabelecer nosso vínculo com a Terra e com todos os elementos do universo, até
alcançarmos o refúgio restaurador nas águas da grande cachoeira. Ao retornar,
repetimos o diálogo por meio de símbolos corporais, e como em um pacto silencioso,
sentimos que, ao final da travessia, já não éramos mais a mesma equipe. Tivemos
a oportunidade do encontro transformador. A partir daquele ponto, estávamos
preparados para nos separar e, cada griô aprendiz, em uma região do país, dar
seqüência à missão de inscrever na grande roda do conhecimento - que são a cultura
e a educação brasileiras - o encantamento vivido com mestres e griôs. A partir dessa
vivência com o Velho Griô, hoje me permito falar poeticamente sobre alguns conceitos
pedagógicos presentes nessa caminhada da pedagogia griô”. Henry Durante, griô
aprendiz regional da Terra
Por outro lado, um mestre ou uma mestra se legitima por ter aprendizes que buscam
vivenciar saberes que são de tradição oral. Um mestre tem uma maestria de tradição
oral e um aprendiz pode escolher aprender ou não com ele. No Mali, quando um griô
aprendiz quer aprender com um mestre, ele lhe doa uma semente, o que nos remete
ao grão de luz, grão da sabedoria. Nesse gesto, vivido inclusive pelo Velho Griô
com seu mestre Dieli Mody Diabaté, na vila de Kita no Mali, ele está legitimando um
vínculo de aprendiz com o saber e uma pessoa que sabe. O Dieli passou a convidá-
lo para vivências e caminhadas de aprendizagem, e depois de cada caminhada, ele
sentava no terreiro e contava histórias, histórias que tinham significados e sentidos
que organizavam as vivências. Em Lençóis, Mestre Dunga tem o respeito e o
reconhecimento de todos os griôs e mestres de tradição oral da região. Para o Velho
Griô ele conta mistérios que não conta para ninguém e criou uma relação de cuidados
e proteção que se direciona mesmo à distância. Ele diz: “vá, meu filho, que eu seguro
daqui. O mestre é a raiz e o griô é a sua rama”.
Um mestre não se legitima por si só, mas por estar circundado por aprendizes que
lhe escolheram – sua história, seu mito, seus saberes e fazeres, seu ofício artesanal
– tudo que reflete uma diferença étnica-cultural que, por sua vez, é plena de ciência,
arte e de religiosidade, ou, usando outro conceito, independente de religião, plena de
espiritualidade, ou ainda um conceito mais científico – plena de transcendência – essa
potencialidade de se fundir com totalidades vivas e experimentar a força pulsante do
cosmo, de um povo, de uma comunidade, de uma cultura.

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Caminhada e vivência da
pedagogia griô na Escola
Isabel da Silveira, na
comunidade do Tomba
Lençóis - BA - 2007

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Porém, como diz bem Guitinho da Xambá, a palavra “mestre” cria diversas projeções
sobre a pessoa que possui uma maestria específica. Inclusive, a projeção:
“... idealista de ser uma pessoa de bondade, espiritualidade e sabedoria iluminada
sobre a vida. Mas não quer dizer que devamos esperar dos mestres comportamentos
ou conselhos exemplares, que devamos projetar neles a necessidade de uma
sabedoria universal ou de qualquer moral, ou ainda de uma espetacular imagem
folclorizante. Cada mestre tem sua história de vida. É na sua simplicidade certa
e errada cotidiana que mora sua reverência à vida, à sua cultura e erudição. Sua
diferença é que o torna único.”
É a sua história e o seu saber que nos dá uma referência concreta sobre a nossa
história, nossa ancestralidade, a história de nossa comunidade e de seus vínculos com
a tradição oral e com a formação étnica do povo brasileiro.
Essas referências colocam a pedagogia griô em movimento e criação. Os griôs
aprendizes respondem ao convite da caminhada nas escolas públicas. O fato é
que nas caminhadas de ocupação/invasão encantadora das escolas propostas pela
pedagogia griô, as diferenças étnico-culturais-religiosas são recorrentes. São diversas
as linguagens e símbolos em que a tradição oral expressa sua sabedoria ancestral e
suas ciências. Um dia, o griô aprendiz Alexandre Santini, do Rio de Janeiro, “invadiu”
uma escola. Imaginem uma escola acontecendo em sua rotina, sala de aula e grade
curricular completamente normal. Então surge um griô urbano de tradição oral do
teatro de rua, como ele próprio se define o seu arquétipo, com sua “roupa colorida,
tênis all-star, colete, uma casaca ancestral que vem de geração em geração há mais
de 500 anos, como uma roupa de arlequim da comédia dell’arte, com sua cartola
de mágico enfeitada com uma máscara dos carnavais de Veneza, seu zabumba
nordestino, agogô de cabaça e gaita de blues, bolsa a tiracolo, bonequinho de broche,
colares Xavantes e Tapajoaras”. Ele entra em uma escola para brincar e contar a
história do príncipe afro-baiano Dom Obá, conterrâneo da região desta autora. Dom
Obá foi neto do poderoso Alafin Abiodun, último soberano a manter unido o império
de Oyó - mais um herói e império negro desconhecido pela maioria dos autores de
nossos livros e projetos didáticos. Não foi nos livros das escolas que Alexandre o viu.
Ele o viu no livro da pedagogia griô. Ouviu a banda de jovens e crianças da Família
Grãos de Luz e Griô apresentando uma aula espetáculo com a história e música
de Dom Obá. E com certeza dançou o famoso samba enredo sobre Dom Obá do
carnaval da Mangueira. Dom Obá teve um papel muito importante no século XIX na
história do Brasil, inclusive nas disputas políticas relacionadas ao projeto racista de
embranquecimento do povo brasileiro. Foi ainda morador da favela da África Pequena,
bairro vizinho á escola que Alexandre invadia de surpresa com o seu encantamento de
griô aprendiz.

Dom Obá lutou por um mundo novo


Criticou a elite no jornal
Defendeu a liberdade
Freqüentou o palácio imperial
Pirâmide Guizé no imaginário
Estrela Sírius no calendário
De sua sabedoria ancestral

(fragmento de cordel de Márcio Griô e Líllian Pacheco trabalhado em todas as escolas


municipais de Lençóis pelo Velho Griô, educadores e estudantes)
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Caminhada e vivência
da pedagogia griô na
Escola Isabel da Silveira
na comunidade do Tomba
Lençóis - BA - 2007

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Na roda ritual de contação de histórias facilitada por Alexandre havia
aproximadamente 300 estudantes, educadores e coordenadores pedagógicos.
Alexandre utilizava suas linguagens e didáticas de tradição oral aprendidas na
pedagogia griô, no teatro de rua e no movimento estudantil para transportar os
estudantes do mundo da rotina para o mundo do ritual – cortejos, cordéis, cirandas,
rodas, coros, dramas, ecos. Algumas pessoas se postaram na periferia das rodas, de
onde se podia sentir e ouvir os observadores participantes. E de repente, ouve-se
uma educadora da disciplina de história, conversando à parte com uma das fiscais de
corredores: “...da próxima vez vocês me avisam que vai ter macumba na escola para
eu não vir”.

Quase o mesmo aconteceu numa das caminhadas do griô aprendiz Guitinho da


Xambá, em Pernambuco, que chegou com suas roupas de retalhos coloridos com um
sol amarelo brilhante tomando suas costas e o chamando de Alumiado. O Alumiado
ecoava sua voz e seu pandeiro em todos os cantos da escola; o Alumiado, esse
arquétipo reencontrado nas histórias e olhares de sua avó Biu. A direção da escola
fechou a sua porta porque sua opção religiosa não permitia que os estudantes
pudessem escutar um tambor. Porque ? Porque novamente isso é coisa da macumba.
Nesta resposta encontra-se perdido o porque das coisas. Sentados nas cadeiras das
escolas, os estudantes perdem o fio da história do Brasil, o fio da história do tambor,
o fio da história de suas vidas amarradas aos griôs e mestres daquela comunidade,
daquele estado, o fio da história do artesanato no mundo, da vitalidade do côco,
do maracatu. Os estudantes perdem as rimas velozes da línguística pernambucana
do Alumiado, de um filho, neto, herdeiro, descendente da primeira comunidade
urbana reconhecida quilombola no Brasil, a comunidade de Xambá, que tem sua
ancestralidade africana guardada por mulheres guerreiras, tão bem revelada no livro
“Nação Xambá do Terreiro aos Palcos” da pesquisadora Marileide Lima.

Os estudantes e o porquê das coisas se perdem por um momento, mas a educação


não perde. Essas vivências problematizam princípios básicos da pedagogia griô. As
guardamos como tesouros vivos. Guardamos delas o eco dessa palavra geradora
e tão grávida de sentidos brasileiros: macumba. Essa palavra que nos faz refletir
profundamente a educação no Brasil, seu fazer pedagógico. Que referência de
educação pode dar conta de dialogar com essa professora e essa diretora, uma do Rio
de Janeiro e outra de Pernambuco? Suas ciências, identidades e ancestralidades? As
duas tão nossas, tão verdadeiras e tão importantes nas escolas do Brasil? É preciso
referenciá-las, valorizá-las, referenciar a nós mesmos, não ter medo de reinventar
um jeito de ensinar e de aprender nos diversos cantos do País. Nossas referências
acadêmicas e nossa própria identidade são tão européias e estrangeiras diante de
tantas verdades afro-descendentes, índio-descendentes e outras tantas tão brasileiras
que moram no nosso corpo e formam nosso espírito, que se torna importante ler o
currículo de uma faculdade de educação antes de sonhar com pedagogia. Torna-se
importante perguntar quem somos – índios, negros, brancos, brasileiros ?

