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INTRODUÇÃO
“Uma obra sem obras: não há quadros a não ser o Grande Vidro (...), os ready-
made, alguns gestos e um grande silêncio” (PAZ, 1997, p.8), e Octavio Paz apresenta
Duchamp como um dos artistas mais influentes no nosso século. Com sua “fecunda”
improdutividade, dissolveu tudo o que ainda poderia se esperar da arte, tudo o que
ainda havia de instituído sobre ela. Com a arte moderna (ou mais, desde os
românticos; ou mais, desde o Renascimento) e a derrocada do regime da
representação, cada vez menos vinha sendo possível apoiar-se em modelos que
orientassem a experiência e produção artísticas. O ready made surge para romper não
apenas com os conceitos de arte, mas com o próprio fazer artístico, pondo em xeque
tanto o papel do artista como o do espectador.
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ATIVIDADE EM NIETZSCHE
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Conforme aparece no ensaio Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral, ainda não sob o
nome de atividade (conforme será desenvolvida em obras posteriores), mas já com a caracterização que
será retomada mais tarde como atividade.
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dadas. A atividade, ao contrário, é uma intervenção nos parâmetros estáveis, naquilo
que é, na própria percepção. É um rasgo inesperado no mecanicismo, nos padrões
consolidados de conduta, num proceder automático.
“O artista não é um fazedor; suas obras não são feituras mas atos.” (PAZ,
1997, p.23). Contrariando tudo o que ainda podia se esperar de um artista, Duchamp
rompe com a artesania, o saber-fazer técnico, da maneira mais radical: ele não
infringe as regras desse fazer, simplesmente não faz. Ultrapassa as regras para um
mundo em que não são aplicáveis. No lugar da manufatura, ele apropria-se de algo já
feito.
“O ready-made não é uma obra, mas um gesto” (PAZ, 1997, p.24), e um gesto
artístico – Duchamp o reivindica. Pouco importa se o artista mesmo não confeccionou
o objeto, ele o escolheu. Como ele argumenta em outra ocasião, desde o princípio dos
tempos2, os pintores dificilmente fabricavam suas tintas ou sua tela e, de qualquer
modo, não seria isso que lhe reivindicaria o estatuto artístico. O artista se apropria de
elementos já existentes e os dispõe de determinada maneira, estabelece determinadas
relações, como faz Duchamp ao retirar um objeto utilitário de sua condição prática e
deslocá-lo ao ambiente do museu, instituído para contemplação, desinteresse,
inutilidade. Destitui-lhe a razão de ser ao mesmo tempo que lhe confere o estatuto de
arte (com assinatura, título, exposição em ambiente apropriado). Esse deslocamento é
seu ato artístico, sua atividade: gesto simbólico que desorganiza as relações habituais
e é capaz de produzir novas relações, sensações, pensamentos.
O ato é uma crítica, como coloca Paz (1997, p.25), e essa crítica abre para uma
multiplicidade de sentidos. Ao instaurar uma obra de arte não fabricada, Duchamp
coloca a questão do gesto criador para além da mera produtividade, imposição
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Interessante notar que, no lugar de negar a tradição, reagindo a ela, a atividade articula-se a ela de
maneiras inusitadas, já que nenhuma criação vem do nada.
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primeira da lógica de mercado. Seu gesto negativo de não produzir é o mesmo que
expõe a exigência de produção, e o faz através da escolha de um objeto de fabricação
em massa para exibição.
Como coloca Octávio Paz: “A técnica é neutra e estéril. Pois bem, a técnica é
a natureza do homem moderno: nosso ambiente e nosso horizonte.” Ela não cria, não
produz diferença. O gesto irônico de Duchamp é ativo ao produzir a diferença através
de um objeto indiferente, trazido a um local de diferença que também não deixa de ser
alvo de uma exigência produtiva indiferente. 4
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Segundo Paiva, o Nu Descendo uma Escada é um exemplo que mostra a fascinação de Duchamp
pelos “padrões abstratos de repetição”: “indiferente, esse ‘nu’ desce uma escada”, numa busca pela
“impessoalidade dos mecanismos inorgânicos” (PAIVA, 2006, p.282).
