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HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, 2023.

1, NOTURNO, ANOTAÇÕES DE AULA


(Prof. Nazareno Eduardo de Almeida)

OBSERVAÇÃO GERAL: O texto que segue é o conjunto de anotações que serão


usadas ao longo das aulas do semestre. Não é um texto acadêmico em sentido
tradicional e a reunião dessas anotações visa apenas que os/as estudantes do curso
tenham acesso prévio aos passos e momentos principais que serão percorridos nas
aulas. Devem, portanto, ser tomadas uma das bases para essas aulas. Elas anotações
indicam a perspectiva geral que a narrativa das aulas assume sobre parte da filosofia
antiga. Elas também podem ser usadas como uma das fontes (de modo algum a única)
para elaboração dos textos de avaliação. Caso seja citado diretamente em textos de
avaliação, a forma é a seguinte: ALMEIDA, N. E. de., História da Filosofia 1, 2023.1,
Anotações de aula, p. x. Texto fornecido pelo autor.

AULA 1: AULA INTRODUTÓRIA

ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA

PROBLEMA INICIAL:

1) LEMA: “toda verdadeira história é história contemporânea”. Este lema foi expresso
em vários textos pelo filósofo e historiador italiano Benedetto Croce.
Essa frase, que tomamos aqui como lema, pode ser interpretada no seguinte sentido:
toda narrativa sobre algum fato histórico é feita desde o presente e desde o ponto de
vista de algum interesse presente. O significado do passado só aparece a nossos olhos
como algo presente.

2) Isso se aplica também à história da filosofia. O significado desta história sempre


possui algum tipo de dependência em relação ao nosso modo de interpretá-lo, na
medida em que estamos interessados em algum aspecto desta história. Assim, cada
época, escola, filósofo e/ou historiador da filosofia possui uma perspectiva que lhe
interessa acerca da história da filosofia anterior.

A HISTÓRIA DA FILOSOFIA: TEMA DA HISTÓRIA E DA FILOSOFIA

1) O conceito de ‘história da filosofia’ é polissêmico, ou seja, possui diversos sentidos


e não apenas um único. Mesmo assim, essa polissemia pode ser abordada, idealmente
falando, de ao menos dois pontos de vista distintos, embora complementares:

1.1) A história da filosofia pode ser abordada desde algum ponto de vista da história
das ideias enquanto parte da história humana e, sobretudo, da chamada história
ocidental. Nessa abordagem interessa mais ao historiador o sentido e o papel que
escolas, obras, épocas e autores desempenham no contexto maior da história
intelectual de determinado período.

1
1.2) A história da filosofia pode ser abordada desde algum ponto de vista filosófico
enquanto tema de uma reflexão sobre a própria filosofia ou sobre alguma questão
filosófica tomada como fundamental por uma época, escola ou filósofo.

2) Geralmente os filósofos e historiadores da filosofia das últimas décadas misturam


ambas as formas de abordar a história da filosofia. Isto é necessário para que as
abordagens da história da filosofia sejam tanto historicamente rigorosas quanto
filosoficamente relevantes para nosso contexto contemporâneo.

DUAS PERGUNTAS DIFERENTES:


“O QUE É FILOSOFIA?” E “COMO SE FAZ FILOSOFIA?”

1) Podemos abordar a história da filosofia diretamente à luz de uma resposta existente


ou procurada à questão “o que é filosofia?” Abordagens célebres da história da
filosofia a partir de alguma definição de filosofia foram feitas por diversos filósofos,
dentre eles, alguns dos mais eminentes foram: Platão, Aristóteles, Plotino, Tomás de
Aquino, Descartes, Hume, Kant, Hegel, Nietzsche, Husserl, Bertrand Russell,
Wittgenstein, Deleuze/Guattari etc. O problema com essa questão tradicional é que,
de modo geral, ela pressupõe algum tipo de natureza ou essência da filosofia que seria
captada por uma única definição, algo que parece pouco plausível diante da
diversidade de respostas existentes para ela.

2) Todavia, podemos abordar a história da filosofia diretamente à luz de outra


pergunta e uma possível resposta a ela, a saber: “como se faz filosofia?” ou, no caso da
história da filosofia, “como se fez filosofia?”. Em parte, isso é feito pelos historiadores
da filosofia, que procuram expor, sem um compromisso direto com uma definição
única da filosofia, como a história da filosofia se deu através de épocas, escolas,
correntes, autores e obras considerados clássicos. Em contraste com a pergunta mais
tradicional, a questão “como se faz filosofia?” nos aponta para uma perspectiva mais
plural e metodológica sobre o fazer filosófico, uma perspectiva na qual devemos nos
inserir ativamente, deixando de lado supostas definições absolutas sobre a atividade
intelectual e a atitude de vida que marca o fazer filosófico.

3) A partir dessas breves considerações, é possível dizer que o ponto de vista do


presente curso é o da segunda questão. Uma possível resposta a ela que defendo como
metodologicamente abrangente e relevante é a seguinte: a filosofia se faz como um
conjunto aberto de técnicas de argumentação sobre questões fundamentais para a
condição humana no mundo. No caso específico da seleção de autores e obras da
filosofia antiga que temos em vista neste curso, esta resposta nos indica que a ênfase
(embora não exclusiva) recai sobre os tipos de concepções e argumentações que
podemos encontrar nesses autores e obras.

4) Assim, na perspectiva deste curso, estudar a história da filosofia é um meio para


aprendermos como os filósofos praticaram, desenvolveram e ampliaram este conjunto
de técnicas de argumentação sobre um vasto leque de questões fundamentais; de tal
modo que, com seu estudo, nós próprios podemos aprender a praticar e desenvolver
essas técnicas em nosso fazer filosófico, seja diretamente sobre questões filosóficas, seja
2
no estudo do modo como as questões filosóficas foram formuladas e abordadas ao
longo da história da filosofia.

DUAS TENDÊNCIAS FILOSÓFICAS DE LEITURA DA HISTÓRIA DA


FILOSOFIA E UMA POSIÇÃO CÉTICA DIANTES DE AMBAS

1) De modo geral, a partir do século XVIII (quando começou a se desenvolver no nosso


modo de fazer história da filosofia), há duas tendências majoritárias de abordar a
história da filosofia ocidental.

2) A primeira tendência consiste em ver na história da filosofia ocidental um


movimento de progresso, tal como em Kant e, especialmente, em Hegel.

2.1) Nesta tendência, por assim dizer, a história da filosofia antiga é um começo
superado pela reflexão e construção da filosofia posterior, especialmente superada
pela história da filosofia moderna.

2) A segunda tendência consiste em ver na história da filosofia ocidental um


movimento de decadência, tal como em Nietzsche e em Heidegger.

2.2) Nesta tendência, por assim dizer, a história da filosofia antiga é o começo
privilegiado da história da filosofia ocidental, sendo não superada, mas deturpada ou
“esquecida” pela tradição posterior.

3) O problema presente em ambas as tendências de interpretação consiste em supor


um sentido único na história da filosofia, algo problemático diante da já mencionada
polissemia do conceito de história da filosofia e dos desenvolvimentos de diversos
modo de se fazer história da filosofia nas últimas décadas.

4) Adotaremos uma posição diferente destas duas tendências. Uma posição que é
metodologicamente cética em relação a ambas, ou seja, não tomar a filosofia antiga
nem como uma época superada, nem como uma época privilegiada da história da
filosofia ocidental.

DUAS FINALIDADES PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA E DA


HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA

1) A história da filosofia pode ser estudada com o interesse na especialização em


determinado período, escola, corrente, autor(es) e/ou obras. É com esta finalidade que
os historiadores da filosofia.

1.1) Neste sentido, o estudo da história da filosofia antiga é tarefa e objeto dos
helenistas, ou seja, daquelas pessoas que se especializam no estudo aprofundado e

3
prolongado da história da filosofia antiga, particularmente focando em algum dos seus
períodos, escolas, correntes, autores e obras.

2) Em contraste com esta finalidade e como já mencionamos antes, é possível estudar


a história da filosofia com a finalidade aprender a melhor fazer filosofia entendida
enquanto conjunto aberto de técnicas de argumentação sobre questões fundamentais
para a condição humana no mundo.

2.1) Neste sentido, o estudo da história da filosofia antiga é uma possibilidade de


aprendermos a fazer filosofia, assim como o estudo de autores, obras, escolas,
correntes, temas e questões filosóficos de todos os outros períodos da história da
filosofia.

Em nenhum dos dois casos (1.1 e 2.1), estamos justificados objetivamente a dizer que
a história da filosofia antiga é melhor ou pior do que qualquer outro período histórico
posterior, apenas que possui suas peculiaridades diante destes outros períodos e que
foi tomada, por boa parte da tradição posterior, como marcando o início da história da
filosofia.

UMA QUESTÃO FILOSÓFICA FUNDAMENTAL:


A RELAÇÃO ENTRE PENSAMENTO, LINGUAGEM E MUNDO

1) A partir do que foi dito, torna-se claro que não há uma única maneira de fazer a
abordagem da história da filosofia. A concepção segundo a qual haveria uma única
história da filosofia a ser descoberta e descrita definitivamente – concepção suposta ao
longo do século XIX e parte do século XX – tem se mostrado insustentável diante da
multiplicidade de perspectivas relevantes que a história da filosofia tem desenvolvido
nas últimas décadas. As abordagens da história da filosofia, como já indicado antes,
são feitas a partir de interesses e perspectivas contemporâneas diversos. No caso deste
curso, a parte da história da filosofia antiga selecionada será discutida a partir da
perspectiva colocada por uma questão filosófica fundamental desde o mundo grego,
questão que é meu tema de investigações há bastante tempo. Tal é a questão acerca da
relação entre pensamento, linguagem e mundo.

2) A narrativa da história da filosofia antiga neste curso será feita a partir desta
questão. Esta questão, em princípio, coloca em jogo três áreas tradicionais da história
da filosofia e do filosofar, a saber: epistemologia, lógica, filosofia da linguagem e
metafísica ou ontologia. Nosso olhar sobre a filosofia antiga se concentrará
primariamente na análise destas três áreas da filosofia “dentro” da filosofia antiga,
embora também verse sobre outras áreas da filosofia, como a ética, a política e a
metafilosofia (concepções filosóficas sobre o que é e como se faz filosofia).

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UMA VISÃO RENASCENTISTA DO PENSAMENTO ANTIGO:
A ESCOLA DE ATENAS

1) O Renascimento é o início da modernidade. Ele se caracteriza por uma valorização


da cultura clássica e uma nova tentativa de síntese entre os valores pagãos e os valores
cristãos.

2) Dentro deste movimento histórico, a pintura A escola de Atenas, de Rafael Sanzio


(1483-1520), representa uma visão tipicamente renascentista da cultura clássica
filosófica, uma visão que, em vários aspectos, ainda é hegemônica. A pintura é
representativa para nós, dentre outras coisas, porque apresenta o pensamento antigo
de modo idealizado no lugar que marca o fim da filosofia antiga, pois atualmente
convencionamos colocar como data que encerra a filosofia antiga o fechamento da
Academia, fundada por Platão, no ano de 529 d. C., por decreto do imperador
Justiniano, convencionando-se, ainda, marcar a data do início da filosofia grega no ano
de 585 a. C., data em que aconteceu um eclipse lunar supostamente previsto por Tales
de Mileto.

A Escola de Atenas, Rafael Sanzio, 1509-10, Vaticano, Afresco, dimensões 7,70x5 m

5
1: ZENÃO DE CÍTIO ou ZENÃO DE 4: BOÉCIO ou ANAXIMANDRO ou
ELEIA EMPÉDOCLES

2: EPICURO
5: AVERRÓIS

6
6: PITÁGORAS 11: PARMÊNIDES

7 - 8: ALCIBÍADES ou ALEXANDRE;
ANTÍSTENES ou XENOFONTE
12: SÓCRATES

9: HIPÁTIA

13: HERÁCLITO (rosto de MIGUEL


ÂNGELO).

7
14: PLATÃO segurando o Timeu (rosto
de LEONARDO DA VINCI).
17: PLOTINO

15:ARISTÓTELES segurando Ética a


Nicômaco 18: EUCLIDES ou ARQUIMEDES aco
mpanhado
de estudantes (BRAMANTE)

19: PTOLOMEU ou
ZOROASTRO/ZARATUSTRA (com o
globo celeste)

16: DIÓGENES, O CÍNICO

8
R: APELES (auto-retrato de RAFAEL)
20: ESTRABÃO (com o globo terrestre)

MAPA DA GRÉCIA ANTIGA

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA 1, AULA 2

ANAXIMANDRO DE MILETO

FÍSICA E METAFÍSICA NO PENSAMENTO DE ANAXIMANDRO:

(A) INTRODUÇÃO GERAL

1. Anaximandro (c. 610-547 a. C.) é usualmente considerado como o segundo filósofo


da Escola de Mileto, junto com seu antecessor Tales (c. 625/4-548/6 a. C.) e seu
sucessor Anaxímenes (c. 585-528 a. C.). Na realidade, as datas e o estudo de suas
concepções nos revelam mais que esses três pensadores viveram na mesma cidade e
começaram a estabelecer um método de investigação do mundo ou natureza (mais
tarde considerado como a primeira manifestação da filosofia) e não que tenham
conscientemente fundado uma ‘escola’ no sentido mais próprio em que se pode falar
no caso de Pitágoras e, sobretudo, de Platão, Aristóteles, Epicuro etc.

2. Mas se Tales é cronologicamente anterior a Anaximandro, por que começar a


discussão da filosofia pré-socrática com ele? Em primeiro lugar, porque só temos
testemunhos que nos dizem que Tales teria defendido que a água é o princípio de todas
as coisas (uma hipótese simbolizada pela máxima: “tudo é água”). Com efeito, não
temos nenhum fragmento subsistente de Tales e há sérias dúvidas sobre se teria
realmente escrito uma obra defendendo essa hipótese. Em segundo lugar, Diógenes
de Laércio (c. séc. III d. C.) – uma de nossas principais fontes de conhecimento da
filosofia grega – coloca Tales no rol daqueles que compunham as diversas listas dos
‘sete sábios’. Esses personagens são usualmente considerados antecessores dos
filósofos propriamente ditos, ao lado de alguns poetas como Hesíodo e Ferécides. Em
contraste com essas dúvidas e incertezas a respeito de Tales, Anaximandro já nos
aparece como o primeiro filósofo do qual temos alguns poucos fragmentos, mas, em
contrapartida, do qual possuímos um número considerável de doxografias
(testemunhos indiretos), os quais, em conjunto, nos permitem considerá-lo, sem
dúvidas, como o primeiro filósofo do período pré-socrático. Por esses motivos,
começamos nossa disciplina a partir dele.

3. Estes fragmentos e doxografias dão conta de um filósofo de primeira grandeza,


filósofo que determinou os rumos de toda filosofia pré-socrática posterior,
particularmente naquilo que, seguindo Aristóteles, podemos chamar de sua linhagem
física, a qual contrasta com a linhagem lógico-matemática fundada na mesma época
de Anaximandro por Pitágoras. O modelo do universo delineado por Anaximandro
pode ser considerado como o modelo padrão da física grega (com exceção de Leucipo,
Demócrito, Epicuro e os epicuristas, bem como Aristarco de Samos) e, na realidade, o
modelo de universo que predominou no desenvolvimento da ciência física até
Copérnico.

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4. Diferentemente do poetas que já especulavam sobre a natureza através das
teogonias (Hesíodo, Ferécides etc.), Anaximandro escreveu em prosa e não em verso.
Isso é um indício de uma atitude mais racionalista e filosófica, uma vez que os gregos
concebiam a poesia (escrita em verso) como um tipo de dádiva divina. Assim, ao
escrever em prosa, Anaximandro indica que sua obra é fruto unicamente da
racionalidade humana compartilhada.

5. Provavelmente foi o primeiro a intitular sua obra com o título que seria comum a
muitos pré-socráticos, a saber: Sobre a natureza (Peri physeôs). Com esta obra introduziu
três conceitos fundamentais de toda a filosofia grega e ocidental: os conceitos de
natureza (physis), princípio (archê) e indeterminado/indefinido/ilimitado (apeiron).
Mas estes conceitos são acompanhados por outros que se tornaram importantíssimos
na filosofia posterior: no fragmento 1 os conceitos de necessidade (chreôn, na expressão
mais arcaica; depois denotado pelo termo anankê); de justiça/injustiça (dikê/adikia) e
de tempo (chronos); e nos fragmentos 2 e 3 apresenta os conceitos de eterno/imortal
(athanaton) e de incorruptível (anôlethron), sendo também caracterizado como divino
(theion).

6. Eis uma tradução do fragmento 1 em seu contexto, tal como comentado e citado por
Simplício (filósofo neoplatônico do séc. V) em seu Comentário à Física de Aristóteles (cap.
24, parágrafo 13):

“Dos que disseram que <há> um único <princípio> movente e infinito [apeiron],
Anaximandro de Mileto, filho de Praxíades, sucessor e discípulos de Tales, disse que
o princípio e elemento dos entes <é> o apeiron [indeterminado], tendo sido o primeiro
a usar este nome para o princípio. Disse também que este [o apeiron] não é nem água,
nem outro dos que se dizem ser elementos, mas alguma outra natureza apeiron
[indeterminada/indefinida]. A partir desta <natureza> geram-se os céus e os mundos
neles contidos. A partir de onde há geração para os seres, também aí ocorre sua corrupção,
segundo a necessidade, pois concedem castigo e justiça uns aos outros por sua
injustiça, segundo a ordem do tempo; falando assim em termos bastante poéticos.”
(tradução própria)

(B) ALGUNS ASPECTOS DA FÍSICA DE ANAXIMANDRO A PARTIR DO


TEXTO “O SISTEMA DE ANAXIMANDRO”
1. O texto O sistema de Anaximandro é décimo capítulo do último livro inacabado do
eminente helenista inglês Francis Cornford (1874-1943), intitulado Principium
sapientiae, as origens do pensamento filosófico grego, editado postumamente em 1952.1

1CORNFORD, F. Principium sapientiae, as origens do pensamento filosófico grego; trad. Maria M. R. Santos.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.

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Neste capítulo, Cornford procura apresentar a filosofia física (“fisiologia”) de
Anaximandro, mostrando como ela determinou todo o desenvolvimento da filosofia
física posterior.

2. O primeiro passo do texto, porém, consiste em contextualizar, parcialmente fora da


perspectiva aristotélica, a questão motivadora da investigação e da obra de
Anaximandro. Segundo Cornford, tal questão é a seguinte:
“Como surgiu, do estado primitivo das coisas, este mundo multiforme e ordenado?”
(p. 258)

3. Todo o texto de Cornford analisa os testemunhos (doxografias e comentários


indiretos) e os fragmentos de Anaximandro como um tipo de resposta a esta pergunta.

4. A ordem do universo (cosmo) é aquela que podemos constatar através dos sentidos:
os astros (“fogos celestes”) colocados na abóbada celeste, os fenômenos
meteorológicos que acontecem entre o céu e a terra (constituídos basicamente de ar e
água), e a própria terra em que vivemos, a qual, segundo Anaximandro, seria
totalmente cercada pelo mar.

5. A partir desta questão o texto de Cornford pode ser dividido em duas partes
principais:

1) A primeira parte procura expor os conceitos centrais e estruturas conceituais da


cosmogonia e cosmologia de Anaximandro (pp. 260-277). Esta parte se subdivide em
três:
1.1) a primeira explicando a cosmogonia de Anaximandro (pp. 260-266);

1.2) a segunda apresentando a cosmologia de Anaximandro (pp. 266-275);

1.3) e a terceira com uma breve discussão sobre a origem dos seres humanos
(“antropogonia”) (pp. 275-277).

2) A segunda parte discute estas mesmas cosmogonia e cosmologia a partir da


discussão sobre o sentido do termo ‘apeiron’ tal como teria sido usado por
Anaximandro (pp. 277-303). Esta parte pode ser subdividida em duas:

2.1) na primeira, depois de uma breve introdução, Cornford apresenta os seis sentidos
distintos em que o termo ‘apeiron’ pode ter sido usado por Anaximandro (pp. 280-290);

2.2) na segunda, Cornford discute novamente a cosmologia e cosmogonia à luz destes


sentidos, apresentando sua versão do termo como “movimento circular eterno” (pp.
290-303).
Façamos uma breve caracterização destas partes e subpartes.

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(1) A COSMOGONIA E A COSMOLOGIA DE ANAXIMANDRO, SEGUNDO
CORNFORD

(1.1) A COSMOGONIA:

Cornford inicialmente se detém na cosmogonia de Anaximandro, ou seja, em sua


teoria sobre a origem e do desenvolvimento da ordem atual do universo. Isto é
importante porque, segundo Cornford:
“Um dos pressupostos de todas as cosmogonias é a que a ordem universal, tal como a
conhecemos agora, não é eterna, mas teve um começo no tempo, e que o ponto de
partida ou estado inicial das coisas (para o que Anaximandro decerto usou a palavra
archê), era um estado mais simples, no qual não estavam ainda separadas as partes do
mundo ordenado.” (p. 259)

No primeiro estágio, o mundo era uma mistura indefinida/indistinta (apeiron) dos


quatro elementos (terra, fogo, água e ar).

No segundo estágio, começou a separação desta mistura a partir dos contrários quente
e frio, que separa o mundo em duas circunferências: o fogo e o ar na periferia, a água
e a terra no centro.

No terceiro estágio somaram-se os contrários seco e úmido, com o que se forma a


ordem do universo visível: o fogo na periferia do círculo (os astros), o ar logo abaixo,
a água (representando o úmido) depositada em sua maioria nos mares, e a terra seca.

A ordem do universo visível está posta. Cabe agora à cosmologia descrevê-la.

(1.2) A COSMOLOGIA:

A terra está no centro, e tem uma forma cilíndrica, com a largura três vezes maior do
que a altura.

Na terra temos as massas de água que formam os mares e oceanos. Sua evaporação
forma as nuvens e as chuvas que umedecem a terra, bem como os vapores escuros que
velarão os círculos de fogo do céu.

O céu está composto de círculos de fogo colocados a certa distância uns do outros. O
sol está mais afastado da terra, seguindo-se a ele a lua e, depois desta, as estrelas fixas
e os planetas.

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Esta é a ordenação do espaço e do tempo que podemos perceber no estágio atual do
universo. Mais correto seria dizer que é a ordenação do espaço no tempo (lembremos
da última “cláusula” do fragmento 1: “segundo a ordem do tempo.”)

Os contrários que estão “encarnados” nas partes do universo estão sempre em luta,
cometendo injustiças uns ao outros, mas também pagando justiça e castigo por estas
injustiças. Provavelmente, Anaximandro pensa que cada um dos contrários tenta se
sobrepor ao outro, mas eles são novamente ordenados segundo a necessidade, a qual
é a ordem do tempo já mencionada.

(2) OS SEIS SENTIDOS DO TERMO ‘APEIRON’

Cornford apresenta seis sentidos em que o termo ‘apeiron’ teria sido usado por
Anaximandro:

1) O ‘apeiron’ como o que não tem princípio regente e início espaço-temporal por ser
ele mesmo o princípio regente e o início espaço-temporal de todas as coisas
perceptíveis.

2) O ‘apeiron’ como o inesgotável donde tudo provém e para onde retorna sem termo
no tempo.

3) O ‘apeiron’ como o que, não tendo início e sendo inesgotável, é eterno (aidios).