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Caminhada e vivência da
pedagogia griô na Escola
Isabel da Silveira, na
comunidade do Tomba,
Lençóis - BA - 2007

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Em outra vivência da pedagogia griô, outra professora de história disse: “não existe
uma cultura negra no Brasil, não existem negros, somos mestiços”. Muita gente no
Brasil não entende o valor e o poder de alguém quando diz “SOU Negro”, ou diz “SOU
índio”. Evidentemente que estamos falando de tradição oral que também é universo
de povos portugueses, de povos italianos ou de judeus. Mas quem somos? Quem é
cada um que nos lê? Qual a diferença de dizer-se afrodescendente ou descendente de
japonês?.

Em outra vivência da pedagogia griô, um índio disse para esta educadora interiorana e
escritora: – “Você é uma índia. Pare de dizer apenas que sua avó era índia. Diga – ‘eu
sou Índia’ e assuma a nossa luta que já é sua luta”. Carlos Petrovich, diretor de teatro
e arte-educador baiano, abria seus discursos dizendo “antes de mais nada quero
dizer que sou negro” diante dos olhos interrogativos de uma platéia que via sua pele
branca. O que ele queria dizer é o mesmo que o índio dizia. È uma posição política.
Se a cultura for mesmo estruturante para a educação e a formação de um povo, seu
desafio é referenciar pedagogias e ciências criadas pela gente que tem o pé no próprio
chão. Há uma crise de linguagem e na língua da educação no Brasil. Nossa pátria
não é nossa língua. Nossa pátria são mil línguas, mil linguagens. Quando falamos
– “Óia”, substituindo o i pelo lh, é porque o som do lh não era comum para o povo pré
colombiano que habitava estas terras antes da invasão portuguesa. Quando falamos
ritual no lugar de rotina, é porque sabemos da facilidade de uma criança construir seu
lugar para se incluir em seu grupo de capoeira, e vemos a dificuldade dos educadores,
neste espaço escolar que está posto, em facilitar a construção de lugares, grupos,
identidades, ancestralidades. Se não existir isso, como e onde incluir alguém? A
educação reproduz lugares sociais e fala de uma inclusão social que não existe. Está
confundida com reprodução social. O que existe é a possibilidade de pessoas excluídas
construírem lugares para se incluir. Nesta questão, o ritual, a vivência, a linguagem
e a língua se tornam categorias centrais de uma pedagogia que se referencia na
identidade de seu criador ou criadora, de sua comunidade, de sua ciência, da etnia
de seu povo e de sua religiosidade. Não há como fazer ciência sem mito, sem
transcendência, sem história de um povo, sem auto-criação, sem vida. Não há como
fazer ciência com rotinas. O humano se cria nos rituais de seu povo. Maturana fala de
autopoieses, mas o povo fala com simplicidade: Eu me criei aqui.

A Pedagogia Griô propõe o ritual de vínculo e aprendizagem e tem como referenciais


teóricos e metodológicos a educação biocêntrica de Ruth Cavalcante e Rolando Toro,
a educação dialógica de Paulo Freire, a educação para as relações étnico-raciais
positivas de Vanda Machado, a arte educação comunitária de Carlos Petrovich, a
educação que marca o corpo, de Fátima Freire e a pedagogia que foi construída nos
terreiros de candomblé, nas capoeiras, nos torés, nos sambas de roda, nos reisados,
nos cantos do trabalho, nas festas populares, nos gêneros literários dos cordelistas
e repentistas, na ciência das parteiras, na habilidade das rendeiras, na antevisão dos
pais e mães de santo, na medicina dos curadores, erveiras, benzedeiras e xamãs, na
biblioteca viva dos contadores de histórias, e em todas as artes integradas aos mitos e
às ciências da cultura oral.

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Temos que continuar citando e nos descobrindo, aprendendo a escrever tantos
substantivos e derivados de nossa língua nacional: jongueiros, congadeiros,
cacuriás, carimbós, cirandeiras, maracatus, côcos, cavalo marinho, artista de circo,
teatro de rua, teatro de bonecos, mamulengueiros, catireiros, pastoris, são muitos
os responsáveis pela tradição viva. Em toda comunidade brasileira existem griôs
e mestres de tradição oral trabalhando espontaneamente e informalmente pela
sobrevivência de suas tradições junto à comunidade e às crianças e adolescentes,
através de uma economia de partilha, uma economia comunitária. São atores e
autores sociais vivos da cultura brasileira que inspiram uma pedagogia recriada no
Grãos de Luz e Griô a partir da inteligência pedagógica que se dá sem a escrita e tem
transmitido saberes de geração em geração atravessando séculos de exclusão social e
perseguição do povo negro, indígena e de baixa renda, garantido a identidade do povo
brasileiro.

A pedagogia griô integra escola e seus educadores com as comunidades, grupos,


organizações de griôs e mestres das redes de transmissão oral; os saberes das
ciências e currículos formais do país com as histórias de vida, mitos e saberes da
tradição oral de suas comunidades.

Caminhar, colocar os pés no chão da realidade, viver e conhecer profundamente as


comunidades com quem estamos criando educação. É necessário inverter a estratégia
epistemológica (epistemologia é um estudo de como se dá o conhecimento). Então,
temos que nos perguntar, diante da ciência como ela acontece. Onde está a minha
vida, a minha felicidade, a minha identidade (que inclui a alteridade, ancestralidade, a
totalidade) ? Todo mundo se perguntou durante muito tempo na escola algo parecido:
“Para que eu estou aprendendo isso ?” Essa pergunta nasce da inquietação de sentir
que a sua própria história e projeto de vida não estão no centro do conhecimento. A
pedagogia griô propõe trazer todas estas categorias teóricas para o centro.

É preciso rever o conceito de identidade na educação. O sistema biodança e a


educação biocêntrica apontam um caminho para esse conceito, um caminho que
integra o si mesmo à alteridade (ao outro), à corporeidade e à totalidade, um caminho
que organiza nossas linhas de vivência, crescendo em espiral, na busca do sentido
pleno da vida, o princípio biocêntrico. A pedagogia Griô se inspira nesse caminho e
propõe um conceito de identidade que tem como centro a história de vida pulsando
entre a ancestralidade e a consciência de si, crescendo em espiral e formando as
ciências da vida que perpassam pelos mitos, ofícios, arquétipos, artes e outras
categorias importantes das tradições orais.

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Caminhada e vivência da pedagogia griô
na Escola Comunitária da comunidade do
Tanquinho Lençóis - BA - 2007 (contação
da história de Alqualtune com panôs e
bonecos de retalhos das oficinas Grãos de
Luz)

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No início da caminhada do Velho Griô, antes dele se identificar como Velho Griô,
existiam roteiros de entrevistas nas casas dos mestres e dos moradores da
comunidade. Várias pessoas com quem o Velho conversava lembravam seus avós
e bisavós descendentes de africanos e indígenas. A maioria se auto-declarava
analfabeta, dizia que não tinha instrução. O roteiro criava uma linha de histórias orais,
porém faltava um sentido, uma ciência, uma identidade nas respostas. Os saberes
pesquisados iriam ser parte de um programa de formação dos educadores municipais
de Lençóis, com o objetivo de vincular escola e comunidade, tendo a cultura como
estruturante. Porém, o resultado das pesquisas estava longe de criar este programa.
Era o mesmo sentimento de estar sentado na escola durante anos e anos sem saber
para que servia aquele conhecimento, tentando ser um observador participante.
Angústia. Tudo errado. Para que aqueles papéis escritos? Tudo para o lixo.

Ao jogar aqueles papéis no lixo, o que sobrou de essencial? Nós, os griôs e os mestres
de tradição oral. Então despertamos nossa própria genialidade, nos olhamos no
espelho, nos auto-referenciamos. Vamos chegar nas comunidades como somos e lá
aprender. Aprender com a maestria do nosso povo. Que jeito é esse? Essa sim foi uma
pergunta genial e óbvia. O que sobrou sem o mundo do papel? O universo da memória
e da tradição oral, da nossa própria ancestralidade, da vivência do canto, da dança,
dos sentimentos, das histórias orais, da transformação de instrumentos de trabalho
em instrumentos musicais, dos mitos, dos símbolos, dos ofícios tradicionais, dos
cortejos, dos rituais já citados acima e que são descritos no livro da pedagogia griô.
Vamos aprender tudo que já sabemos de nós mesmos e o que ainda não sabemos de
nós mesmos.

Segundo o mestre africano Tierno Bokar “A escrita é uma coisa, e o saber é outra;
a escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si”. Então o papel voltou com
outro lugar no processo de construção. Criamos a pedagogia griô – a reinvenção da
roda da vida – que possui referências, modelo teórico da identidade e ancestralidade –
rituais de ensino e aprendizagem em sala de aula; que recria a figura do griô aprendiz,
este caminhante que já apresentamos. Criamos tudo isso com os estudantes,
educadores, griôs e mestres de Lençóis, caminhando nas comunidades e escolas – e
criamos o filme “SOU Negro” que revela a didática e o modelo teórico da identidade e
da Roda da Vida e das Idades.

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Caminhada e vivência da
trilha griô na comunidade
rural do Dendê, Cachoeira
- BA 2008

Caminhada e vivência
da pedagogia griô
na escola e comunidade
rural da Estiva, Lençóis
- BA - 2004

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Para que estamos aprendendo isso? Essa pergunta nos levou a olhar e a vincular a
identidade (e a história de vida) como centro do saber. Toda ciência gira como uma
espiral em volta da identidade, para formá-la local, regional, planetária e universal
– como cultura que expressa a vida, como vida que se expressa cultura.

As caminhadas dos griôs em Lençóis nos fizeram criar a pedagogia griô, a Ação Griô
Nacional, as trilhas griôs de educação e cultura oral garimpeira e quilombola em
Lençóis. E estão sendo a referência em economia comunitária para mais seis trilhas
no Brasil, que são sistematizadas pelos jovens do Grãos e das organizações parceiras,
numa rede em parceria com o Projeto Bagagem.

