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Daniele Cruz

Duchamp - atividade para além da produção


“I thus call that artist modern whose duty is to do whatever. This is a
duty and not a right. (...) The phrase ‘do whatever’ doesn’t state a rule
to which a case may be submitted; rather, it prescribes action in the
absence of rules. (...) Whatever authorization I give myself, I am
never the author of what I make. Anyone whoever can make anything
whatever if anything goes. What can I make, then, so as to be an
artist? What could I possibly do with an imposed freedom or with an
order there is no way of infringing?” (De DUVE, 1996, p.340)

INTRODUÇÃO

“Uma obra sem obras: não há quadros a não ser o Grande Vidro (...), os ready-
made, alguns gestos e um grande silêncio” (PAZ, 1997, p.8), e Octavio Paz apresenta
Duchamp como um dos artistas mais influentes no nosso século. Com sua “fecunda”
improdutividade, dissolveu tudo o que ainda poderia se esperar da arte, tudo o que
ainda havia de instituído sobre ela. Com a arte moderna (ou mais, desde os
românticos; ou mais, desde o Renascimento) e a derrocada do regime da
representação, cada vez menos vinha sendo possível apoiar-se em modelos que
orientassem a experiência e produção artísticas. O ready made surge para romper não
apenas com os conceitos de arte, mas com o próprio fazer artístico, pondo em xeque
tanto o papel do artista como o do espectador.

Um mictório enquanto obra de arte não apenas subverte toda pretensão de se


definir o que é arte, mas também a posição contemplativa do receptor, passando a
exigir dele uma interpretação para que se possa declarar uma obra, arte. O espectador
não produz a obra, mas sua atividade passa a ser requisito para que ela se complete. E
o interessante é que, no caso do ready-made, nem o artista produz a obra.
Abordaremos nesse trabalho um pouco do ato artístico de Duchamp e a desorientação
fundamental que ele suscita: o que é criar? O que é ser artista? Ou, como nomeia
Nietzsche, o que é atividade?

Com Duchamp, coloca-se radicalmente a possibilidade de tudo poder ser arte


e, no entanto, nem tudo o é. Pode-se dizer, por um lado, que ficou fácil fazer arte
depois dele (em termos de habilidade, qualquer um pode levar qualquer coisa para o
museu); mas também que ficou muito mais difícil, pois “arte” coloca-se como um
fenômeno imprevisível.

1
ATIVIDADE EM NIETZSCHE

A noção de “arte” a partir do gesto de Duchamp articula-se com a noção de


atividade em Nietzsche, como será visto ao longo do trabalho.

A atividade1 é um ato que cria para além da organização já dada. É um


impulso do corpo, desnecessário e excessivo; um transbordamento, no sentido em que
não surge para suprir qualquer falta, está para além de cálculos de preservação e
conservação. A atividade afirma afetos conforme eles lhe aparecem, inquietam e
estimulam. É mobilizada como um impulso plástico capaz de dar voz a um transtorno
disforme, criando formas que o abarquem e instaurando assim novos sentidos.
Nietzsche contrasta a predominância de forças ativas às reativas, que aparecem
atreladas à servilidade aos conceitos já existentes. A reatividade não cria, mas
“deforma” de maneira a enquadrar impressões dissonantes nas formas já
estabelecidas, ignorando as individualidades, de maneira a preservar os critérios já
assentados.
É a atividade que trava embates com o desconhecido e é capaz de incorporar
estranhezas, lançando-se em tentativas de novas formas de organização. É um
trabalho de interpretação do corpo, experimental (já que não se fixa no que já se
sabe). É ativo quando se cria uma diferença, quando o corpo quebra as próprias
expectativas.

Diferente do que pode se supor, a atividade preconizada por Nietzsche não se


traduz numa produção por produção. Pelo contrário – numa passagem de A Gaia
Ciência, Nietzsche opõe a atividade à mera ação, associando-a mesmo à
contemplação. Em geral, ele afirma, o homem criador se designa contemplativo, não
vendo “que ele próprio é também o verdadeiro e incessante autor da vida”:
“Sem dúvida lhe pertencem, como poeta, a vis contemplativa [poder
de contemplação] e o olhar retrospectivo sobre a obra, mas também e
sobretudo a vis creativa [poder criador], que falta ao homem de ação,
apesar do que digam as evidências e a crença de todos.” (FW/GC,
§301)
Esses “homens de ação” de que Nietzsche fala seriam predominantemente
reativos, num agir constate que seria um desdobrar de regras, seguir configurações já

1
Conforme aparece no ensaio Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral, ainda não sob o
nome de atividade (conforme será desenvolvida em obras posteriores), mas já com a caracterização que
será retomada mais tarde como atividade.