4) O ‘apeiron’ como o que envolve tudo e não é envolvido por nada, como limite
extremo do mundo.

5) O ‘apeiron’ como a esfera que não tem ponto inicial ou final.

6) E, por fim, o ‘apeiron’ como movimento circular eterno que ordena o espaço e o
tempo como princípio movente e regente dos ciclos (dias, meses, estações, anos,
períodos).

Ao discutir todos estes sentidos possíveis do termo em Anaximandro, Cornford chama


a atenção de que o termo não pode significar nem o infinito espacial (tal como será
proposto pelos atomistas), nem o infinito numérico (um significado inicialmente
proposto pelos eleatas e adotado a partir dos atomistas), tal como alguns intérpretes
antigos parecem ter compreendido o termo no pensador milésio.

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(C) O CARÁTER METAFÍSICO DO PENSAMENTO DE ANAXIMANDRO,
SEGUNDO NIETZSCHE

O texto de Nietzsche sobre Anaximandro é o quarto capítulo de seu ensaio A filosofia


na época trágica dos gregos, escrito em 1873 a partir de suas aulas sobre os pré-platônicos
(como os preferia chamar), mas somente publicado três anos após sua morte, ou seja,
em 1903. De passagem, é interessante notar que a denominação atualmente dominante
dos primeiros filósofos como ‘pré-socráticos’ se difunde a partir da publicação da obra
de referência que compilou os testemunhos (doxografias) e os fragmentos desses
pensadores, a saber: Die Fragmente der Vorsokratiker (Os fragmentos dos pré-socráticos),
cuja primeira edição, devida a Hermann Diels, foi publicada em 1903. Essa obra teve
várias edições com acréscimos posteriores, parte dos quais devidos a Walter Kranz.
Nietzsche chama esses pensadores de pré-platônicos porque via em Platão (e não em
Sócrates) o momento de passagem a uma nova etapa da filosofia grega. Em relação
com este ponto, é interessante notar que Hegel, em suas Preleções sobre história da
filosofia (resultantes de vários cursos que ministrou na universidade de Berlim a partir
de 1816, mas somente publicadas em 1835), usa a expressão ‘pré-aristotélicos’,
indicando que, em sua interpretação, Aristóteles seria esse momento de passagem para
uma nova etapa da filosofia grega.

No ano anterior à elaboração de boa parte do ensaio, Nietzsche havia publicado seu
primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música (1872), no qual apresenta a
famosa oposição entre os princípios dionisíaco e apolíneo enquanto princípios de
interpretação de todo o mundo grego a partir de Homero.

A oposição entre dionisíaco e apolíneo é operada também para analisar os filósofos


pré-platônicos como filósofos trágicos, pois são entendidos, de modo geral, como
anteriores ao predomínio superlativo do princípio apolíneo com o advento de Sócrates
e Platão.

Mas também atuam na obra o espírito anedótico encontrado na obra Vidas e doutrinas
dos filósofos ilustres, de Diógenes de Laércio, que fora o principal tema de seus estudos
filológicos de juventude. Também se encontra nessa obra a preocupação do jovem
Nietzsche de caracterizar o filósofo através da tensão entre o impulso artístico
(dionisíaco) e o impulso científico (apolíneo).

Também é visível a influência do pensamento de Schopenhauer, o qual, aliás, é


simbolizado justamente através da figura de Anaximandro, pois, logo após citar o
fragmento 1, pergunta: “enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição
oracular sobre a pedra limiar da filosofia grega, como te interpretaremos?” (trad.
Rubens Torres Filho, col. Os pensadores, p. 23; grifo acrescentado)

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Ao contrário da interpretação usual em sua época, Nietzsche recusa a interpretação
segundo a qual os pensadores anteriores a Platão e Aristóteles comporiam tão-somente
um estágio preparatório para estes. Mais especificamente, o pensamento pré-platônico
não é apenas um estágio de pensamento sobre a natureza que seria superado pela
metafísica platônica e aristotélica. Bem antes, a metafísica platônica e aristotélica é que
são preparadas pelas determinações e conceitos metafísicos instaurados pelos
pensadores da época trágica.

Nessa nova interpretação, Anaximandro não é o primeiro filósofo propriamente dito


por que teria iniciado uma teoria protocientífica sobre a natureza que seria mais tarde
englobada e superada pela metafísica platônica e aristotélica, mas porque considerou
esta mesma natureza, no seu incessante movimento de nascimento e morte
(transformação), a partir do que Nietzsche chama de seu “refúgio metafísico”: o
conceito de indeterminado (apeiron). Nietzsche vale-se aqui do vocabulário kantiano e
schopenhauriano, pois verte ‘apeiron’ por ‘das Unbestimmt’, termo usado por Kant para
caracterizar a coisa em si e que Schopenhauer usa para caracterizar a Vontade como
fonte inesgotável e cega de todo o mundo aparente que nos rodeia e do qual nosso
corpo é uma parte constituinte.

Anaximandro, ultrapassando em muito Tales e Anaxímenes, coloca-se pela primeira


vez dois das questões fundamentais que nortearão toda a metafísica grega (e mesmo
posterior):

A) Como é possível conciliar a pluralidade das coisas sensíveis com a unidade


originária de seu princípio comum?

B) Como é possível conciliar o fluxo incessante do devir com o ser eterno de onde
provém?

Seguindo o espírito de Platão e de Schopenhauer, o jovem Nietzsche não vê estes dois


problemas metafísicos fundamentais como separados da ética. Bem antes, é justamente
no problema do valor da e do direito à existência – tanto da pluralidade frente à unidade
quanto do devir frente ao ser – que repousa o caráter metafísico do pensamento de
Anaximandro. A cosmogonia e a cosmologia do pensador milésio são apenas os
reflexos ou consequências das respostas que procura dar à esta problemática
metafísica fundamental que será desdobrada em sentidos diversos e mesmo opostos
por Heráclito e Parmênides. Portanto, Nietzsche enxerga por trás dos testemunhos
sobre a física de Anaximandro o princípio de toda a metafísica grega.

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(D) EPÍLOGO

O texto de Cornford determina o valor inestimável do pensamento de Anaximandro


enquanto fundador e estruturador da física grega, enquanto o texto de Nietzsche
descortina em Anaximandro o evento fundador da metafísica grega e ocidental. Seria
errado pensarmos que os textos se opõem, pois eles tratam da mesma filosofia de
pontos de vista distintos. Cornford enfatiza o aspecto físico e racionalista do “sistema”
de Anaximandro, sem desconsiderar que ele aponta para uma fundamentação de
caráter metafísico e a priori do conceito de apeiron. Nietzsche enfatiza o aspecto
metafísico e ético dos conceitos de Anaximandro, apontando para uma interpretação
correspondente da ordem do mundo.

(E) BREVE NOTA SOBRE O CONCEITO DE METAFÍSICA

O conceito de metafísica possui diversos sentidos ou significações, tanto no contexto


atual quanto ao longo da história da filosofia. Não é uma tarefa simples apresentar
uma única descrição ou caracterização que seja adequada para apreender todas essas
significações. Diante disso, apresentarei uma caracterização geral e abstrata que
pretende apenas ser uma primeira aproximação do conceito de metafísica. Em
seguida, apresentarei alguma caracterização didática da história da formação do
conceito de metafísica até podermos compreender em linhas muito gerais o sentido
em que Nietzsche está usando este conceito em sua leitura de Anaximandro como o
fundador da linhagem metafísica da filosofia grega.

(1) Caracterização geral: Apenas de modo aproximativo, podemos caracterizar a


metafísica como um campo da filosofia (e da história da filosofia) que trata de temas e
problemáticas que põem em questão os fundamentos de nossa experiência do mundo
(em sua acepção mais ampla possível), de tal modo que ao tratar desses fundamentos,
ela se desdobra através de hipóteses e concepções que ultrapassam aquilo que é mais
imediatamente dado nessa mesma experiência. Note-se, portanto, que ao estabelecer
o apeiron (cujas possíveis significações apresentamos antes) como fundamento (início
e princípio regente) do mundo, Anaximandro pode claramente ser identificado como
o primeiro pensador a apresentar uma hipótese metafísica, uma vez que não é pela
experiência “física” (empírica) que se tem acesso a este fundamento, mas apenas por
meio de processos racionais e metódicos do pensamento abstrato. Feita essa
caracterização geral sobre o sentido do conceito de metafísica, passemos à
caracterização mais histórica.

(2) Caracterização histórica:


(2.1) O termo ‘metafísica’ nasce associado a certos textos de Aristóteles compilados por
Andrônico de Rodes (séc. I a. C.) com esse título. O termo, na realidade, é um tipo de
abreviatura de uma descrição sobre a posição desses textos em relação a outros textos
de Aristóteles, ou seja, ele é uma abreviatura da expressão grega ‘ta (bibla) ta meta ta

17
(bibla) physika’, que pode ser vertida de modo praticamente literal do seguinte modo:
‘os (livros) após os (livros) físicos’. Essa abreviatura não era apenas, em nossos termos
atuais, catalográfica ou biblioteconômica, mas refletia certas indicações provenientes
dos sucessores de Aristóteles na escola do Liceu, indicações estas que estabeleciam a
necessidade do conhecimento anterior das obras físicas do filósofo para poder
compreender adequadamente os textos reunidos com o título Metafísica. A partir dessa
reunião dos textos com esse título, os temas neles tratados começam, lentamente, a
consolidar o que posteriormente veio a ser compreendido como pertencente à
metafísica como uma área de investigações e debates filosóficos, área especialmente
compreendida como tratando da filosofia primeira, a qual, segundo os textos reunidos
na Metafísica, tem várias caracterizações distintas, algumas delas que podem ser
interpretadas como complementares e outras que, ao menos a princípio, parecem
incompatíveis. Dentre elas, as principais são: a sapiência (sophia) enquanto ciência dos
primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas (Livro I); a ciência da
verdade (Livro II); a ciência do ser enquanto ser e suas propriedades intrínsecas (Livro
IV); a ciência que trata do ser enquanto ser na medida em que ele é o ser divino como
causa primeira de todas as outras entidades (Livro VI e, em certas leituras, Livro XII);
a ciência da substância ou essência (ousia) enquanto tipo primário de ser (Livros VII,
VIII, IX e, em certas leituras, XII).

(2.2) Embora a reunião de textos sobre filosofia primeira tenha voltado a circular entre
os estudiosos e filósofos a partir de meados do século I a. C. e tenha sido objeto de
alguns comentários entre os séculos III e VI (ainda temos partes dos comentários feitos
por Alexandre de Afrodídias (séc. III), Siriano (séc. V) e Asclépio de Trales (séc. VI), é
somente com sua tradução e apropriação na filosofia árabe que se inicia efetivamente
a formação do conceito de metafísica como um campo da filosofia e não apenas como
uma reunião de textos (um tanto enigmáticos) de Aristóteles. Em especial, essa
compreensão da metafísica ou filosofia primeira começa com o tratado do filósofo Al-
Kindi (séc. IX), intitulado justamente de Sobre a filosofia primeira, no qual desenvolve
seus argumentos em favor da criação do mundo e na natureza unitária de Deus; uma
obra que tem elementos provenientes da Metafísica de Aristóteles, mas também de
elementos da teologia de matriz neoplatônica. Portanto, esta obra não é um comentário
ao texto de Aristóteles, mas um conjunto de teorizações filosóficas fundamentalmente
voltadas para os temas da teologia islâmica. A consolidação da compreensão da
metafísica ou filosofia primeira como uma área da filosofia (e não apenas como uma
obra de Aristóteles e seus comentários) se encontra no seminal e genial tratado de
Avicena (séc. X-XI), geralmente chamado de Metafísica do Shifá. A segunda etapa de
consolidação dessa formação do conceito de metafísica como campo de investigação e
de debates é marcada pela introdução da Metafísica de Aristóteles na tradição da
filosofia medieval europeia de língua latina a partir do século XIII, através de
pensadores como Alberto Magno, Tomás de Aquino e Duns Scotus, os quais também
passam a ter acesso aos textos já mencionados e de outros (como o comentário e a
epítome (“resumo”) da Metafísica feitos por Averróis (séc. XII), passando eles próprios

18
a realizar comentários a esta obra e se apropriar de seus conceitos e temas na
elaboração de suas outras obras. O marco final dessa consolidação do conceito de
metafísica – como campo de investigação e de debates na filosofia e, reiterando, não
apenas como título de uma obra de Aristóteles e seu comentário – pode ser delimitado
pela publicação das Disputações metafísicas do teólogo, jurista e filósofo espanhol
Francisco Suárez, em 1597. Essa obra gigantesca apresenta-se tanto como um
comentário extensivo e minucioso da Metafísica de Aristóteles, quanto como uma
espécie de enciclopédia que organiza as questões discutidas por dezenas de autores ao
longo de quatro séculos em torno do texto aristotélico. Além disso, em Suárez
encontramos o esboço do que, no século XVIII, se consolida como sendo a estrutura da
metafísica como uma suposta ciência filosófica, a saber: a distinção entre uma
metafísica geral (metaphysica generalis), que é a ontologia, e a metafísica especial
(metaphysica specialis), que se subdivide em três tipos de investigação: a psicologia
racional (cujo tema é a natureza da alma humana), a cosmologia racional (cujo tema é
a estrutura do mundo em sua totalidade) e a teologia racional (cujo tema é a discussão
sobre a existência e a natureza de Deus e de sua relação com o mundo). A partir desse
pano de fundo medieval-escolástico (sintetizado e estruturado por Suárez), torna-se
possível compreender como Descartes, especialmente através de sua obra Meditações
metafísicas (1641), fará uma reelaboração da metafísica anterior em um novo modelo
centrado na noção de ego cogito (“eu penso”), inaugurando a assim chamada ‘filosofia
da subjetividade e da representação’.

(2.3) Embora pensadores como Descartes, Espinosa, Locke, Leibniz, Malebranche,


Berkeley e Hume (dentre outros) sejam muito importantes para compreendermos os
desdobramentos e transformações da metafísica como disciplina na modernidade, não
há dúvidas de que Kant desempenha um papel fundamental nessa história. Com
efeito, Kant, especialmente a partir de sua Crítica da razão pura (1781/87), apresenta
uma crítica às pretensões implícitas ou explícitas (presentes nas obras dos pensadores
antes citados) de elevar a metafísica ao posto de uma ciência do mesmo tipo que a
matemática e a física. Kant indica que se a metafísica pudesse ser considerada uma
ciência, ela não o seria ao mesmo modo que a física e a matemática. Antes, Kant indica
que os objetos e questões fundamentais da metafísica deveriam ser compreendidos em
estreita relação com as questões da ética e da epistemologia. Não vem ao caso explicar
como Kant estabelece esta “virada ético-epistemológica” na metafísica tradicional. O
que importa perceber é que os temas e problemas da metafísica, após sua obra, passam
a ser discutidos na filosofia alemã posterior a partir do novo horizonte aberto por Kant,
tanto desenvolvendo-o quanto criticando-o. Note-se que a filosofia em língua alemã se
torna, no século XIX, a tradição dominante na filosofia europeia e na sua difusão para
além da Europa. É dentro desse novo horizonte kantiano de compreensão da
metafísica que encontramos a obra de Schopenhauer e, apropriando-se dela, a primeira
fase do pensamento de Nietzsche, na qual encontramos o texto acima discutido sobre
Anaximandro. Em certo sentido, o que Nietzsche está propondo é recuarmos as fontes
desse novo horizonte de compreensão da problemática metafísica aos primeiros

19
filósofos do mundo grego, a começar por Tales e, sobretudo, por Anaximandro. A
partir desse breve panorama histórico-filosófico podemos compreender melhor o
sentido em que Nietzsche identifica em Anaximandro um tipo de análogo da metafísica
da vontade de Schopenhauer, mas de tal modo a indicar que os temas ético-metafísicos
que eram vistos como tendo sua origem com Sócrates e especialmente Platão já
estavam sendo discutidos “em espírito trágico” pelos primeiros pré-platônicos, a
começar por Anaximandro.

20
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULAS 3-4

A EXPLICITAÇÃO DA HENOLOGIA
NO PENSAMENTO DE HERÁCLITO DE ÉFESO

(A) INTRODUÇÃO: HERÁCLITO COMO O “PRIMEIRO” FILÓSOFO

1. Heráclito de Éfeso (c. 540-470) é um dos mais importantes e mais conhecidos pré-
socráticos. Até onde sabemos, nasceu e morreu em sua cidade natal, a rica cidade de
Éfeso, situada perto de Mileto, na Grécia jônica.

2. Heráclito pode ser considerado o primeiro filósofo no sentido de ser o primeiro


personagem sobre o qual temos um conjunto de estórias que revelam o que Nietzsche
chama de “psicologia do filósofo”. Embora essas estórias possam ser contestadas
quanto à sua veracidade, elas são importantes porque nos mostram a figura do filósofo
como aquele tipo de pessoa que estabelece um novo modo de viver, ou seja, porque
nos mostram a primeira manifestação da filosofia como uma atitude de vida e uma
atividade intelectual de certo tipo no contexto da cultura grega.

3. Heráclito era de origem aristocrática, como a maioria dos filósofos, mas foi o
primeiro a transferir metaforicamente a noção de aristocracia para o campo da nobreza
de pensamento e caráter, entendendo-a como um atributo espiritual e não político-
social. Abdicou de seus direitos e, portanto, da participação na política. Essa
transposição o tornou um misantropo, ou seja, desprezava o vulgo e também aqueles
que este mesmo vulgo considerava como “sábios”, tal como os poetas Homero e
Hesíodo, bem como filósofos como Pitágoras de Samos e Hecateu de Mileto.

4. Era ainda melancólico, como mais tarde Aristóteles dirá que o foram muito filósofos
e poetas. Segundo nos relata Diógenes de Laércio, Teofrasto, discípulo de Aristóteles,
atribuiu a melancolia de Heráclito ao “fato de algumas partes de sua obra terem ficado
por acabar, enquanto em outras partes há contradições” (D. L. IX, 1, 6), o que pode ser
interpretado – de modo coerente com seu pensamento – como expressando a
contradição entre o desejo de alcançar a verdade como um todo e a impossibilidade de
fazê-lo, dada a necessária limitação humana, mesmo daqueles que são os melhores.
Em sua expressão, os melhores, ao estudarem muitíssimas coisas (DK B 35), podem
encontrar os sinais da ordem invisível que perpassa e domina o mundo visível (DK B
54), mas não são capazes de exprimi-la totalmente, apenas vislumbrá-la parcialmente.

5. Essa melancolia, ao contrário do que se poderia pensar, é a fonte do célebre orgulho


de Heráclito, um orgulho testemunhado também por Diógenes de Laércio na seguinte
troca de cartas entre o filósofo ermitão e o poderoso rei Dario da Pérsia:
“Dareios também desejou conhecê-lo, e lhe escreveu a seguinte carta: “o rei Dareios,
filho de Histaspes, manda saudar Herácleitos, o sábio de Éfesos.

21
És autor de uma obra sobre a natureza difícil de entender e de interpretar. Alguns
trechos, se forem interpretados literalmente, parecem conter uma vigorosa
especulação sobre todo o universo e todas as coisas existentes nele, que dependem do
movimento divino. Mas, na maior parte dos casos, não se chega a um juízo seguro, de
tal maneira que os literatos mais capazes ficam em dúvida quanto à significação
correta de tua obra. Diante disso, o rei Dareios, filho de Histaspes, quer beneficiar-se
de teus ensinamentos e da cultura helênica. Vem, então, o mais depressa possível, para
ver-me em meu palácio. Em geral os helenos não distinguem especialmente os sábios
e descuram seus excelentes preceitos no sentido de se obter uma formação cultural
séria. Em minha corte, entretanto, ser-te-ão assegurados todos os privilégios e uma
conversa cotidiana boa e nobre e um padrão de vida adequado ao mérito e teus
conselhos.”
A resposta de Herácleitos foi a seguinte:
“Herácleitos de Éfesos ao rei Dareios, filho de Histaspes, saudações. Todos os homens
sobre a terra permanecem longe da verdade e da justiça, e por causa de sua miserável
loucura devotam-se sofregamente à satisfação de suas ambições e sede de
popularidade. Eu, que esqueci de toda a maldade e evito a insolente saciedade de todas
as aspirações, intimamente associada à inveja, e desdenho a ostentação, não posso ir à
terra dos persas, contente com pouco e obediente à minha razão.”
Assim se mostrou o homem diante de um rei.”2

A carta do rei Dario revela um dos aspectos pelos quais Heráclito ficou conhecido e
que acabou por se tornar seu codinome, a saber: o Obscuro (ho skoteinos). Segundo o
mesmo Diógenes de Laércio: “Herácleitos depositou sua obra no tempo de Ártemis, e
segundo a opinião de alguns autores escreveu-a propositalmente num estilo obscuro
a fim de que somente os iniciados se aproximassem dela, e para que a facilidade não
gerasse o desdém.” (Idem, p. 252 (IX, 6)). Mas sua genialidade como escritor é
simbolizada pelo relato do mesmo Diógenes quando nos reporta, na vida de Sócrates,
a seguinte estória: “Dizem que Eurípedes lhe deu a obra de Herácleitos e perguntou o
que Sócrates pensava a respeito da mesma; sua resposta foi: “A parte que entendi é
excelente, tanto quanto – atrevo-me a dizer – a parte que não entendi, porém seria
necessário um mergulhador délio para chegar ao fundo.”” (Idem, p. 53 (II, 22)).

6. Assim, temos a primeira imagem lendária e proverbial de um filósofo: aristocrático


no pensamento, misantropo diante do poder, melancólico diante da condição humana
finita, orgulhoso da atividade que realizava e profundo naquilo que dizia.

Mas além de ser aquele pensador onde primeiramente começa a se delinear a figura
do filósofo, Heráclito é um grande artista da palavra. Criou o gênero do aforismo e
utiliza-se de quase todas as figuras de linguagem que mais tarde a retórica grega
começaria a sistematizar. Seu pensamento e sua escrita possuem uma sutileza

2Diógenes de Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres; trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB,
2014, p. 254 (IX, 12-14).

22
incomparável e uma riqueza inesgotável de interpretações, as quais, certamente,
contribuíram para sua posteridade. Em lugar de um sistema fechado, seus aforismos
mostram um pensamento aberto, interpretável através da noção de ‘constelações
conceituais’, ou seja, os conceitos se correlacionam de inúmeros modos e possuem uma
multiplicidade de sentidos. Esta “ambiguidade” (polissemia) é tanto fruto de seu
desejo de não se tornar acessível a todos (apenas aos melhores), bem como da própria
noção segundo a qual o mundo em sua ordem intrínseca não é totalmente acessível ao
pensamento humano, somente compreensível através em seus traços gerais por meio
de um imenso esforço e de um talento que só seria possível a poucos, ou seja,
aqueles/as que Heráclito chama ‘os melhores’ (hoi aristoi), por oposição a quem chama
‘os muitos’ (hoi polloi). Esses melhores são, sem dúvida, os/as filósofos/as; lembrando
que o termo ‘filósofos’ aparece textualmente pela primeira vez no aforismo DK B 35, a
saber: “é preciso que de muitíssimas coisas sejam investigadores os filósofos.” Com
essa atitude, podemos dizer que o texto de Heráclito, através de seu estilo, é o primeiro
texto explicitamente destinado a um público possível de filósofos/as. Assim como
os/as melhores (filósofos/as) precisam saber escutar, estar atentos/as e recolher os
sinais aparentes de uma estrutura (“harmonia”) invisível, assim também quem lê os
aforismos de Heráclito deve interpretá-los. Em suma, a arte de Heráclito em seus
aforismos “mimetiza” ou “imita” o próprio modo de ser da estrutura da realidade que
esses mesmos aforismos descrevem e para a qual nos remetem.

