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Kierkegaard e a Crise Religiosa

O PENSADOR SOLITÁRIO

Sôren Kierkegaard (1813-1855), que se opôs a Hegel e à ideia de sistema,


no momento em que o hegelianismo era filosofia dominante, foi um
desses pensadores solitários, em completa discordância com a época
em que viveu.
Pastor evangélico luterano, pregador em Copenhague,
Kierkegaard foi um teólogo insatisfeito com a teologia, um cristão dis-
sidente que se recusou a aceitar o cristianismo exterior e instituciona-
lizado. Voltando-se para as fontes da espiritualidade cristã, encontrou
ele no movimento de interiorização, que emana das Confissões de Santo
Agostinho, a única forma legítima de experiência religiosa em harmo-
nia com cristianismo.

Apologia do cristianismo

O pensamento do teólogo dinamarquês é, de certo modo, uma confissão.


Intitulando-se “psicólogo humorista que faz experiências”, Kierkegaard
captou, por meio de sua própria solidão, como já fizera Pascal no século
o

Xvu, à margem do racionalismo cartesiano, as contradições da natu-


reza humana que a razão não pode solucionar, e que geram o impulso
da fé religiosa, qualitativamente novo, e incomparável a outro qualquer
momento da vida espiritual.
Desse modo, o pensamento confessional de Kierkegaard desenvol-
veu-se como experiência das contradições da existência individual, ao

ss
Titmo da vida interior e subjetiva, porta aberta à conversão
religiosa.
Sob tal aspecto, as intenções do teólogo dinamarquês, idênticas às de
Pascal, desembocam numa apologia do cristianismo. Sem
defender,
porém, com simples razões, a necessidade da Fé, procurou Kierkegaard
reconstituir, em suas nascentes espirituais e subjetivas, o movimento
originário da crença religiosa. Foi essa atitude que o levou a
opor-se ao
Sistema hegeliano.

A polêmica contra Hegel


Embora afirmando-se polemicamente contra o sistema de
Hegel,
Kierkegaard não desprezou a fenomenologia do espírito e a dialética, as
quais dele receberam uma nova interpretação.
Em Hegel, a individualidade propriamente dita culmina
na cons-
ciência de si que, mediada pela razão, ingressa na
etapa do espírito obje-
tivo. À consciência de si, como sentimento moral,*é
impotente para
fundamentar os imperativos éticos. Não pode haver moral
puramente
interior, subjetiva. A voz da consciência, a princípio em conflito
com as
normas exteriores de conduta, é superada por essas próprias
normas,
que possuem caráter geral e se situam acima da individualidade. O indi-
víduo, na filosofia hegeliana, torna-se uma instância ética passiva,
uma
parcela da ordem moral que o envolve, um súdito do Estado. Alcançada
à etapa do espírito objetivo, os momentos anteriores
se anulam: o indi-
vidual cede o posto ao universal, terminando
o conflito entre a cons-
ciência de cada indivíduo e a organização civil e política.
A primeira
contestação definida de Kierkegaard a Hegel foi negar que a evolução
espiritual do homem se produz no sentido da superação da individuali-
dade. espiritual depende da afirmação da individualidade; é
O

em função
desta que nasce o caráter geral e objetivo atribuído
por Hegel às forma-
ções superiores do espírito. Desse modo, Kierkegaard
opõe à dialética
da fenomenologia do espírito uma outra, resultante da vida
individual

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
e interior do homem, e que, dependendo, a cada passo, de uma afirma
ção da consciência, não se processa como desenvolvimento inelutável.

As etapas da personalidade

Três são as etapas do desenvolvimento da vida espiritual, acessíveis ao


indivíduo por força de suas decisões pessoais: a estética, a ética e a reli-
giosa, À estética é o domínio do temporal, do finito e da liberdade ilimi-