Caminhar na trilha é uma escola plena de cultura e vida. A trilha está se


transformando também num jogo educativo e cooperativo no qual cada jogador
escolhe seu boneco griô e pode começar sua caminhada de qualquer ponto do Brasil.
O objetivo principal do jogo é o mesmo objetivo do Grãos de Luz e Griô e da Ação Griô
Nacional - fortalecer a identidade e ancestralidade dos jogadores. Assim faz Fátima
Freire, assessora pedagógica do Grãos de Luz e Griô e da Ação Griô Nacional,

“Quero partir do Pernambuco porque aqui eu nasci, aqui eu vou e é para cá que eu
tenho que voltar”.

Existem a missão individual e a missão coletiva, cada desafio conquistado presenteia


o jogador com Grãos de Luz - sementes de milho. Os desafios e as regras versam
sobre as aprendizagens e princípios do modelo da identidade e vivência proposta na
pedagogia griô e vivida pelo Velho Griô em suas caminhadas em comunidades rurais,
urbanas em Lençóis e no Brasil, com todos os representantes da erudição de cultura
oral.

Os encontros regionais e nacionais da Ação Griô Nacional foram criados com


referência na pedagogia griô e em suas fontes de aprendizagem, seu chão de
autores, criadores, fazedores, caminhantes da educação e da tradição oral no Brasil.

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Vivência da pedagogia griô, com o griô Henry Durante, no Encontro de Biodança e
Ação Social - SC, 2009

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Com a palavra Henry Durante – conversas poéticas e
científicas sobre a pedagogia griô
Henry Durante, da Associação Jongueira do Tamandaré de Guaratinguetá
e griô aprendiz Articulador da regional da Terra

Peço licença ao Velho Griô e a todos os griôs, mestres e aprendizes da Regional da


Terra e da Ação Griô Nacional, a Líllian Pacheco, criadora da pedagogia griô e aos
mestres generosos Fátima Freire, Alberto Ikeda e Marcos Ferreira Santos, fontes de
inquietação e inspiração deste relato.

Este relato trata basicamente da minha caminhada como griô aprendiz na Ação Griô
Nacional, articulando a Regional da Terra. Curta caminhada, ainda, embora, para
mim, bastante significativa. A partir dela, pude, enquanto educador que sou, vivenciar
no encontro com mestres e griôs de várias culturas a possibilidade de ressignificar
conceitos pedagógicos fundamentais.

Não posso esquecer o encontro com o Velho Griô no rol desses encontros. Estávamos
os griôs aprendizes reunidos em Lençóis, BA, no encontro da Ação Griô Nacional. No
início de uma manhã, o Velho Griô nos reuniu e pediu que permitíssemos que fosse
nosso mestre naquela ocasião, e também que concordássemos em permanecer em
silêncio completo enquanto ele nos guiasse por Lençóis.

Antes de sairmos, porém, o Velho Griô propôs um jogo, no qual cada um de nós se
expressava com as mãos ou outra parte do corpo por meio de um símbolo único,
revelador de uma identidade muito íntima. Cada um de nós se comunicava por meio
da expressão de seu próprio símbolo e da repetição dos símbolos dos outros, que
deveriam estar bem fixados na mente.

Em seguida, partimos pelas ruas da cidade, em silêncio. O objetivo era alcançar a


linda cachoeira que desliza pelo centro de Lençóis e retornar. Atravessamos o centro
de Lençóis, da forma combinada. Adentrando a mata, nossa atenção era dirigida
pelo Velho Griô na direção de vários elementos da natureza, como as aves, o ar, a
lembrança do útero materno ao adentrarmos em uma gruta, nos fazendo restabelecer
nosso vínculo com a Terra e com todos os elementos do universo, até alcançarmos o
refúgio restaurador nas águas da grande cachoeira. Em cada momento e ambiente
uma roda, uma vivência e um ritual de contação de histórias.

Ao retornar, repetimos o diálogo por meio de símbolos corporais e, como em um


pacto silencioso, sentimos que ao final da travessia já não éramos mais a mesma
equipe. Tivemos a oportunidade do encontro transformador. A partir daquele ponto,
estávamos preparados para nos separar e, cada um em uma região do país, dar
seqüência à missão de inscrever na grande roda do conhecimento - que são a cultura
e a educação brasileiras - o encantamento vivido com mestres e griôs.

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A partir dessa vivência com o Velho Griô, me permito falar poeticamente sobre alguns
conceitos pedagógicos presentes nessa caminhada e na pedagogia griô. Educar é
palavra de origem latina. Etimologicamente vem de educare, que significa alimentar,
como, por exemplo, por meio da instrução. Dito desta forma, nos remete a um
movimento “de fora para dentro”, ao passo que os humanistas, no passado, preferem
educere (fazer sair, tirar de dentro) que é um movimento “de dentro para fora”. Como
lembra Critelli, educere ou exducere também pode significar “tirar de uma dada
situação”, donde “ducere” significa conduzir, levar; e “ex”, pôr à vista, mostrar, pôr
para fora ou tirar do escondido. Ensinar, por sua vez, vem de insignare ou insígnia,
e tem o sentido de impressão de sinais (inscrever signos) na mente daquele que
aprende.

Cabe ao educador, iniciador consciente das novas gerações na cultura, optar por um
tipo de educação que se baseie majoritariamente na inserção de conhecimentos nas
jovens mentes ou, ao contrário, optar por um caminho em que se saiba que, melhor
que educar, seria fazer despertar - de dentro para fora - os símbolos interiores, sinais
únicos, reveladores de identidades singulares. Educar, nesse sentido, não é somente
fortalecer por meio do alimento - ou instrução, como é, sobretudo, seduzir (do latim
seducere) - provocar a sede. A sede que faz com que o aluno desperte no crepúsculo
para testemunhar a água imprimindo pacientemente sua vontade nas pedras da
cachoeira.
Assim ensinam mestres e griôs, não só por meio de palavras, mas, na vivência da
cultura. Mestres e griôs ensinam principalmente pela ritualização da vida, no ciclo das
atividades festivas, como se pode verificar em momentos como os agradecimentos
das refeições, ou ao se abrir a roda do Jongo pedindo licença aos ancestrais, assim
como nos cantos de trabalho, o no pedido de licença para se entrar no Candombe,
nos cantos de despedida, enfim, entre inúmeros outros exemplos. Pela vivência nos
rituais, o jovem pertencente à comunidade vai sendo inserido nas manifestações
culturais. A aprendizagem se dá lentamente, por meio da observação paciente e do
estímulo dos mais velhos.
Há de se destacar, nesse processo, a importância dos símbolos da cultura popular
tradicional, tal como, nas festas populares, a presença das bandeiras, demarcando
o espaço do sagrado, assim como os mastros, estabelecendo também uma ligação
da terra com outros planos. Tal fato nos remete ao escritor basco Ortiz-Osés,
quando este nos lembra do pensamento simbólico, cujo “fazer-se não é conhecer,
mas conhecer-se”. Este pensamento simbólico não é aquele da educação cartesiana.
Significaria um passo na direção de conciliar razão (ratio) e sensibilidade (sensus).
Sensibilidade esta que, segundo Ortiz-Osés, estaria ligada à emoção, ao afeto, à
vivência e à con-vivência. É o “conhecer como sentir”.
Ortiz-Osés nos lembra ainda que “sob o talento cerebral há o talento cordial (relativo
ao coração)”, falando em co-razão e que, na filosofia latina, o senso comunitário leva
ao con-senso. Por que não podemos falar, então, de uma educação do con-sentir, do
con-sentimento, ou seja, uma educação com sentido?

Penso que o sentido atribuído por mestres e griôs é o de uma educação ligada à
cultura enquanto cultivo do sagrado. Mestres e griôs, que lavram a terra, onde a
semente é a promessa do alimento, têm no cultivo do sagrado a promessa de legar a
cultura herdada dos ancestrais às novas gerações.
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Sem esse cultivo do sagrado, as manifestações culturais tornam-se mera repetição
mecânica de atividades, correndo-se o risco de se incorrer em uma folclorização como
resultado de um esvaziamento de sentido; quando ocorre o fazer sem o saber. Daí
a importância do saber dos mestres e griôs na educaçao. Herdeiros legítimos das
tradições populares, eles são os “cuidadores” e atualizadores desses saberes.
Na experiência com a Ação Griô e da pedagogia griô é possível a diminuição da
distância entre a racionalidade analítico-discursiva do nosso sistema educacional e
as histórias místicas (e míticas) dos griôs na busca da verdade. Nesta direção, somos
levados por autores que buscam caminhos “pela terceira margem do rio”, tais como
o “princípio da autopoiésis” (Humberto Maturana); “princípio da razão sensível” (M.
Maffesoli e G. Bachelard); “pensamento complexo” (Edgar Morin); ou uma “educação
crepuscular”, de Marcos Ferreira Santos, para quem o exercício da razão sensível
pertence a um “re-encantamento do mundo”.
A semelhança entre mestres escolares, mestres e griôs é que ambos são responsáveis
pelo encontro iniciático com seus discípulos. Entretanto, diante da inflexibilidade dos
currícula e modelos pedagógicos construídos historicamente com base unicamente
no racionalismo, os professores não conseguem exercer sua verdadeira vocação.
Isto porque, nas palavras do educador francês Georges Gusdorf, “em nosso sistema
pedagógico, o ensino, em vez de visar à educação e de se apagar diante dela, tende
a ser considerado um fim em si. É um obstáculo ao cumprimento da tarefa educativa,
antes de contribuir para que ela seja cumprida”.
O objetivo do professor, portanto, não é somente ensinar matemática, química ou
história, posto que o objetivo último da educação é a edificação do ser humano.
Existe, é certo, o pensamento de que a tarefa da educação é a de dar conta de uma
tradição, modelada em conteúdos curriculares que são construções históricas e
ideológicas. Eu falo aqui de um sentido da educação mais profundo, o da descoberta
de si mesmo.
Por sua vez, o objetivo do mestre não é somente o de ensinar a tocar, mas o de
mostrar-se enquanto ser. O artesão, ao concluir sua obra, está se auto-aperfeiçoando;
assim como o mestre arqueiro da tradição zen budista, ao atingir seu alvo, está
atingindo a si mesmo. Segundo Gusdorf, “o mestre ensina, mas ensina algo mais
do que aquilo que ensina. O mestre é aquele que não ensina com palavras, mas, no
silêncio. O mais alto ensinamento do mestre não está naquilo que ele diz, mas no que
ele não diz”.
Assim o faz o jongueiro no centro da roda por meio dos pontos. Assim o faz o
candombeiro em Minas Gerais. Assim o faz o griot, ou dieli, no Mali, cujo objetivo não
é somente o de ensinar a tocar a kora. Por meio das histórias, da genealogia, os griôs
levam seus ouvintes ao encontro de si mesmos.