7. Apesar de ser o primeiro pensador a indicar a impossibilidade de apreender a


totalidade em sua estrutura intrínseca em qualquer discurso particular (inclusive no
seu próprio), Heráclito acreditava ter a posse de uma compreensão verdadeira do
mundo diante daquela existente no senso comum. É por isso que Nietzsche tem razão
ao dizer que com Heráclito surge explicitamente na história da filosofia o pathos
(“sentimento”) da verdade. Com efeito, a partir de Heráclito está consumada a
transformação decisiva que a filosofia opera em relação ao conceito de verdade: de
uma noção partilhada por uma comunidade de falantes e expressa pelos poetas e
políticos (segundo Hesíodo), para uma noção que indica a própria realidade do mundo
que é necessário atingir. Em termos mais diretos: Heráclito expressa claramente a
noção filosófica (e metafísica) de verdade.

(B) A METAFÍSICA EM HERÁCLITO:


O DISCURSO SOBRE A UNIDADE (HENOLOGIA) E A POSSIBILIDADE DA
RELAÇÃO ENTRE A ALMA E O MUNDO ATRAVÉS DO LOGOS

1. O pensamento de Heráclito possui diversos aspectos. Esses diversos aspectos são


abordados aqui em dois níveis complementares, mas distintos. Em um nível, o ermitão
efésio continua a tradição da fisiologia jônica ao postular como elemento primário o
fogo. Contudo, em outro, o pensamento de Heráclito ultrapassa em muito o nível da
“fisiologia” (física). Na realidade, a física constitui apenas uma das instâncias nas quais
Heráclito enxerga o jogo da unidade na multiplicidade. É por isso que podemos dizer

23
que, mais do que Anaximandro, o pensamento de Heráclito revela aspectos
metafísicos, uma vez que a ordem do mundo não é totalmente explicada por meio de
elementos materiais, mas se revela como uma complexa, polifônica e polissêmica
estrutura unitária que perpassa a totalidade. Assim, o aspecto metafísico do
pensamento de Heráclito mostra-se claramente na análise do par conceitual unidade-
pluralidade/totalidade (hen-panta).

2. O fogo – representado especialmente pelo fogo puro do Sol – é apenas uma das
instâncias (casos) que preenchem o lugar do conceito de unidade neste par conceitual.
Há ainda vários outros conceitos que preenchem a função da unidade, tais como: ‘o
logos’ (com seus múltiplos sentidos), ‘a coisa-sábia’ (to sophon), ‘o conflito’ (ho polemos),
‘a harmonia’ (hê harmoniê), ‘o comum/o que-é-com’(to koinon/xynon), ‘o deus/divino’
(ho theos), ‘a justiça’ (hê dikê), ‘a alma’ (hê psychê), ‘a lei’ (ho nomos), ‘a medida’ (to metron),
‘o pensar ou pensar sensatamente’ (to phronein e to sôphronein).

Estes e outros conceitos, a rigor, estão para além do que se dá no âmbito puramente
físico e sensível. Em muitos casos essa unidade na multiplicidade se exprime através
da tensão e conflito dos opostos. Foi, aliás, por causa dessa ênfase na coexistência tensa
e polêmica dos opostos que Heráclito acabou por ser considerado o pensador do eterno
fluxo – segundo expressão de Platão: “tudo flui” (panta rhei) – e também, especialmente
a partir de Aristóteles, como o pensador que teria negado o princípio da não-
contradição. Por causa dessas interpretações parciais, Heráclito acabou por ser
compreendido como um filósofo do fluxo perpétuo de todas as coisas e da contradição.
Uma interpretação mais abrangente e equilibrada (mas ainda parcial) se encontra na
escola estoica, para a qual Heráclito era tido como um precursor de suas teorias.

3. Mas o aspecto metafísico do pensamento de Heráclito também se encontra inscrito


no fato de ter sido o primeiro pensador grego a se colocar o problema da relação entre
o ser humano e o mundo. A alma humana, no geral, está afastada e esquecida da
verdadeira ordem do mundo. Contudo, por sua própria natureza, tem a capacidade
de se colocar de acordo com esta mesma ordem. Tal relação se faz principalmente por
meio do conceito de logos. Este conceito possui diversos sentidos. Heráclito usa-se
desta polissemia em seus aforismos, mas podemos dizer que o logos é aquilo que
permite relacionar a alma e o mundo, pois Heráclito supõe, em diversos fragmentos,
que o logos do mundo, em seus aspectos mais gerais, é acessível ao logos que é próprio
à alma humana. Em termos mais diretos, podemos dizer que, se devidamente operada
e formulada, a estrutura “lógica” do discurso é capaz de apreender, ainda que de
forma parcial e indireta, a estrutura henológica do mundo, ou seja, é capaz de exprimir
a unidade na multiplicidade que constitui a ordem intrínseca e subjacente no mundo,
especialmente a unidade através das oposições que ordenam a multiplicidade do
mundo perceptível. Contudo, a maioria dos seres humanos não realiza tal
compreensão. Por sua própria natureza, a alma humana pode se ligar ao mundo
mesmo através do discurso, mas na realidade são poucos os seres humanos que

24
realmente o fazem, pois a maioria está presa às opiniões pré-estabelecidas e ao mundo
cotidiano.

4. Em relação com este tópico, é importante ressaltar, como já o fizeram vários


estudiosos, que Heráclito constitui – pela primeira vez na tradição grega e filosófica –
a noção de alma tanto como um princípio unificador de tudo o que é vivo quanto o
conceito de alma humana enquanto princípio unificador de todos os aspectos da vida
humana e como princípio de conhecimento da totalidade em que esta mesma vida está
imersa. Esse último sentido da noção de alma em Heráclito se revela particularmente
no que diz respeito à relação entre a alma e o logos, quer entendido como discurso,
quer como racionalidade capaz de apreender a estrutura invisível desta mesma
totalidade, ou seja, o logos do mundo.

(C) A UNIDADE NA MULTIPLICIDADE:


A EXPLICITAÇÃO FILOSÓFICA DA HENOLOGIA

1. A palavra fundamental de Heráclito é o par correlativo “um-tudo” (hen-panta). Em


termos gerais, isso significa que Heráclito foi o pensador grego que explicitou uma das
problemáticas fundamentais da metafísica grega: a henologia, ou seja, a investigação
sobre os diversos aspectos da unidade. Essa problemática é também fundamental para
a compreensão de Pitágoras e dos pitagóricos, de Platão e alguns de seus discípulos
imediatos e, sobretudo, do pensamento neoplatônico a partir de Plotino. Este último
foi bastante explícito na precedência e caráter mais fundamental da henologia sobre a
ontologia ao dizer em vários momentos de suas Enéadas que as coisas têm ser porque
têm unidade, mas não unidade porque têm ser. Apesar desse papel fundamental da
henologia nas discussões da metafísica grega, predominou ao longo dos séculos a
posição de Parmênides e Aristóteles, que subordinaram a henologia à ontologia. Foi
somente com a renovação dos estudos do pensamento filosófico grego a partir do
século XIX que, a partir da década de 1960, os estudiosos começaram a enfatizar a
importância (e, em certo sentido, a disputa) entre a henologia e a ontologia no
desenvolvimento da metafísica grega.

2. A partir deste par conceitual, podemos entender uma constelação conceitual que
perpassa diretamente, ao menos, trinta e um fragmentos deste gênio da humanidade.
Para Heráclito, o princípio de todas as coisas é único, mas se manifesta através de
várias formas, conforme já indicamos acima. Os fragmentos em que a problemática
henológica da unidade na multiplicidade aparece de modo mais explícito são os
seguintes:
1-2, 7, 10, 11, 29, 30, 32, 33, 41, 45, 49, 50, 51, 53, 57, 60, 64, 66, 67, 80, 88, 89, 90, 100, 102,
106, 108, 113, 114, 116.

3. Convém colocarmos cada um desses fragmentos (aforismos) diante dos olhos de


nossa imaginação para entendermos um pouco melhor como Heráclito determina os

25
vários aspectos da dinâmica relação entre unidade e multiplicidade. Através da leitura
atenta desses aforismos poderemos entender melhor como é possível que o logos do
mundo possa ser apreendido pelo logos da alma humana. A tradução dos fragmentos
é de minha autoria. Marquei em negrito e sublinhado a parte correspondente ao
conceito de uno ou unidade (hen) e apenas em negrito a parte correspondente ao
conceito de todo/totalidade/multiplicidade (panta). Por vezes, esse par se encontra
inscrito em uma mesma passagem ou expressão.

ALGUNS FRAGMENTOS QUE MOSTRAM A HENOLOGIA DE HERÁCLITO

(1) Frag. 1
“Deste logos, que é sempre, os humanos se tornam descompassados quer antes de
ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois, acontecendo todas as coisas segundo esse
logos, a inexperientes (apeiroisin) se assemelham, embora experimentando-se
(peirômenoi) em palavras e ações tais quais eu discorro, segundo a natureza;
distinguindo cada coisa e explicando como se comporta. Aos outros seres humanos
escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo.”

(2) Frag. 2
“Por isso é preciso seguir o-que-é-com (xynôi), ou seja, o comum (koinôi); pois o comum
é [sc. significa] o-que-é-com. Mas em relação ao logos, sendo o-que-é-com, vivem os
muitos (hoi polloi) como se tivessem um pensamento particular (idian phronêsin).”

(3) Frag. 7
“Se todos os entes em fumaça se transformassem, as narinas os distinguiriam.”

(4) Frag. 10
“Conjunções (synapsies): completo e incompleto, convergente e divergente, consoante
e dissonante; e de todas as coisas um e de um todas as coisas.”

(5) Frag. 11
“Pois tudo que rasteja partilha a terra.”

(6) Frag. 29
“Pois uma só coisa escolhem os melhores contra todas as outras, um rumor de glória
dos mortais; mas a maioria está empanturrada como o gado.”

(7) Frag. 30
“Este mundo (kosmon), o mesmo para todos, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas
era, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas (metra) e apagando-se em
medidas.”

(8) Frag. 32

26
“O uno, a única coisa-sábia (hen to sophon mounon), quer e não quer ser dita com o
nome ‘Zeus’.”

(9) Frag. 33
“Lei (nomos) é também obedecer a vontade de um só (henos).”

(10) Frag. 41
“Pois uma só é a coisa-sábia (hen to sophon), ter ciência (epistasthai) do pensamento
(gnômen) que dirige tudo através de tudo.”3

(11) Frag. 45
“Limites (peirata) da alma não os encontrarias, mesmo todo o caminho percorrendo,
tão profundo logos ela tem.”

(12) Frag. 49
“Um, para mim, <vale> mais do que mil, se for <um> melhor (aristos).”

(13) Frag. 50
“Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar: tudo é um/ um-tudo.”

(14) Frag. 51
“Não compreendem (ou xuniasin) como o divergente consigo mesmo concorda:
harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira.”

(15) Frag. 53
“O conflito é pai de todas as coisas, de todas, rei; a uns revelou deuses, a outros,
humanos; de uns fez escravos, de outros, livres.”

(16) Frag. 57
“Mestre da maioria é Hesíodo; pois estes reconhecem que sabe mais coisas, ele que não
conhecia dia e noite, pois é uma só coisa.”

(17) Frag. 60
“O caminho para cima e para baixo é um e o mesmo.”

(18) Frag. 64
“De todas as coisas o raio fulgurante dirige o curso.”

3Este aforismo (fragmento) é citado por Diógenes de Laércio como a “explicação” do aforismo (irônico)
DK B 40: “Conhecer muitas coisas (polimathiê) não ensina a ter inteligência (noon), pois então teria
ensinado a Hesíodo e Pitágoras, assim como a Xenófanes e Hecateu.” Em uma interpretação conjunta
dos dois aforismos, Heráclito indica que ter muito conhecimento sem que se tenha ciência (epistasthai) do
pensamento que dirige tudo através de tudo não ensina a ter inteligência. Assim, a expressão ‘a única coisa
sábia’ (hen to sophon) indica tanto a única atitude que pode levar à sabedoria ou inteligência quanto a
única coisa sábia como princípio que ordena e conduz a totalidade.

27
(19) Frag. 66
“Pois todas <as coisas> o fogo sobrevindo discernirá e empolgará.”

(20) Frag. 67
“O divino: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; mas se alternando
como fogo, quando a ele se misturam incensos, é nomeado segundo o gosto de cada
um.”

(21) Frag. 80
“É preciso saber que o conflito é o comum (xynon); e que a justiça <é>
disputa/discórdia (erin); e que todas as coisas vêm a ser segundo a disputa e a
necessidade (chreôn).”

(22) Frag. 88
“O mesmo e único: vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes,
modificando-se, são aqueles, e aqueles, modificando-se, são estes.”

(23) Frag. 89
“Os despertos estão em um mundo único e comum, os que dormem, porém, voltam-
se, cada um, para um mundo particular.”

(24) Frag. 90
“Por fogo se trocam todas as coisas e fogo por todas, tal como por o ouro as
mercadorias e por mercadorias o ouro.”

(25) Frag. 100


“O sol – sendo preposto e vigia dos períodos <anuais> – define, dirige, revela e põe à luz as
transmutações e também as Horas (estações), que conduzem todas as coisas, segundo
Heráclito.”4

(26) Frag. 102


“Para o deus/o divino (theôi), todas as coisas são belas, boas e justas. Os humanos,
porém, concebem certas coisas como injustas, outras como justas.”

(27) Frag. 106


“Corretamente Heráclito censurou Hesíodo por fazer uns dias bons e outros maus, dizendo que
ignorava que a natureza de todos os dias é uma só.”

(28) Frag. 108

4A parte em itálico é uma paráfrase de Plutarco de Queroneia. Apenas a parte sem itálico é reconhecida
como sendo uma provável citação do texto de Heráclito.

28
“De quantos ouvi os discursos (logous), nenhum chega ao ponto de conhecer que a
coisa-sábia (sophon) está separada de todas as outras.”

(29) Frag. 113


“Comum (xynon) é a todos <os humanos> o pensar (to phroneein).”

(30) Frag. 114


“Para falar com inteligência (xyn noôi) é preciso concentrar-se no comum (xynôi) de
todas as coisas (pantôn), como a cidade na lei, e com muito mais concentração ainda.
Pois todas as leis humanas se alimentam de uma única <lei> divina (hypo henos tou
theiou); pois esta domina enquanto ordena, e rege (exarchei) todas as coisas e <sobre
todas> prevalece.”

(31) Frag. 116


“A todos os humanos é compartilhado o conhecer a si mesmos (gignôskein eôutous) e
pensar sensatamente (sôphronein).”

(D) ALGUMAS CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS FRAGMENTOS


CITADOS E OUTROS

Nesses trinta e um fragmentos, vemos que Heráclito por vezes usa o par conceitual
“um-tudo” explicitamente, mas na maioria das vezes ele substitui o termo ‘hen’ (um,
uno, unidade), por algum outro nome: logos, o comum, harmonia, a coisa-sábia, cosmo
(“ordem”), conflito, justiça, divino, fogo, entre outros. Também o termo ‘panta’ (tudo,
totalidade, multiplicidade) é substituído por vários nomes, especialmente de coisas ou
propriedades contrárias. Isto indica que a relação conceitual “um-tudo” constitui uma
chave privilegiada de leitura da metafísica de Heráclito, a qual é construída como uma
investigação sobre as diversas formas como se apresenta a unidade como princípio
gerador e regente da multiplicidade.

Como já indicamos antes, a própria alma humana pode ser vista como aquilo que dá
unidade às várias multiplicidades: a multiplicidade das partes corporais,
multiplicidade dos sentidos e das coisas percebidas, a multiplicidade de seres
humanos, a multiplicidade dos momentos temporais da vida, a multiplicidade das
ações e dos pensamentos, a multiplicidade dos discursos. Em alguns fragmentos
dentre os antes citados (frags. 07, 41, 45, 51, 89, 113, 116) tanto a alma humana quanto
suas capacidades (percepção, vigília-sono, logos, conhecimento, compreensão,
pensamento, inteligência) são mencionados.

Haveria ainda outros fragmentos que poderiam ser mencionados. O termo ‘alma’ se
encontra também nos fragmentos 12, 36, 68, 77, 85, 98, 115, 117 e 118, mas em muitos
outros ela é indiretamente mencionada através das suas capacidades perceptivas,

29
cognitivas e ativas. Independente da análise de cada um destes fragmentos e suas
relações, o importante é perceber que Heráclito é o primeiro pensador grego a se
preocupar com a relação dos indivíduos consigo mesmos, com os demais e com o
mundo em que habitam, ou seja, é o primeiro pensador grego a pôr em questão e
investigar a relação entre pensamento, linguagem e mundo, tentando não apenas situar
os seres humanos no mundo físico, mas também em suas possíveis formas de vida
particulares (relação consigo mesmos), suas possíveis atitudes diante do outros e
diante do mundo natural e histórico em que vivem. Esta mesma preocupação de
investigar como se dá a relação entre pensamento, linguagem e mundo também será
encontrada em seu contemporâneo Parmênides e, depois dele, em boa parte dos
filósofos gregos.

(E) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vemos que, várias vezes, Heráclito usa o par conceitual “um-tudo” explicitamente,
mas muitas vezes ele substitui o termo ‘um’, por algum outro nome ou conjunto de
nomes opostos, como mostram vários dos fragmentos acima citados. O pensamento
de Heráclito desenvolve tanto a física monista dos milésios, quanto expande a
metafísica implícita no conceito de apeiron de Anaximandro. Vários são os modos como
o princípio uno e unificador que dá sentido à estrutura de toda a natureza se manifesta
através dos fenômenos visíveis. Todavia, embora a ordem invisível e a ordem visível
do mundo sejam necessariamente interconectadas, Heráclito é explícito quanto à
precedência do nível “metafísico” da realidade sobre seu nível “físico”, conforme nos
diz: “a harmonia invisível domina a <harmonia> visível” (frag. 54). A alma humana,
enquanto possui logos e pensamento (phronein, sôphronein), pode encontrar os sinais
deste princípio que ordena e estrutura o mundo como um todo, um princípio que está,
ao mesmo tempo, junto deste mundo físico e dele separado, conforme é dito no
aforismo DK B 108, citado antes. Os melhores são aqueles que Heráclito chama de
filósofos, na acepção precisa de serem amigos da coisa-sábia (to sophon), um dos nomes
do princípio uno e unificador da totalidade. A estes melhores, Heráclito prescreve que
devem saber esperar o inesperado (frag. 18) e investigar muitíssimas coisas (frag. 35),
sendo aqueles/as que procuram se tornar cientes (“conscientes”), ao mesmo tempo, o
logos da alma e do logos mundo. Em termos mais didáticos, isso significa: “lógica”
(estrutura ordenada) do mundo está aberta à “lógica” (estrutura racional e discursiva)
da alma. Esta possibilidade de homologia entre a alma e o mundo (frag. 50) faz surgir
em Heráclito aquilo que Nietzsche chamou de pathos da verdade, o sentimento típico
do filósofo grego e posterior, que sente possuir um saber diverso da maioria dos outros
seres humanos, um saber capaz de dar-lhe acesso à própria estrutura (logos) do mundo
onde vive e pensa, mas que também é capaz de dar acesso a quem o “escuta” e refaz a
experiência de pensamento entranhada no texto filosófico. Nesse sentido, como
dissemos inicialmente, embora tenhamos de reconhecer cronologicamente Tales e/ou
Anaximandro como os primeiros a iniciarem o modo peculiar de investigação da

30
filosofia, é em Heráclito que encontramos, explicitamente, a figura do primeiro filósofo
que indica o que é necessário para tornar-se filósofo/a.

31
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULAS 5-6

A INSTAURAÇÃO DA ONTOLOGIA EM PARMÊNIDES

PRIMEIRA PARTE:

INTRODUÇÃO GERAL

1. Parmênides é um dos pensadores mais importantes do mundo pré-socrático e de


toda a filosofia ocidental. Sua teoria sobre o ente (to eon = “o que-é”, “o ser”) coloca um
problema filosófico de primeira grandeza para todos os pensadores gregos posteriores
e para toda a tradição ocidental. Na verdade, é Parmênides quem introduz o que
podemos chamar de ‘vocabulário do ser’ na filosofia grega e ocidental.

2. Se é verdade que o verbo ser (einai) é um verbo fundamental do idioma grego desde
os tempos dos poemas homéricos, é somente com Parmênides que acontece a formação
do substantivo ‘o ser’ ou ‘o ente’. Em termos de uma análise filológica, isso significa
que é Parmênides quem estabelece pela primeira vez ou, ao menos, introduz no campo
da filosofia esse termo denotando um conceito fundamental que seria incorporado
pela tradição filosófica posterior. Essa construção linguístico-conceitual se dá na
seguinte forma: a substantivação do particípio singular neutro do verbo ser, ou seja, a
substantivação do termo ‘eon’.5 Note-se que esse termo aparecia antes de Parmênides
em acepções verbais tais como ‘X sendo Y’ ou ‘X que é Y’. Através da introdução do
artigo neutro do grego, o termo ‘to’, Parmênides transforma esse termo verbal (com
certo sentido adjetivo) em um substantivo. Por analogia com isso, surge em
Parmênides também o termo ‘o não-ser’ ou ‘o não-ente’ (to mê eon), o qual será ainda
colocado em correlação com o termo ‘o nada’ (to mêden).

3. A partir dessa construção linguístico-conceitual, surge em Parmênides o que, no


século XVII, passamos a chamar de ontologia e que ainda hoje discutimos vivamente.
A metafísica, especialmente a partir da formulação de Aristóteles (Metafísica, Livro IV,
cap. 1) foi e ainda é predominantemente concebida como ontologia, como a teorização
sobre o conceito de ser ou ente. Com Parmênides também surgem explicitamente os
três princípios chamados, no século XVIII, “as leis fundamentais do pensamento”, a
saber: os princípios de não-contradição, do terceiro excluído e de identidade. Com o
uso desses três princípios em sua metodologia axiomática (realizada por meio de
reduções ao absurdo), Parmênides pode ser considerado não apenas o iniciador da
ontologia, mas também da lógica ocidental.

5 O termo ‘eon’ é a forma do dialeto jônico usado por Parmênides. No grego clássico (representado
sobremodo pelo dialeto ático ou ateniense), o termo é ‘on’, sem o épsilon inicial. A partir desse dialeto
se difunde a forma comum ‘to on’, donde surgirá, posteriormente, o termo ‘ontologia’, ou seja, o
discurso, a investigação, a teorização sobre o ser.

32
A ESTRUTURA DO POEMA SOBRE A NATUREZA

O poema Sobre a natureza, de Parmênides, costuma ser dividido desde a antiguidade


em três partes: o proêmio, o caminho da verdade e o caminho da opinião.

1. O proêmio (encontrado no fragmento DK B 1) apresenta uma alegoria poética que


mostra a viagem do pensador até a morada da deusa (possivelmente a deusa Verdade),
deusa esta que, ao final desta parte, começa a falar usando Parmênides como um
mediador entre suas palavras e nós, denominados no poema ‘os mortais’.