o
tada. Predomina aqui sentimento da existência como gozo. A afirmação
da personalidade é então poder exclusivo do homem, concedendo valor
absoluto àquilo que é imediato, instantâneo e efêmero. O mundo e os
homens, as coisas e os sentimentos, constituem,
para aquele que vive no
estágio estético, aspectos equivalentes de uma mesma realidade mutá-
vel, extraordinariamente variada, sempre à disposição da sensibilidade.
De experiência em experiência, liga-se o homem estético ao imediato,
concentra-se nas coisas fugazes, para delas extrair as expressões mais
valiosas que não se repetem nunca e que, permanecendo na memória
sob a forma de lembranças, estimulam a imaginação a recriar o passado
ou a distender-se na expectativa permanente de novas impressões fuga-
zes. “Detém-te, ó tu, que és tão belo!” Essa apóstrofe do Fausto de Goe-
the, ao moménto que passa, exprime a atitude estética, desinteressada e
contemplativa. Vivendo por meio da sensibilidade, o homem tenta fixar
0 eterno naquilo que é passageiro. Mas, por isso mesmo, o que há de
eterno ou permanente não adquire, nessa fase, uma significação espiri-
tual definitiva.
Identificar-se com as coisas, fruí-las até à exaustão, esgotar as par.
ticularidades do real, captar todo e qualquer aspecto sensível, como
um dom singular que nos é oferecido pelo mundo, tudo isso cabe no
ideal estético que, historicamente, depois de encarnado pelo epicurismo.
e pelo estoicismo, se transfere para o sentimento de amor à Natureza,
proclamado por Rousseau nos tempos modernos. Uma das constantes
da poesia romântica, esse ideal inspira a atitude panteística do indiví

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duo, aspirando fundir a sua existência particular com a do Universo.
Em suma, o indivíduo que contempla esteticamente o mundo aceita-o e
valoriza-o tal como ele é, Identificando-se com todas as coisas, pois
que
todas são de igual valor para a sua experiência versátil, o homem não
deixa de ter consciência de si. Mas não aprofunda essa consciência e só
se interessa pelo seu próprio Eu, enquanto sujeito de múltiplas
experiên-
cias, que mudam sem cessar, e cuja lei é o impulso de sua vida interior
que aspira ao infinito. Finalmente, o homem estético, que gostaria de
ultrapassar os limites da experiência indi idual e de identificar-se com as
causas gerais do Ser, insurge-se contra todas as limitações. Esse desejo é o.
momento da aspiração fáustica, da consciência demoníaca de poder. Não
há para o indivíduo um destino a cumprir; é ele mesmo, na dissipação
interior em que vive, a medida de todo destino. “Sua alma é como
um
terreno onde crescem, com igual direito, todas as espécies de ervas; seu
Ser repousa nessa variedade
e
ele não tem outro ser além desse”,

A etapa ética
Entre a simples afirmação estética da individualidade e o reconhecimento
do homem, como sujeito ético, em função do Dever, há uma enorme
dis-
tância. Para transpó-la, é preciso que o indivíduo se decida a limitar
sua liberdade. É limitando-a
que pode aderir a um destino superior. O
estágio ético, em que esse destino se concretiza, é aquele que resulta da
escolha que o indivíduo faz de si mesmo, afirmando-se como universal
humano. Os seus atos já não apresentam a oscilação indiferente do
esté-
tico. São atos decisivos, que encontram na existência individual
o seu
objeto de interesse máximo, infundindo lhe um sentido geral. O
que
é geral na ética (a obrigação, o dever) não absorve a individualidade,
nem se lhe impõe do exterior: origina-se de uma decisão, decisão pela
qual o homem assume livremente, como seu próprio destino, o destino

1 Kierkegaard, Alternativa, Sed, Paris, Gallimard, 1949. p. s14.

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comum da humanidade. Essa escolha é o ato gerador do Dever, a partir
do qual o imperativo categórico passa a existir.
A individualidade subsiste no estágio ético. É dela que provém a
decisão sobre o que é valioso. Decidindo para agir e agindo para ser, só
então o indivíduo conquista a plena realidade que lhe faltava no estágio
estético. Por meio de atos concretos de fidelidade, amor, renúncia, arre-
pendimento, a vida individual, no estágio ético, não só está voltada para
0 universal, como tende, livremente, a realizá-lo e a completar-se nele:
“Encara-se geralmente a ética como algo inteiramente abstrato e é por
isso que ela é detestada em segredo. Quando se pensa que ela é estranha
à personalidade, é difícil alguém entregar-se a ela, porque não se sabe ao
certo o que disso resultará”,

O SALTO QUALITATIVO

|O
movimento dialético, que conduz do estético
ao ético, não se opera,
segundo Kierkegaard, devido ao dinamismo lógico inerente às contra-
dições. As contradições condicionam a passagem de um
a
outro está-
gio. Porém o trânsito mesmo não se
efetiva, como admite a dialética
hegeliana, por efeito do influxo quase mágico da mediação. O movi-
mento dialético é aqui um ato de liberdade, que Kierkegaard denomina
salto qualitativo: movimento súbito, perfazendo-se instantaneamente,
à maneira de uma conversão. Daí a natureza qualitativa do salto. Mais
uma vez em discordância com a dialética hegeliana, Kierkegaard subs-
títuí a ideia de desenvolvimento pela de mudança, e faz da mediação,
em vez de uma síntese, como unidade dos contrários, uma espécie
de conciliação dialética, na qual os contrários, permanecendo vivos,
mutuamente se ativam e compõem “a harmonia por tensões opostas”,
de que falou Heráclito.

