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Kierkegaard e a Crise Religiosa
O PENSADOR SOLITÁRIO
Apologia do cristianismo
ss
Titmo da vida interior e subjetiva, porta aberta à conversão
religiosa.
Sob tal aspecto, as intenções do teólogo dinamarquês, idênticas às de
Pascal, desembocam numa apologia do cristianismo. Sem
defender,
porém, com simples razões, a necessidade da Fé, procurou Kierkegaard
reconstituir, em suas nascentes espirituais e subjetivas, o movimento
originário da crença religiosa. Foi essa atitude que o levou a
opor-se ao
Sistema hegeliano.
em função
desta que nasce o caráter geral e objetivo atribuído
por Hegel às forma-
ções superiores do espírito. Desse modo, Kierkegaard
opõe à dialética
da fenomenologia do espírito uma outra, resultante da vida
individual
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
e interior do homem, e que, dependendo, a cada passo, de uma afirma
ção da consciência, não se processa como desenvolvimento inelutável.
As etapas da personalidade
o
tada. Predomina aqui sentimento da existência como gozo. A afirmação
da personalidade é então poder exclusivo do homem, concedendo valor
absoluto àquilo que é imediato, instantâneo e efêmero. O mundo e os
homens, as coisas e os sentimentos, constituem,
para aquele que vive no
estágio estético, aspectos equivalentes de uma mesma realidade mutá-
vel, extraordinariamente variada, sempre à disposição da sensibilidade.
De experiência em experiência, liga-se o homem estético ao imediato,
concentra-se nas coisas fugazes, para delas extrair as expressões mais
valiosas que não se repetem nunca e que, permanecendo na memória
sob a forma de lembranças, estimulam a imaginação a recriar o passado
ou a distender-se na expectativa permanente de novas impressões fuga-
zes. “Detém-te, ó tu, que és tão belo!” Essa apóstrofe do Fausto de Goe-
the, ao moménto que passa, exprime a atitude estética, desinteressada e
contemplativa. Vivendo por meio da sensibilidade, o homem tenta fixar
0 eterno naquilo que é passageiro. Mas, por isso mesmo, o que há de
eterno ou permanente não adquire, nessa fase, uma significação espiri-
tual definitiva.
Identificar-se com as coisas, fruí-las até à exaustão, esgotar as par.
ticularidades do real, captar todo e qualquer aspecto sensível, como
um dom singular que nos é oferecido pelo mundo, tudo isso cabe no
ideal estético que, historicamente, depois de encarnado pelo epicurismo.
e pelo estoicismo, se transfere para o sentimento de amor à Natureza,
proclamado por Rousseau nos tempos modernos. Uma das constantes
da poesia romântica, esse ideal inspira a atitude panteística do indiví
A etapa ética
Entre a simples afirmação estética da individualidade e o reconhecimento
do homem, como sujeito ético, em função do Dever, há uma enorme
dis-
tância. Para transpó-la, é preciso que o indivíduo se decida a limitar
sua liberdade. É limitando-a
que pode aderir a um destino superior. O
estágio ético, em que esse destino se concretiza, é aquele que resulta da
escolha que o indivíduo faz de si mesmo, afirmando-se como universal
humano. Os seus atos já não apresentam a oscilação indiferente do
esté-
tico. São atos decisivos, que encontram na existência individual
o seu
objeto de interesse máximo, infundindo lhe um sentido geral. O
que
é geral na ética (a obrigação, o dever) não absorve a individualidade,
nem se lhe impõe do exterior: origina-se de uma decisão, decisão pela
qual o homem assume livremente, como seu próprio destino, o destino
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comum da humanidade. Essa escolha é o ato gerador do Dever, a partir
do qual o imperativo categórico passa a existir.