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Ao fazer da inação arma que insurge contra os padrões abstratos de movimento (e considerando
também o silêncio de Duchamp, ressaltado por Paz, p.42), faz pensar na personagem Cordélia, de Rei
Lear, quando recusa-se a falar (seu pai exige declarações de amor de suas três filhas para distribuir-lhes
a herança, ela assiste as irmãs que o odiavam debulharem-se em elogios artificiais que satisfazem a
todos e, sendo ela a única que realmente o amava, se cala). Ela recusa as exigências mecânicas a partir
das quais qualquer um diz a mesma coisa, faz a mesma coisa – e mesmo a atividade soa reativa. O faz
às custas da herança e ganhando o ódio do pai que tanto amava: é a atividade em seu “absoluto
desinteresse” (PAZ, 1997, p.27) (noção kantiana que, talvez, em termos nietzscheanos, poderia
traduzir-se num interesse imediato do corpo e nada além disso).
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“ocorreu-me aquele caso do filósofo de Sínope: quando se dizia que Filipe já marchava contra a
cidade, os coríntios todos ficaram perturbados e se puseram em ação, um preparando as armaduras,
outro trazendo pedras, outro reparando as muralhas, outro reforçando o parapeito, outro ainda ocupado
com alguma coisa útil. Então Diógenes, vendo aquilo, já que não tinha nada para fazer – pois ninguém
precisava dele para coisa alguma – cingiu o manto e, com muita seriedade, começou também ele a rolar
o tonel no qual morava, para cima e para baixo do Crânio. Algum de seus amigos perguntando-lhe:
“Por que você está fazendo isso, Diógenes?” – “Rolo também eu meu tonel” – ele dizia – “para que não
pareça o único desocupado no meio de tantos que trabalham”” (LUCIANO, Hist Conscr., 3, In:
BRANDÃO, Jacyntho. Luciano e a história)
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crítica, e nega o próprio ato, a própria crítica. A ironia reverbera, a crítica se desdobra
e ataca a si mesma numa dialética com as convenções, na oscilação entre crítica e
mito, destruição e criação, que, Paz enfatiza, é tão própria do espírito moderno (PAZ,
1997, p.47). A crítica irônica desdobra-se no ato de Duchamp em direções múltiplas
de destruição criativa - as incessantes negações produzem sentidos, tornam-se
afirmação, mas a “afirmação é sempre provisória.” (PAZ, 1997, p.27). O ready-made
foi seu rolar de tonel, e a todo sentido que tentamos lhe determinar, na gravidade da
nossa valoração produtiva, ouvimos a risada de Duchamp por trás das cortinas,
exigindo sempre um outro.6
A ATIVIDADE DO ESPECTADOR
“Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase muito
citada: ‘o espectador faz o quadro’.” (PAZ, 1997, p.55) Com isso, ele não nega a
realidade da obra ou sua determinância, mas enfatiza a atividade necessária do olho
que vê – sua interpretação, avaliação, julgamento - para que o caráter artístico de uma
obra se realize.
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maneira de ser “arte”: não algo pré-definido, mas que perturba essas definições,
subverte as expectativas, fazendo surgir do embate de forças entre o estranho e as
convenções, novos sentidos. “Não a filosofia da pintura: a pintura como filosofia.”
(PAZ, 1997, p.25) E o embate só é possível numa contemplação ativa, quando a
percepção se desloca e uma obra de arte se instaura – ou não.
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No Zaratustra, depois de afirmar o homem enquanto “aquele que avalia”,
Nietzsche completa: “avaliar é criar”. Sem a objetividade de regras pré-estabelecidas,
principalmente depois de Duchamp, é com o ato de recepção que vem o ato criador do
artista: a diferença de um gesto banal para uma obra de arte, para a instauração de um
novo mundo. “O readymade (...) apaga toda diferença entre fazer e julgar arte”
(DeDUVE, 1998, p. 141).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A arte abandona a mestria para se tornar uma habilidade de ver o mundo sob
novas óticas.” (PARENTE, 2013, p.94). O artista não tem mais instruções de como
proceder ou o espectador de como receber. Enxergar as possibilidades artísticas no
trivial é quase uma vidência, já que a experiência não tem como oferecer ferramentas
para ver além do já visto – é um salto que vai além de uma vontade consciente, um
imprevisto para o qual podemos apenas nos disponibilizar, mas essa disponibilidade é
fundamental.