2
dadas. A atividade, ao contrário, é uma intervenção nos parâmetros estáveis, naquilo
que é, na própria percepção. É um rasgo inesperado no mecanicismo, nos padrões
consolidados de conduta, num proceder automático.

Octávio Paz chama atenção para uma fascinação de Duchamp por


maquinarias, frisando nele, contudo, (ao contrário dos futuristas) uma atitude oposta
às máquinas: “os únicos mecanismos que apaixonam Duchamp [são] os que
funcionam de um modo imprevisível – os antimecanismos.” (PAZ, 1997, p.12)

UM MICTÓRIO COMO ARTE

“O artista não é um fazedor; suas obras não são feituras mas atos.” (PAZ,
1997, p.23). Contrariando tudo o que ainda podia se esperar de um artista, Duchamp
rompe com a artesania, o saber-fazer técnico, da maneira mais radical: ele não
infringe as regras desse fazer, simplesmente não faz. Ultrapassa as regras para um
mundo em que não são aplicáveis. No lugar da manufatura, ele apropria-se de algo já
feito.

“O ready-made não é uma obra, mas um gesto” (PAZ, 1997, p.24), e um gesto
artístico – Duchamp o reivindica. Pouco importa se o artista mesmo não confeccionou
o objeto, ele o escolheu. Como ele argumenta em outra ocasião, desde o princípio dos
tempos2, os pintores dificilmente fabricavam suas tintas ou sua tela e, de qualquer
modo, não seria isso que lhe reivindicaria o estatuto artístico. O artista se apropria de
elementos já existentes e os dispõe de determinada maneira, estabelece determinadas
relações, como faz Duchamp ao retirar um objeto utilitário de sua condição prática e
deslocá-lo ao ambiente do museu, instituído para contemplação, desinteresse,
inutilidade. Destitui-lhe a razão de ser ao mesmo tempo que lhe confere o estatuto de
arte (com assinatura, título, exposição em ambiente apropriado). Esse deslocamento é
seu ato artístico, sua atividade: gesto simbólico que desorganiza as relações habituais
e é capaz de produzir novas relações, sensações, pensamentos.

O ato é uma crítica, como coloca Paz (1997, p.25), e essa crítica abre para uma
multiplicidade de sentidos. Ao instaurar uma obra de arte não fabricada, Duchamp
coloca a questão do gesto criador para além da mera produtividade, imposição

2
Interessante notar que, no lugar de negar a tradição, reagindo a ela, a atividade articula-se a ela de
maneiras inusitadas, já que nenhuma criação vem do nada.

3
primeira da lógica de mercado. Seu gesto negativo de não produzir é o mesmo que
expõe a exigência de produção, e o faz através da escolha de um objeto de fabricação
em massa para exibição.

A indiferença, Duchamp mesmo friza, foi o ponto decisivo na sua escolha do


ready made. Ele selecionou um objeto industrial – não criado, mas produzido, fruto de
um padrão abstrato de repetição 3 – desvinculado de uma atividade humana. Com
ironia crítica, trouxe-o ao lugar de arte, da atividade por excelência, lugar que, de
maneira alguma, escapa às exigências de fabricação do mundo da técnica. “Dessa
perspectiva, o ready-made é uma dupla negação: não só o gesto mas o próprio objeto
é negativo.” (PAZ, 1997, p.26).

Como coloca Octávio Paz: “A técnica é neutra e estéril. Pois bem, a técnica é
a natureza do homem moderno: nosso ambiente e nosso horizonte.” Ela não cria, não
produz diferença. O gesto irônico de Duchamp é ativo ao produzir a diferença através
de um objeto indiferente, trazido a um local de diferença que também não deixa de ser
alvo de uma exigência produtiva indiferente. 4

Como aponta Octavio Paz, “graças à ironia”, mesmo o gesto de Duchamp


nega-se enquanto ato produtivo: “o ready-made foi seu tonel de Diógenes 5” (PAZ,
1997, p.27), ação disparatada que, em sua ironia, denuncia a “ação por ação” e nega a
própria ação. “Numa sociedade que julga os homens como instâncias produtivas”,
Duchamp denuncia o jogo presente na instituição artística, ou o jogo da modernidade