2 demposos

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dimensão.
Assim a individualidade ganha, no estágio ético, uma nova
É por meio do geral que ela vence a indiferença característica. do estágio
voltando-se
estético. Assumindo o Dever, sacrificando-se pelos outros,
interessando-se na
à renúncia e à resignação, o indivíduo descobre-se
sua própria existência,

O
estágio religioso
qualitativo, que é decisão e que, por ser decisão, ato
|O
salto de liber é
dade, instantaneamente consumado, pressupõe o interesse profundo, que
de existir,
nada tem de abstrato, pela existência, Interesse, consciência
de imortalidade,
inquietação, sofrimento, aspiração do infinito, desejo
tudo isso integra o conceito de paixão (pathos), frequentemente
utilizado
mola da dialética; sem cla, faltaria ao espí
por Kierkegaard. À paixão é a
Não há salto sem paixão,
rito o impulso e à elasticidade que o fazem saltar.
0 que equivale a dizer que o movimento
dialético, inseparável da paixão,
nasce de um dinamismo anterior ao processo
do pensamento concep-

tual. “Todo movimento do infinito se realiza de modo apaixonado;


refle-
a
É salto perpétuo
xão não é passível de produzir qualquer movimento, o
em
na vida que explica o movimento. À mediação uma quimera que,
é

Hegel, deve explicar todas as coisas, e que ao mesmo tempo


é única coisa a
que ele nunca tentou explicar”
Até onde a paixão pode levar o homem? Chegando ao estágio ético,
de sua vida: impõe-se
à indivíduo parece ter alcançado a culminância
Em
limites, age racionalmente, não quer o impossível e sabe o que quer.
tudo, tal como Sócrates, age com perfeita lucidez; e é essa lucidez, jun-
tamente com a renúncia, que decorre da aceitação do Dever, e que pode
uma certa cons-
atingir o grau de resignação infinita, o que lhe assegura
nada mais
ciência eterna. Sócrates, exemplo perfeito do homem ético,
da mesma atitude
pode esperar da existência a não ser a continuidade

Kierkegaard, Temor e Tremor, Paris, Ed. Montaigne, 1946, p. 60.


3.

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
racional, que deu à sua vida o sentido de uma vocação. Eticamente, a
paixão de Sócrates está esgotada e ele atingiu a plenitude.
a
Outros veios subterrâneos alimentam a paixão e aguçam contradi-
ção entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, até que não se pode
mais conceber uma possibilidade racional de conciliar esses extremos.
No entanto, a paixão os retoma, tentando uni-los. Seu objetivo já se situa
mum terreno estranho à ética, incompatível com a lucidez socrática, que
representa a sabedoria puramente humana. Sob a força dessa máxima
tensão, saltando uma vez mais, o espírito vai ir no domínio religioso,

cuja dialér ca é a Fé, À Fé, para Kierkegaard, é o supremo paradoxo da


vida. Seu objeto, o Deus vivo, que se revela aos homens, e que adota a
forma humana para salvá-los do pecado, é paradoxal. Implicando admi-
tir, ao mesmo tempo, a união do temporal com o eterno é a infinita
distância que separa o ser humano do ser divino, a Fé, racionalmente
falando, exige que creiamos no Absurdo, e que do Absurdo façamos a
nossa esperança.
Aquele que crê aceita o Absurdo, ou melhor, transforma o Absurdo,
que é irracional, na substância de sua própria vida; recusa o Entendi
mento, para submeter-se, sob o império da mais alta forma de paixão, à
dialética da Fé, “a mais sutil e notável entre todas”, porque é a dialética
do paradoxo. O salto qualitativo que do ético leva ao religioso é como
um salto no vazio. Por isso o verdadeiro crente hesita antes de dá-lo.
Reduzido à solidão, desligado da universalidade moral já alcançada, o
seu ato desprende-o da razão e constitui um escândalo para a inteli-
gência. “Não posso empreender o movimento da fé, não posso fechar
's olhos e atirar-me, de cabeça, cheio de confiança, no Absurdo; isso é
impossível, porém não me glorio por esse fato”. ssim que o crente
deve falar quando ainda lhe falta a paixão, quando seu pensamento, cioso
de objetividade, ainda não aderiu à forma suprema da paixão do pen-