A partir de Duchamp, arte não é, arte se dá. Seu gesto desnorteador não
instaura um novo código normativo - o ready made insurge contra a possibilidade
mesma de se definir a priori o que é arte. Nesse ponto, como coloca Paz, sua
“violência racional [é] muito mais desapiedada do que a violência física em que se
compraz Picasso” (PAZ, 1997, p.13). Essa violência está na recusa prolífica dos
modelos normativos que apaziguam a recepção, que “tornam os trabalhos de arte
individuais reféns de uma ideologia e abrem mão do direito e do dever de avaliá-los
por seus próprios méritos” (De DUVE, 1998, p. 134). Cada obra vem a inaugurar suas
próprias condições artísticas de acordo com o mundo em que ela se insere, lugar a
partir do qual fala o espectador em sua atividade interpretativa. As obras de arte são
imagens, metáforas, simulacro, alegoria: são uma coisa, mas podem sempre ser
outras. Essa capacidade de se reinventar faz parte de seu caráter artístico. Não há
palavra final – cada “leitor é apenas mais uma leitura” (PAZ, 1997, p.50).
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Tudo agora pode ser arte, o que não significa que tudo seja necessariamente
arte. O leque que se abriu ao infinito faz é demandar maior discernimento, mais
atividade. O olhar ativo volta-se mesmo para o mais banal, pois dele também pode
surgir o efeito de desorganização estética, um efeito que é sempre contingente e não
se deixa conceitualizar, resumir numa objetividade. Arte é sempre a coisa específica,
não a coisa em geral, nunca a forma do universal. A ideia de “arte” se submete aos
efeitos do singular e, como propõe Benjamin, surge como um mosaico de suas
diversas estâncias concretas.
Numa época que tem seu valor maior na produtividade por ela mesma, a
atividade de Duchamp está numa inação geradora de novos valores. Para além da
produção massificada, do desdobrar de regras, sua arte enfatiza uma diferença sobre
os mecanismos já assentados. Seu procedimento não é, no entanto, o de recusar o
mercado, recusar os padrões, as convenções, os modos de ser reativos – vitais! –
numa tentativa de pureza ingênua. Ao contrário, seu ato artisto só é possível
acoplando as exigências mercadológicas à simbólica da sua obra. Não se trata de ir
contra o mercado, de opor um ideal de atividade a uma reatividade – a arte se produz
no mundo do qual ela participa. O que Duchamp faz é apropriar-se dos mecanismos
(da produção industrial, da tradição crítica, do rótulo de artista) e implodi-los ao
mesmo tempo que os afirma, num jogo de ironia vertiginoso, como bom jogador de
xadrez.
Em movimento oposto ao da indiferença “que diz que tudo é igual e nada faz
sentido” (OSÓRIO, 2008, p.8), o juízo “é arte” tem algo da ordem da “verdade”, de
uma afirmação da vida e do poder ativo do homem de criar sentidos, instaurar
mundos. Indo constantemente do singular para o geral, a obra de arte “força todo
homem e mulher a relacionar seu crescimento pessoal ao progresso cultural da
espécie” (De DUVE, 1998, p.149).
BIBLIOGRAFIA
De DUVE, Thierry. “Kant depois de Duchamp” em Revista do Mestrado em História
da Arte EBA, UFRJ, 1998.
De DUVE, Thierry. Kant after Duchamp, MIT Press, Cambridge, Mass, 1996.
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. Ed. Perspectiva, SP, 1997.
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PAIVA, Carmen. A construção do corpo em Pablo Picasso e Duchamp. Tese de
doutorado, PUC-RIO, 2006.
RODRIGUES, Luzia. “Arte para além da Estética”, em Artefilosofia, Ouro Preto, n.5,
MG, 2008
NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e Mentira. Ed. Hedras, 2012, SP.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Companhia das Letras, 2012, SP.
OSÓRIO, L. Para que arte e para que crítica? Encontros e desencontros, em
http://www.seminariosmv.org.br/2008/textos/luiz_camillo_osorio.pdf, 2008.
OSÓRIO, L. “Da arte e do espectador contemporâneos: contribuições a partir de
Hannah Arendt e da Crítica do Juízo”, em O que nos faz pensar, RJ, 2011.
PARENTE, Alessandra. “Duchamp, dândi contra a melancolia?” em Artefilosofia,
Ouro Preto, n.14, MG, 2013.