2. A segunda parte é chamada de o caminho da verdade, e se encontra nos fragmentos


DK B 2-8, l. 49-50. Ela é a parte mais importante do poema desde a antiguidade. Nela,
a deusa apresenta as duas (ou três) vias do pensamento em geral: a via inviável (que
o ser não é e o não-ser é); a via inevitável (que o ser é e o não ser não é) e uma possível
terceira via, a dos mortais, os quais confundem ser e não-ser por considerarem
demasiadamente a aparência das coisas. Em minha leitura, sigo a vertente
interpretativa segundo a qual, nesta parte do poema, Parmênides apresenta apenas
duas vias; mas há muitos/as intérpretes que defendem encontrar-se nesta parte três
vias. De todo modo, na exposição que farei, esse aspecto não será de grande
importância para nós.

3. A terceira parte do poema apresenta o que os antigos chamavam de caminho da


opinião, composto pelos fragmentos DK B 8, l. 51-19. Nos poucos fragmentos que
possuímos desta parte, vemos a deusa apresentando, através de Parmênides, uma
cosmologia que se estrutura em dois momentos:
3.1. O primeiro momento parece apresentar uma crítica às opiniões mortais sobre o
mundo, opiniões que tomam as oposições entre propriedades contrárias como
oposições entre ser e não-ser, o que é um erro, pois deve-se pensar que ambos os
contrários possuem igualmente ser. Esta crítica parece estar contida no seguimento
entre o fragmento DK B 8, l. 51 e o fragmento 9.

3.2. O segundo momento apresenta a estrutura geral do mundo (kosmos), bem como
parece conter considerações antropológicas e epistemológicas. Esta parte parece estar
contida na sequência composta pelos fragmentos DK B 10-19.

O problema desta parte consiste no fato que ela apresentar apenas uma ordem
verossímil das aparências, e não uma ordem propriamente verdadeira, sendo, por isso,
considerada com um tipo de “cosmologia falha”.

33
OS CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO E O POSTULADO-IMPERATIVO SOBRE
A IDENTIDADE DE PENSAR E SER:

2.1. Os fragmentos 2 e 3:
No fragmento 2, a deusa apresenta o início de sua “revelação” expondo os dois
caminhos:
“Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste,
os únicos caminhos de investigação que há para pensar:
o primeiro, que é e que não é <possível> não ser,
de Persuasão é caminho (pois à verdade acompanha);
o outro, que não é e que é necessário não ser,
este então, eu te digo, é atalho de todo incrível;
pois nem conhecerias o não-ser (pois não é exequível),
nem o indicarias.”

E, como é geralmente aceito pelos intérpretes modernos, segue-se o célebre fragmento


3, onde encontramos o que se pode chamar de postulado-imperativo da identidade de
pensar e ser:
“pois o mesmo é pensar e ser”
to gar auto noein estin te kai einai

2.2. A parte do fragmento 2 que nos interessa aqui é a apresentação dos dois caminhos,
respectivamente nos versos 3 e 5. Tomemos em atenção cada um desses versos:

(verso 3) “o primeiro, que é e que não é <possível> não ser”


hê men hopôs estin te kai hôs ouk estin mê einai
Reformulado: “o primeiro, que <algo> é e que não é <possível> não ser”

(verso 5) “o outro, que não é e que é necessário não ser”


hê d’hôs ouk estin te kai hôs chreôn esti mê einai
Reformulado: “o outro, que <algo> não é e é necessário não ser”

2.3. O primeiro caminho, como é especificado no verso que o segue, é o caminho da


verdade. O segundo caminho, também conforme o que lhe segue, é o caminho da
falsidade e da contradição. Os intérpretes a partir do século XIX costumam chamar a
atenção para dois aspectos presentes nestes versos.

2.3.1. O primeiro aspecto consiste na ausência de um sujeito explícito nas expressões


‘que é’ (hopôs estin) e ‘que não é’ (hôs ouk estin). Diversos sujeitos foram propostos. A
mais comum dentre elas é entender que o sujeito implícito seria ‘o ser’, de modo que
as expressões seriam ‘que <o ser> é’ e ‘que <o ser> não é’. Diversas objeções foram
levantadas sobre esta hipótese interpretativa. A partir dessas objeções, parece-me que
a solução de Allan Coxon é a mais adequada por razões que não podemos explicitar

34
aqui. Evocando usos semelhantes do verbo ser sem um sujeito explícito em diversos
textos e autores anteriores e posteriores a Parmênides, Coxon propõe o sujeito
indeterminado ‘algo’ ou ‘alguma coisa’. Assim, teríamos, respectivamente: ‘que
<algo> é’ e ‘que <algo> não é’. Nessa leitura, preserva-se o espírito metodológico
presente no segundo verso: “os únicos caminhos de inquérito que são a pensar”. A
determinação do primeiro caminho como o correto e do segundo como incorreto será
explicitado já no célebre fragmento 3, que pode ser interpretado como um postulado e
um imperativo: “pois o mesmo é pensar e ser”. Isso indica que (talvez a partir deste
fragmento, mas certamente já no fragmento 6) a expressão ‘o ser’ (to eon) substituirá o
‘algo’ do primeiro caminho como o objeto próprio nele determinado.

2.3.2. O segundo aspecto consiste no problema de como interpretar o sentido do verbo


‘ser’ nestes versos. A interpretação mais comum e inicial foi a de tomar o ‘é’ em ‘que
<algo> é’ e o ‘não é’ em ‘que <algo> não é’ como indicando o sentido existencial do
verbo ser, sentido compreensível na forma ‘S é/existe.’ Também a esta interpretação
inicial foram levantadas várias objeções. Dentre essas objeções, a mais forte consiste
justamente no fato de Parmênides, no longo fragmento 8, usar o verbo ser
explicitamente em sua função predicativa da forma ‘S é P’, pois nos diz, por exemplo,
‘o ser é ingênito, imperecível etc.’ A proposta que me parece mais adequada para
entender o sentido em que o verbo ser é usado nestes versos e em outras partes do
poema (sobretudo na parte central) consiste em entender que, enquanto apresentação
dos caminhos, o ‘é’ indica o sentido do verbo ser como marcado de identidade, sentido
que se exprime, por exemplo em ‘O ser humano é animal racional’, onde o verbo ser
indica uma identidade entre ‘ser humano’ e ‘animal racional’. Trata-se do sentido
usado nas definições, nas quais o que segue o ‘é’ não tem o sentido de uma mera
atribuição de um predicado qualquer a um sujeito, mas de suas características
essenciais e necessárias.

2.4. O fragmento 6 (1-2): Essas interpretações são confirmadas nos dois primeiros
versos do fragmento 6:
“É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam, pois <o> ser é
e <o> nada não é; isto eu te ordeno considerar.”

Encontramos aqui não apenas a determinação do sujeito explícito do primeiro


caminho e a reiteração da impossibilidade do segundo caminho, mas também a
confirmação da identidade entre ser e pensar expressa no fragmento 3. A sequência do
fragmento 6 é objeto de controvérsia, pois para uma parte dos intérpretes apresentaria
um terceiro caminho e para outros (com os quais concordo), apenas apresentaria as
consequências de se tentar seguir o segundo caminho, tal como fazem os mortais
(“senso comum”).

35
2.5. O fragmento 8 (34-37): por fim, podemos citar as linhas (versos) 34-37 do fragmento
8, onde é reiterada a necessidade do primeiro caminho e a identidade entre ser e
pensar:
“O mesmo é pensar (noein) e aquilo em vista do que é pensamento (noêma).
Pois não sem o ser, no qual é revelado em palavra,
acharás o pensar; pois nem era ou é ou será
outro fora do ser, pois Moira o encadeou
a ser inteiro e imóvel”.

A SEGUNDA PARTE: O CAMINHO DA VERDADE


INTRODUÇÃO: AS QUATRO TESES FUNDAMENTAIS DA ONTOLOGIA DE
PARMÊNIDES

A parte do poema que mais nos interessa aqui é a segunda, onde Parmênides, ao
apresentar as duas ou três vias de pensamento, introduz algumas teses fundamentais
da metafísica grega e ocidental.

A primeira tese metafísica fundamental introduzida por Parmênides é a da identidade


entre pensar e ser. Tal tese apresenta o que podemos chamar de princípio
epistemológico de intencionalidade, que pode ser aproximadamente expresso do
seguinte modo: todo pensamento (em uma acepção especial que discutiremos depois)
é sempre pensamento direcionado àquilo que é, ao ser, de tal forma que se torna
impossível pensar o não-ser.

A segunda tese fundamental introduzida por Parmênides é a da existência de


princípios primários – no caso, os princípios de não-contradição, do terceiro excluído
e de identidade – que são assumidos como princípios do pensamento, da linguagem e
da realidade. Estes princípios serão operados por Parmênides através do tipo de
argumento – introduzido pelo próprio Parmênides no campo da filosofia – que
chamamos atualmente de argumento por redução ao absurdo ou ao impossível.

A terceira tese fundamental é a de que o ser em si mesmo possui características


intrínsecas, a saber: é ingênito, imperecível, eterno, uno, indivisível, imóvel, inteiro,
contínuo etc. Essas características (chamadas de ‘sinais’ ou ‘signos’ (sêmata)) não
apenas pertencem exclusivamente ao ser em si mesmo, mas também são unicamente
acessíveis através de um pensamento puramente lógico, abstrato e conceitual e não
por meio do pensamento “misturado” com a percepção. Ao expor esta tese,
Parmênides inaugura o que podemos chamar de ‘método axiomático na filosofia e na
metafísica grega’, um método que será depois retomado por diversos pensadores
antigos, medievais, modernos, sendo ainda operado por diversos/as filósofos/as em
nossos dias.

36
A quarta tese metafísica fundamental consiste no estabelecimento da identidade
(tauton) como a característica primária do ser ou ente dentre as apresentadas
anteriormente. A partir disso, pode-se dizer que a ontologia de Parmênides é, em seu
núcleo, uma “tautologia”, ou seja, a determinação e defesa das características
intrínsecas da identidade do ser. Esta característica fundamental dentre as demais está
ligada diretamente com a tese inicial da identidade entre pensar e ser. Assim, é porque
a identidade é a característica fundamental do ente e tal característica (juntamente com
as demais) só é acessível pela lógica do pensamento que podemos dizer que se
apresenta a necessidade de postular a identidade entre pensar e ser como um
imperativo epistemológico para a obtenção do conhecimento verdadeiro.

A PRIMEIRA TESE FUNDAMENTAL:


A IDENTIDADE ENTRE SER E PENSAR, A DISTINÇÃO ENTRE PENSAR E
PERCEBER E ENTRE SER E APARECER

No fragmento 2 Parmênides enuncia:


“Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste,
Os únicos caminhos de inquérito que são dados ao pensar:
O primeiro <caminho>: que <algo> é e não é <possível> não ser,
De persuasão é caminho (pois à verdade acompanha);
O outro <caminho>: que <algo> não é e que é necessário não ser,
Este então, eu te aponto (phradzô), é atalho de todo incrível;
Pois nem conhecerias o não-ente/não-ser (pois <isso> não é exequível),
Nem o apontarias...”

No fragmento 3 Parmênides postula, provavelmente como princípio que explica o


fragmento 2:
“... Pois o mesmo (to auto) é pensar (noein) e ser (einai).”

No fragmento 8 (linhas 34-41), Parmênides conclui:


“O mesmo (tauton) é pensar (noein) e aquilo em vista do que é pensamento (noêma).
Pois não sem o ente, pelo qual é revelado em palavra,
Acharás o pensar; pois nem era ou é ou será
Outro para além do ente, pois Moira o encadeou
A ser inteiro e imóvel; por isso tudo será nome
Quanto os mortais estatuíram, convictos de ser verdade,
Engendrar-se e perecer, ser e não(-ser),
E lugar cambiar e cor brilhante alternar.”

No fragmento 16, Parmênides expõe a relação entre pensar e perceber:


“Pois assim como em cada <ser humano> se mantém a têmpera das articulações
múltiplas e errantes <dos sentidos>,
Assim também o pensamento (noos) acontece nos humanos: pois para os

37
humanos é o mesmo o que <neles> entende (froneei) e a natureza das articulações
de cada um e em todos os <sentidos>, pois o pensamento (noêma) é o pleno [sc. puro,
“separado”].”

Nestes fragmentos vemos a postulação de um imperativo que estabelece a identidade


entre ser e pensar como ideal do conhecimento em sentido estrito. Esta identidade
perpassa toda a tradição metafísica do ocidente como um imperativo primário. E este
imperativo se impõe porque nenhuma das características fundamentais do ente é dada
através da percepção.

Unicamente através da lógica do pensamento é possível alcançar o que-é (o ente/o


ser), não a partir da percepção, que nos mostra unicamente coisas que são geradas e se
corrompem, que são divisíveis e descontínuas, que se transformam e são diferentes
umas das outras. A identidade entre ser e pensar subjaz (está abaixo ou fora) da relação
mutável e múltipla entre a percepção e os fenômenos. Usando a formulação de
Aristóteles (Metafísica, Livro IV, cap. 6), o fenômeno – termo que significa, literalmente,
‘o que aparece’ – não pode ser simplesmente o que aparece, mas é sempre já o que
aparece, para quem aparece, como aparece, quando e enquanto aparece. Em outras
palavras: o fenômeno só existe na sua relação com quem o percebe, como o percebe,
quando e enquanto o percebe. Assim, se o ser ou ente não é o que aparece (fenômeno),
então o pensamento só pode se identificar com ele na medida em que se aparta da
percepção. Com isso, ao estabelecer as separações entre pensar e perceber e entre
fenômeno e ser, Parmênides institui a necessidade de uma instância “meta-física”
tanto a nível epistemológico quanto ontológico: de um lado a instância epistemológica
do pensar (noein) que pode se separar do nível da percepção; e, de outro, a instância
ontológica do ser que está separada do nível da aparência (fenômeno). Assim, em
termos gerais e aproximativos, podemos dizer que a relação entre percepção e
fenômeno se encontra no que podemos chamar de nível físico, enquanto a relação de
identidade que é necessário alcançar entre pensar e ser se encontra no que podemos
chamar de nível metafísico. É somente neste segundo nível que se pode falar de
conhecimento em sentido estrito, ou seja, de conhecimento verdadeiro e
absolutamente seguro e definitivo.

É somente pressupondo esta relação de identidade primária e subjacente entre pensar


e ser que os mortais podem dar nomes distintos às coisas sensíveis, mas seu erro
consiste em acreditar que o ser estaria nas coisas perceptíveis e, pior ainda, que se
poderia falar de algo que não é, do não-ser. Comparadas com o objeto último do pensar
(o ser/ente), todas essas coisas perceptíveis ou percebidas pelos cinco sentidos são
ilusórias, pois sobre elas não é possível alcançar um conhecimento em sentido
absoluto, dado que elas possuem características opostas àquelas que, como veremos
abaixo, pertencem unicamente ao ser em si mesmo.

38
A identidade entre pensar e ser é ao mesmo tempo um postulado necessário para a
obtenção do conhecimento e um imperativo (algo a que devemos seguir) porque o
pensamento, no mais das vezes, mantém-se junto das atividades perceptivas de cada
ser humano, mostrando que a separação entre pensar e perceber só se torna possível
desde um ponto de vista puramente lógico e epistemológico que é exposto no poema
pela deusa, ou seja, por meio de um tipo de saída do mundo comum e cotidiano.
Também a separação entre ser e aparecer só se torna visível e compreensível através
deste mesmo ponto de vista lógico e epistemológico.

Essa necessidade de separar o pensamento do nível perceptivo da mente se exprime


no fragmento 7: “Não, impossível que isto prevaleça: serem os não entes./Tu, porém,
desta via de investigação afasta o pensamento (noêma); nem o hábito multiexperiente
por esta via te force,/exercer sem visão um olho, e ressoante o ouvido,/e a língua, mas
discerne através do raciocínio (logos) controversa tese /por mim exposta.” A parte
enfatizada em negrito e itálico aponta justamente para o caráter errante (“hábito
multiexperiente”) dos sentidos (olho, ouvido, língua), bem como para a necessidade
de afastar-se dessa via que conduz a dizer que o não-ser é, um afastamento que conduz
à outra via, aquela que é a do juízo (discernimento) unicamente através do raciocínio
lógico (logos).

Tendo essas observações em vista, podemos dizer que no poema de Parmênides se


apresentam os seguintes esquemas conceituais que perpassarão toda a tradição
filosófica ocidental a partir de então como temas e problemas de teorização e debate:
Pensar-Ser (noein-eon)
Perceber-Aparecer (aisthêsis-phainomenon)

De modo didático e aproximativo, podemos “desenhar” o seguinte diagrama genérico,


em que as pontas caracterizam os termos metafísicos e o meio os termos sensíveis
(“físicos”):

Pensar ≠ Perceber = Aparecer ≠ Ser


________________________

Este diagrama mostra aquilo que estávamos dizendo acima sobre a necessária
separação entre pensar e perceber, e entre aparecer e ser, bem como a necessidade do
pensar se identificar ao ser, por assim dizer, saltando o nível perceptivo e fenomênico
apresentado no centro.

Note-se, por fim, que o conceito de aparência (fenômeno), também está intimamente
ligado ao conceito de devir (também denotado como o tornar-se, o vir-a-ser, o
movimento ou a transformação), o qual, justamente a partir de Parmênides, passa a
ser distinguido do conceito de ser. Assim, forma-se o contraste entre ser e devir, um
contraste que, para alguns dos sucessores de Parmênides, será de complementaridade

39
(como em Anaxágoras e Aristóteles), e, para outros, será de oposição (como para seus
discípulos e para Platão).

Tanto os esquemas conceituais quanto o diagrama apresentados acima são


fundamentais para se entender várias das perspectivas e polêmicas epistemológicas e
ontológicas após Parmênides, especialmente as de seus discípulos – Zenão de Eleia,
Melisso de Samos e, em certa medida, os Megáricos – e de seus críticos e continuadores
– especialmente Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Górgias, Protágoras,
Platão e Aristóteles. Nesses discípulos e sucessores, essas correlações conceituais
estabelecidas a partir do poema de Parmênides são, de modos distintos, discutidas e
analisadas.

A SEGUNDA TESE FUNDAMENTAL:


OS PRINCÍPIOS PRIMÁRIOS DO SER, DO DIZER E DO PENSAR

No seu poema Sobre a natureza, Parmênides estabelece o discurso sobre o ser ou ente
(ontologia), através de um método que podemos chamar de puramente lógico-
semântico, dedutivo ou axiomático. Neste processo de instauração da ontologia,
Parmênides apresenta, pela primeira vez, três princípios que serão chamados – a partir
da Metafísica (1739) de Baumgarten – “as leis fundamentais do pensamento”, a saber:
os princípios de não-contradição, do terceiro excluído e de identidade. Contudo, no
caso de Parmênides, estes princípios só podem ser chamados de leis fundamentais do
pensamento (noein) e também da linguagem que exprime adequadamente este
pensamento porque eles são, primariamente, as leis fundamentais do próprio ser
(realidade). Tais princípios considerados fundamentais desde Parmênides só foram
“relativizados” no âmbito da lógica no século XX, com o surgimento das lógicas
paraconsistentes, polivalentes, intuicionistas e quânticas.

No poema, tais princípios aparecem entranhados nas seguintes formulações:

1) É necessário (sempre verdadeiro) que: o ser é e o não-ser não é. (cf. frag. 2, l. 3-5 e
frag. 6, l. 1-2). Que conta como uma formulação do princípio de identidade.

2) É impossível (sempre falso) que: o ser não é e o não-ser é. (cf. frag. 2, l. 3-5 e frag. 6,
l. 1-2). Que conta como uma formulação do princípio de não-contradição.

Além disso, ao descrever o erro no pensamento e na linguagem comum dos mortais


do seguinte modo:
“Para os quais ser e o não ser é reputado como o mesmo e não o mesmo.” (frag. 6, l. 8-
9); podemos depreender que:
3) É impossível (sempre falso): o ser é e não é.
4) É impossível (sempre falso): o não-ser é e não é.

40
Pois tais teses implícitas no uso comum do verbo ser são contradições. De tal modo
que (3) e (4) exprimem também o princípio de não-contradição aplicado aos conceitos
fundamentais apresentados e discutidos no poema.

E, mais adiante, ao provar, por redução ao absurdo, as características do ente, o eleata


diz:
5) É necessário (sempre verdadeiro) que: qualquer coisa é ou não é. (cf. frag. 8, l. 11, 15-
16). Uma formulação que indica o princípio do terceiro excluído.
Donde se deduz:
6) É impossível (sempre falso) que: qualquer coisa é e não é. Que conta como uma
forma geral do princípio de não-contradição.

A TERCEIRA TESE FUNDAMENTAL:


AS CARACTERÍSTICAS DO ENTE EM SI MESMO E A METODOLOGIA
AXIOMÁTICA DE PARMÊNIDES

Nos longos fragmentos 7 e 8, Parmênides apresenta o que podemos chamar de


características fundamentais do ente em si mesmo: ingênito, imperecível, eterno,
imóvel, contínuo, indivisível e, dentre todas estas, a principal das características, a
identidade, a qual apresentaremos como uma tese em separado desta parte do poema
por razões que se tornarão mais claras abaixo. Tal apresentação dessas características
(chamadas de sinais ou signos (sêmata)) se faz através de uma metodologia que
podemos chamar de axiomática ou dedutiva.

A metodologia axiomática de Parmênides se revela no uso, doravante muito comum,


do argumento por redução ao absurdo ou redução ao impossível. Tal tipo de
argumento pode ser caracterizado, de modo informal e didático, como um
procedimento lógico de prova indireta: para se provar uma tese A, assume-se
hipoteticamente a sua negação (não-A) como verdadeira e procede-se, por meio de
axiomas ou teoremas já aceitos, a derivação de consequências absurdas
(necessariamente falsas, ou seja, impossíveis). Se estas consequências são absurdas
(necessariamente falsas) e inaceitáveis, então não-A tem de ser tomada também como
necessariamente falsa, e sua oposta, justamente a tese A, tem de ser tomada como
necessariamente verdadeira.

Note-se que aqui já está em operação o princípio da dupla negação, a saber: não é o
caso que não-A (não não-A) se e somente se é o caso que A.

Para que a redução ao absurdo possa funcionar, é preciso admitir dois princípios
lógicos tomados geralmente como indispensáveis e irrefutáveis até o século XX, o
princípio de não-contradição (abreviado por ‘PNC’) e o princípio do terceiro excluído
(abreviado por ‘PTE’).

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Uma formulação ontológica6 aproximada do PNC é a seguinte:
É impossível que qualquer algo (x) seja e não seja (F).

Uma formulação ontológica aproximada do PTE é a seguinte:


É necessário que qualquer algo (x) seja ou não seja (F).

Nestes dois princípios já está suposto o princípio de identidade, entendido


aproximadamente do seguinte modo:
É necessário que se algo (x) é (F), então este mesmo algo (x) é (F).
É necessário que se algo (x) não é (F), então este mesmo algo (x) não é (F).

Note-se que estas duas formulações do princípio de identidade são justamente aquelas
expressas por Parmênides na chamada via inevitável, a saber (frags. 2 e 6, l. 1-2):
O ente (ser/o que-é) é.
O não-ente (não-ser/o que-não-é) não é.