A individualidade subsiste no estágio ético. É dela que provém a
decisão sobre o que é valioso. Decidindo para agir e agindo para ser, só
então o indivíduo conquista a plena realidade que lhe faltava no estágio
estético. Por meio de atos concretos de fidelidade, amor, renúncia, arre-
pendimento, a vida individual, no estágio ético, não só está voltada para
0 universal, como tende, livremente, a realizá-lo e a completar-se nele:
“Encara-se geralmente a ética como algo inteiramente abstrato e é por
isso que ela é detestada em segredo. Quando se pensa que ela é estranha
à personalidade, é difícil alguém entregar-se a ela, porque não se sabe ao
certo o que disso resultará”,
O SALTO QUALITATIVO
|O
movimento dialético, que conduz do estético
ao ético, não se opera,
segundo Kierkegaard, devido ao dinamismo lógico inerente às contra-
dições. As contradições condicionam a passagem de um
a
outro está-
gio. Porém o trânsito mesmo não se
efetiva, como admite a dialética
hegeliana, por efeito do influxo quase mágico da mediação. O movi-
mento dialético é aqui um ato de liberdade, que Kierkegaard denomina
salto qualitativo: movimento súbito, perfazendo-se instantaneamente,
à maneira de uma conversão. Daí a natureza qualitativa do salto. Mais
uma vez em discordância com a dialética hegeliana, Kierkegaard subs-
títuí a ideia de desenvolvimento pela de mudança, e faz da mediação,
em vez de uma síntese, como unidade dos contrários, uma espécie
de conciliação dialética, na qual os contrários, permanecendo vivos,
mutuamente se ativam e compõem “a harmonia por tensões opostas”,
de que falou Heráclito.
2 demposos
O
estágio religioso
qualitativo, que é decisão e que, por ser decisão, ato
|O
salto de liber é
dade, instantaneamente consumado, pressupõe o interesse profundo, que
de existir,
nada tem de abstrato, pela existência, Interesse, consciência
de imortalidade,
inquietação, sofrimento, aspiração do infinito, desejo
tudo isso integra o conceito de paixão (pathos), frequentemente
utilizado
mola da dialética; sem cla, faltaria ao espí
por Kierkegaard. À paixão é a
Não há salto sem paixão,
rito o impulso e à elasticidade que o fazem saltar.
0 que equivale a dizer que o movimento
dialético, inseparável da paixão,
nasce de um dinamismo anterior ao processo
do pensamento concep-
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
racional, que deu à sua vida o sentido de uma vocação. Eticamente, a
paixão de Sócrates está esgotada e ele atingiu a plenitude.
a
Outros veios subterrâneos alimentam a paixão e aguçam contradi-
ção entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, até que não se pode
mais conceber uma possibilidade racional de conciliar esses extremos.
No entanto, a paixão os retoma, tentando uni-los. Seu objetivo já se situa
mum terreno estranho à ética, incompatível com a lucidez socrática, que
representa a sabedoria puramente humana. Sob a força dessa máxima
tensão, saltando uma vez mais, o espírito vai ir no domínio religioso,
4 Mdem,p.as
5 Menps
60 | FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
O Absoluto é, para Kierkegaard, como foi para Hegel, o que há de
mais concreto. Entretanto, o sentido do ser concreto dista muito daquele
Espírito, aceito pela filosofia hegeliana, no qual se completa, sinte-
tizando todas as mediações, a identidade do pensamento com o real.
Em Kierkegaard, a dialética do Espírito, que principia com a afirmação
da individualidade, termina no plano do Absoluto, que é também o do
Absurdo, objeto da Fé, não acessível à inteligência, senão sob a forma de
paradoxo. Mas, nesse caso, o Absoluto é uma outra subjetividade, com
a qual o indivíduo se comunica: um ser concreto que existe para ele e
A Existência Individual
A VIDA SUBJETIVA
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consigo mesma, movida pela inquietação que a devora, entregue à ação,
dispersa nos objetos exteriores, ela vive mais do desejo do que da satisfa-
ção; e esse movimento, que deveria satisfazê-la e completá-la, e que só faz
intensificar a inquietude e o desejo, é o conteúdo do desespero, categoria
da existência humana para Kierkegaard.
O Desespero Humano (1849), como é mais conhecido o Tratado do
Desespero (À doença mortal), inexcedível quanto à argúcia psicológica,
exemplifica bem o sentido da dialética em Kierkegaard. À consciência
infeliz não pode ser ultrapassada, isto é, ela não pode, por si mesma,
sintetizar as suas contradições, porque o homem, “síntese do infinito
e do finito, do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade, é,
em suma, uma síntese”. À consciência infeliz é a consciência de oua s
1.
Kierkegaard, O Desespero Humano, Porto, Liv. Tavares Martins, 1947, p. 34.