*Termo aprendido com o Mestre capoeirista Marquinhos Simplício, de Campinas, SP.


Cf. ARENILLA, L. et al. Dicionário de pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.p.168.
CRITELLI, D. M. Educação e dominação cultural: tentativa de reflexão ontológica. São Paulo: Cortez, 1981.p.44-5.
Cf. LAENG, M. Dicionário de pedagogia. Lisboa: Dom Quixote, 1973.
ORTIZ-OSÉS, A. Cognitio matutina e razão afetiva. In.: SANTOS, M. F. Crepusculário: conferências sobre
mitohermenêutica e educação em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2005.p.12. Ibidem, p.11. FERREIRA SANTOS, M.
Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica e educação em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2005.p.19 Ibidem,
p. 25-6. GUSDORF, G. Professores para quê? – para uma pedagogia da pedagogia. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003. p.59. Ibidem, p. 116.Notas

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Vivência da pedagogia griô, com Guitinho da Xambá e o Velho Griô - abertura do
Encontro Regional da Ação Griô - Ventre do Sol.

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Com a palavra o griô aprendiz Guitinho de Xambá
– o Alumiado

Todos os dias nasce o mesmo Sol, mas o dia não é mais o mesmo, as pessoas não são
mais as mesmas.

Encontro de margens, de margens que se aproximam, se tocam, se abraçam, se


beijam. Encontro em margens que nos conduzem a um rio de sonhos que deságua em
um mar de possibilidades. Cheguei a Piaçabuçu de mala cheia, pois carregava dentro
dela um Sol e outro dentro de mim – o sol do alumiado, que sou eu, o melhor de mim.
A mala estava tão pesada que recorri à ajuda de um carroceiro, que no momento da
minha minha chegada passava. Então joguei a minha mala em cima da carroça, que,
puxada por um sábio-burro, me levou até a casa de Dalva, coordenadora do Olha
O Chico. O valor da corrida? Dois reais e muitos sorrisos com as minhas palavras
engraçadas e as de seu Francisco. Literalmente, cheguei a Piaçabuçu na beira do Rio
São Francisco no galope de um velho Chico.

Cheguei com o desejo de me fazer florescer nos olhos daqueles que não me conhecem
e os guardarei como lua nova no céu que há dentro de mim. Também reencontrar
os olhos daqueles que já me viram um dia, e, assim como os meus, estão vazantes
de saudades. Nessa cidade-canoa, que flutua sobre o velho Chico, aconteceu o 5º
Encontro da Ação Griô Nacional, dessa vez a Regional Ventre do Sol.

A Ação Griô caminha em cirandas, unindo os saberes de cada um que se coloca


disponível a compartilhar aquilo que de melhor tem pra dar. Tem como missão nos
fazer descobrir que dentro de cada um de nós existe um sol brilhando, que precisa
constantemente ser alimentado com conhecimentos, com descobrimentos. Espero
que todos estejam satisfeitos com o Encontro. Que tenhamos descoberto e nos
reencontrado com aquilo que sempre somos e eternamente seremos: aprendizes.

A Ação Griô tem como proposta levar os seus encontros para cidades pequenas, para
o interior do Brasil, como diz Mainha Li - para se interiorizar. Ainda nos encantamos
com a força das pessoas dessa Regional. As recebemos com cantiga de boas vindas
nos degraus do ônibus, fazendo a roda e cantiga de chegança, aprendida pelo Velho
Griô com o Griô Pedro Ivo, da comunidade do Rose em Santa Luz, BA .

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No centro da roda, convidamos para dançar a sabedoria das parteiras do Cais do
Parto, conduzidas por dona Suely, que dentro de nós faz nascer a certeza de que
todos os dias nascemos com as parteiras tradicionais; a pulsante força do Axé do
Alafin Oyó, que com sua música faz a nossa ancestralidade dançar; a doçura do
Cultura para o Desenvolvimento, estampada nos leves sorrisos de Mariângela e a griô
aprendiz Consuelo, embaladas no tocar de sanfona do mestre seu Domingos, um pai;
a jovialidade da mestre Dôdora do Casarão de Ofício, que com a griô de tradição oral,
Damiana, e a griô aprendiz, Raquel, nos mostra o quanto a vida sempre se renova
no mundo dos vivos e dos não-vivos; não-vivos que nos protegem, seguem juntinhos
aos nossos passos e entram na roda do Côco de Umbigada para sambar, para brincar
e se fazer vivo nos raiantes sorrisos de quem vai pra roda conduzida por Mãe Lúcia;
e não há coisa melhor pra nos ligar com aqueles que materialmente não estão aqui,
mas estão nas nossas manifestações culturais, como pudemos enxergar nas lágrimas
de Neidinha, griô aprendiz do Felipe Camarão, o Boi de Reis, dançando e ouvindo
ela dizer para o mundo “que um dia o boi fez ela voar”, ao ponto de tocar no céu do
Estrela de Ouro de Biu Neguinho, griô aprendiz que faz seu mundo nascer na pele de
seu pandeiro, seu fiel amigo.

Todas essas pérolas aportaram na praia do Peba. Em sua chegada, os saudamos


com o caloroso: “Sejam bem-vindos à nossa comunidade!” Para aliviar o cansaço da
nossa viagem, todos estiveram à mesa para jantar e, em seguida, dormiram cobertos
pelo céu estrelado das noites do Peba. Na manhã cedinho da sexta-feira, a parteira
Aurora fez nascer o Alumiado para brincar de Sol, para brincar de mais um filho do
Sol. E, com o seu pandeiro que faiscava cantiga para acordar quem tem sono de lua-
leve, que o levasse, pois o dia já brincava lá fora, chamando gente pra lhe dar mais
vida. Depois de o Alumiado ter acordado todos, ele foi se pôr no mar para logo voltar
a nascer, na abertura do Encontro no Centro de Piaçabuçu. A cidade é muito rica
em simplicidade: a cara da Ação Griô. Conseguimos com esse encontro ir além das
paredes de hotéis. Acho que fomos mais comunidade. Comungo com a queridíssima
Vaninha, que é de ferro e fogo e doçura, essa mulher. O meu desejo de sempre fazer
melhor é eterno! A abertura do encontro na escola sobre a condução da mainha Li
com os encontros dialógicos foi a coisa mais bela com as crianças e pessoas de todas
as idades na roda descobrindo o que é educação, tradição oral e Ação Griô Nacional.
Todos se descobrindo. A chegada do cortejo dos griôs aprendizes ritualizados pelo
Velho Griô mostrou que é possível saber popular entrar na escola, trazer as pessoas
para a roda, crianças, adolescentes, adultos, velhos, mestres, mestras, professores e
aprendizes. Todos, donos da palavra!

Depois de termos uma manhã integradora, retornamos para a praia do Peba, onde,
a partir da tarde, os griôs aprendizes iriam atuar como “invasores encantadores” do
mundo “formalista” das escolas de Piaçabuçu, realizando a caminhada proposta pela
pedagogia griô, criada por mainha Li.

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Chegada a hora, me vesti de “Alumiado” e me fiz raiar em uma sala de aula. Confesso
que pensei que os alunos me receberiam com estranheza, mas a recepção foi além,
muito além do esperado. Isso me fez perceber o quanto o trabalho do Olha o Chico
é forte em sua cidade. É algo que envolve todos os membros da escola. Após o
“Alumiado” fazer o seu brincar de Sol, em sala de aula, foi ao encontro dos griôs
aprendizes no pátio da escola, onde fizemos uma grande roda e dançamos um lindo
toré, conduzido pelo griô Índio Matinho. O grande momento desta tarde foi quando
puxamos os estudantes para um cortejo nas ruas de Piaçabuçu, cantando e dançando
côco cerca de 150 crianças, indo parar às margens do Rio São Francisco para pedir a
bênção ao grande griô Velho Chico. Assim finalizamos essa tarde, com o Índio Matinho
retornando com as crianças para a escola e o “Alumiado” se pondo nas águas do São
Francisco. Na manhã do sábado, mais uma vez o “Alumiado” nasceu junto com o Sol
para acordar quem ainda nos olhos a noite fazia morada.

Desta vez, o “Alumiado” teve a bela companhia da griô aprendiz Linete, que, com a
sua leve voz cantou cantiga pra acordar de porta em porta todos os 40 participantes
do encontro, convidando todos a receberem o nosso “bom-dia”. Acordados, seguimos
para a escola, onde foi realizada a vivência da pedagogia griô, desenvolvida pelo
Grão de Luz. Esse ritual é sempre muito importante, deixa marca fortíssima por onde
passamos. Acredito que não foi diferente com as pessoas dessa Regional, que se
mostraram disponíveis, carinhosas e abertas a conhecerem. Tivemos uma roda muito
rica, devido a sua pluralidade e à sintonia das pessoas. À tarde, foi a hora de cada um
falar de si e de seus trabalhos desenvolvidos com a Ação Griô e seus Pontos. Confesso
que essa tarde foi muito longa, mas, ao mesmo tempo, curta: as pessoas têm muitas
coisas para falar, para mostrar, uma necessidade grande e importante de expor suas
ações na Ação Griô. Mas temos toda uma vida e uma rede para comungarmos de
nossas histórias. Temos um time de assessoras: a Vandinha, a Claudinha, a Lí, a tia
Lúcia, a Ruthinha, a Fatinha. Não há meio de campo que embole.