4 Mdem,p.as

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samento, que é o paradoxo. Mas se o seu interesse pela existência é infi-
nito, ele aceitará o primeiro grande paradoxo: que para Deus nada é
impossível. A categoria de possibilidade é subvertida pela Fé, cujo maior
dom, no que concerne à pessoa do crente, é afiançar-Ihe a realização de
coisas impossíveis. Sócrates, o cavaleiro da Moral, não chegou tão longe
nesse ponto quanto Abraão, o cavaleiro da Fé, quando, submetendo-se
à vontade de Deus, levou seu filho Isaac para o lugar do sacrifício, e o
recuperou no mesmo instante em que deveria matá-lo. Abraão admitiu
00 paradoxo de
que a sua submissão à vontade infinita de Deus Ihe devol-
veria o filho, pelo caminho inverso do amor de Deus aos homens. Isaac
recobrou a vida que parecia perdida, Salvou-o a fé exemplar de Abraão,
que, “após ter realizado o movimento do infinito, cumpre o finito”,
resultado desse movimento, produto do valor devolutivo da Fé,
O

é a espécie de paradoxo que Kierkegaard chama de repetição. Mas


toda vida cristã está construída sobre paradoxos, os quais são culmi-
nância das contradições da existência: pecado/salvação, Deus/homem,
finito/infinito, possível/impossível. Que maior paradoxo do que o pró-
prio advento do cristianismo, que é, ao mesmo tempo, fato histórico e
momento sobrenatural?
O
estágio religioso, que se situa acima do ético, é aquele em que a
individualidade volta a possuir a importância sacrificada ao caráter uni-
versal do Dever. Trata-se de uma recuperação dialética por meio da qual
0 indivíduo, realizando salto qualitativo da Fé, se encontra a si mesmo
no que tem de mais real: a sua natureza de existente. É como existente
que ele se defronta com o Absoluto: relacionamento instantâneo, que
resume todos os paradoxos do cristianismo nesse despojamento total
do existente diante do Deus bíblico, vivo e terrível, que é uma entidade
pessoal, mas cujo amor não pode ser entendido se lhe aplicarmos o cri-
tério do amor humano.

5 Menps

60 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
O Absoluto é, para Kierkegaard, como foi para Hegel, o que há de
mais concreto. Entretanto, o sentido do ser concreto dista muito daquele
Espírito, aceito pela filosofia hegeliana, no qual se completa, sinte-
tizando todas as mediações, a identidade do pensamento com o real.
Em Kierkegaard, a dialética do Espírito, que principia com a afirmação
da individualidade, termina no plano do Absoluto, que é também o do
Absurdo, objeto da Fé, não acessível à inteligência, senão sob a forma de
paradoxo. Mas, nesse caso, o Absoluto é uma outra subjetividade, com
a qual o indivíduo se comunica: um ser concreto que existe para ele e

que se torna objeto de sua experiência vivida, imediata. Assim, sendo


e
instantâneo subjetivo esse relacionamento entre o homem Deus, que e
ocorre por obra da fé, na intimidade do indivíduo que desceu ao mais
profundo de si mesmo, pode-se dizer que Kierkegaard restabeleceu o
valor da subjetividade ou da consciência individual, restabelecendo,
igualmente, o valor do imediato, que, para Hegel, é apenas o primeiro e
superável momento do Espírito.

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D

A Existência Individual

A VIDA SUBJETIVA

Não esqueçamos que Kierkegaard foi, antes de tudo, um teólogo. Pen-


sador cristão, dedicou sua obra à redescoberta do cristianismo. É esse
dado que devemos lev: em conta na caracterização da vida subjetiva,
feita por Kierkegaard, cujo pensamento é inseparável da experiência reli
giosa que lhe deu origem. Além de ter constituído ponto de relevo na
polêmica travada com Hegel, a importância fundamental que, para ele,
a subjetividade assumiu resultou do fato de as relações entre o homem
e Deus se produzirem no recesso da vida interior, subjetiva, no domínio
privilegiado que solitário de Copenhague denominou de existência.
o