2. Ver"A Fisionomia Atual de Hegel”, p. 35.
3: Kierkegaard, op. cit. p. 44.
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Angústia
Há, no entanto, para Kierkegaard, outra categoria da existência humana,
mais fundamental que o desespero: a angústia, estudada em O Conceito
de Angústia, uma Simples Investigação Psicológica Orientada
para o Pro-
blema Dogmático do Pecado Original (1848).
A conceituação kierkegaardiana de angústia é uma tentativa de
con-
cepção dialética do problema da queda e, consequentemente, da origem
do pecado. Como teria o homem, vivendo, antes da queda, no estado
de inocência, que pressupõe a ignorância da distinção entre Bem
o e
o Mal, cometido a primeira falta, que o distanciou de Deus, contami-
nando a espécie? Não se poderia conceber o pecado como afirmação
pura da liberdade. Se assim fosse, a liberdade seria um ato de rebeldia,
de rompimento gratuito com Deus, o
que contradiz a ideia da relação
edênica inicial entre o Criador e a criatura. Mas também é inconcebível,
pelos mesmos motivos, que o pecado tenha sido fruto ou da tentação ou
da proibição: se da tentação, importaria em admitir que Satá seduziu o
Homem, se da proibição, resultaria que esta foi, da parte de Deus, tão
sedutora quanto a tentação da parte de Satã. Qualquer das duas hipó-
teses é incompatível com o postulado teológico da inocência primitiva.
Para tornar compreensível a passagem da inocência ao pecado, como
movimento dialético, será preciso admitir-se a possibilidade do segundo
existindo na realidade da primeira. Mas, que é a possibilidade da falta
senão um possível ato de desobediência e, portanto, uma ação negativa,
precisamente aquela que foi interditada? Tal ação não foi determi-
nada por necessidade exterior ou compulsão interna, Nenhum fator
pro-
priamente dito, nenhuma causa produtiva, operou no cometimento do
pecado original, o que equivale a dizer que a primeira falta resultou de
uma possibilidade, No estado de inocência nada havia, a não ser o espí-
rito, que pudesse determinar o homem a agir. Mas o espírito humano
Seria, nesse estado, uma como projeção imaginária de si mesmo, sem
conteúdo real, constituindo uma simples possibilidade.
(A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL | 65
Ora, a angústia, no sentido geral, dicionarizado, significa aflição ou
ansiedade. Psicologicamente é um sentimento ambíguo: quem se angus-
tia, sente-se atraído pela aflição que o domina, e quer, ao mesmo tempo,
libertar-se dela. A vaga ansiedade manifesta no ânimo correr aven- de
turas, comum às crianças, e que, embora se traduza pela expectativa de
coisas monstruosa
e
enigmáticas, não tem um objeto definido, é angús
tia. Quem se angustia, não sabendo qual é a causa de seu estado de espí-
rito, poderá dizer mesmo que é por nada que se aflige. Essencialmente
Nesse estado há paz e repouso, mas há, ao mesmo tempo, outra coisa que não é.
guerra nem agitação pois não há nada contra o que lutar. Que é isso, então? Nada.
E que efeito produz? Nada. Produz a angústia. O profundo mistério da inocência é
ser angústia. O
espírito projeta, como num sonho, a sua própria realidade; mas essa
realidade é nada; a inocí cia vê sempre o nada diante de si".
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
ginário e negativo da subjetividade, categoria inalienável da existência
humana, O conceito de angústia aproxima-nos, pois, da noção de exis-
tência, um dos temas básicos do pensamento filosófico contemporâneo.