Na noite do sábado, tivemos aquele momento de festa em praça de interior. Fomos


até o centro de Piaçabuçu em sua noite aconchegante: roda-gigante, carrossel, pula-
pula, maçã-do-amor para os enamorados, banquinho de praça e apresentações de
guerreiros, reisados e o Caçuá na Igreja móvel, onde o padre diz até “amém”, mas
não manda. Quem manda mesmo é o motorista do caminhão, onde fica a igreja.
Então, todos os cuidados para não zangá-lo. Logo depois da apresentação do Caçuá,
retornamos para o Peba. No dia seguinte, o cortejo apareceu de porta em porta
acordando a todos. Houve o círculo de cultura com Ruth e Fátima, a vivência de
transcendência com Cláudia Monteiro, a aula de educação para as relações étnico-
raciais positivas com Vanda Machado.

E, por fim, a bênção ao grande irmão, com quem a cada reencontro aprendo mais, o
adorável Márcio Griô. Então vamos adiante, que o mundo não pára nem as pessoas,
quando falamos a sua história. Axé pra todos! Segue o cortejo, porque: “Todos os
dias nasce o mesmo Sol, mas o dia não é mais o mesmo, as pessoas não são mais as
mesmas”.

Guitinho da Xambá, griô aprendiz da Regional Ventre do Sol – NE

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Com a palavra Ruth Cavalcante
A Educação Biocêntrica na Pedagogia Griô
A Pedagogia Griô tem como base a Educação para as relações étnico-raciais, a
Tradição Oral, a Educação Dialógica e a Educação Biocêntrica. Compreende que a
comunidade humana foi perdendo a sua tradição de rituais de vínculos, fragmentando
cruelmente os grupos sociais. Com essa compreensão, traz de volta a valorização de
rituais de vínculos e aprendizagem, consolidando o sentido de sacralização da vida,
da união e solidariedade das comunidades, aprofundando a memória dos fatos mais
significativos da identidade do lugar e das pessoas.
Nos Encontros de Educação e Tradição Oral ocorridos no ano de 2007 nas sete Regiões
do Brasil, a proposta da pedagogia griô e da Ação Griô foi trazer para os Pontos de
Cultura e para as escolas a eles vinculadas um despertar a mais para considerar
nossos mestres e griôs de tradição oral como verdadeiros símbolos ancestrais e
arquetípicos, deflagrado através da força transformadora das vivências.
Nos referidos Encontros constava na pauta, entre outros temas geradores, um
estudo sobre a conceituação e vivência da Educação Biocêntrica. Considerando a
sua ontologia, sua epistemologia, assim como sua metodologia, trazíamos essa
abordagem pedagógica como sugestão para ser aplicada nos pontos que se sentissem
identificados com essa proposta. Essa experiência se constitui na mais ampla
aplicação da Educação Biocêntrica na comunidade, em integração com a escola. Parte
desse resultado se deve ao fato da idealizadora da pedagogia griô, Líllian Pacheco, já
ter vindo de uma vivência de mais de 15 anos como facilitadora de biodança e como
educadora biocêntrica.
Nessa breve reflexão, pretendo ampliar um pouco mais alguns conceitos da
Educação Biocêntrica, que segue um modelo interativo, de rede, de encontro e de
conectividade, partindo da vivência, como a educação dialógica parte da ação e do
diálogo. Ambas estão profundamente comprometidas com a evolução da vida e têm
como objetivo preparar o educando para viver e conviver com as mudanças no mundo
em transformação, cultivando o núcleo afetivo das pessoas. O ponto de partida para
a mudança das relações culturais, estéticas, sensíveis e biográficas do ser são as
interações, a sensibilidade como movimento em conexão com outras realidades,
incorporando dimensões éticas e dialógicas, em uma visão em que a pessoa é
considerada como um ser inteiro, que pensa, sente, fala e age em cooperação com os
outros.
A Educação Biocêntrica prioriza o deflagrar da inteligência afetiva, que é trabalhada
partindo da vivência para a consciência. A inteligência afetiva clama pelo encontro
entre aqueles e aquelas que, juntos, buscam o auto-conhecer-se, conhecer e mudar
a realidade. E essa proposta pode gerar uma força poderosa de mudança social,
formando um todo harmonioso através de seu método reflexivo-vivencial, pois uma
pedagogia reflexiva envolve um pensamento mais complexo, que abarca os aspectos
sociais, históricos, ecológicos além dos cerebrais, dando início a um grandioso
movimento evolutivo. Como sujeitos da nossa realidade podemos reinventá-la através
da poesia, da dança, da cantoria, da carícia, da ação política, tendo uma participação
na vida comunitária com compromisso e solidariedade. No entanto, não basta mudar
dentro de si. A mudança deverá dar-se também socialmente, na unidade dialética
entre a dança e a política.
90
É preciso mudar profundamente o modo de pensar, sentir e agir, aprofundando os
vínculos com as pessoas e com o meio onde vivemos. Acreditamos na força da prática
de uma educação para a liberdade e felicidade das pessoas, para a justiça social
entre o ser humano, para a busca do viver em paz, para a comunicação entre as
pessoas mediada pelo diálogo amoroso. Queremos nos preparar cada vez mais para
dialogar com os que pensam e fazem educação. Que a nossa linguagem amorosa
seja compreendida por todos os educadores que, como nós, buscam contribuir
para influir mais decisiva e rapidamente na mudança dos paradigmas da pedagogia
contemporânea que reforça algumas deformações sociais e/ou patologias individuais.

A Educação Biocêntrica atende a uma necessidade natural de vida. Por isso transcende
a cultura e a relação ser-humano x ser-humano, considerando a mulher e o homem
como seres em movimento, em constante pulsação com todo o Universo. Cada um
deve ser capaz de se mover por conta própria, de perceber a si mesmo e a realidade,
sendo ele próprio a referência da sua percepção, da sua relação, da sua ação. No ser
humano nada é definitivo, está permanentemente em mudança, embora conservando
o núcleo da sua Identidade que é singular e única para cada um.

Através de recursos didáticos específicos, a Educação Biocêntrica favorece a


expressão dos nossos próprios potenciais; expressão originária do que há de mais
íntimo em nós mesmos, na essência do sentir-se vivo. Rolando Toro, cientista chileno,
criador do Princípio Biocêntrico, considerou cinco canais de expressão dos potenciais
genéticos, chamados de Linhas de Vivência; e classificou-as em ordem da menor à
maior repressão na nossa cultura, quais sejam: vitalidade, sexualidade, criatividade,
afetividade e transcendência. Por esses canais circulam a programação biológica em
suas expressões vivenciais.

“O desenvolvimento evolutivo se realiza na medida em que os potenciais genéticos


encontram opções para expressar-se através da existência. Podem ser obstruídos ou
estimulados ao entrar em contato com o meio ambiente” (Toro, 1991)

A base da nossa metodologia é a vivência, que tem uma função mediadora, mediando
a aprendizagem. É diferente da experiência, que maneja um objeto de estudo ou
aprendizagem. A experiência é cumulativa. Nela pode acontecer a vivência ou não.
A vivência não tem a função de conhecimento. Não se propõe como um lugar de
conhecimento. Tem um sentido em si mesma e traz em si a possibilidade de formar
uma nova atitude frente ao aprender. Favorece a formação de valores para aprender,
mas não é o aprender propriamente, e, sim, a expressão e impressão de alta
sensibilidade. É um instante em que a pessoa se expressa e o processo se imprime
nela. A vivência é a formação de vínculos intensos, consigo mesmo, com o outro e
com a sua comunidade. O instante em que se está vivendo não se acumula – é aqui
e agora – mesmo que esteja relacionado com o passado, aos nossos ancestrais. É
diferente da experiência que se acumula. Contudo, a vivência tem muita importância
na construção do conhecimento, porque mexe também com as estruturas cognitivas,
aumentando a capacidade de se ouvir e ouvir o outro e a realidade. Re-significa e
revaloriza o aprendizado, desenvolvendo novas posturas do aprender, através das
emoções e sentimentos, ampliando o processo pedagógico para um processo de vida.

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Nós ouvimos, com muita freqüência, depoimentos de participantes dos nossos
encontros falando que, ao participar deles, perceberam transformações existenciais,
indicando que houve uma re-significação da aprendizagem para transformar-se a si
mesmo e ao mundo.

A proposta da Educação Biocêntrica oferece um projeto para formação de Educadores


que deverá não só ser pensado e refletido intelectualmente, mas, sobretudo, deverá
ser vivido e sentido visceralmente. Numa perspectiva epistemológica, esta abordagem
convida os educadores a uma reflexão que os coloque no caminho de conhecer o seu
conhecer e conhecer-se a si mesmo, permitindo-os encontrar-se com o seu saber e
a sua sabedoria. O conhecimento do conhecimento os levará a um compromisso de
estar em uma atitude de constante vigilância, para não se apegar às suas certezas e
verdades, mas estar abertos à percepção de um mundo que produzimos juntos, nós e
os outros, um mundo que se move em direção a auto-regulação, à felicidade e à vida
plena.
A metodologia da Educação Biocêntrica é aplicada no sentido de gerar novas
condições de aprendizagem. Aprender não apenas pelo cognitivo, mas aprender
a se conectar com nossas emoções e sentimentos, saber ouvir a nossa intuição,
saber ouvir o outro, para, através da “escuta ativa”, de que nos fala Carl Rogers,
poder captar na fala do outro toda a sua existência, postura tão essencial na relação
humana. Aprender a sentir para, mais facilmente, aprender a pensar. Nietzche vai
mais além quando afirma que “para aprender a pensar é preciso aprender a dançar”.
É necessário tirar o foco da valorização dos aspectos externos das experiências e
considerar as vivências internas das pessoas na perspectiva de uma Visão Biocêntrica.
Esse processo metodológico visa a estimular uma reflexão consciente, crítica, da
realidade, estimular o potencial criativo e, principalmente, tocar o núcleo afetivo
das pessoas, contribuindo para a formação de cidadãos críticos, criativos, solidários,
afetivos, éticos e envolvidos com o processo de transformação pessoal e social, no
sentido da preservação e desenvolvimento de todas as manifestações de vida.