As características essenc is da vida subjetiva, segundo Kierkegaard,

cabem numa expressão, que já conhecemos: consciência infeliz. O


homem é desejo, inquietude e sofrimento. Tudo isso faz parte da condi-
ção humana, fraca e mortal, que Pascal, afastando-se completamente da
ideia da felicidade que o racionalismo de Aristóteles e dos estoicos repu-
tou fundamental, descreveu em seu Pensées. Do ponto de vista pascaliano,
à infelicidade não é um estado passageiro, resultante do desequilíbrio
de nossas faculdades, quando lhes falta o controle racional. Trata-se de
umaprivação, que é permanente, de um desequilíbrio, que é intrínseco e
constitutivo da natureza humana. Abrigando ao mesmo tempo grandeza
€ miséria, contrários que se alternam e de cuja oposição resulta a cons-
ciência infeliz, a natureza humana é contraditória. Dividida, em conflito

6
consigo mesma, movida pela inquietação que a devora, entregue à ação,
dispersa nos objetos exteriores, ela vive mais do desejo do que da satisfa-
ção; e esse movimento, que deveria satisfazê-la e completá-la, e que só faz
intensificar a inquietude e o desejo, é o conteúdo do desespero, categoria
da existência humana para Kierkegaard.
O Desespero Humano (1849), como é mais conhecido o Tratado do
Desespero (À doença mortal), inexcedível quanto à argúcia psicológica,
exemplifica bem o sentido da dialética em Kierkegaard. À consciência
infeliz não pode ser ultrapassada, isto é, ela não pode, por si mesma,
sintetizar as suas contradições, porque o homem, “síntese do infinito
e do finito, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade, é,
em suma, uma síntese”. À consciência infeliz é a consciência de oua s

consciência do próprio Eu, emergindo de uma relação de contrários, de


cuja oposição nasce a inquietude que mobiliza o desespero. O deses-
pero, que canaliza essa inquietude geral, tem um objeto específico: o
próprio Eu. É do Eu que desesperamos. Desesperar é insurgirmo-nos
contra o nosso Eu, o que se verifica tanto quando estamos empenha-
dos em encontrar a verdadeira substância daquele que possuímos, como
quando procuramos conquistar um novo Eu, que projetamos ser. No
primeiro caso, descjaríamos extinguir as contradições interiores. Mas,
como tais contradições são próprias da consciência, desejar um Eu sem
conflitos, estável e substancial, é o mesmo que querer outro Eu. Desse
modo,
o desespero é sempre a manifesta intenção de radical mudança
do ser que se é. O homem não desespera por alguma coisa e sim de si
mesmo. “Desesperar de si próprio, querer, desesperado, libertar-se de
si próprio, tal é a fórmula de todo desespero”.

1.
Kierkegaard, O Desespero Humano, Porto, Liv. Tavares Martins, 1947, p. 34.
2. Ver"A Fisionomia Atual de Hegel”, p. 35.
3: Kierkegaard, op. cit. p. 44.

64 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Angústia
Há, no entanto, para Kierkegaard, outra categoria da existência humana,
mais fundamental que o desespero: a angústia, estudada em O Conceito
de Angústia, uma Simples Investigação Psicológica Orientada
para o Pro-
blema Dogmático do Pecado Original (1848).
A conceituação kierkegaardiana de angústia é uma tentativa de
con-
cepção dialética do problema da queda e, consequentemente, da origem
do pecado. Como teria o homem, vivendo, antes da queda, no estado
de inocência, que pressupõe a ignorância da distinção entre Bem
o e
o Mal, cometido a primeira falta, que o distanciou de Deus, contami-
nando a espécie? Não se poderia conceber o pecado como afirmação
pura da liberdade. Se assim fosse, a liberdade seria um ato de rebeldia,
de rompimento gratuito com Deus, o
que contradiz a ideia da relação
edênica inicial entre o Criador e a criatura. Mas também é inconcebível,
pelos mesmos motivos, que o pecado tenha sido fruto ou da tentação ou
da proibição: se da tentação, importaria em admitir que Satá seduziu o
Homem, se da proibição, resultaria que esta foi, da parte de Deus, tão
sedutora quanto a tentação da parte de Satã. Qualquer das duas hipó-
teses é incompatível com o postulado teológico da inocência primitiva.
Para tornar compreensível a passagem da inocência ao pecado, como
movimento dialético, será preciso admitir-se a possibilidade do segundo
existindo na realidade da primeira. Mas, que é a possibilidade da falta
senão um possível ato de desobediência e, portanto, uma ação negativa,
precisamente aquela que foi interditada? Tal ação não foi determi-
nada por necessidade exterior ou compulsão interna, Nenhum fator
pro-
priamente dito, nenhuma causa produtiva, operou no cometimento do
pecado original, o que equivale a dizer que a primeira falta resultou de
uma possibilidade, No estado de inocência nada havia, a não ser o espí-
rito, que pudesse determinar o homem a agir. Mas o espírito humano
Seria, nesse estado, uma como projeção imaginária de si mesmo, sem
conteúdo real, constituindo uma simples possibilidade.