A EXISTÊNCIA
AA
palavra existência, derivada de existentia, tem, precisamente, na ter-
minologia filosófica tradicional, sentido oposto ao de essência (essen-
tia). Ambos os vocábulos estão vinculados ao sentido mais geral de Ser
(esse). Quando concebemos algo, pensando o Ser no sentido geral da
palavra, o que visamos é uma natureza determinada idêntica a si mesma
— a essência -
que pode ou não existir. À existência de uma coisa estaria
implicada na sua essência. Tal era o princípio comum às correntes da
escolástica e da filosofia árabe do século x1r. Alguns filósofos (como
AAvicena) chegaram até a defender a tese de que a existência é um aci-
dente relativamente à essência. Existir pensavam os escolásticos - é ser
produzido, é fazer-se atual mediante causas (ex alio sister). Determi-
a
nação concreta, contingente, existência não corresponde ao primeiro
sentido do Ser em geral (esse). Muito mais tarde, refletindo toda essa
evolução do problema, Kant viu na existência a própria categoria da
realidade, isto é, o modo pelo qual o nosso pensamento afirma que para
cada intuição sensível dos fenômenos, situados no tempo, corresponde
algo realmente dado. Assim concebida, a existência não é mais um
domínio efetivo do Ser, correlativo à essência, mas a simples posição
dos objetos no tempo. Portanto, dizer que ex tem coisas é, para Kant,
formular um juízo de realidade. A existência mesma não seria um atri-
buto ou predicado, e dela nada se pode predicar. Independentemente
da realidade, que é uma categoria do pensamento, aquilo que, segundo
a concepção kantiana, se poderia chamar de existência pura, como o ato
A pasTÊNCIA INDIVIDUAL | 67
de ser ou de existir, é simples posição. Insusceptível de receber a forma
de um conceito, ela ficaria, dessa maneira, à margem do conhecimento
verdadeiro. Kant limitou-se a reconhecer a irredutibilidade da existên-
cia pura aos conceitos do pensamento. Mas, dada a função exclusiva,
de crítica
do conhecimento racional, que Kant atribuiu à filosofia, essa
noção de existência, como algo efetivamente dado, e que constitui uma
realidade originária - com a qual o pensamento se defronta, sem poder
sintetizá-la - não poderia ter, de seu ponto de vista, senão valor residual.
Existência e pensamento
68 | FILOSOFIA co:
vinculados por uma relação interior que nenhuma síntese conceitual pode
eliminar ou superar, é a nossa própria existência. Eis a primeira realidade
para Kierkegaard, a realidade com que sempre temos de contar: a exi:
tência individual, subjetiva e temporal que somos. Grande a distância
é
que há entre essa concepção a e
tradicional. À existência se interioriza e
individualiza, passando a significar a posição do sujeito existente. Mais
ainda: é o interesse permanente desse sujeito, a ele se impondo como
realidade imediata, que precede qualquer outra, inclusive a que o conhe-
cimento objetivo atinge. Ora, a existência (e já empregaremos a palavra,
daqui por diante, no sentido kierkegaardiano), que não é objeto, escapa
à órbita desse conhecimento objetivo, formado por conceitos, adequa-
dos à capacidade abstrativa e generalizadora do pensamento. Ela é,
por
assim dizer, pré -objetiva. “Chame-se a existência um acessório ou um
eterno prius, ela jamais pode: ser provada”“, Daí podermos também
á
O conhecimento da existência
A EXISTÊNCIA INDIVIDUAL | 69
de fato, a existência abstrata do próprio pensamento. Mas o abstrato,
como diz Kierkegaard, não existe. Descartes, suprimindo o momento
da existência, abstraindo-se de sua realidade de ser existente, apenas.
conseguiu formular uma tautologia: o “penso, logo existo” quer dizer
“penso, logo penso” “Concluir do pensamento a existência é assim uma
contradição, pois que o pensamento retira a existência da realidade, e,
20 pensá-la, suprime-a e converte-a em possível”.
A contradição a que Kierkegaard se refere, nessa passagem, revela
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FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
Podemos, agora, à guisa de conclusão, esquematizar, utilizando expres-
e
sões textuais do pensador, respigadas, aqui ali, de seu Post-seriptum, os
pontos básicos da concepção existencial de Kierkegaard:
8. Idem, respectivamente pp. 208, 236, 229, 210, 209, 211, 230.
A pxISTÊNCIA INDIVIDUAL |
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subjetivo da existência, que é a apropriação da verdade. Uma verdade
que não é minha, da qual não me apropriei, não é realmente verdadeira.
Faltar-lhe-ja o substrato passional da inquietação, que relaciona, por
meio do movimento dialético e temporal da existência como vir-a-ser,
0 indivíduo e sua subjetividade com o Infinito. Compreende-se, pois,
de acordo com essa perspectiva, a afirmação tantas vezes repetida por
Kierkegaard: “A subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade”.
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