Acreditamos que essa proposta é necessária para a nossa prática transformadora,


compreendendo o ser humano numa perspectiva que integra corpo, emoções/
sentimentos, razão, mente, espírito. As pessoas são concretudes e se expressam
através da sua ação no mundo, da corporeidade vivida. O corpo como visibilidade
do ser. O ser se fazendo no mundo. Daí porque usamos como recurso metodológico
desenvolver o prazer cinestésico do movimento através de danças de harmonia
e fluidez. Ativa-se a expressão afetiva e criativa através do canto de tradição,
do desenho, da pintura, em que, muitas vezes, revelam-se símbolos ancestrais e
representações do Universo e de todas as suas energias, restaurando, assim, os
potências de vida do ser humano e reiniciando uma civilização de vida, um espaço
sagrado de ensino e aprendizagem.

Utilizamos o diálogo fecundo, que exige o reconhecimento entre duas ou mais


pessoas, exige uma postura de abertura para o mundo e para si mesmo, implicando
em troca, construção da relação mediada pela realidade. O diálogo aparece como
eixo central do processo de ensino-aprendizagem. Paulo Freire, que diz que “como
educadores, somos artistas e políticos, mas nunca técnicos”, no seu livro A Pedagogia
do Oprimido, no capítulo que trata do diálogo amoroso, afirma:
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“O diálogo começa na busca do conteúdo programático. Daí que, para esta concepção
como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-
educando se encontra com os educando-educadores em uma situação pedagógica,
mas, antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes.”

Aliando-nos à Educação Dialógica, enfatizamos também o poder transformador do


diálogo, o qual envolve a consciência, pensamentos e sentimentos. Com isso, chega-
se a uma síntese que dá suporte à forma de estar com os outros e/ou à cultura de
um grupo. O diálogo é uma prática muito antiga, encontrando-se referência a essa
forma de comunicação humana entre os nativos e índios americanos e outros povos
indígenas, nas tradições africanas, meditações orientais e, mais recentemente,
nos trabalhos do filósofo Martin Buber e do psicoterapeuta americano Carl Rogers.
Aqui no Brasil, essa prática foi valorizada pelo nosso mestre-educador Paulo Freire,
que considera o diálogo como a mais significativa base de toda relação humana. E,
para facilitá-lo, criou um instrumento de conversa que traz a palavra como símbolo
capaz de gerar vida (a palavra-geradora), que ele chamou de CÍRCULO DE CULTURA.
Passamos a empregá-lo, já na década de 80, na Educação Biocêntrica, desdobrando-o
em muitos outros formatos, como: Encontros Temáticos, Roda Concêntrica de Diálogo,
Círculo de Qualificação do Relato, etc. Todos eles guardando o princípio de ser um
espaço circular de expressão do ser, considerando a Cultura como um conjunto de
elementos fundamentais, que envolve mitos, histórias, valores, rituais, símbolos e
linguagens, e o Círculo como uma representação geométrica onde não há começo
nem fim, não há hierarquias, mas há mudança.

Partindo da CODIFICAÇÃO da realidade, o participante procede à DECODIFICAÇÃO,


para voltar a CODIFICÁ-LA através da palavra ou de qualquer forma de arte. É um
espaço reflexivo e participativo em que cada um é reconhecido na sua individualidade
dentro do coletivo. Seja na Escola, na Organização ou na Comunidade, esse
instrumento pedagógico possibilita a formação de uma consciência crítica e socializada
a respeito das realidades que afetam a vida das pessoas do grupo. Favorece um agir
pessoal e coletivo para obter e aperfeiçoar as transformações necessárias.

O primeiro passo do Círculo de Cultura é o LEVANTAMENTO DO UNIVERSO


VOCABULAR do grupo participante, ou seja, detectar as palavras que são a
síntese da compreensão que ele tem da sua realidade. Em cada palavra, há um
universo de pensamento simbólico que está contido em códigos que deverão ser
decodificados, descobertos e traduzidos. É desse universo que são retiradas as
PALAVRAS GERADORAS, aquelas que vão além das falas cotidianas das pessoas e são
carregadas de expressão sócio-político-cultural-emocional. São palavras geradoras de
crescimento, provocadoras de reflexão, geradoras de idéias concernentes à formação
da consciência crítica, geratriz de aprendizagem. Elas traduzem o mundo vivido do
educando, estão plenas de sentido.

Na apresentação das palavras geradoras, as pessoas estão sentadas em círculo,


fazendo as idéias circularem, gerando o diálogo e proporcionando a troca de saberes
entre os participantes do grupo.

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Nos Círculos de Cultura, realizados nos Encontros da Ação Griô, a força da palavra
se fez presente no Universo Vocabular surgido dos grupos, como acontece na
tradição oral, e aqui destaco algumas das palavras-geradoras que circularam nos
grupos: vida, identidade, prazer, harmonia, diálogo, natureza, ecologia, evolução,
contato, construção, liberdade, consciência, educação, conexão, ética, expressão,
solidariedade, vínculo, amor, aprender, vivência, ensino, roda da vida, transcendência,
espiritualidade, inteligência afetiva, contador de história, sábio, mestre, raízes,
aprendizagem vivencial, diversidade, memória, sentido da festa, sentido da vida,
ciência e mito, sabedoria e escola da vida.

Rubem Alves também nos fala sobre o poder da palavra. No seu texto “Escola:
fragmento do futuro” escreve:

“Os antigos acreditavam que as palavras eram seres encantados, taças mágicas,
transbordantes de poder. Os jovens também sabiam disso e pediam:
- A sua bênção, meu pai...
Bênção, bendição, bendizer, bem-dizer, benzer, dizer bem...
A palavra dita, dita com desejo, não ficaria vazia: era como sêmen, semente que faria
brotar, naquele por ela penetrado, o desejo bom por ela invocado.
- E o pai respondia:
- Meus desejos são poucos e pobres. Te desejo tanto bem que não basta o meu
bem-dizer. Por isso, que Deus te abençoe. Que seja ele aquele que diga todo o bem
com todo o poder...
E então, pelo milagre da fantasia, tudo se tornava possível. As palavras surgiam como
cristais de poesia, magia, neurose, utopia, oração, fruição pura de desejo. É isso que
acontece sempre que o desejo fala e diz o seu mundo. Viramos bruxos e feiticeiros e a
nossa fala constrói objetos mágicos, expressões simples de amor, nostalgia por coisas
belas e boas, onde moram os risos...”

Patativa do Assaré, o nosso grande poeta do Cariri, conhece bem a potência da


palavra falada e seus versos têm elementos que o vinculam afetivamente ao seu povo,
à terra, à natureza e à sociedade. Trago um exemplo da beleza singela destacada do
seu livro Cante lá que eu canto cá:

“(...) Mas porém eu não invejo


O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazer rima compreta,
Não precisa professô
Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô (...)

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(...) Canto as fulôs e os abróio
Com toda coisa daqui.
Pro toda parte que eu óio
Vejo um verso se buli.
Se às vezes andando no vale
Atrás de curá meus mal
Quero reparar pra serra,
Assim que eu óio pra cima,
Vejo um diluve de rima
Caindo inriba da terra.(...)”
(PATATIVA DO ASSARÉ)

Com mestres como ele nos foi dado o privilégio de conviver neste Programa da Ação
Griô Nacional e chegarmos a uma combinação lúdica entre a teoria e a prática, através
desta metodologia reflexiva-vivencial, restabelecendo o caminho da formação integral
e plena do lugar griô aprendiz proposto pela pedagogia griô e do(a) educador(a). Com
essa Educação de dimensão transcendente, percebe-se o outro lado da realidade,
podendo-se captar a profundidade da vida em ligação e re-ligação com todas as coisas
entre si.

A música, assim como a palavra dita de forma poética, a literatura, a dança e a


pintura representam, para a Educação Biocêntrica, possibilidades de suscitar vivências
sumamente complexas e sutis, de grande intensidade e com efeitos transformadores
na nossa existência. A consciência de ser parte integrante de um universo musical
aparece já na origem da história humana, nas lendas antigas e nos mitos arcaicos.
Já vem, portanto, de tempos muito antigos a percepção do ser humano de que
o Universo era regido por pautas rítmicas, por acontecimentos que se repetem
ciclicamente, por fenômenos de pulsação e vibração, mas tudo se ordenando dentro
de um plano harmonioso, tal qual uma sinfonia cósmica. Basta olhar atentamente
para a natureza para perceber que tudo é ritmo, assim como tudo é ritmo no nosso
corpo, os batimentos cardíacos, a respiração, a circulação sanguínea, constituindo um
harmonioso e complexo sistema interno.

Precisamos despertar em nós mesmos a musicalidade corporal, para que nossas


ações se tornem mais fluidas, tomando como base os elementos da música: ritmo,
melodia e harmonia. Considera-se que o ritmo nos une ao Universo, a tudo que é
origem, à nossa ancestralidade. Já a melodia elabora nossa comunidade amorosa e a
harmonia nos presenteia a intimidade e a transcendência. Assim, para os educadores
biocêntricos, a música é uma linguagem que vai direta ao coração, sem precisar
passar pela análise da consciência, embora a percepção musical seja uma experiência
de totalidade. Ela é percebida com o cognitivo, com a sensibilidade e intensidade das
emoções, com os instintos, enfim, com todos os órgãos da nossa corporeidade. A
música é uma forma de energia capaz de estimular e despertar potenciais biológicos
e emocionais, induzindo a certos estados que despertam emoções e sentimentos
escondidos.