(A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL | 65
Ora, a angústia, no sentido geral, dicionarizado, significa aflição ou
ansiedade. Psicologicamente é um sentimento ambíguo: quem se angus-
tia, sente-se atraído pela aflição que o domina, e quer, ao mesmo tempo,
libertar-se dela. A vaga ansiedade manifesta no ânimo correr aven- de
turas, comum às crianças, e que, embora se traduza pela expectativa de
coisas monstruosa
e
enigmáticas, não tem um objeto definido, é angús
tia. Quem se angustia, não sabendo qual é a causa de seu estado de espí-
rito, poderá dizer mesmo que é por nada que se aflige. Essencialmente

ambígua, a angústia, que Kierkegaard define como “antipatia simpatética


e simpatia antipatética”, e cujo objeto, negativo, “é algo que não é nada”,
constitui a natureza do espírito humano no estado de inocência.

Nesse estado há paz e repouso, mas há, ao mesmo tempo, outra coisa que não é.
guerra nem agitação pois não há nada contra o que lutar. Que é isso, então? Nada.
E que efeito produz? Nada. Produz a angústia. O profundo mistério da inocência é
ser angústia. O
espírito projeta, como num sonho, a sua própria realidade; mas essa
realidade é nada; a inocí cia vê sempre o nada diante de si".

proibição divina equivaleria à possibilidade da falta, no estado de


AA

inox É à angústia que, concomitantemente, revela ao homem,



possibilidade, a existência de sua própria liberdade. Mas a distância imensa
que há entre a inocência e o pecado, o abismo que vai da possibilidade
à liberdade, só podem ser eliminados por um salto qualitativo, por um
movimento irredutível e instantâneo, que se processa em meio de uma
decisão angustiante: a queda.
Como se vê, a angústia é, para Kierkegaard, a categoria fundamen-
tal da vida religiosa, enquanto origem e consequência do pecado. De
um modo geral, porém, constitui ela o poder inerente à liberdade, ou
antes, a possibilidade mesma da liberdade. Sob esse aspecto, sem dúvida
o mais importante do ponto de vista filosófico, trata-se do poder ori-

4. Kierkegaard, O Conceito de Angústia, Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1940, p. 44.

66 |
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
ginário e negativo da subjetividade, categoria inalienável da existência
humana, O conceito de angústia aproxima-nos, pois, da noção de exis-
tência, um dos temas básicos do pensamento filosófico contemporâneo.

A EXISTÊNCIA

AA
palavra existência, derivada de existentia, tem, precisamente, na ter-
minologia filosófica tradicional, sentido oposto ao de essência (essen-
tia). Ambos os vocábulos estão vinculados ao sentido mais geral de Ser
(esse). Quando concebemos algo, pensando o Ser no sentido geral da
palavra, o que visamos é uma natureza determinada idêntica a si mesma
— a essência -
que pode ou não existir. À existência de uma coisa estaria
implicada na sua essência. Tal era o princípio comum às correntes da
escolástica e da filosofia árabe do século x1r. Alguns filósofos (como
AAvicena) chegaram até a defender a tese de que a existência é um aci-
dente relativamente à essência. Existir pensavam os escolásticos - é ser
produzido, é fazer-se atual mediante causas (ex alio sister). Determi-
a
nação concreta, contingente, existência não corresponde ao primeiro
sentido do Ser em geral (esse). Muito mais tarde, refletindo toda essa
evolução do problema, Kant viu na existência a própria categoria da
realidade, isto é, o modo pelo qual o nosso pensamento afirma que para
cada intuição sensível dos fenômenos, situados no tempo, corresponde
algo realmente dado. Assim concebida, a existência não é mais um
domínio efetivo do Ser, correlativo à essência, mas a simples posição
dos objetos no tempo. Portanto, dizer que ex tem coisas é, para Kant,
formular um juízo de realidade. A existência mesma não seria um atri-
buto ou predicado, e dela nada se pode predicar. Independentemente
da realidade, que é uma categoria do pensamento, aquilo que, segundo
a concepção kantiana, se poderia chamar de existência pura, como o ato

5º Ver “Kant Reinterpretado”, p. 3º.