3
Segundo Paiva, o Nu Descendo uma Escada é um exemplo que mostra a fascinação de Duchamp
pelos “padrões abstratos de repetição”: “indiferente, esse ‘nu’ desce uma escada”, numa busca pela
“impessoalidade dos mecanismos inorgânicos” (PAIVA, 2006, p.282).
4
Ao fazer da inação arma que insurge contra os padrões abstratos de movimento (e considerando
também o silêncio de Duchamp, ressaltado por Paz, p.42), faz pensar na personagem Cordélia, de Rei
Lear, quando recusa-se a falar (seu pai exige declarações de amor de suas três filhas para distribuir-lhes
a herança, ela assiste as irmãs que o odiavam debulharem-se em elogios artificiais que satisfazem a
todos e, sendo ela a única que realmente o amava, se cala). Ela recusa as exigências mecânicas a partir
das quais qualquer um diz a mesma coisa, faz a mesma coisa – e mesmo a atividade soa reativa. O faz
às custas da herança e ganhando o ódio do pai que tanto amava: é a atividade em seu “absoluto
desinteresse” (PAZ, 1997, p.27) (noção kantiana que, talvez, em termos nietzscheanos, poderia
traduzir-se num interesse imediato do corpo e nada além disso).
5
“ocorreu-me aquele caso do filósofo de Sínope: quando se dizia que Filipe já marchava contra a
cidade, os coríntios todos ficaram perturbados e se puseram em ação, um preparando as armaduras,
outro trazendo pedras, outro reparando as muralhas, outro reforçando o parapeito, outro ainda ocupado
com alguma coisa útil. Então Diógenes, vendo aquilo, já que não tinha nada para fazer – pois ninguém
precisava dele para coisa alguma – cingiu o manto e, com muita seriedade, começou também ele a rolar
o tonel no qual morava, para cima e para baixo do Crânio. Algum de seus amigos perguntando-lhe:
“Por que você está fazendo isso, Diógenes?” – “Rolo também eu meu tonel” – ele dizia – “para que não
pareça o único desocupado no meio de tantos que trabalham”” (LUCIANO, Hist Conscr., 3, In:
BRANDÃO, Jacyntho. Luciano e a história)

4
crítica, e nega o próprio ato, a própria crítica. A ironia reverbera, a crítica se desdobra
e ataca a si mesma numa dialética com as convenções, na oscilação entre crítica e
mito, destruição e criação, que, Paz enfatiza, é tão própria do espírito moderno (PAZ,
1997, p.47). A crítica irônica desdobra-se no ato de Duchamp em direções múltiplas
de destruição criativa - as incessantes negações produzem sentidos, tornam-se
afirmação, mas a “afirmação é sempre provisória.” (PAZ, 1997, p.27). O ready-made
foi seu rolar de tonel, e a todo sentido que tentamos lhe determinar, na gravidade da
nossa valoração produtiva, ouvimos a risada de Duchamp por trás das cortinas,
exigindo sempre um outro.6

A ATIVIDADE DO ESPECTADOR

“Uma das ideias mais inquietantes de Duchamp se condensa numa frase muito
citada: ‘o espectador faz o quadro’.” (PAZ, 1997, p.55) Com isso, ele não nega a
realidade da obra ou sua determinância, mas enfatiza a atividade necessária do olho
que vê – sua interpretação, avaliação, julgamento - para que o caráter artístico de uma
obra se realize.

“Nisto reside o segredo do fascínio do Grande Vidro e dos


ready-made: um e outros reclamam uma contemplação ativa,
uma participação criadora. Nos fazem e nós o fazemos.” (PAZ,
1997, p.56)
De Duve ressalta que o juízo estético sofre um deslocamento na modernidade:
“o julgamento estético moderno é explicado não como ‘isto é belo’ (ou feio), mas sim
como ‘Isto é arte’ (ou não).” (DeDUVE, 1998, p. 129). O que está em questão não é a
beleza ou feiura evocada pelo objeto, mas a redefinição da nossa relação com ele e
das relações em torno dele, que o transpõem de um objeto banal para a condição de
obra de arte. Isso porque Duchamp radicaliza a possibilidade de arte sem qualquer
norma prévia ao não atender a quaisquer dos critérios tradicionais. Assim, “o que é
uma obra de arte” deixa de ser um dado a priori e centraliza-se no efeito estético
produzido (ou não) no espectador. Tal efeito se dá no deslocamento da ordem
instituída pela qual o sujeito percebe e age. O ready made (ou qualquer obra, como
sugere De Duve), transtorna as relações habituais e nossa sensibilidade é
desorganizada, exigindo nova organização que abarque o tumulto. Surge outra
6
“A ironia é o antídoto que contradiz um elemento ‘demasiado sério como o erotismo’ ou ‘demasiado
sublime como a ideia’” (PAZ, 1997, p.46).