Mas, como já indicamos, para chegar às suas conclusões, Parmênides lança mão de um
princípio suplementar, um princípio que podemos chamar de princípio
epistemológico da intencionalidade, a saber:

Todo pensamento (noein) – capaz de se tornar conhecimento expresso no discurso – é


sempre pensamento do ser (do que-é, do ente), nunca pensamento do não-ser (o que-
não-é, do não-ente).

É justamente a pressuposição deste princípio que nos permite vislumbrar porque os


princípios anteriores forma expressos em termos ontológicos (e não somente lógicos),
pois na medida em que o pensamento (noein, noêma) é pensamento do ser, os princípios
que regem os argumentos por redução ao absurdo são princípios do ser e, por isso,
têm de exprimir também a identidade entre ser e pensar que é exigida pela deusa para
que possamos chegar ao conhecimento genuíno. Em outras palavras, o princípio
epistemológico de intencionalidade está presente nos argumentos por redução ao
absurdo porque estes argumentos exprimem propriedades reais do ser apreendidas
pelo pensamento que percorre esses argumentos, de tal modo que aquilo que
“preenche” esses argumentos é a expressão do ser mesmo com o qual esse pensar se
torna idêntico enquanto os percorre.

A partir desses princípios de caráter primariamente ontológico (e, a partir disso,


também lógicos e epistemológicos), sobre o não-ser é unicamente verdadeiro dizer que

6 A formulação é ontológica porque o ‘x’ que simboliza algo é entendido como um sujeito ontológico
real – e não como um sujeito lógico ou linguístico – e o ‘F’ simboliza uma propriedade que pertence ou
não pertence ao algo simbolizado por ‘x’ – e não um predicado que se diz de um sujeito lógico. Note-
se, portanto, a diferença entre sujeito lógico-linguístico e sujeito ontológico real, bem como entre o que
conta como um predicado lógico-linguístico dito de um sujeito lógico-linguístico e uma propriedade
ontológica que pode ou não pertencer a um sujeito ontológico real.

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não é e que não pode ser de qualquer forma. Mas este dizer coloca-se no limite do
dizível, pois o não-ser propriamente não é pensável, cognoscível e, portanto, dizível.
Enquanto o absolutamente outro do ser, o não-ser só é dizível e pensável a partir do
ser em sua identidade com o pensar, uma identidade alcançada através dos
argumentos que mostram as características intrínsecas do ser em si mesmo.

Este aspecto da ontologia de Parmênides já prenuncia as teorias de Demócrito e Platão


e Aristóteles sobre o ser e o não-ser, na medida em que estes postulam que o não-ser
só se torna dizível e compreensível de algum modo em relação ao ser. Todavia, em
cada um desses pensadores esta “relatividade” do não-ser se apresenta de modos
bastante distintos.

Feitos esses esclarecimentos sobre os princípios que regem o método axiomático e


dedutivo, faremos uma reconstrução puramente didática de dois argumentos por
redução ao absurdo que podem ser encontrados nas reduções ao absurdo expostas no
fragmento 8 (das linhas 5 a 29) e que determinam algumas das principais
características do ser em si mesmo. Trata-se de uma reconstrução porque a
interpretação exata da ordem, da estrutura e dos passos dos argumentos
“entranhados” no poema são objeto de bastante debate entre os estudiosos.

PRIMEIRO EXEMPLO DE REDUÇÃO AO ABSURDO:


O SER É INGÊNITO E IMPERECÍVEL, E, ASSIM, ETERNO

A) Por hipótese, postula-se que o ser (o ente) é gerado.


1) Se é gerado, então:
1.1) Ou é gerado a partir do que não é (do não-ente);
1.2) Ou é gerado a partir do que é (do ente);
Mas (1.1) é absurdo, pois como pode coisa nenhuma gerar alguma coisa?
E (1.2) também é absurdo, pois se o ente foi gerado a partir do ente, então ele já era ao
ser gerado, e assim ao infinito.
Portanto, se é absurdo que é gerado, então é verdadeiro que não é gerado.
B) Se o ser não é gerado não pode ser perecível, pois só é perecível o que foi gerado, e
se é falso que foi gerado, então é verdadeiro que não é perecível (é imperecível).
C) O que é ingênito e imperecível é eterno.

SEGUNDO EXEMPLO DE REDUÇÃO AO ABSURDO:


O SER É IMÓVEL E INDIVISÍVEL, E, ASSIM, UNO E CONTÍNUO

D) Por hipótese, postula-se que o ser se move.


1) Se ele se move, então passa do estado A ao estado B.
2) Para que isso aconteça:
2.1) ou ele passa do ser ao não-ser (pois A não é B, e B não é A);
2.2) ou ele passa do não-ser ao ser (pois A não é B, e B não é A);

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Mas tanto (2.1) quanto (2.2) são absurdos, pois é sempre verdade (necessário) que o ser
é e o não-ser não é, e sempre falso (impossível) que o ser não-é e o não-ser é;
Portanto, não passa do estado A ao estado B e, assim, não se move (é imóvel)
E) Para que o ser possa ser dividido, tem de passar de um estado A (antes da divisão)
para um estado B (depois da divisão). Mas já foi visto que não pode passar de um
estado A para um estado B, logo não pode ser dividido (é indivisível).
F) O que não se move nem se divide é definível como uno e contínuo.

A QUARTA TESE FUNDAMENTAL:


A IDENTIDADE ABSOLUTA COMO CARACTERÍSTICA FUNDAMENTAL DO
ENTE: A ONTOLOGIA COMO “TAUTOLOGIA”

Se o ente (ser/o que-é) é ingênito, imperecível, eterno, imóvel (imutável), indivisível,


uno, contínuo (etc.), podemos dizer que ele é idêntico a si mesmo. Mas, na realidade,
é porque ele é, antes de tudo, idêntico a si mesmo que essas características
demonstradas são todas elas pertencentes à mesma “coisa”: o ente.

Parmênides exprime esta identidade, ao final de sua enumeração das características


do ente, do seguinte modo:
“O mesmo (tauton), no mesmo (en tautôi) permanecendo em si mesmo (kath’heauton)
jaz e assim inabalável ali-mesmo (authi) permanece.” (frag. 8, linhas 29-30).

Note-se, inicialmente, a repetição (com nuances e aspectos distintos) do mesmo termo


grego ‘auto’, nas formas ‘tauton’, ‘tautôi’, ‘kath’heauton’ e contraído no adverbio
‘authi’.

A expressão grega ‘o mesmo’ é ‘to auto’, donde provém a contração o temo ‘tauton’,
que pode ser traduzir como ‘idêntico’. É desta última expressão que provém nossa
palavra ‘tautologia’, a qual é usada em lógica moderna para denominar aquelas
fórmulas que são logicamente (necessariamente) verdadeiras. Se entendemos que
todas as características distintas demonstradas no poema são todas características do
ser em si mesmo, ou seja, em sua identidade, e que por isso são nomes do mesmo objeto
(o ingênito, o imperecível, o eterno, o indivisível etc.), então podemos dizer que a
ontologia de Parmênides é, ao mesmo tempo, tautologia, ou seja, o discurso sobre o
que é (a ontologia) é um discurso sobre o que é idêntico (tautologia).

A partir de Parmênides, o conceito de identidade entra decisivamente na filosofia


grega e ocidental, de tal modo que onde se encontra alguma discussão ontológica
encontra-se também algum tipo de discussão sobre o conceito de identidade. Que tais
discussões ainda estão em nossos dias vivas nas teorizações ontológicas, é visível, por
exemplo, no lema ontológico forjado pelo filósofo norte-americano Willard van Orman
Quine (1908-2000): “Nenhuma entidade sem identidade.” (“No entity without identity.”)

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TERCEIRA PARTE:
O CAMINHO DA OPINIÃO E A COSMOLOGIA DE PARMÊNIDES

A estrutura do poema Sobre a natureza escrito por Parmênides foi antes apresentada.
Detivemo-nos na segunda parte, a parte chamada, desde a antiguidade de “caminho
da verdade”. Contudo, também desde a antiguidade, reconheceu-se na terceira parte
do poema o que se chamou de “caminho da opinião”. Há muita controvérsia sobre o
modo como entender os fragmentos (DK B 8, l. 50 até DK B 19) que nos restam disto
que podemos chamar de cosmologia de Parmênides. Não entraremos em detalhe sobre
isso.

Para interpretar esta parte em relação ao que é dito no caminho da verdade usarei uma
analogia com um esquema conceitual apresentado por Wittgenstein em seu Tractatus
logico-philosophicus (1922). Wittgenstein, ao falar do que chama de espaço lógico (que
coincide com o espaço ontológico), divide as proposições logicamente possíveis em
três tipos. Há as tautologias, que são sempre verdadeiras e das quais a lógica
primariamente se ocupa. Há as contradições, que são sempre falsas e que devem ser
evitadas em toda a linguagem, especialmente nas linguagens logicamente construídas.
E há ainda as proposições contingentes, as quais podem ser verdadeiras ou falsas
conforme sua relação com objetos do mundo empírico. Boa parte das ciências naturais
produzem este último tipo de proposições.

Fazendo uma analogia entre esses três tipos de proposições apresentados por
Wittgenstein e os dois caminhos apresentados por Parmênides na parte central do
poema, teríamos inicialmente o seguinte:
O discurso sobre o ser, que é sempre verdadeiro, trata de “tautologias”, no sentido que
já vimos antes.
O discurso sobre o não-ser, já pressupondo a verdade necessária das “tautologias”,
pode ser considerado como sempre falso porque nos conduz a contradições.

Mas, por assim dizer, entre estes dois extremos teríamos a possibilidade de falar das
coisas sensíveis em sua ordem aparente. Este discurso, que corresponde à cosmologia
apresentada na terceira parte do poema, entretanto, nunca é verdadeiro em sentido
estrito (tautológico), nem totalmente falso também em sentido estrito (contraditório).
Enquanto um discurso que a própria deusa caracteriza como apenas verossímil, tal
parte do poema pode ser entendida como indicando, por analogia, aquele terceiro tipo
de proposições que Wittgenstein chama de contingentes porque está relacionado com
o mundo empírico (sensível). Assim, o discurso sobre a natureza – a partir de sua
ordem perceptível – não é um discurso propriamente verdadeiro ou falso, é um
discurso provável, aproximado, provisório e sempre passível de ser revisto. A
cosmologia de Parmênides, portanto, é apenas mais uma possibilidade lógica e
ontológica de segundo plano, colocada ao lado do discurso necessariamente

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verdadeiro sobre o ser e do discurso necessariamente falso sobre o não-ser. Trata-se do
caminho da opinião meramente provável ou verossímil.

Tal divisão não é apenas assimilável àquela proposta por Wittgenstein, mas também
àquela divisão proposta por Platão em sua República, livro V, onde se faz a seguinte
correspondência entre os níveis epistemológico e ontológico: a ignorância corresponde
ao não-ser; a opinião corresponde à aparência; o conhecimento corresponde ao ser.
Estando entre o conhecimento do ser (por definição e por princípio verdadeiro) e a
ignorância do não-ser (por definição e por princípio falsa), a opinião sobre a aparência
é difusa, nem propriamente verdadeira, nem propriamente falsa, mas sempre oscilante
entre essas duas.

Na realidade, tal como já indicamos em Heráclito, apresenta-se na filosofia de


Parmênides o pathos da verdade, o sentimento de que a filosofia constitui um saber
primário e especial diante das formas cotidianas de saber. Em especial, com
Parmênides explicita-se a distinção entre verdade e opinião de tal modo que até nossos
dias a atribuição de verdade a discursos que não aqueles puramente lógico-formais
constitui um árduo problema, mesmo no caso das teorias matematizadas das ciências
naturais.

CONCLUSÃO: PARMÊNIDES E A METAFÍSICA GREGA

Se a separação radical entre o ser e o fenômeno/devir apresentada no poema de


Parmênides parece demasiadamente paradoxal e inaceitável para nosso modo mais
“mundano” de pensar, como então encontrar a via que liga o objeto do puro
pensamento (o ser em si mesmo) com os objetos sempre mutantes e relacionais da
percepção (os fenômenos)? Este é o problema crucial que toda a metafísica posterior
terá que responder através da necessária correlação entre epistemologia, lógica e
ontologia. Tirando Zenão e Melisso (que defendem explicitamente Parmênides),
Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Górgias, Protágoras, Antístenes,
Platão, Aristóteles e todas as escolas do helenismo dão respostas a esta questão,
respostas que geram a metafísica grega e ocidental, bem como seus rivais no
relativismo e no ceticismo. Este panorama nos mostra que Parmênides, juntamente
com Anaximandro e Heráclito, é um filósofo fundamental para entendermos os
caminhos que a metafísica (epistemologia, lógica e ontologia) seguiu do mundo grego
até nossos dias.

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULAS 7-8

A SOFÍSTICA: GÓRGIAS E PROTÁGORAS

A) O MOVIMENTO SOFISTA
1. É um equívoco falarmos de uma escola sofística. Como salienta George Kerferd em
seu já clássico O movimento sofista, a sofística não deve ser vista como uma escola, mas
como um movimento que surge a partir do século V a. C. de modo razoavelmente
espontâneo no mundo grego e especialmente em Atenas, tendo seu momento áureo
entre 450 e 400 a. C.

2. Embora o termo ‘sofista’ tenha adquirido, a partir de Platão e Aristóteles (e de outras


escolas filosóficas helenísticas) uma acepção negativa, literalmente significa alguém
que é ‘sábio’ ou ‘perito’ em determinada técnica da palavra e que a ensina a outros.
Note-se que o termo ‘sofista’ é aparentado do termo ‘sophos’, ou seja, ‘sábio’. De modo
geral e apenas didático, podemos dizer que os sofistas eram ‘professores’ de diversas
matérias (como das matemáticas), mas aqueles se tornaram mais conhecidos eram
professores de certas técnicas de argumentação voltadas ao uso público. Essa
caracterização, porém, é apenas parcial e se deve principalmente a duas figuras que
são usualmente chamados os maiores sofistas: Górgias e Protágoras.

3. Entretanto, é importante lembrar que somente Protágoras se dizia explicitamente


um sofista que, segundo o diálogo Protágoras de Platão, ensinaria a virtude política, a
qual passaria explicitamente pelo aprendizado de determinada técnica de
argumentação que ficou conhecida como Antilogia, ou seja, a técnica de saber
argumentar em uma disputa entre opiniões ou teses contrárias. No caso de Górgias,
também usando o testemunho de Platão em seu diálogo Górgias, este se dizia um
professor de retórica, entendida como a técnica ou arte de argumentação que tinha
como finalidade a persuasão de alguém ou de um auditório.

4. A partir desses testemunhos e do peso que Górgias e Protágoras têm na formação


da ideia geral de sofista, podemos entender que a sofística floresce principalmente em
Atenas no período mencionado acima em função do regime político democrático que
ali se instituiu. Com essa ligação sócio-política e cultural com a democracia,
entendemos também (em parte) aquilo que caracteriza a maioria dos testemunhos que
temos dos sofistas: eles se dedicavam à discussão dos assuntos ético-políticos em um
sentido amplo.

B) GÓRGIAS DE LEONTINOS: O IMPÉRIO RETÓRICO

1. Górgias (c. 485-380) nasceu em Leontinos, cidade grega situada na atual Sicília.
Segundo várias fontes antigas, teria sido ouvinte de Empédocles de Agrigento,
informação que faz sentido porque este filósofo pré-socrático era também um grande

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poeta. O talento e o estilo retórico de Górgias foi tão marcante que se formou o verbo
‘gorgianizar’, ou seja, falar ao modo de Górgias. Segundo Filóstrato (Vidas dos sofistas,
I, 9), quando em Atenas, teria tido como alunos Alcibíades, importante político de
Atenas (e que aparece em vários diálogos de Platão); Péricles, considerado o maior
líder político dessa cidade; o historiador Tucídides, que nos legou a importantíssima
obra História da Guerra do Peloponeso; e o poeta trágico Agatão, de quem só temos uns
poucos fragmentos, mas que, a julgar pelo diálogo Banquete de Platão, era altamente
considerado em Atenas.

2. De suas aproximadamente dez obras, temos versões provavelmente integrais de três


delas: A defesa de Palamedes, o Elogio de Helena e o Tratado sobre o não-ser ou sobre a
natureza. Inicialmente, os três podem ser vistos como exercícios exemplares de retórica.
Contudo, nos dois últimos e particularmente no terceiro, há temas filosóficos
discutidos desde a antiguidade pela filosofia até nossos dias. No Elogio de Helena,
encontramos sobretudo o tema filosófico do poder do discurso. No Tratado sobre o não-
ser ou sobre a natureza, o tema é filosófico de forma incontestável, mas as conclusões
defendidas são de tal modo paradoxais que podem ser vistas como uma crítica geral
às pretensões da filosofia eleata, uma crítica que usa o mesmo método de
argumentação por redução ao absurdo operado por Parmênides e Zenão de Eleia.

3. O Elogio de Helena é um discurso em defesa da lendária Helena, culpada


popularmente pela Guerra de Troia. O discurso, mostra sucessivamente que Helena
não pode ser culpada pelas seguintes razões: (a) se foi raptada, não causou
evidentemente a mencionada guerra; (b) se foi persuadida pelos discursos, então
também não pode ser culpada, uma vez que a persuasão causada pelo discurso tem
uma força que domina quem é persuadido a obedecer (e este é o ponto mais filosófico
do texto); (c) se foi arrebatada pelo amor, igualmente não pode ser culpada, pois quem
age por amor age por impulso.

3.1. Como indicamos acima, a parte filosófica do texto está na argumentação sobre a
razão (b). O trecho começa com a notável frase: “O discurso é um senhor soberano que,
com um corpo diminuto e quase imperceptível, leva a cabo ações divinas.” E o trecho
continua: “Na verdade, ele tanto pode deter o medo como afastar a dor, provocar a
alegria e intensificar a compaixão.” E pouco abaixo apresenta o caráter mágico da
palavra nestes termos: “A força da palavra mágica, convivendo com a opinião do
espírito, fascina-o, convence-o e transforma-o por encantamento.”

3.1.1. Mas a passagem mais importante ainda está por vir:


“Que a persuasão, saída do discurso, também manipula a mente a seu bel-prazer, há
que compreendê-lo antes de mais por aqueles discursos dos astrônomos que,
destruindo uma opinião com outra opinião por eles criada, fazem com que as coisas
incríveis e nada evidentes surjam como verossímeis aos olhos da opinião. Depois
temos os inevitáveis debates, em que um só discurso, quando redigido com arte,

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encanta e convence toda uma multidão, mesmo sem respeitar a verdade; em terceiro
lugar, as discussões filosóficas, em que a rapidez do pensamento se mostra capaz de
tornar facilmente alterável a credibilidade da opinião. Relação idêntica possuem a
força do discurso em ordem à disposição do espírito e a prescrição dos medicamentos
(pharmakôn) para a saúde do corpo. Na verdade, assim como certos medicamentos
expulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, do
mesmo modo, de entre os discursos, uns há que inquietam, outros que encantam,
outros que atemorizam, outros que incutem coragem no auditório, outros ainda que,
mediante uma funesta persuasão, envenenam e enfeitiçam o espírito.” (grifo
acrescentado)
Vemos aqui dois temas importantes. O primeiro diz respeito a noção segundo a qual
a filosofia seria mais um tipo de retórica dentre outros, ou seja, um outro tipo de forma
de persuasão ao lado de outros. Implicitamente, isso indica que a retórica – técnica
ensinada por Górgias – seria anterior e mais fundamental do que a filosofia. O segundo
tema diz respeito ao poder da persuasão discursiva comparado ao medicamento
(pharmakon), ou seja, a algo que tanto pode curar quanto matar. Esse tema será
retomado por Protágoras (ao menos no testemunho que Platão nos relata no diálogo
Teeteto) e por Platão, no diálogo Fedro, quando discute criticamente o tema do discurso
escrito como um tipo de “remédio da memória”.

4. Mas o texto mais espantoso do ponto de vista filosófico – cujo sentido exato e a
finalidade ainda são debatidos pelos intérpretes – é, sem dúvidas, o Tratado sobre o não-
ser ou sobre a natureza. Trata-se de um ataque às pretensões da filosofia tal como esta
era compreendida por Parmênides e os eleatas, um ataque que usa, como já dito antes,
o método de redução ao absurdo dos próprios eleatas.

4.1. O texto – na versão de Sexto Empírico – visa provar três teses espantosas: (a) que
nada existe (ou coisa nenhuma é); (b) que se algo for, ainda assim não poderá ser
conhecido; e (c) se algo for e puder ser conhecido, mesmo assim não poderá ser
comunicado a outrem.

4.2. Muito resumidamente, a “prova” de (a) se dá nos seguintes passos:


(i) se algo é, então é ser ou é não-ser, ou então é ambas as coisas ao mesmo tempo, ou
seja, ser e não-ser. Mas todas essas hipóteses serão demonstradas como impossíveis
(absurdas).
(ii) que: se algo é, então é não-ser, é bastante simples de se mostrar como absurdo, pois
é óbvio (como já indicado por Parmênides) que o não-ser não é. Logo, se algo é, não
pode ser um não-ser, pois isso seria absurdo.
(iii) que: se algo é, então é simultaneamente ser e não-ser também é absurdo, pois é
impossível que a mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo (segundo o princípio
de não-contradição).
(iv) Resta apenas que: se algo é, então é ser, mas isso também se mostra absurdo pelas
seguintes razões:

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(v) Se o ser é, então ou é eterno ou é gerado, mas se mostrará que não pode ser
nenhuma das duas coisas, nem as duas ao mesmo tempo.
(vi) Se fosse eterno, não teria começo no tempo.
(vii) Se não tem começo no tempo, então é infinito. Mas se é infinito, não pode estar
em lugar nenhum. Logo, não é eterno, pois o que não está em lugar nenhum não existe.
(A passagem do eterno ao infinito é problemática).
(viii) Se fosse gerado, seria gerado a partir do ser ou do não-ser. Mas ambos os casos
são absurdos, pois se foi gerado do ser, então já era e, portanto, não teria sido gerado;
mas também é absurdo que tenha sido gerado a partir do não-ser, pois o não-ser não
pode gerar nada. Logo, não foi gerado. Assim, não é eterno nem gerado, nem as duas
coisas ao mesmo tempo.
(ix) Ademais, se algo é, então tem de ser uno ou múltiplo. Mas se mostrará que não é
uno nem é múltiplo, nem ambas as coisas ao mesmo tempo.
(x) Se fosse uno, teria de ser uno como quantidade, ou como continuidade, ou como
grandeza ou como corpo. Mas se for uno em qualquer desses sentidos será divisível,
e, por isso, não será uno em sentido pleno (implicitamente aqui: uno = indivisível)
(xi) E se não é uno também não pode ser múltiplo, pois o múltiplo é um conjunto de
unidades.
Conclusão geral: não apenas o não-ser não é, mas se mostrou que também o ser não é,
logo coisa nenhuma é/existe. (Implicitamente: se coisa nenhuma é/existe, então
também é absurdo que alguma coisa não é/não existe)
Comentário: note-se que uma interpretação deste argumento consiste em dizer que
nem o conceito de ser nem o de não-ser se aplica às coisas que estão à nossa volta. Isso
não refutaria Parmênides se tomássemos a interpretação da concepção parmenídica
do ser como algo que estaria para além do mundo sensível à nossa volta. Contudo,
mostra que os conceitos de ser e não-ser não se aplicam ao mundo sensível, o que os
torna “inúteis” para nosso pensamento lidar com o mundo. Aliás, é justamente em
relação ao pensamento que versa o próximo argumento.