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Na Educação Biocêntrica se usa a música como base para as atividades, o que não
significa “um fundo musical” apenas para tornar a atividade mais agradável, mas, sim,
um instrumento que é parte e está profundamente vinculado à mesma. São músicas
selecionadas com base na semântica musical e na cultura popular com critérios de
eficácia experimentados para produzir vivências intensas. São selecionadas para
cada exercício através de um processo sensível e cuidadoso. Esses exercícios-
danças já vêm sendo utilizados pela Biodança há quase 40 anos e são estruturados
em uma estreita integração entre música, movimento e emoção. Há músicas que
reforçam elementos de força e vigor, que são capazes de ativar, elevar os níveis de
atenção, euforizar e energetizar as relações com o meio, ligadas á energia Yang;
enquanto outras como que desarmam, induzem tranquilidade, sono, harmonia íntima,
possibilitando a entrega, própria da energia Yin.
Outro pilar fundamental na metodologia da Educação Biocêntrica e que também
é básico na nossa tradição cultural é a Dança, o movimento natural, a vida em
movimento. A dança é tudo que pulsa, que se move: a dança é o nosso ritmo
biológico, da respiração, o impulso de vinculação com a espécie. A dança é um
movimento profundo que surge das entranhas do ser, é um movimento vivencial e é
uma necessidade natural do ser humano. Portanto, precisamos desenvolver o prazer
cinestésico do movimento através da dança de harmonia e fluidez, coordenação
rítmica estimulada por músicas que despertem impulsos de conexão afetiva; um
movimento que vem da vivência e da afetividade, substituindo a exigência de
rendimento, competição e destreza muitas vezes exigidos nos exercícios mecânicos e
sem motivação interna. O movimento do cirandeiro, que se transforma em ondas do
mar, num vai e vem incansável é um exemplo de vivência do movimento sensível.

Como a dança significa um movimento de expressão humana, uma manifestação


da Identidade, ela representa um poderoso instrumento de reeducação, tanto para
o educando quanto para o educador. Na vivência do prazer existencial, sendo o
movimento uma expressão profunda da Identidade, a dança pode ser um instrumento
apropriado para o ensino = aprendizagem.
O objetivo da Educação Biocêntrica na Ação Griô, na integração com a escola, é, além
de reencantar a educação, também cuidar da formação do(a) educador(a) no sentido
mais amplo, desenvolvendo a sua inteligência afetiva; assim como considerar as
dimensões totais da existência humana, ajudando o(a) educador(a) a conscientizar-
se de sua tarefa como sujeito ativo e criativo no processo de auto-transformação e
transformação da realidade. Dessa forma, há o despertar de sua consciência e de sua
dignidade como pessoa humana, desenvolvendo o sentimento de compromisso, de
solidariedade com a sua comunidade, com a humanidade e com o planeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. Escola: fragmento do futuro. Disponível em: <http://www.rbc.org.


br/feijao/escfuturo.htm> Acessado em: 03/06/08.
ASSARÉ, Patativa. Cante lá que eu canto cá. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
TORO, Rolando. Teoria da Biodança: Coletânea de Textos. Fortaleza. ALAB, 1991.

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Com a palavra a assessora pedagógica
Cláudia Monteiro
Um ano de Ação Griô Nacional: nascentes de veredas de encantamento, festa e
celebração da vida. Como aprendi com minha querida amiga e colega Fátima Freire,
meu corpo de assessora aprendiz está para sempre marcado por esta bela ousadia.
Sempre gostei de andar na contra-mão da mesmice e do esvaziamento de sentido,
e desta vez encontrei uma turma grande disposta a “reinventar a roda da vida”,
provocada por Líllian Pacheco e Márcio Caires, que há muito a reinventam, e pelo
Ministério da Cultura, na pessoa de Célio Turino, outro grande “reinventor” de rodas.
A compreensão da Ação na nossa regional e para todos, eu creio, foi acontecendo
devagar, no próprio fazer. Afinal, estávamos abrindo trilhas. Além de aprendizes,
somos, na maioria, filhas e filhos de uma educação desocupada de nossa memória e
distraída da cultura popular e tradição oral.

Sabíamos que a proposta da pedagogia griô era promover o encontro de mestres,


griôs, educadores, artistas-educadores e representantes de Pontos de Cultura, para
contribuir com o encantamento da educação, reconhecendo e valorizando o lugar dos
mestres e fortalecendo a identidade e o vínculo com a ancestralidade dos estudantes
e, claro, de todos.

Vivemos muitas angústias e resistências, como é próprio de quase tudo que é novo,
mas muita beleza no processo de entendimento do lugar e papel de cada um nesta
missão revolucionária e evolucionária. Neste primeiro ano, na caminhada de conhecer,
estudar e realizar a Ação Griô, a festa prevaleceu.

Vi o pátio das escolas e as praças se transformarem em palco de mestres e griôs, que


cantaram, dançaram, contaram suas histórias e “causos” e fizeram muitas mágicas. Vi
a vida e o sentido de viver renascer no brilho dos olhos de muitos deles. Testemunhei
o acordar da memória da infância de muitas pessoas, lembranças perdidas no tempo,
que surgiram emocionadas quando lhes foram devolvidas a voz e vez. Vi como
simplicidade e sabedoria estão juntas e quantas lições sobre viver, amar e fazer
ciência podemos aprender com os griôs e mestres da tradição oral.

Eu vi comunidades conhecendo sua história e reavivando festas e manifestações


populares esquecidas. Vi ressurgir muitas rodas e versos. Participei de cortejos
festivos pelas ruas: momentos inesquecíveis para mim e para vários moradores que
olhavam a procissão assustados e alegres e, às vezes, ousavam entrar. Minha visão
se enfeitou de cores, brilhos, fitas, roupas, adereços e instrumentos musicais e me fez
confirmar como é bela, alegre e viva esta gente do nosso país.

Vi crianças e jovens embalados pela cultura de massa, antes envergonhados de suas


tradições e desconhecedores delas, dançando nas escolas e nas ruas a dança de
seus ancestrais na forma da Catira, Congo, Congado, Maracatu, Capoeira, Batuque,
Candombe e de muitas outras expressões artísticas de nossa forma de ser, existir e
resistir. Vi muitos deles descobrindo a força de serem filhos e netos de seus pais e
avós e de serem quem são.
97
Vi muitos educadores entusiasmados, como que esperando essa forma de
cumplicidade, porque já faziam esse caminho ou algo parecido com a pedagogia
griô e a Ação Griô. Vi outros respondendo prontamente ao convite e felizes com a
proposta. Vi a emoção que o seu encontro com os mestres e griôs deflagrou, fazendo-
os também reconectarem-se com sua própria história. Eu os vi dançando, cantando,
brincando e sorrindo mais do que de costume. Eu os vi crianças junto com as crianças.

Vi representantes de Pontos de Cultura numa disponibilidade imensa de fazer


acontecer a Ação Griô na sua comunidade. Militantes que são do belo e do novo, vi
muita coragem e força. Vi seu empenho em conhecer o processo e abrir portas. Vi o
esforço na sistematização, vi troca de saberes e presenciei a ousadia de muitos que se
dispuseram a fazer bem além do que o previsto no edital.

Vi griôs aprendizes - os artistas-educadores - conhecendo e reconhecendo devagar


o seu lugar e chegando nele com a alma. Vi muito amadurecimento na construção
da caminhada proposta pela pedagogia griô traduzida numa forma de se vestir,
de se expressar, de encantar. Vi esses artistas tecendo a rede de tradição oral na
aprendizagem com mestres e griôs de toda parte. Lindos eles.

Eu nos vejo, assessoras e coordenação nacional - aprendizes corajosos -, gratificados


pela colheita desta caminhada.

Meu corpo está para sempre marcado e o meu país mais belo. E estamos apenas
começando.

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Com a palavra a assessora pedagógica Lúcia dos
Prazeres
QUEM SEMEIA IDÉIAS COLHE AÇÃO GRIÔ

“A realidade só pode ser entendida por meio de experiências vividas no tempo atual.”
Mara Stella Santos

A sabedoria africana é baseada em princípios, valores e crenças expressos nas


relações que o povo estabelece com a natureza, com as forças emanadas pelo cosmo,
com as vivências grupais e com o respeito à ancestralidade.

De acordo com essa cultura milenar, as ações e as relações acontecem em seu próprio
tempo. E o tempo é algo que se cria quando se age, quando se vive experimentos
pessoais e/ou coletivos na vida cotidiana, ou seja, no tempo atual. O tempo é um
fenômeno que se realiza em duas dimensões: o SASA, que é o tempo dos fatos que
estão a ponto de ocorrer, que estão ocorrendo ou acabaram de ocorrer; e o ZAMANI,
que é o tempo que engloba todos os acontecimentos passados, ligando o início das
coisas ao presente e a seus desdobramentos, que são as grandes tarefas que levam
uma vida inteira para serem executadas.

A partir dessa compreensão, o passado, o presente e o futuro acontecem


simultaneamente de acordo com as necessidades, escolhas ou prioridades das ações a
serem executadas no sasa (tempo atual). As pessoas, na busca do bem-estar pessoal
ou coletivo, orientam seu tempo/seu fazer dentro dessas três variáveis, mesmo que
intuitivamente.