5
maneira de ser “arte”: não algo pré-definido, mas que perturba essas definições,
subverte as expectativas, fazendo surgir do embate de forças entre o estranho e as
convenções, novos sentidos. “Não a filosofia da pintura: a pintura como filosofia.”
(PAZ, 1997, p.25) E o embate só é possível numa contemplação ativa, quando a
percepção se desloca e uma obra de arte se instaura – ou não.

A interpretação depende tanto do interpretado como do intérprete. O caráter


artístico, enquanto efeito estético contingente, não está por si só na obra nem no
espectador, mas na relação que um sujeito histórico estabelece com a obra e os
sentidos que ela produz. Porque a obra não se dá mais ancorada em critérios
normativos, não há mais possibilidade de recepção passiva, reconhecimento, e a
interpretação assume um caráter instaurador. É a noção de atividade nietzscheana:
sem orientação que apazigue o encontro com a obra, é desencadeada uma atividade
experimental do olhar que se vê sem padrões pré-definidos, articulando o novo com o
já visto, alavancando possibilidades e abrindo espaço para o inesperado. O artista é o
primeiro a testemunhar os efeitos de sua obra e a elevá-la ao caráter de arte (ao expor,
assinar, dar título) - o público o seguirá ou não nesse ato.

A obra é um trampolim para que o corpo se ponha a avaliar e reavaliar as


relações em torno de si e da obra. Afinal, como afirma Duchamp, “a obra não é uma
peça de museu; não é um objeto de adoração nem de uso, mas de invenção e de
criação.” (PAZ, 1997, p.57). Lançando o incompreensível, exige que se crie formas
para abarcar a estranheza, novas maneiras de articular o mundo.

Duchamp ativa o espectador. Sem referências externas para como se sentir, o


que pensar, o que ver, o espectador é retirado da sua zona de conforto, precisa ser
capaz de lidar com a estranheza, a indefinição, sensações difusas e sua própria
perplexidade por conta própria. Exige um espectador artista: que destrua seus a
prioris supere suas premissas e reavalie todos os padrões. Dessa dificuldade de alojar
a experiência artística, abre-se para novas possibilidades, novas formas de
organização da experiência. “Duchamp pretende reconciliar arte e vida, obra e
espectador. (...) Arte fundida à vida quer dizer (...) uma arte que obriga o espectador e
o leitor a converter-se em um artista e em um poeta” (PAZ, 1997, p.57), que a partir
da experiência estética transgride a realidade dada, reconfigura as formas de sentir e
pensar, e funda novas maneiras de ser.

6
No Zaratustra, depois de afirmar o homem enquanto “aquele que avalia”,
Nietzsche completa: “avaliar é criar”. Sem a objetividade de regras pré-estabelecidas,
principalmente depois de Duchamp, é com o ato de recepção que vem o ato criador do
artista: a diferença de um gesto banal para uma obra de arte, para a instauração de um
novo mundo. “O readymade (...) apaga toda diferença entre fazer e julgar arte”
(DeDUVE, 1998, p. 141).

A destruição das premissas é o princípio da atividade. Essa criação surge da


ameaça do não-sentido: quando nossos conceitos já não dão conta de abarcar a
experiência – isto é, com os momentos de crise, que têm na criação suscitada sua
positividade e importância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A arte abandona a mestria para se tornar uma habilidade de ver o mundo sob
novas óticas.” (PARENTE, 2013, p.94). O artista não tem mais instruções de como
proceder ou o espectador de como receber. Enxergar as possibilidades artísticas no
trivial é quase uma vidência, já que a experiência não tem como oferecer ferramentas
para ver além do já visto – é um salto que vai além de uma vontade consciente, um
imprevisto para o qual podemos apenas nos disponibilizar, mas essa disponibilidade é
fundamental.