4.3. Também de modo resumido, a prova de (b) pode ser apresentada nos seguintes
passos:
(i) Ainda que ‘ser’ se aplicasse a algo, esse algo não poderia ser conhecido e concebido
pelos seres humanos.
(ii) a premissa a ser provada é a seguinte: se nem tudo que pensamos são seres, então
o ser não é aquilo que é pensado/conhecido por nós.
(iii) De fato, pensamos em coisas que não existem, como pessoas com asas e carros
correndo sobre o mar.
(iv) Dados esses pensamentos, então nem sempre pensamos o que existe (o que é), de
tal modo que não pensamos o ser quando pensamos algo.
(v) Assim, (por generalização?) mesmo que algo existisse, não poderia ser pensado (ou,
se não temos certeza de que o que pensamos existe, então não temos certeza de que,
quando estamos pensando em algo, estamos pensando o ser (o que é))

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Comentário: é interessante percebermos que Górgias está fazendo, implicitamente e
pela primeira vez, uma distinção entre as noções de pensar e conhecer. Este é um
problema que até hoje continua em discussão na filosofia, ou seja, o quanto a
epistemologia (que trata da questão sobre o conceito de conhecimento) tem relação
com a filosofia da mente (que trata da questão sobre o conceito do que seja nosso
pensamento).

4.4. Novamente de modo esquemático, podemos resumir os passos da prova de (c)


deste modo:
(i) Se algo existisse e pudesse ser pensado/conhecido, então não poderia ser
expresso/dito a outrem.
(ii) Não é a palavra que revela aquilo que é, mas é aquilo que é que torna possível a
palavra que o diz. Assim, é porque algo existe e é pensado antes da palavra que a
palavra pode existir.
(iii) Se é assim, então aquilo que comunicamos a outrem é uma palavra e a ideia de
algo, mas não o próprio ser que é conhecido e nomeado. De modo geral, a palavra não
é igual ao ser do qual é palavra e do qual depende para fazer sentido.
(iv) Portanto, se algo existe e pode ser pensado, então aquilo que é comunicado na
palavra não é esta coisa existente e pensada. Em relação ao ser que é exterior à palavra,
esta pode, talvez e no máximo, apontar para aquilo que existe e que
conhecemos/pensamos, mas não o comunica a outrem se este não fizer a experiência
própria de pensar/conhecer a coisa que existe fora da palavra.
Comentário: a problemática levantada por este terceiro argumento de Górgias é
extremamente importante até nossos dias. De forma geral, podemos dizer que se trata
do problema de o quanto a linguagem é capaz de “traduzir” simbolicamente nossa
experiência do mundo e ser, por isso, um veículo seguro do conhecimento deste
mesmo mundo. Já com Platão e Aristóteles teremos perspectivas de respostas a esta
questão, que diz respeito aos limites e capacidades da linguagem para tornar possível
um conhecimento compartilhado sobre o mundo. Essa questão é retomada no contexto
contemporâneo, por exemplo, no problema colocado por Quine sobre a
impossibilidade de uma tradução perfeita entre línguas, especialmente em seu artigo
já clássico intitulado “relatividade ontológica”.

4.5. Os argumentos apresentados no Tratado sobre o não-ser ou sobre a natureza de


Górgias podem ser entendidos de dois modos. De um lado, eles podem ser criticados
por se valerem de ambiguidades nos conceitos de ser, pensamento e discurso, sem
tentar “ordenar” essas ambiguidades em um quadro de significados distintos e
estruturados. Essa ordenação das ambiguidades destes conceitos será uma tarefa a que
se proporão Platão, Aristóteles e outros filósofos até nossos dias. De outro lado, como
apontamos nos comentários a cada um dos argumentos, esses argumentos apresentam
questões cruciais sobre estes conceitos e sobre suas possíveis relações que ainda hoje
são tema de amplo debate e investigação, não apenas na filosofia, mas também nas
ciências que tratam da questão sobre a relação entre pensamento, linguagem e mundo.

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Independentemente dessas duas abordagens, o texto de Górgias parece apontar,
especialmente em seu final, para a defesa do caráter pragmático do discurso, para uma
ausência de critérios absolutos de verdade (como querem os filósofos gregos, em
especial Parmênides) e, portanto, para a impossibilidade de julgarmos o papel do
discurso a partir daquilo que ele pretende dizer no mundo. O caráter exclusivamente
pragmático do discurso indica que este só possui sentido ou significação no contexto
de seu uso comum entre as pessoas, e não em relação ao suposto objeto que seria dito.
Em outras palavras: os argumentos de Górgias apontariam para o império da retórica,
arte na qual a habilidade no uso das palavras está associada aos efeitos e práticas que
a palavra pode desempenhar em uma comunidade de falantes.

C) PROTÁGORAS DE ABDERA: O RELATIVISMO HUMANISTA

1. Protágoras (c. 490-415 a. C.) teria nascido em Abdera, a mesma cidade de Demócrito,
o qual, segundo várias fontes, teria conhecido e do qual teria se apropriado de vários
argumentos. Mas foi através de suas viagens e especialmente em Atenas que
Protágoras se tornou célebre como alguém que se diz explicitamente um sofista que,
como já indicamos antes, ensinaria a virtude política.

2. É difícil determinar o número exato de suas obras. Seguindo as indicações de Mario


Untersteiner (A obra dos sofistas: uma intepretação filosófica, p. 35 ss), suas obras seriam
apenas duas:
(a) As antilogias, que conteriam quatro partes, as quais foram erroneamente tomadas
por certos intérpretes antigos como se fossem livros isolados. Essas partes seriam: Sobre
os deuses (no qual defende o agnosticismo), Sobre o ser, Sobre as leis e a cidade, Sobre as
artes. É provável que esses assuntos fossem tratados como exemplos de teses
antagônicas que se anulam (daí o título Antilogias, ou seja, discursos opostos), mais ou
menos ao modo como encontramos em um escrito anônimo de difícil datação e
conhecido como Discursos duplos, encontrado como apêndice nos manuscritos da obra
de Sexto Empírico intitulada Contra os professores (mais conhecida pelo título latino
Adversus Mathematicos).
(b) A outra obra seria o texto Sobre a verdade, do qual perdemos a quase totalidade, mas
onde encontramos a tese que tornou Protágoras célebre, a saber: “o ser humano é a
medida de todas as coisas, das que são, como/enquanto são, e das que não são,
como/enquanto não são.”

3. A tese do homo mensura (“homem-medida” ou “humano-medida”) exprime o que


veio a ser conhecido como relativismo de Protágoras e é a primeira manifestação do
relativismo como uma doutrina ou tese filosófica geral na história da filosofia. É sobre
esta tese que falaremos, dado seu caráter filosófico amplamente discutido por Platão,
Aristóteles e Sexto Empírico.

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3. Esta tese de Protágoras, segundo os testemunhos de Platão e Aristóteles, está
acompanhada pelas seguintes consequências ou teses derivadas:

3.1. O fenomenismo (ou fenomenalismo) radical: o ser é idêntico àquilo que nos
aparece (fenômeno).

3.2. Não há separação entre percepção, opinião e pensamento: isso significa que só
temos nossas opiniões (derivadas de nossa percepção) sobre as coisas que aparecem.

3.3. Estas duas teses nos mostram a posição de Protágoras em relação ao que já vimos
em Parmênides do seguinte modo:

Pensamento = opinião/percepção = aparecer = ser

3.4. Segundo Platão, para Protágoras todas as opiniões são verdadeiras, de tal modo
que o falso não existe. A diferença entre as opiniões é dada apenas por critérios
pragmáticos, contextuais e gradativos, tais como o útil e inútil, propício ou nocivo. As
opiniões pessoais e sociais que prevalecem são aquelas que são tidas como úteis
dependendo do contexto. Ao menos é essa a conclusão que está presente na célebre
“Apologia de Protágoras” que se encontra no diálogo Teeteto (166 d-167d)

3.5. O relativismo de Protágoras é interpretado por Platão como dizendo respeito,


primariamente, ao indivíduo humano, ou seja, aquilo que é/aparece (e que delimita o
que não é/não aparece) é relativo a cada indivíduo. Contudo, a tese pode ser estendida
ao campo das opiniões (derivadas das diferentes percepções) de uma comunidade de
pessoas. Na realidade, é apenas no campo dessa comunidade que a técnica sofística da
antilogia proposta por Protágoras pode atuar, pois, a partir do que é dito na “Apologia
de Protágoras” mencionada acima, a técnica sofística do discurso procura fazer
prevalecer as opiniões que são mais úteis em determinado contexto social
compartilhado sobre aquelas opiniões que se mostram nocivas ou inúteis dentro deste
mesmo contexto social. Assim, o critério para preferir ou aderir a determinada opinião
dentre as opiniões contrárias não é sua verdade ou falsidade, mas sua utilidade.

3.6. Uma questão ainda mais delicada é se podemos ou não (e, se sim, o quanto)
estender o relativismo de Protágoras do âmbito do indivíduo e das comunidades
sociais às quais pertence em direção a um relativismo da espécie humana, ou seja, se
podemos entender o conceito de ser humano no enunciado da tese do homo mensura
como indicando a totalidade dos seres humanos. Por um lado, isso parece evidente
pela evidência bastante comum segundo a qual os seres humanos em geral possuem
certas características, capacidades e limitações distintas de outros seres vivos. De outro
lado, porém, ela é problemática, pois justamente somos capazes de compreender essas
características, capacidades e limitações, de tal modo que se o conseguimos, não

53
estamos mais sujeitos ao relativismo radical, mas podemos ultrapassá-lo em algum
sentido.

3.7. Embora possamos criticar o relativismo de Protágoras como uma concepção


exacerbada quando aplicada à totalidade de nossos conflitos de opiniões, permanece
ainda hoje em aberto o problema do relativismo no que concerne aos temas
tipicamente culturais e sociais. Na realidade, em uma sociedade democrática, o
equilíbrio entre o saber técnico e científico e a liberdade de opiniões (especialmente no
tocante aos temas culturais e sociais) é bastante tenso e difícil. Embora não devamos
identificar relativismo e pluralismo, sua relação é não apenas latente, mas até certo
ponto necessária para podermos manter uma sociedade democrática. Não é à toa que
o relativismo de Protágoras emerge justamente no momento em que emerge a primeira
teoria da democracia na Atenas dos séculos V-IV a. C. Para além da questão
tipicamente política, a questão do relativismo (e do pluralismo) também coloca até hoje
desafios também para a epistemologia, para a lógica e para a ontologia, uma vez que
é um fato manifesto haver conflitos de opiniões, interpretações e concepções sobre o
que seja o conhecimento, a linguagem e a realidade, um conflito que parece nos aponta
para o pano de fundo necessariamente humanista (em um sentido amplo) do
relativismo de Protágoras.

D) CONCLUSÃO: A CENTRALIDADE DA LINGUAGEM COMO PROCESSO


SOCIAL EM GÓRGIAS E PROTÁGORAS

A partir do que dissemos acima, percebemos que, por vias distintas, Górgias e
Protágoras chegam no mesmo tipo de concepção sobre a linguagem: uma concepção
pragmática e que enfatiza o discurso como uma atividade que gera efeitos sobre outras
pessoas. No caso de Górgias, isso é obtido pela crítica à possibilidade de usar os
conceitos de ser e de não-ser como critérios para determinar o valor do discurso como
se fosse um valor de verdade ou falsidade. No caso de Protágoras, ao identificar o ser
ao aparecer e impedir a distinção entre percepção e pensamento, a verdade é uma
propriedade trivial pertencente a todas as opiniões humanas, de tal forma que o
discurso só pode alterar as opiniões segundo sua utilidade para a vida social e
comunitária. Tanto a posição de Górgias quanto (sobretudo) a de Protágoras serão
enfrentadas por Platão (particularmente no diálogo Sofista) e por Aristóteles
(especialmente nos capítulos 5-8 do Livro IV da Metafísica). Isso mostra que mesmo se
tomarmos tais concepções como insustentáveis, sua crítica demanda um
aprofundamento e aperfeiçoamento daquilo que havia sido colocado como ideal do
conhecimento em sentido estrito por Parmênides, ou seja, torna necessária uma
reelaboração muito mais complexa do postulado imperativo da identidade entre
pensar e ser que se pode exprimir através do discurso.

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HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 9
SÓCRATES
1. INTRODUÇÃO: O ENIGMA DE SÓCRATES
1.1. Juntamente com Platão e Aristóteles, Sócrates é um dos filósofos antigos mais
conhecidos do público em geral. No entanto, diferentemente dos outros dois, nada nos
deixou escrito de próprio punho. Nosso conhecimento de Sócrates, portanto, é dado a
partir daqueles que sobre ele escreveram. Na realidade, mais do que escrever sobre
Sócrates, estas fontes usaram Sócrates como um tipo de máscara dramático-literária.
Na realidade, temos notícias seguras de que se formou um gênero literário chamado
por Aristóteles de ‘diálogo socrático’, o qual teria sido desenvolvido por diversos
autores ao longo de aproximadamente cem anos depois de sua morte. Não obstante
isso, são três as fontes primárias de pessoas que conheceram Sócrates, as quais sobre
ele escreveram e/ou o usaram como personagem dramático-literária: o filósofo Platão,
o historiador Xenofonte e o poeta cômico Aristófanes. A partir dessas três fontes
primárias, começa a emergir aos nossos olhos o enigma chamado Sócrates, uma vez
que as descrições sobre o pensamento e o caráter deste personagem variam bastante
conforme lemos nessas três fontes distintas. A figura de Sócrates é mais conhecida
através dos diálogos de Platão, nos quais Sócrates é o personagem principal. A partir
dessa imagem platônica, formou-se um Sócrates que foi e em alguma medida ainda é
um tipo de herói da filosofia ocidental. Todavia, embora com alguma convergência
com o Sócrates platônico, a outra descrição de Sócrates oriunda de Xenofonte, em sua
Memorabilia ou Ditos e feitos memoráveis de Sócrates nos mostra um Sócrates menos
filosófico e mais preocupado com a educação dos jovens no campo da ética e da
política voltada para questões práticas bastante específicas de seu contexto social. Por
fim, temos a “caricatura” de Sócrates feita pelo poeta cômico Aristófanes em sua
comédia As nuvens. Embora, à primeira vista, essa imagem de Sócrates seja um tipo de
caricatura cômica bastante exagerada, o poeta nos pinta um Sócrates sofista, como
ainda discutiremos mais tarde.

1.2. Apesar de a imagem dominante de Sócrates ao longo da tradição filosófica ter sido
aquela desenhada por Platão, aquelas outras imagens vindas de Xenofonte e de
Aristófanes não podem ser desprezadas. Com efeito, a partir da interpretação de
Sócrates feita por Hegel em suas Lições sobre a história da filosofia e, especialmente, da
obra O conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates, de Sören Kierkegaard,
inúmeras interpretações da figura de Sócrates emergiram na filosofia recente, dentre
elas, podemos indicar as interpretações feitas por Nietzsche, Hannah Arendt,
Cornelius Castoriadis, Derrida, Gadamer, George Kerferd, Michel Foucault e Pierre
Hadot. Essa diversidade de interpretações mostra que o advento da história da
filosofia e da história das ideias torna Sócrates, em nossa época, um tipo de enigma.
Mais do que a possibilidade de chegar ao Sócrates real e diferenciá-lo das imagens que
dele foram feitas, é importante tomar Sócrates como um tipo de personagem simbólico
que admite múltiplas interpretações possíveis. Aquela que procurarei mostrar no

55
restante desta aula é a de um Sócrates como um incansável investigador. Essa imagem
se baseia principalmente em uma interpretação do Sócrates que aparece nos diálogos
platônicos, em especial em a Defesa de Sócrates.

1.3. Antes de passar a uma análise mais detida desta obra de Platão, é importante
lembrarmos que a figura de Sócrates é tomada pelos historiadores da filosofia, a partir
do início do século XX, como um marco divisório na história da filosofia grega, uma
concepção que está implícita em nosso uso da expressão ‘pré-socráticos’. Essa
“convenção” teórica não é óbvia como poderia parecer à primeira vista. Note-se que
Hegel, em sua obra Lições sobre a história da filosofia (fruto de suas aulas e publicada
postumamente em 1835), usa a expressão ‘pré-aristotélicos’, indicando que, em sua
visão, Aristóteles deveria ser tomado como o marco divisório da história da filosofia
grega. Ademais, em sua obra A filosofia na época trágica dos gregos (publicada também
postumamente em 1903), Nietzsche usa a expressão ‘pré-platônicos’, mostrando que,
em sua perspectiva, Platão deveria ser tomado como o filósofo que marca uma
mudança decisiva na história da filosofia grega. A expressão ‘pré-socráticos’ se
difundiu a partir da publicação da primeira edição da obra de Hermann Diels, em
1903, intitulada Os fragmentos dos pré-socráticos, a qual teve sucessivas edições e
complementos também feitos por Walter Kranz. Até hoje, esta é a obra de referência
para a organização dos testemunhos e fragmentos dos primeiros filósofos. Para além
dessas indicações de história da filosofia, convém observar que a importância de
Sócrates se encontra nos filósofos que vieram depois dele, ou seja, faz sentido falar em
filósofos pré-socráticos porque a maioria dos filósofos pós-socráticos foram de algum
modo marcados pela inflexão operada por essa enigmática figura. Embora sujeita a
críticas do ponto de vista da história da filosofia recente, essa importância foi marcada
pelo político, legislador e filósofo romano Cícero do seguinte modo: antes de Sócrates
a filosofia se preocupava prioritariamente com questões sobre o mundo (cosmo), com
Sócrates, a filosofia passa a se preocupar também e muitas vezes prioritariamente com
as questões éticas. Isso mostra que já na antiguidade a figura de Sócrates veio a ser
compreendida como um marco histórico divisor da filosofia antiga.
2. SÓCRATES COMO INVESTIGADOR: A DEFESA DE SÓCRATES

2.1. A obra A defesa de Sócrates (ou, como também é traduzida, A apologia de Sócrates)
faz parte de um grupo de diálogos de Platão que, ordenados do ponto de vista
dramático, organizam-se em torno da acusação, da defesa, da condenação, da prisão e
da morte de Sócrates. Na ordem exposta acima estes diálogos são os seguinte: o Mênon,
no qual, ao final, Sócrates menciona ter sido acusado; o Eutífron, no qual Sócrates lê a
acusação a ele feita na porta do tribunal de Atenas; a Defesa de Sócrates, no qual Platão
expõe sua defesa diante dos acusadores e sua condenação à morte; o Críton, no qual
seu amigo de mesmo nome o visita na prisão; e o Fédon, no qual Platão supostamente
descreve as últimas horas de Sócrates até sua morte, diálogo este que discutiremos
parcialmente em aulas posteriores. A Defesa de Sócrates não é propriamente um
diálogo, mas principalmente uma narrativa que envolve em determinado momento
um diálogo de Sócrates com Meleto, um de seus acusadores. Embora o texto tenha

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elementos que são consensualmente considerados como um retrato mais fiel de
Sócrates do que outros textos de Platão (nos quais ele mais usa Sócrates como máscara
para expor seu próprio pensamento), há estudos mostrando que a defesa apresentada
por Sócrates possui fortes similaridades com a estrutura com o texto a Defesa de
Palamedes, escrito por Górgias como modelo de defesa diante de acusações falsas. Em
relação a isso, não temos como saber se foi o próprio Sócrates que tomou o texto de
Górgias como modelo de sua defesa ou se foi Platão quem acabou por “filtrar” o
discurso de Sócrates segundo a estrutura prescrita na obra do sofista. É importante
tomar isso em consideração para que não tomemos o texto como um relato
estritamente fiel de Platão sobre o discurso socrático. De todo modo, os temas
tipicamente considerados como platônicos, em especial a teoria das Ideias ou Formas,
não aparecem no texto, sendo por isso provável que ao menos uma parte considerável
da obra reflita o discurso proferido por Sócrates no tribunal.

2.2. De uma forma didática, podemos dividir a obra em três partes. Na primeira,
Sócrates inicia o seu discurso se referindo ao discurso dos acusadores e se defende do
que chama de “antigos acusadores” (17a-24b). Na segunda parte, se defende dos
“novos acusadores”, começando com um breve diálogo no qual refuta Meleto (um dos
acusadores) e que prossegue com um discurso no qual indica as causas de estar sendo
acusado injustamente (24b-35d). Na terceira parte, por fim, o texto se encerra com a
análise da votação, a discussão sobre a pena, a irônica proposta de comutação desta e
dois discursos: um a quem votou em sua condenação e o outro ao que votaram em sua
absolvição (35e-42a). Não nos interessa, nesta aula, fazer uma análise detida de todos
os passos e momentos do texto. Aquilo que nos interessa, de fato, é mostrar como ao
longo das três partes acima indicadas (especialmente da primeira e segunda), podemos
depreender a imagem de Sócrates como um investigador.