A pasTÊNCIA INDIVIDUAL | 67
de ser ou de existir, é simples posição. Insusceptível de receber a forma
de um conceito, ela ficaria, dessa maneira, à margem do conhecimento
verdadeiro. Kant limitou-se a reconhecer a irredutibilidade da existên-
cia pura aos conceitos do pensamento. Mas, dada a função exclusiva,
de crítica
do conhecimento racional, que Kant atribuiu à filosofia, essa
noção de existência, como algo efetivamente dado, e que constitui uma
realidade originária - com a qual o pensamento se defronta, sem poder
sintetizá-la - não poderia ter, de seu ponto de vista, senão valor residual.

Existência e pensamento

Do ponto de vista de Kierkegaard, a existência possui valor filosófico


fundamental devido a essa irredutibilidade ao pensamento racional.
Se é impossível sintetizá-la, submetendo-a à ordem dos conceitos que
caracterizam o conhecimento objetivo, e às mediações dialéticas que
suprimem o imediato, é muito mais impossível, ainda, abstraí-la, ten-
tando-se neutralizar a sua presença iniludível. Mas será dizer quase
nada acerca do conteúdo da noção kierkegaardiana de existência o
afirmar-se que ela significa, de um modo geral, a posição das coisas ou
dos objetos que existem.
é
Essa existência geral dos seres, concebida pelo pensamento, apenas
uma ideia abstrata. Assim, podemos conceber
a existência de uma coisa
como
a atualidade que ela tem, como aquilo que a faz possuir esta ou
aquela forma. Por mais que enumeremos outros aspectos, o ser existente
será sempre, para mim, um objeto de pensamento, o qual só por meio
de ideias pode ser captado. É algo que conheço mediante uma relação
exterior, conceptual, abstrata. Essa existência objetiva tem a realidade
própria dos fatos exteriores que o pensamento abrange. Nesse sentido, a
existência traduz um dado geral, inteligível, mas deixa de ser uma rea-
Tidade para mim.
A existência que não podemos abstrair, e que se nos oferece como

posição no tempo, realidade imediata e vir-a-ser, à qual nos encontramos

68 | FILOSOFIA co:
vinculados por uma relação interior que nenhuma síntese conceitual pode
eliminar ou superar, é a nossa própria existência. Eis a primeira realidade
para Kierkegaard, a realidade com que sempre temos de contar: a exi:
tência individual, subjetiva e temporal que somos. Grande a distância
é
que há entre essa concepção a e
tradicional. À existência se interioriza e
individualiza, passando a significar a posição do sujeito existente. Mais
ainda: é o interesse permanente desse sujeito, a ele se impondo como
realidade imediata, que precede qualquer outra, inclusive a que o conhe-
cimento objetivo atinge. Ora, a existência (e já empregaremos a palavra,
daqui por diante, no sentido kierkegaardiano), que não é objeto, escapa
à órbita desse conhecimento objetivo, formado por conceitos, adequa-
dos à capacidade abstrativa e generalizadora do pensamento. Ela é,
por
assim dizer, pré -objetiva. “Chame-se a existência um acessório ou um
eterno prius, ela jamais pode: ser provada”“, Daí podermos também
á

dizer que a existência, além de pré-objetiva, é pré-racional.

O conhecimento da existência

Não se diga, porém, que ela é incognoscível. Ao contrário, dada a ime-


diatidade, para o homem, entre ser e existir, o conhecimento que temos
da existência é fundamental, prioritário. O homem se conhece a si
mesmo como existente. Esse conhecimento, inseparável da experiência
individual, não transforma a existência num objeto exterior ao sujeito
que conhece.
Nesse novo domínio, o conhecimento surge de uma reflexão da exis-
tência sobre si mesma. Estamos longe do idealismo, que procurou justa-
mente, como nos mostra a filosofia cartesiana, absorver a existência no
conhecimento. A primeira certeza para Descartes penso, logo existo -