A partir de Duchamp, arte não é, arte se dá. Seu gesto desnorteador não
instaura um novo código normativo - o ready made insurge contra a possibilidade
mesma de se definir a priori o que é arte. Nesse ponto, como coloca Paz, sua
“violência racional [é] muito mais desapiedada do que a violência física em que se
compraz Picasso” (PAZ, 1997, p.13). Essa violência está na recusa prolífica dos
modelos normativos que apaziguam a recepção, que “tornam os trabalhos de arte
individuais reféns de uma ideologia e abrem mão do direito e do dever de avaliá-los
por seus próprios méritos” (De DUVE, 1998, p. 134). Cada obra vem a inaugurar suas
próprias condições artísticas de acordo com o mundo em que ela se insere, lugar a
partir do qual fala o espectador em sua atividade interpretativa. As obras de arte são
imagens, metáforas, simulacro, alegoria: são uma coisa, mas podem sempre ser
outras. Essa capacidade de se reinventar faz parte de seu caráter artístico. Não há
palavra final – cada “leitor é apenas mais uma leitura” (PAZ, 1997, p.50).

7
Tudo agora pode ser arte, o que não significa que tudo seja necessariamente
arte. O leque que se abriu ao infinito faz é demandar maior discernimento, mais
atividade. O olhar ativo volta-se mesmo para o mais banal, pois dele também pode
surgir o efeito de desorganização estética, um efeito que é sempre contingente e não
se deixa conceitualizar, resumir numa objetividade. Arte é sempre a coisa específica,
não a coisa em geral, nunca a forma do universal. A ideia de “arte” se submete aos
efeitos do singular e, como propõe Benjamin, surge como um mosaico de suas
diversas estâncias concretas.

Numa época que tem seu valor maior na produtividade por ela mesma, a
atividade de Duchamp está numa inação geradora de novos valores. Para além da
produção massificada, do desdobrar de regras, sua arte enfatiza uma diferença sobre
os mecanismos já assentados. Seu procedimento não é, no entanto, o de recusar o
mercado, recusar os padrões, as convenções, os modos de ser reativos – vitais! –
numa tentativa de pureza ingênua. Ao contrário, seu ato artisto só é possível
acoplando as exigências mercadológicas à simbólica da sua obra. Não se trata de ir
contra o mercado, de opor um ideal de atividade a uma reatividade – a arte se produz
no mundo do qual ela participa. O que Duchamp faz é apropriar-se dos mecanismos
(da produção industrial, da tradição crítica, do rótulo de artista) e implodi-los ao
mesmo tempo que os afirma, num jogo de ironia vertiginoso, como bom jogador de
xadrez.

Em movimento oposto ao da indiferença “que diz que tudo é igual e nada faz
sentido” (OSÓRIO, 2008, p.8), o juízo “é arte” tem algo da ordem da “verdade”, de
uma afirmação da vida e do poder ativo do homem de criar sentidos, instaurar
mundos. Indo constantemente do singular para o geral, a obra de arte “força todo
homem e mulher a relacionar seu crescimento pessoal ao progresso cultural da
espécie” (De DUVE, 1998, p.149).

BIBLIOGRAFIA
De DUVE, Thierry. “Kant depois de Duchamp” em Revista do Mestrado em História
da Arte EBA, UFRJ, 1998.
De DUVE, Thierry. Kant after Duchamp, MIT Press, Cambridge, Mass, 1996.
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. Ed. Perspectiva, SP, 1997.

8
PAIVA, Carmen. A construção do corpo em Pablo Picasso e Duchamp. Tese de
doutorado, PUC-RIO, 2006.
RODRIGUES, Luzia. “Arte para além da Estética”, em Artefilosofia, Ouro Preto, n.5,
MG, 2008
NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e Mentira. Ed. Hedras, 2012, SP.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Companhia das Letras, 2012, SP.
OSÓRIO, L. Para que arte e para que crítica? Encontros e desencontros, em
http://www.seminariosmv.org.br/2008/textos/luiz_camillo_osorio.pdf, 2008.
OSÓRIO, L. “Da arte e do espectador contemporâneos: contribuições a partir de
Hannah Arendt e da Crítica do Juízo”, em O que nos faz pensar, RJ, 2011.
PARENTE, Alessandra. “Duchamp, dândi contra a melancolia?” em Artefilosofia,
Ouro Preto, n.14, MG, 2013.

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