2.3. Antes de analisarmos mais de perto certos trechos do texto, convém entender o
sentido geral de caracterizar Sócrates como um investigador. Em certa medida, essa
caracterização aproxima Sócrates dos céticos antigos. A palavra ‘cético’ provém do
adjetivo substantivado grego ‘skeptikos’, que pode ser traduzido justamente por
‘investigador’, uma vez que o termo grego provém do verbo ‘skeptomai’ significa
‘examinar’, ‘observar com atenção’, ‘considerar’, ‘meditar’, ‘refletir’, que são as
atividades necessárias para uma investigação. Há uma imensa literatura discutindo os
múltiplos aspectos do ceticismo e sua longa história. O ceticismo como um movimento
filosófico e intelectual surge explicitamente com Pirro de Elis (c. 360-270 a. C.). Mas as
obras mais importante sobre os princípios, os argumentos e a história do ceticismo
antigo que chegaram até nós foram escritas pelo médico e filósofo Sexto Empírico (séc.
III d. C.), os Esboços pirrônicos e o Contra os matemáticos. Nestas duas obras, Sexto
procura mostrar como mesmo antes de Pirro ter estabelecido explicitamente a atitude
cética como um tipo de movimento filosófico, a filosofia já possuía, em diversos
momentos, elementos e traços da atitude cética. Deixando os detalhes de lado, esse
tipo de história do que podemos chamar de proto-ceticismo nos indica algo muito
importante: que a investigação é uma atividade inerente a todo fazer filosófico. Neste

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sentido amplo e algo vago, toda pessoa que realiza o fazer filosófico possui algum tipo
de aspecto cético, que consiste, segundo Sexto Empírico, na constante busca crítica pela
verdade. Ainda segundo Sexto, a diferença entre os céticos (especialmente os
pirrônicos) e os filósofos é que os filósofos abandonam a atividade da investigação
quando alegam ter encontrado determinada teoria verdade sobre algum campo de
objetos e as questões que se levantam sobre este campo, enquanto os céticos
prosseguem a atividade da investigação sem alegar ter encontrado a verdade e, neste
processo de investigação, apresentam argumentos e instrumentos metodológicos para
criticar os filósofos que alegam ter descoberto a verdade e expresso tal descoberta em
suas teorias. É justamente neste contraste entre o filósofo cético e os demais filósofos
que podemos situar a posição exposta por Sócrates em sua justificação sobre seu modo
de vida diante dos seus acusadores. Isso, de modo algum, nos permite dizer que
Sócrates era um cético. No entanto, como tentarei mostrar logo mais, Sócrates
apresenta seu modo de vida como o de alguém que estava constantemente procurando
pela verdade e pela sabedoria, sem dizer que as teria encontrado, mas, ao contrário,
indicando que o mais importante seria se colocar no caminho de sua procura. Essa
poderosa mensagem, podemos especular, é justamente aquilo que torna Sócrates um
dos personagens icônicos não apenas da história da filosofia, mas também da própria
imagem do que significa ser um/uma filósofo/a: alguém que coloca em dúvida as
opiniões estabelecidas para testar o quanto elas se aproximam da verdade e da
sabedoria, algo que só pode ser feito por quem é tomado pelo amor à verdade e à
sabedoria, ou seja, alguém que pretende fazer filo-sofia: amar a sabedoria. Essa
imagem que aparece na Defesa de Sócrates é também aquela que encontramos em outros
diálogos de Platão, tais como o Fédon e os Livros VI-VII da República, que analisaremos
em aulas posteriores. Entretanto, como é consensual entre os intérpretes, estes dois
diálogos já apresentam os argumentos e teorias que são tipicamente de Platão, usando
Sócrates como uma máscara para expor seu pensamento. Na Defesa de Sócrates, em
contraste, mesmo que já haja algum tipo de elaboração platônica das falas de Sócrates
no tribunal, conseguimos entrever algo mais próximo do que teria sido a filosofia de
Sócrates antes de este ter se tornado um personagem do gênio de Platão. Por
conseguinte, naquilo que podemos extrair do texto platônico como o que estaria mais
próximo da figura do Sócrates histórico, podemos caracterizar Sócrates como aquele
que, como um modelo para toda a filosofia posterior, colocou acima de tudo o modo
de vida investigador como princípio fundamental e indispensável para todo o fazer
filosófico, de modo análogo a como também o enfatizariam os céticos a partir de Pirro
de Elis.
2.4. A refutação da primeira parte da acusação: a investigação filosófica como missão
divina: No início do texto, depois de caracterizar o discurso de seus acusadores como
nada tendo de verdadeiro sobre si, Sócrates divide seus acusadores em dois tipos: os
antigos e os novos. Os antigos acusadores têm na figura de Aristófanes o seu centro,
uma vez que tomou Sócrates como o personagem principal de sua comédia As nuvens,
na qual Sócrates é retratado como um típico sofista, dentre os quais, são citados no
texto, Górgias, Pródico e Hípias. A resposta a essa acusação antiga, centrada na

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imagem desenhada por Aristófanes, é necessária porque na acusação que o levou ao
tribunal consta, conforme as palavras do texto que: “Sócrates é réu de pesquisar
indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais
fraca e ensinar aos outros o mesmo comportamento.”7 Essa parte da acusação, alega
Sócrates, provém dessa imagem mais antiga que o coloca como um dos sofistas e
mesmo como um filósofo da natureza. Contra essa imagem é que Sócrates apresentará
na sequência de que tipo é o seu saber e o que ele considerava realmente ser sua atitude
de vida e atividade intelectual. Contrariamente à frase “tudo que sei é que nada sei”,
popularmente atribuída como a tese que seria defendida por Sócrates, este nos
apresenta no texto aquilo que considerava como o seu saber, como indica a seguinte
passagem:

“Pois eu, Atenienses, devo essa reputação [sc. expressa no trecho da acusação acima
citado] exclusivamente a uma ciência (sophia). Qual vem a ser a ciência? A que é, talvez,
a ciência humana (anthrôpinê sophia). É provável que eu a possua realmente, os mestres
mencionados há pouco [sc. Górgias, Pródico, Hípias] possuem, quiçá, uma [ciência]
sobre-humana, ou não sei que diga, porque essa eu não aprendi, e quem disser o
contrário me estará caluniando.”8

Sócrates, portanto, alega sim possuir um tipo de sabedoria (ciência/sophia): a sabedoria


humana. E como Sócrates adquiriu essa sabedoria? A resposta se encontra em uma
célebre estória contada logo após a passagem citada. Querofonte, amigo de Sócrates,
certa vez, indo ao oráculo de Delfos (dedicado ao deus Apolo), teria perguntado: há
alguém mais sábio do que Sócrates? A que a Pítia (sacerdotisa do templo que
apresentava as resposta do oráculo aos consulentes) teria respondido: não. Informado
por Querofonte da resposta, Sócrates se pergunta qual o sentido deste oráculo do deus
Apolo:

“Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: “Que quererá dizer o deus?
Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito
sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio?
Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível.” Por longo tempo
fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra o meu gosto, decidi-me
por uma investigação (dzêtêsin), que passo a expor.”9

É então que Sócrates narra sua peregrinação em busca do sentido do oráculo. Passa,
então, a ir dialogar com aqueles que popularmente eram considerados sábios. Segundo
a narrativa, procurou inicialmente os políticos, percebendo que mesmo sendo
considerados sábios aos olhos de outros e de seus próprio, não o eram, com o que
granjeou o seu ódio. Em seguida, vai ter com o poetas, também considerados sábios
pela multidão. Ao fim do inquérito, percebe que a sabedoria dos poetas é mais fruto

7 PLATÃO. Defesa de Sócrates; trad. Jaime Bruna. In col. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1972, p. 12 (19b-
c).
8 IDEM, p. 14 (20d-e); grifos, texto grego e parênteses retos acrescentados.
9 IDEM, p. 14 (21b); grifos acrescentados.

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da inspiração divina do que posse deles próprio, não podendo, por isso, ser
propriamente chamados de sábios. Por fim, dirige sua investigação dialógica aos
artesãos, também considerados sábios. Conclui que possuem, sim, certo saber sobre
aquilo que produzem, mas que, com isso, tornam-se arrogantes e supõem terem saber
sobre outras coisas, das quais, todavia, não possuem conhecimento. Como o próprio
Sócrates faz notar em um momento posterior, cada um de seus acusadores
representava cada uma dessa três classes de pessoas consideradas sábias pelo público:
“Daí a razão de me atacarem Meleto, Ânito e Licão – tomando Meleto as dores dos
poetas; Anito, as dos artesãos e políticos; e Licão, as dos oradores.” 10 Mas a conclusão
mais importante é aquela expressa na seguinte passagem:

“Dessa investigação (exetaseôs) é que procedem, Atenienses, de um lado, tantas


inimizades, tão acirradas e maléficas, que deram nascimento a tantas calúnias, e, de
outro, essa reputação de sábio. É que, toda vez, os circunstantes supõem que eu seja
um sábio na matéria em que confundo a outrem. O provável, senhores, é que, na
realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou
nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de
Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: “O mais sábio dentre vós,
homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente
desprovida do mínimo valor.” Por isso não parei essa investigação (dzêtô) até hoje,
vagueando e interrogando, de acordo com o deus, a quem, seja cidadão, seja forasteiro,
eu tiver na conta de sábio, e, quando julgar que não o é, coopero com o deus, provando-
lhe que não é sábio. Essa ocupação não me permitiu lazeres para qualquer atividade
digna de menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo numa pobreza
extrema, por estar ao serviço do deus.”11

Note-se a extrema importância dessa passagem como traço fundamental que


caracteriza Sócrates, ou, ao menos, parte central do Sócrates que aparece nos diálogos
platônicos. Sócrates alega que sua investigação sobre o sentido do oráculo tornou-se
um tipo de missão divina. O deus o teria tomado como um instrumento para mostrar
que a sabedoria humana é sempre falha e limitada diante do saber que supomos ser
aquele do próprio deus. A sabedoria primordial para nós humanos consiste em
compreender a limitação e finitude da sabedoria humana. É isso que Sócrates
estabelece para toda a filosofia a partir dele: para fazer filosofia, como um modo de
vida de investigação, é preciso partir da consciência da limitação de nosso saber e, a
partir disso, procurar ampliá-la o quanto for possível para quem pratica a filosofia.
Trata-se de um saber metodológico e não de uma saber de conteúdo específico, ou seja,
trata-se de um saber necessário para poder fazer filosofia e, no percurso dessa
investigação, ampliar nosso conhecimento. Como salienta Sócrates, trata-se de uma
missão divina. Esse é um tema recorrente na filosofia desde os gregos até o mundo
moderno: a investigação filosófica consiste em tentar se assemelhar ao saber divino.

10 IDEM, p. 16 (23e-24a).
11 IDEM, p. 15-16 (22e-23c); grifos e termos gregos acrescentados.

60
No entanto, Sócrates é também bastante claro no que tange à impossibilidade de
alcançar definitivamente este desiderato.
2.5. A refutação da segunda parte da acusação: a investigação filosófica como tarefa
irrevogável de exame da virtude e da vida: Ao expor que seu modo de vida
investigador era consequência de sua crença no oráculo do deus Apolo, Sócrates
também estava refutando uma parte do restante da acusação a ele impetrada:
“Sócrates é réu de corromper a mocidade e de não crer nos deuses em que o povo crê
e sim em outras divindades.”12 Nesse momento do texto, Sócrates estabelece um
diálogo com Meleto, um dos seus acusadores, no qual mostra o absurdo de acusá-lo
de corromper a juventude e de não crer nos deuses aceitos na cidade. Em relação à
corrupção da juventude, Sócrates conclui que ou não a pratica ou, se o faz, fá-lo
involuntariamente. No que tange à acusação da descrença nos deuses, Sócrates mostra
igualmente que é absurda, uma vez que se ele acredita no sentido divino de sua
missão, então acredita nos deuses existentes e reconhecidos pelo povo. Mais adiante
(31d-e), Sócrates efetivamente descreve ouvir desde a infância uma voz que considera
como vinda de um deus ou um gênio (daimon), uma voz que somente se pronuncia
para impedi-lo de fazer algo, nunca para incitá-lo. Feita a breve refutação da segunda
parte da acusação, Sócrates passa a mostrar porque essa parte da acusação foi feita.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que Sócrates rejeita a possibilidade de
abandonar a vida filosófica. Sócrates o faz ao conceber o cenário hipotético no qual os
juízes o absolveriam se ele renunciasse à sua atitude investigativa, ao que Sócrates
retorque:

“(...) mesmo que, apesar disso, me dissésseis: “Sócrates, por ora não atenderemos a
Ânito e te deixaremos ir, mas com a condição de abandonares essa investigação e a
filosofia (dzêtêsei diatribein mêde philosophein); se fores apanhado de novo nessa prática,
morrerás”; mesmo, repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos
responderia: “Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei
antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de
filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele
de nós que eu deparar, dizendo-lhe: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais
importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de
adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares
da razão, da verdade de melhorar quanto mais a tua alma?’”13

É interessante notar não apenas que Sócrates rejeita a possibilidade de deixar de fazer
sua investigação filosófica diante da iminência da morte, mas principalmente
estabelece, na parte final da citação, o que entende como sendo o conteúdo desse modo
filosófico de vida: cuidar antes da alma, da virtude e da verdade do que dos bens
materiais e do reconhecimento social. Segundo Sócrates, abandonar esse modo de vida
seria desobedecer a determinação divina que o levou à investigação, mesmo ao preço

12 IDEM, p. 17 (24b-c).
13 IDEM, p. 20-21 (29c-e); grifos e texto grego acrescentados.

61
deste modo de vida tê-lo levado às acusações e à condenação à morte. Segundo
Sócrates, longe de sua atividade ser um crime, ela é uma dádiva divina concedida aos
atenienses. Assim, quem mais perde com sua condenação não é ele, mas a própria
cidade de Atenas. Isso mostra tanto que Sócrates acredita nos deuses reconhecidos pela
cidade, mas que é sua atividade investigativa e filosófica que conduz uma parte dos
cidadãos a vê-lo como um perigo para a comunidade.

No tocante à acusação de corromper a juventude, Sócrates mostra que essa percepção


equivocada provém do fato de os jovens apreciarem não alguma de suas opiniões, mas
o método de refutação pelo qual mostra que aqueles que se arrogam e são vistos como
sábios na realidade não o são. E depois de ter recebido a sentença de morte, Sócrates
expõe os objetivos desse método ditado por um mandato divino:

“Pode alguém perguntar: “Mas não serás capaz, ó Sócrates, de nos deixar e viver
calado e quieto?” De nada eu vos convenceria alguns dentre vós mais dificilmente do
que disso. Se vos disser que assim desobedeceria ao deus e, por isso, impossível é a
vida quieta, não me dareis fé, pensando que é ironia; doutro lado, se vos disser que
para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas
de que me ouvistes praticar quando examinava (exetadzontos) a mim mesmo e a outros,
e que vida sem exame (anexetastos bios) não é vida digna de um ser humano, acreditareis
ainda menos em minhas palavras.”14

No campo da tradição filosófica ocidental, a frase “a vida sem exame não é digna de
um ser humano” tornou-se uma das máximas socráticas mais célebres. Com ela,
Sócrates resume aquilo que entende pelo modo de vida filosófico. Esse modo de viver
consiste na investigação/exame daquilo que diz respeito à virtude e à alma. É nisso
que percebemos aquilo que antes já indicamos: com Sócrates, a tarefa primordial da
filosofia volta-se para a ética em um sentido muito amplo e profundo. A sabedoria
humana que alega possuir consiste em fazer com que a investigação da verdade, o
desejo da sabedoria (filo-sofia) seja um modo de viver, de tornar-se humano e voltar-
se para o cuidado com a própria alma antes que com as questões materiais e mesmo
certas questões sociais. É por isso que Hegel compara Sócrates a Kant, pois tal como
este último, Sócrates obrigou a filosofia, por sua vida e sua atividade incansável de
investigação, a não apenas tratar das questões relativas à estrutura do universo, mas
também, senão sobremaneira, a tratar das questões relativas à própria estrutura da
alma e da vida humana. Mas a investigação socrática, o exame do que significa e deve
ser feito para realizar a dignidade da vida, não é uma investigação puramente teórica,
não é apenas um conhecimento abstrato, mas precisa estar encarnado no modo de
viver que a filosofia nos obriga a transformar para seguir essa investigação. Nesta
concepção, a filosofia, como enfatizaram Pierre Hadot e Michel Focault, não é um
conhecimento puramente teórico, mas um modo de viver. Embora seja verdade que
Platão seja um dos heróis intelectuais em defesa do conhecimento científico, o exemplo
pungente de Sócrates sempre está presente na medida em que essa defesa do

14 IDEM, p. 28 (37e-38a); grifos e texto grego acrescentados.

62
conhecimento é indissociável de uma atitude de vida ético que acompanha a filosofia
como atividade intelectual. A caracterização de Sócrates como um investigador nos
revela não apenas uma proximidade desta assombrosa figura com a atitude cética de
prosseguir de modo irredutível a busca pela verdade, mas também nos mostra que
essa busca está na base da filosofia como uma forma de vida que é indissociável da
procura pela forma de existência mais digna para si mesmo/a e para as outras pessoas.
Portanto, segundo Sócrates, realizar a filosofia como investigação teórica é,
necessariamente, uma prática ética em busca da virtude em seu mais alto grau.

63
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 10

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE PLATÃO

A) ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A OBRA E AS INTERPRETAÇÕES DE


PLATÃO (428/27-348/47 a. C.)

1. Atualmente, contamos a obra autêntica de Platão como sendo constituída por trinta
e cinco diálogos considerados autênticos pela maioria dos estudiosos modernos,
embora haja algumas divergências sobre alguns deles, tais como o Alcibíades maior e o
Alcibíades menor. Além disso, temos vários diálogos que são hoje considerados
apócrifos, ou seja, falsamente atribuídos a Platão. Temos ainda treze cartas, objeto de
grande debate em relação à sua autenticidade. Trata-se, portanto, de uma vasta obra
que começou a ser escrita, provavelmente, quando Platão contava com pouco mais de
vinte anos e somente se encerrou quando morreu, aos oitenta anos de idade.

2. Desde a antiguidade, além dos diálogos preservados, há relatos sobre o que se


chama usualmente de ‘doutrinas não escritas’ de Platão. No século XX, surgiu uma
corrente de interpretação do pensamento platônico associada a esses relatos,
especialmente a partir da obra de Hans Krämer, Konrad Gaiser e Thomas Szlezák,
professores na Universidade de Tübingen. Posteriormente, essa visão da filosofia de
Platão foi defendida e difundida por Giovanni Reale, professor na Universidade de
Milão, dando origem à denominação atual de ‘Escola Tübingen-Milão’. Segundo a
posição desses autores, a doutrina propriamente dita de Platão não pode ser
encontrada apenas em seus diálogos, os quais seriam um tipo de exposição popular e
parcial dos ensinamentos que Platão apresentava oralmente apenas para seus
discípulos na Academia.

3. A atual numeração que organiza os diálogos platônicos provém da paginação da


edição de 1578, publicada por Henri Estienne (cujo nome latino era Henricus
Stephanus), contendo o texto grego e a tradução de Jean de Serres (cujo nome latino
Joannes Serranus). Por conta disso, nos estudos especializados de Platão, fala-se da
‘paginação de Stephanus’. Essa paginação foi adotada na moderna edição de referência
da obra de Platão em grego feita pelo helenista escocês John Burnet, publicada entre
1900 e 1908.

4. Diógenes de Laércio (III, 5) relata que Platão, quando tinha vinte anos, pretendia se
tornar poeta trágico, mas ao conhecer Sócrates teria queimado seus escritos dramáticos
e decidido se tornar filósofo. Não apenas a partir de Diógenes de Laércio, mas também
a partir de Aristóteles (Metafísica, Livro I, cap. 6), sabemos que Platão teria estudado
inicialmente com Crátilo, um heraclítico radical, depois teria encontrado e seguido
Sócrates aproximadamente durante sete ou oito anos. Após a morte deste, teria
entrado em contato com o pensamento dos pitagóricos e dos eleatas, embora apenas

64
Diógenes e não Aristóteles relate essa última fonte de sua filosofia. A essa gama
variada de tendências filosóficas de sua época, devemos acrescentar ainda a relação
polêmica de Platão com a poesia e com a sofística. Por causa dessas diferentes fontes,
é correto dizer, com Nietzsche, que Platão seria o primeiro “caráter misto” da filosofia
grega, embora essa ideia deva ser devidamente matizada. De qualquer modo, essas
fontes são apenas condições necessárias, mas não suficientes para entendermos a
grandeza do pensamento de Platão.

5. A recepção da obra de Platão ao longo da tradição posterior pode ser dividida em


três períodos. O primeiro período vai do momento em que Platão ainda estava vivo
até o fim do neoplatonismo no século VI d. C., com Olimpiodoro e Damáscio. Este é o
primeiro período de recepção pagã de Platão. O segundo período começa no final no
século III (com as primeiras apropriações de aspectos de Platão em autores da
patrística grega e latina, tais como Orígenes, Agostinho e Boécio) até o final do século
XIV. Neste período, não há propriamente o estudo dos diálogos, mas a apropriação de
aspectos do pensamento platônico (misturado com o neoplatônico) através de poucos
diálogos e trechos dos mesmos. O terceiro período começa com a edição, comentário e
tradução da obra de Platão na Itália no século XV (especialmente através da gigantesca
figura de Marsilio Ficino) e se estende até nossos dias. É somente neste terceiro período
que se retoma o estudo rigoroso, a tradução e o comentário dos diálogos platônicos.

6. O horizonte geral de interpretação15 dos diálogos platônicos ainda hoje dominante


é a chamada interpretação desenvolvimentista ou genética. Esse horizonte começa a se
delinear de modo mais claro a partir da tradução e interpretação dos diálogos
realizada pelo filósofo, teólogo, filólogo e tradutor Friedrich Schleiermacher, no início
do século XIX. Embora Schleiermacher, como outros intérpretes anteriores, procure
uma unidade sistemática do pensamento de Platão (uma suposição que será
posteriormente desafiada), ele é o primeiro a estabelecer a necessidade de se estudar
os diálogos através de seu desenvolvimento ao longo da vida de Platão.16

6.1. De modo geral, o horizonte desenvolvimentista separa os diálogos de Platão em


três períodos:
(a) Os diálogos de juventude, também chamados de aporéticos ou socráticos. Alguns
dos diálogos que se costuma contar como pertencentes a essa primeira fase são:
Eutífron, Apologia, Críton, Lysis, Hípias maior, Hípias menor, Alcebíades menor, Cármides,
Laques, Íon. Há outros que são por vezes colocados nesta fase, mas de modo
controverso, tais como: Eutidemo, Protágoras, Mênon, Górgias. Em geral, um critério

15 Chamamos tal forma de interpretação um ‘horizonte’ porque ela é elaborada e desenvolvida em


múltiplas perspectivas diferentes a partir de seu início explícito com Schleiermacher.
16 Schleiermacher é também o primeiro a colocar em segundo plano a ideia de interpretar os diálogos a

partir das chamadas doutrinas não escritas, estabelecendo que a unidade sistemática do pensamento
platônico deveria ser procurada no estudo dos diálogos. A já mencionada interpretação a partir das
doutrinas não escritas desafia essa ideia, mesmo que, como Schleiermacher, procure a unidade
sistemática da filosofia platônica.

65
filosófico para colocar estes diálogos na primeira fase é justamente a ausência de
vestígios do que caracteriza os diálogos da segunda fase: a teoria ou hipótese das Ideias
ou Formas.

(b) Os diálogos de maturidade ou dogmáticos. Os diálogos que são situados nesta fase
são: Fédon, Banquete, Fedro, República. Há certas concepções que colocam nesta fase
diálogos como o Mênon (que é considerado por muitos como um diálogo de transição
entre a primeira e a segunda fases), o Protágoras, o Alcibíades maior e o Crátilo. Como já
dito, o critério filosófico para colocar esses diálogos (principalmente os primeiros
citados) nesta fase é desenvolverem de algum modo a teoria ou hipótese das Ideias.

(c) Os diálogos da velhice ou críticos. Alguns dos diálogos que usualmente são
situados nesta fase são: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis
(considerado usualmente o último diálogo de Platão). Esses diálogos são situados
nesta terceira fase por criticarem a teoria das Formas apresentada antes, ou por
apresentarem-na de outra maneira, ou ainda por mostrarem desenvolvimentos que
não podem ser compreendidos sem os diálogos anteriores.

7. Dentro deste horizonte genético ou desenvolvimentista, minha posição


interpretativa segue a linhagem explicitada pelo historiador e helenista inglês George
Grote. Nesta linhagem, não há propriamente uma unidade sistemática na obra de
Platão, ou seja, os diálogos não são considerados como uma exposição ao grande
público de um sistema filosófico previamente concebido por Platão. Antes, o que
vemos é um processo de investigação contínuo sempre recolocado em cada um dos
diálogos, qualquer que seja a ordem que se estabeleça para eles. Nessa interpretação,
o pensamento de Platão é visto mais como um conjunto de investigações abertas a
partir de questões e conceitos do que como o desenvolvimento de um sistema coerente
e fechado. Em suma, o pensamento platônico é visto como um horizonte
metodológico-conceitual de investigações e não como um sistema filosófico. Essa
concepção interpretativa, aliás, nos permite compreender como o pensamento
platônico perpassou toda a filosofia posterior e pode ainda atualmente nos fazer
pensar de determinado modo certas questões fundamentais.17

B) ALGUNS ASPECTOS GERAIS DO PENSAMENTO PLATÔNICO

1. É difícil resumir ou sintetizar em termos breves a filosofia de Platão, dadas suas


múltiplas facetas. Vou apresentar apenas as seguintes facetas: (i) um pensamento
realizado sempre na forma do diálogo; (ii) a primeira filosofia a pensar constantemente
na questão sobre o que significa fazer filosofia e qual o sentido mais geral da atividade
filosófica dentro da cultura (polis); (iii) uma filosofia que estabelece as Formas ou Ideias
como o tema fundamental da filosofia; (iv) uma filosofia que se realiza para além das

Apresentei minha visão geral sobre o pensamento platônico no artigo “A metafísica platônica como
17

método das Formas”. Dissertatio, vol. 49, 2019, p. 175-245.