expressou lapidarmente esse propósito. Na verdade, pretendendo dedu-


zir a existência a partir do pensamento, o que Descartes encontrou foi,

6. Kierkegaard, Migalhas Filosóficas, Paris, Editions du Livre Français, 194%, p. 104.

A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL | 69
de fato, a existência abstrata do próprio pensamento. Mas o abstrato,
como diz Kierkegaard, não existe. Descartes, suprimindo o momento
da existência, abstraindo-se de sua realidade de ser existente, apenas.
conseguiu formular uma tautologia: o “penso, logo existo” quer dizer
“penso, logo penso” “Concluir do pensamento a existência é assim uma
contradição, pois que o pensamento retira a existência da realidade, e,
20 pensá-la, suprime-a e converte-a em possível”.
A contradição a que Kierkegaard se refere, nessa passagem, revela

nos uma oposição fundamental, que pertence à dialética da existência


humana, e que é semelhante à que se
verifica com o movimento.Se ten-
tamos determinar conceptualmeênte a existência é o movimento, escapa-
nos o que ambos têm de real, e tanto a primeira como o segundo se
apresentam sob a forma de possibilidade. Dá-se, porém, que esse resul.
tado negativo é apenas o primeiro passo da dialética. Sob outro aspecto,
a existênci que “não se deixa pensar”, é simultânea ao pensamento:
,
“Aquele que pensa, existe, manifestando-se, pois, a existência, ao mesmo.
tempo que o pensamento”. Entre esses dois termos opostos, existência e

pensamento, que parecem inconciliáveis, é a própria oposição, é o con-


flito mesmo que os une e que os separa, é o movimento de um no outro,
10 único nexo essencial e completo. Mas, para que a existência se mante-
nha imune ao bloqueio da abstração e não se torne mera possibilidade
“ou ideia, é preciso que o pensamento não se desligue da paixão, e que

pela paixão vá buscar impulso na existência.


Que é a paixão, para Kierkegaard, senão o interesse do ser humano
pela sua própria existência? Voltamos assim à paixão de que tratamos
no começo. Sendo a paixão, para Kierkegaard, o pináculo da subjeti
dade,
a
existência real, que ao pensamento se liga, é a existência subje-
tiva, aquela que interessa o indivíduo quando toma consciência de si.

7 Kierkegaard, Post-scriptum às Migalhas Filosóficas, 9. ed., Paris, Gallimard, 1949, p. 212.

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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Podemos, agora, à guisa de conclusão, esquematizar, utilizando expres-
e
sões textuais do pensador, respigadas, aqui ali, de seu Post-seriptum, os
pontos básicos da concepção existencial de Kierkegaard:

1. Existir, se nãoentendemos por isso um simulacro de existência, é coisa


que não se pode fazer sem paixão;
2: Todos os problemas da
existência são passionais, pois tornamo-nos apai-
xonados quando temos consciência de existir;
A realidade é porque é dentro dela que existimos;
o que interessa,
4. A realidade é um interesse entre a unidade abstrata hipotética do pensa-
mento e o Ser;
5. A abstração é desinteressada, mas a existência é o supremo interesse da.

quele que existe;


6. A única realidade que há para um homem existente é a sua própria reali-
dade ética...
7 O conhecimento essencial diz respeito à existência; por outras palavras, o
conhecimento que se refere essencialmente
cimento essencial.
à
existência é o único conhe-

Fixam os pontos acima as matrizes da filosofia da existência. Teremos


de acrescentar a essas teses, para que fiquemos com a ideia mais completa
possível da concepção kierkegaardiana, alguns enunciados característicos
sobre o clássico problema da verdade, Torna-se claro que do ponto de vista
da existência o conceito da verdade, como adaequatio rei et intellectus, é
insuficiente e até mesmo falso. Sem a paixão, o que é verdadeiro apenas
objetivamente se desvincula da verdade primordial da existência, que
pressupõe a relação subjetiva do indivíduo consigo mesmo.
Desse modo, o problema da verdade não pode ser desvinculado
daquilo que antes chamamos vida individual e subjetiva. A adequação
do pensamento ao Ser só pode realizar-se por intermédio do movimento

8. Idem, respectivamente pp. 208, 236, 229, 210, 209, 211, 230.

A pxISTÊNCIA INDIVIDUAL |
71
subjetivo da existência, que é a apropriação da verdade. Uma verdade
que não é minha, da qual não me apropriei, não é realmente verdadeira.
Faltar-lhe-ja o substrato passional da inquietação, que relaciona, por
meio do movimento dialético e temporal da existência como vir-a-ser,
0 indivíduo e sua subjetividade com o Infinito. Compreende-se, pois,
de acordo com essa perspectiva, a afirmação tantas vezes repetida por
Kierkegaard: “A subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade”.

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