Para quem tem consciência de que seu corpo está marcado por essa filosofia de
vida, a preocupação existencial passa a ser conduzida no sentido de: respeitar a
natureza na perspectiva de aprender a desfrutar e a socializar os bens produzidos
pela terra; compreender as forças emanadas pelo cosmo para se fortalecer com
o axé (força vital) que empodera e potencializa toda a nossa caminhada; vivenciar
experiências que possibilitem construções grupais, ganhos coletivos, acolhimento
a todos que desejem contribuir com essa forma de vida; valorização e respeito à
ancestralidade, por ser um dos guardiões da memória, do repasse dos fatos passados
e do conhecimento acumulado por toda uma geração que assegura o bem-estar da
humanidade.

Foi em um diálogo com o KITÁBU de Nei Lopes: livro do saber e do espírito negro-
africano, que fui buscar esses conhecimentos para reafirmar minha compreensão
sobre a importância da construção da Pedagogia Griô.

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No SASA, o Grão de Luz e Griô está promovendo encontros para troca de saberes com
mestres da tradição oral, na perspectiva da mudança e da re-significação do ambiente
educativo, dos conteúdos trabalhados no currículo escolar, da promoção de diálogo
nos ambientes de aprendizado, bem como da contribuição na formação de mestres
aprendizes e de educadores que vêm se comprometendo em dar prosseguimento a
essa pedagogia através de vivências educativas e ações realizados na atualidade, que
aponta para novos princípios, valores e crenças, que serão consolidados no ZAMANI
no sentido da mudança da forma de viver das próximas gerações.

SASA: TEMPO DE REESCRITA DA HISTÓRIA

“Não é o desafio com que nos deparamos que determina quem somos e o que
estamos nos tornando, mas a maneira com que respondemos aos desafios”.
Hinfil

Cada vez que ouvia, pela primeira vez, o choro de um filho meu, gritava de emoção
e falava, repetidas vezes: “Meu Deus, o que vou dizer a meu filho? O que tenho a
ensinar-lhe? Que histórias vou contar para ele dormir?” Repeti compulsivamente
essas perguntas rindo e chorando, chorando e sorrindo. A cada vez que paria, a
emoção se repetia e as perguntas vinham e eram lançadas no ar. A resposta não veio
imediatamente. Foi chegando com o tempo, com as escolhas que fui fazendo, com as
vivências que fui selecionando e com as relações que fui estabelecendo com pessoas
mais experientes.

Lembro de uma tarde em que conversava com Paulo Preto, babalorixá, profundo
conhecedor da ciência dos orixás. O baba Paulo tinha o hábito de sentar na calçada,
em uma cadeira de balanço, para contar histórias sobre as casas de candomblé mais
tradicionais de Recife e Olinda e a peleja de seus zeladores contra a perseguição dos
“poderosos” (os policiais).
Nessa época, eu já tinha três filhos: um com seis anos, outro com cinco e o mais
novo com quatro anos de idade. Eles davam muita risada quando Paulo Preto contava
histórias de policiais que invadiam as casas de candomblé para acabar com as festas
e, no meio do salão, recebiam o orixá e começavam a dançar. Segundo ele, muitos
desses rapazes, quando voltavam do transe, saíam correndo do salão com vergonha.
Outros faziam uma cara de surpresa e perguntavam o que tinha acontecido. Seu
Paulo, com um ar de satisfação, dizia: “Meu filho, você tem o orixá no couro. Ele veio,
dançou no salão para todo mundo ver. E fique sabendo que isso pode acontecer outras
vezes. É só seu pai (seu orixá) desejar vir”. Geralmente, eles (os policiais) ficavam
com um ar aborrecido, iam embora e nunca mais voltavam para atrapalhar as festas.
Essas foram as primeiras experiências que vivi entre mestres da tradição e o repasse
de seus saberes para as crianças. Buscar esses momentos era uma atitude intuitiva,
nada muito planejado, mas foram momentos que marcaram minha vida e a vida de
meus filhos. Hoje, meus filhos são pais, têm filhas e, para minha satisfação, levam-nas
para beber na fonte da sabedoria dos mestres e mestras da tradição oral. Vão para
ouvir histórias, tirar o mal olhado, buscar garrafada para anemia e lambedor contra a
gripe. Nos momentos de lazer, levam as filhas para a sambada do maracatu, dançar
côco, cavalo marinho e vão aos parques da cidade para brincar de reconhecer árvores
e identificar sua idade pela grossura dos troncos.
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A verdade é que as vivências com os mestres passaram a fazer parte de minha vida.
Essas experiências se expandiram também para minha vida profissional, no trabalho
com educação do Centro Maria da Conceição, entidade que coordeno. Lá as crianças,
os adolescentes e os jovens realizam quinzenalmente encontros com pessoas que
têm vasta experiência sobre a cultura local. Nos encontros se canta, dança, toca,
contam-se histórias vividas e aprendidas com os antepassados. Todas as vivências
com os mestres são relidas a partir das linguagens das artes e relacionadas aos
temas trabalhados em sala de aula. A música assumiu um espaço de destaque nessa
fazer pedagógico. Enquanto linguagem, passou a ser trabalhada como instrumento
de aprendizagem de conteúdos pedagógicos, para trabalhar elementos que
resguardam as histórias e a sabedoria da ancestralidade africana e dos brasileiros
afrodescendentes.
A música que está presente na vida das pessoas, na história das comunidades e nas
tradições culturais de todos os povos passou a assumir um espaço na sala de aula.
Essa forma de trabalhar trouxe para a sala de aula a compreensão da força que a
música tem nas tradições africanas. Ela está presente em ambientes religiosos,
místicos, em cerimônias de cura, em festejos, em momentos de lazer, em espaços de
trabalho. E, segundo Marcos Napolitano, em História da Música:

“Se você tem uma boa idéia, é melhor fazer uma canção. Mais além de ser veículo
para uma boa idéia, a música... como um todo, também ajuda a pensar a sociedade e
a história.”
Nesse sentido, é de fundamental importância que as pessoas tenham oportunidade de
ouvir, cantar, interpretar, improvisar, brincar com músicas que apresentem conteúdos
sobre sua história, a história dos grupos de sua relação e, consequentemente, a
história dos grupos étnicos que fazem parte de sua ancestralidade. A história sendo
reescrita em um cenário onde estão presentes a tradição ancestral e, ao mesmo
tempo, o lazer, o lúdico, vivências em roda de diálogo. Foram essas vivências que
fizeram com que o Centro Maria da Conceição reconhecesse estar vivendo no SASA,
no tempo dos fatos que estavam ocorrendo na atualidade, em busca do ZAMANI,
tempo das mudas de cultura que favorecem toda a humanidade. Nesse momento nos
encontramos AÇÃO GRIÔ.

AÇÃO GRIÔ – RITUAL DE PASSAGEM DO SASA AO ZAMANI


Em 2005, o Centro Maria da Conceição teve o Projeto Negras Raízes aprovado pelo
Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, com o propósito de produzir um
musical que contasse a história de quilombos urbanos e rurais de Pernambuco. Foram
planejadas oficinas de artes para formação dos atores que iriam atuar no musical.
Essas mesmas oficinas deveriam estimular a criação de atividades geradoras de
renda a partir das vivências culturais das comunidades quilombolas. Para responder
a essa segunda proposta, foi planejada Oficina de Estética Afro, de Culinária Étnica
e de Formação de Jovens Griôs. Referente à Oficina de Griô, não sabíamos direito
como trataríamos o assunto, mas tínhamos certeza de que gostaríamos de estimular
a relação de adolescentes e jovens com mestres e mestras da tradição oral; estimular
a convivência com homens e mulheres que diariamente constróem suas vidas como
se estivessem em um grande teatro da vida, encenando histórias que estão inscritas
em seu próprio corpo, como uma grande tatuagem que faz parte de sua pele e de sua
própria identidade.
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Em meio a toda essa construção, recebemos o livro da pedagogia griô, que já vinha
“reinventando a roda da vida” desde Lençóis para todo o Brasil. Passamos a ler,
sentir, viver e nos identificar com essa forma inovadora de fazer educação; uma
educação centrada no saber vivido, apreendido no tempo atual (sasa) e repassado na
perspectiva de assegurar um outro tempo, em que todos tenham direito de também
saber o vivido e o aprendido com a ancestralidade.

A pedagogia griô tem se comprometido com o desenvolvimento da cultura do ouvir,


viver e repassar. Tem se comprometido, ainda, na busca e no acolhimento de grupos
e pessoas já comprometidas ou que desejam assumir o compromisso com esse fazer
pedagógico. Nesse sentido, a pedagogia griô vem promovendo ações educativas na
perspectiva de registrar, comparar, associar e fundamentar as vivências educativas/
culturais, procurando fortalecer experiências em todas as dimensões do conhecimento
educativo. Vem vivendo e refletindo sobre as vivências, vem teorizado sobre as
práticas pedagógicas.

E, segundo Elza F. Falkembach: “Teorizar é fazer o pensamento funcionar de forma


ordenada, coerente... é a caminhada na cabeça, procurando saber por que ela vem
acontecendo assim. É ir a fundo! Relacionar os acontecimentos entre si, com as
situações onde estão ocorrendo; selecionar o importante e o secundário; ver as
semelhanças e diferenças; o específico e o global; penetrar nas aparências procurando
as contradições. É dar sentido à realidade específica, .... e entendê-la por dentro,...
é entender as relações dessa realidade com a conjuntura mais ampla, e a dimensão
histórica dessas relações: como era antes e como está sendo agora”.

O texto de Elza F. Falkembach vem fundamentar a compreensão que temos de mais


um papel exercido pela pedagogia griô, o de teorizar sobre a prática pedagógica
implícita nas vivências dos mestres da tradição oral; e o de ler pedagogicamente
as ações desenvolvidas pelos mestres e como se deu a interlocução desses
conhecimentos com escolas, universidades, parceiros; como griôs aprendiz,
educadores(as) e assessoras pedagógicas interagiram com esse saber em cada
ambiente em que ele esteve presente.

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