66
divisões comuns da filosofia através de áreas, unindo, não raro, aspectos ético-
políticos, epistemológicos, ontológicos, lógico-linguísticos (etc.) em um mesmo
diálogo; (v) uma filosofia profundamente metodológica, ou seja, uma filosofia que está
sempre preocupada em ser um modo de pensar e não apenas uma teoria acabada
entendida como um conjunto de princípios e proposições (“teoremas”) deles
derivados.

2. Toda as obras de Platão consideradas autênticas são diálogos. A imensa maioria se


vale de Sócrates como seu personagem principal. Embora já encontremos a forma do
diálogo nos fragmentos do poeta e filósofo pré-socrático Epicarmo, essa forma
pertencia primariamente à poesia épica, à poesia dramática (trágica e cômica) e, em
menor medida, à historiografia. É Platão quem estabelece pela primeira vez o diálogo
como um gênero literário filosófico. Contudo, em Platão, diferente de outros filósofos
que o utilizaram, o gênero dialógico corresponde a profundas necessidades filosóficas
intrínsecas aos argumentos por ele desenvolvidos.

2.1. Em primeiro lugar, a forma dialógica corresponde à própria atividade de Sócrates,


que sempre exerceu a filosofia através do diálogo direto, como testemunham tanto os
outros autores que apresentam essa enigmática figura, a saber: o historiador Xenofonte
e o poeta cômico Aristófanes.

2.2. Em segundo lugar, a forma dialógica se tornará a base para o conceito que servirá
como sinônimo da filosofia para Platão: a dialética. A dialética platônica possui
diversos aspectos e momentos, mas o sentido etimológico do termo sempre permanece
presente nesses diferentes aspectos e momentos, a saber: a arte/técnica argumentação
que se desenvolve através do diálogo, seja com outrem, seja consigo próprio.

2.3. Em terceiro lugar, como já indicado antes, a forma dialógica possui um sentido
profundamente retórico, pois permite aos leitores participarem, em certo sentido, do
texto lido de forma mais natural do que outras formas literárias. Do ponto de vista
hermenêutico (das questões e métodos de interpretação), essa forma mais próxima
do/da intérprete é inversamente proporcional à dificuldade e responsabilidade de
apropriação de quem lê o texto platônico.

3. Outra faceta do pensamento platônico é, como dissemos, poder ser considerada


como a primeira filosofia do mundo grego onde sempre está em jogo e em discussão
como se pode caracterizar a filosofia como atividade (técnica/arte) própria do/da
filósofo/a.18 São muitos os diálogos em que, explicitamente, entra em discussão a

18É importante lembrar que um dos aspectos revolucionários do pensamento de Platão consiste em ter
colocado explicitamente a possibilidade das mulheres fazerem filosofia, algo inédito em um contexto
predominantemente machista da sociedade grega. Essa possibilidade aparece de modo emblemático no
célebre diálogo República. Há notícias de que várias mulheres estudavam na Academia ainda durante a
vida de Platão.

67
questão: o que significa fazer filosofia e como ela pode ser aprendida e ensinada como
uma técnica particular de pensar determinados objetos? Em nossas aulas veremos dois
diálogos em que essa questão é respondida de diferentes modos: o diálogo Fédon e os
Livros VI-VII da República. Portanto, em termos contemporâneos, podemos dizer que
a filosofia platônica é a primeira filosofia grega a possuir um aspecto metafilosófico,
ou seja, que procura responder às questões ‘o que é filosofia?’ e ‘como se faz filosofia?’.

4. Talvez o aspecto filosófico mais célebre da obra platônica consista no que se costuma
chamar de ‘teoria das Formas’ ou ‘teoria das Ideias’. Com efeito, a partir dos diálogos
do período da maturidade, a noção de Forma (eidos) ou Ideia (idea) é constantemente
requisitada na argumentação e tomada como tema fundamental e finalidade última da
atividade filosófica. Esses “objetos inteligíveis” – porquanto só acessíveis pelo
pensamento (inteligência) e não pela percepção – envolvem diversos problemas e
possuem vários aspectos.

4.1. Um dos problemas clássicos que se coloca sobre as Formas já nos diálogos de
Platão (e em seus primeiros discípulos) é o seguinte: o que são e de que coisas há
Formas?19 Enquanto objetos inteligíveis, as Formas são objetos abstratos distintos dos
objetos sensíveis dados em nossa experiência imediata. Contudo, diferentemente do
ser de Parmênides (que é totalmente distinto dos objetos sensíveis), as Formas
platônicas são sempre Formas de algo, ou seja, as Formas não apenas estão separadas
dos objetos sensíveis, mas estes objetos, naquilo que possuem de estável, devem
participar (“imitar”, “serem um decalque” ou uma “cópia”) das Formas. Assim, ao
mesmo tempo em que as Formas são necessariamente diferentes e estão separadas dos
objetos sensíveis, estes objetos necessariamente participam das Formas para serem
entendidos como particulares pertencentes a algum tipo (espécie ou gêneros) de
objetos. Deixando de lado o que são as Formas, essa dupla relação (de separação e
participação) deixa em aberto a questão: de que coisas há Formas? Em sua crítica,
Aristóteles aponta para um possível resultado indesejável: haveria tantas Formas
quanto objetos sensíveis, o que torna as Formas inúteis como condições de explicação
e de existência (“causas”) dos objetos sensíveis, um problema já apontado pelo próprio
Platão na primeira parte do célebre e difícil diálogo Parmênides.

4.2. O termo ‘Forma’ (eidos) é apenas um dos nomes para esses objetos inteligíveis.
Outros nomes ou expressões nominais são: Ideia (idea), aquilo que é (ho estin), o ser
verdadeiro ou ser real (alêthôs on, ontôs on), paradigma (paradeigma), gênero (genos),
objetos inteligíveis (noêta), dentre outros. Esses vários nomes nos mostram diversos
aspectos disso que, em certa medida, só pode ser compreendido pelo pensamento que
se separa do aqui-agora sensível. Essa diversidade de nomes nos mostra que esses

19Essa questão é muito clara e detalhadamente analisada por Julius Moravcsik no capítulo intitulado
“As Formas: a descoberta de Platão”, pertencente ao excelente livro Platão e platonismo: aparência e
realidade na ontologia, na epistemologia e na ética, texto indicado para a leitura na bibliografia de nossa
disciplina.

68
objetos são necessariamente objetos abstratos semelhantes aos objetos matemáticos, os
quais, como se sabe, podem receber diversos nomes e descrições. No entanto, esses
objetos inteligíveis devem ser entendidos como fundamentos ontológicos ou
metafísicos da realidade e não como distintos dos objetos “reais” (sensíveis), como em
certas concepções sobre a natureza dos objetos matemáticos.

4.3. A partir dessas considerações, vislumbra-se por que recentemente se tem colocado
em dúvida se podemos falar propriamente de uma teoria das Formas ou Ideias, ou se
deveríamos antes falar de um processo multifacetado de diversas teorizações das
Formas ou Ideias, tomadas como uma hipótese metafísica e metodológica para evitar
problemas gerados nas filosofias anteriores, quer as filosofias pré-socráticas de matiz
mais físico, quer as consequências filosóficas advindas das concepções sofísticas sobre
a realidade, a linguagem, a mente e a ação humanas.

5. Como dito acima, ao se apresentar na forma dialógica, a filosofia platônica é avessa


às delimitações da filosofia em diferentes áreas, as quais são tomadas atualmente como
evidentes. Assim, encontramos em um diálogo como a República discussões que tocam
em questões fundamentais da filosofia política, da ética, da epistemologia, da
ontologia, da filosofia da educação, da antropologia filosófica, da filosofia da mente,
da filosofia da psicologia, da filosofia da linguagem, da filosofia da religião etc. Isso é
visível não apenas neste, mas em todos os demais diálogos: embora se possa
estabelecer (em alguns casos de modo mais difícil) alguma temática ou questão central,
diversas outras questões se apresentam e são discutidas no percurso do diálogo.

6. Em conjunto com o que dissemos, por fim, a filosofia platônica se apresenta com um
caráter profundamente metodológico. De certo modo, todos os diálogos (em maior ou
menor medida) têm como objetivo nos ensinar a fazer filosofia. Os diálogos, portanto,
não apenas nos expõe o pensamento de Platão, mas o expõe como um exemplo de
como podemos aprender as técnicas de argumentação filosóficas. É também por isso
que Platão se tornou um clássico de todos os tempos para todas as pessoas que
pretendem fazer filosofia, quer elas venham a criticar o pensamento platônico, quer
elas simpatizem com ele, quer ainda elas permaneçam de algum modo distantes após
a leitura de seus textos. De qualquer modo, ler os diálogos de Platão atentamente (e,
sobretudo, estudá-los) é sempre uma lição de como fazer filosofia, ou seja, uma
oportunidade de aprender a como se aperfeiçoar nas técnicas de argumentação sobre
questões fundamentais.

69
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 11

PLATÃO, DIÁLOGO FÉDON (PRIMEIRA AULA)

(A) INTRODUÇÃO GERAL:

1. O diálogo Fédon é uma das obras mais famosas e importantes de Platão. Do ponto
de vista dramático, se passa nas últimas horas da vida de Sócrates. Também
dramaticamente, pode ser posicionado como o último de uma série de diálogos que
descrevem os últimos tempos da vida de Sócrates. O primeiro dessa série é o diálogo
Eutífron, que se passa quando Sócrates vai até as portas do tribunal para tomar
conhecimento da acusação a ele feita. O segundo é o diálogo Apologia, que descreve a
defesa de Sócrates diante do tribunal de Atenas. O terceiro é o diálogo Críton, que
descreve a visita deste a Sócrates, quando este já se encontrava preso.

2. No entanto, de um ponto de vista filosófico, é bastante aceito que o diálogo Fédon se


distingue dos diálogos anteriores (geralmente situados ainda na primeira fase da obra
platônica), pois apresenta claramente a hipótese ou “teoria” das Formas, algo que se
credita como criação filosófica Platão, embora respondendo exigências metodológicas
e epistemológicas provenientes do tipo de questionamento que se considera ter sido a
atividade própria do Sócrates histórico.

3. Em termos narrativos, o diálogo Fédon é uma narrativa indireta, uma vez que é um
relato de Fédon a Equécrates sobre o que testemunhou nas últimas horas de Sócrates,
juntamente com diversos outros interlocutores. Platão utiliza o mesmo tipo de
narrativa em seu igualmente célebre diálogo Parmênides. Embora Fédon seja o
narrador, o diálogo se desenvolverá principalmente entre Sócrates, Cebes e Símias, os
quais seriam simpatizantes de concepções órfico-pitagóricas.

(B) AS PARTES DO DIÁLOGO

De modo geral, o diálogo pode ser dividido em duas partes:


(A) Do início (57a) até a pausa de Fédon na narrativa (89a-b).
(B) E da retomada da narrativa (89b) até o final (118a).

1. A parte (A) pode ser aproximadamente subdividida do seguinte modo:


(A.1) Introdução: 57a-60a, onde Equécrates pede a Fédon para narrar seu testemunho
e Fédon começa falando de suas impressões sobre o momento, bem como sobre as
pessoas presentes.

(A.2) A colocação da questão a ser discutida: 60b-63e. De modo geral, a questão é


sobre a imortalidade da alma. Contudo, essa questão é colocada em termos não apenas

70
metafísicos, mas também em termos éticos: deve-se temer a morte como um mal ou,
como Sócrates, estar tranquilo diante dela?
Nesta parte ainda são discutidos rapidamente:
(A.2.1) A questão do prazer e da dor como duas cabeças de um mesmo corpo e a
filosofia como música (poesia): 60b-61e.
(A.2.2.) A questão: é permitido ou não o suicídio?: 61e-63b.
(A.2.3) A questão: quais as razões para Sócrates se manter tranquilo diante da morte?
63b-e.

(A.3) As primeiras respostas à questão: 63e-89a. Esta parte pode ser subdividida,
aproximadamente, do seguinte modo:

(A.3.1) A morte como libertação do pensamento: 63e-67b. Aqui aparece a célebre tese
segundo a qual a filosofia é uma preparação para a morte e que o filósofo não deve,
portanto, temer a morte. A morte é, então, definida como a separação da alma em
relação ao corpo. Descreve-se o corpo como um conjunto de males e empecilhos à parte
pura da alma (o pensamento racional (logidzetai) e o entendimento (dianoia)). Esta parte
tem como finalidade o conhecimento das Ideias, e o filósofo procura cultivar esta parte
da alma, mantendo-a o máximo possível separada (mais propriamente falando,
afastada) das tribulações corpóreas (necessidades, doenças, desejos etc.). Assim, a
atividade filosófica seria um progressivo exercício de manter a parte racional da alma
afastada dos empecilhos corpóreos, abrindo a possibilidade de conhecer com mais
clareza as Ideias, que também são objetos inteligíveis (“intelectuais”) puros, sem
mistura e separados dos objetos sensíveis (“corpóreos”).

(A.3.2) A filosofia como purificação da alma: 67c-69b. A filosofia é determinada como


o processo de ascese (exercício) de purificação no qual o filósofo separa o máximo que
pode a parte racional da alma do corpo. São discutidas rapidamente aqui as quatro
virtudes cardeais (também discutidas na República): a sabedoria (phronêsis), a coragem
(andreia), a temperança (sôphrosynê) e a justiça (dikaiosynê). Em especial, a temperança
e a coragem são distinguidas em dois sentidos distintos: em seu sentido vulgar
(“impróprio”) e em seu sentido filosófico (“próprio” ou “autêntico”).

(A.3.3) A questão de Cebes sobre a mortalidade da alma e os três argumentos em


favor da imortalidade apresentados por Sócrates: 70a-80e. Esses argumentos se
apresentam na seguinte ordem:

(i) O argumento dos contrários: 70d-72e. Resumidamente, o argumento nos diz que a
natureza é um processo de alternância entre contrários. Neste processo, um contrário
não pode eliminar o outro, pois se fosse assim a transformação das coisas cessaria, o
que não se constata. Assim, se a vida é o oposto da morte, uma não pode eliminar a
outra. E a alma, como princípio da vida, não pode deixar de existir. A morte, por
conseguinte, não é a anulação da alma como princípio da vida.

71
(ii) O argumento da reminiscência: 72e-78b. Este argumento explicitamente remete
ao diálogo Mênon, onde a teoria da reminiscência aparece pela primeira vez. A
primeira premissa é a de que saber é rememoração/recordação algo. A segunda
premissa é a de que o esquecimento é condição para a rememoração. Assim, se
alcançamos o saber (rememorar) algo das coisas que são eternas (as Ideias ou Formas),
já temos de tê-las aprendido antes da vida que vivemos agora. Portanto, já tínhamos o
conhecimento das Ideias antes de nascer, o que provaria a imortalidade da alma.

(iii) O argumento da afinidade entre a alma e as Ideias: 78c-80e. O argumento parte


da premissa de que há dois tipos de coisas: as perecíveis e as imperecíveis. As
perecíveis são as compostas e as imperecíveis são as simples. As ideias são coisas
simples e, portanto, são imperecíveis. Ademais, as coisas simples são invisíveis (não-
sensíveis), pois as coisas visíveis são todas compostas e perecíveis. Assim, o corpo só
pode nos dar conhecimento das coisas compostas (perecíveis e sensíveis), mas a alma
é capaz de conhecer as simples (imperecíveis e não-sensíveis). Se a alma tem essa
capacidade, então ela tem de ter algum tipo de semelhança e afinidade com essas
coisas imperecíveis, de modo que ao menos uma parte da alma precisa ser imperecível
(imortal).

(A.4) O destino da alma e a função da filosofia: 80e-84b. Nessa parte, Platão apresenta
sua “filiação” às concepções órficas sobre o mundo após a morte, concepções que nos
falam de recompensas pela virtude em vida e castigos pelos vícios. A filosofia seria um
tipo de exercício de purificação para tornar a alma virtuosa e, por isso, permitiria certo
tipo de recompensa após a morte. Uma adesão semelhante às concepções órficas
aparece nos diálogos Górgias e República, Livro X.

(A.5) O silêncio de Sócrates, as objeções de Símias e Cebes e a pausa de Fédon: 84c-


89a. A objeção de Símias é a de comparar a alma a uma harmonia musical que
dependeria do corpo como a harmonia (invisível) depende do instrumento (material).
A objeção de Cebes é a de comparar a alma a uma roupa que pode passar para diversas
pessoas, mas que também acabaria em algum momento.

2. A parte (B) do diálogo pode ser dividida, aproximadamente, do seguinte modo:


(B.1) Retomada da narrativa de Fédon e digressão sobre a misologia: 89b-92a. Duas
são as lições dessa parte: (1) não devemos esmorecer na discussão das dificuldades e
recair na aversão ao saber (misologia) por causa dessas mesmas dificuldades; (2) não
devemos aceitar algo porque temos afinidades com alguém. Esse último imperativo é
coroado pela célebre advertência: “Vós, entretanto, se me acreditais, cuidai menos de
Sócrates que da verdade.” (91c)

(B.2) A resposta à objeção de Símias: 92a-95a. A resposta à objeção de Símias pode ser
vista como a primeira discussão na história da filosofia do que atualmente se discute

72
como o problema da causação mental. Nos termos do diálogo, isso significa que a
mente (alma, espírito) não pode ser simplesmente uma consequência (“epifenômeno”)
do corpo, tal como a música o é do instrumento. Como constatamos que nem sempre
a alma segue os impulsos do corpo (fome, sede, desejo etc.), mas em vários momentos
os contraria, Sócrates conclui que a alma não pode ser semelhante a uma harmonia,
pois é capaz de dominar e mandar no corpo. Assim, ela não poderia perecer como a
música acaba se o instrumento é destruído.

(B.3) A resposta à objeção de Cebes: 95a-107b. Esta longa resposta pode ser
subdividida, aproximadamente, do seguinte modo:

(B.3.1) Introdução: 95a-e. Interpretação da objeção de Cebes: a alma poderia passar


por vários corpos, mas acabaria por se degradar ao longo desse processo, de tal modo
que mesmo tendo certa persistência, morreria juntamente com algum desses corpos.

(B.3.2) O problema da física: 95e-99d. Sócrates generaliza a objeção de Cebes: ela diz
respeito à causa da geração e da corrupção de todas as coisas. Sócrates, então, passa a
fazer uma narrativa de seus estudos da juventude (o “exame da natureza”/historia tês
physêos). Conta que começou a estudar para responder determinadas questões, mas
que, depois de algum tempo, diante das concepções conflitantes de seus antecessores
e contemporâneos sobre a natureza, teria acabado por ficar com ainda mais dúvidas,
apresentando, neste momento, algo que podemos interpretar como uma forma de
proto-ceticismo, pois como o diálogo indica, o jovem Sócrates (Platão) como que é
levado a suspender o juízo (que os céticos chamarão de ‘epochê’) sobre a adesão a
alguma das concepções divergentes sobre as causas de vários tipos de coisas existentes
na natureza. Como concordam os intérpretes, trata-se de uma estória sobre a
juventude do próprio Platão, que se vale aqui de Sócrates apenas como personagem.
Contudo, na narrativa, Sócrates/Platão, relata que se entusiasmou quando soube que
Anaxágoras dizia que a Inteligência/Intelecto (nous) seria o princípio de todas as
coisas. Não obstante, decepciona-se também com o modo como Anaxágoras conduz
esta tese. Neste momento, Platão apresenta uma visão radicalmente nomológica e
teleológica da natureza, guiada por princípios e causas idealizados e não por
descrições causais fracas e fisicalistas. Em termos aristotélicos, podemos interpretar a
passagem como uma defesa da prioridade das causas formal e final sobre as causas
material e eficiente.

(B.3.3) A “Ideia”: 99d-102a. Para diversos intérpretes, este é o momento inaugural de


apresentação da chamada teoria das Ideias ou Formas. Após se decepcionar com os
investigadores da natureza, Sócrates/Platão nos apresenta a hipótese das Ideias ou
Formas (descritas aqui como definições (logous)) enquanto um procedimento
metodológico para resolver os dilemas deixados pelas concepções conflitantes sobre
as causas da natureza de todas as coisas. Dessa parte do diálogo provém a célebre
metáfora para se referir ao caráter singular da teoria ou hipótese das Ideias ou Formas

73
diante das outras formas de teorização da natureza: “a segunda navegação” (deuterous
plous) (99d). O curioso, porém, consiste em que Platão apresenta a noção de Ideia ou
Forma na forma de uma hipótese de caráter geral e metodológico para a um novo tipo
de investigação filosófica sobre causas, e não como uma teoria entendida no sentido
de um corpo completo, coerente e acabado de proposições. A meu ver (juntamente
com outros intérpretes recentes), isso indica que o que chamamos vulgarmente de
‘teoria platônica das Ideias’ seria mais propriamente um tipo de horizonte
metodológico-conceitual de investigação filosófica e metafísica e não propriamente
um sistema filosófico fechado, como uma parte dos intérpretes supõe ou defende,
especialmente a partir do advento da moderna história da filosofia no século XIX.20

(B.3.4) A natureza das Ideias e os contrários: 102a-107b. A partir deste novo


procedimento metodológico, Sócrates apresenta sua resposta à objeção de Cebes.
Sócrates começa com um exemplo bastante banal: Símias é maior do que Sócrates e
menor do que Fédon. Assim, Símias porta propriedades contrárias em relações
diferentes. O segundo passo, porém, nos apresenta a premissa geral do argumento.
Que Símias participe ora da Ideia de maior e ora da Ideia de menor não implica de
modo algum a contradição evidente de que a Ideia de maior é igual à Ideia de menor,
mas ambas são contrárias e necessariamente separadas. Ademais, as coisas
particulares que exemplificam (participam) dessas Ideias em diferentes momentos ou
relações, têm de ser distintas dessas Ideias consideradas em si mesmas. O passo
seguinte do argumento é mostrar que os contrários não podem coexistir
simultaneamente no mesmo objeto. A partir dessas premissas, o argumento chega ao
seu momento final: a alma, participando da Ideia de vida, não pode portar
simultaneamente a Ideia contrária, a Ideia de morte. Além disso, quando o corpo
participa da Ideia de morte, a Ideia contrária não é anulada. Dá-se apenas que o corpo
não participa mais da Ideia de vida. Mas se ao menos uma parte da alma participa da
Ideia de vida, então essa parte não pode morrer quando a morte “se aproxima” do
corpo. E se a alma é definida essencialmente como princípio de vida, então ela não
pode morrer juntamente com o corpo, mas necessariamente se afastará deste quando
chega a morte, não podendo, portanto, morrer juntamente com ele. Apesar desse
argumento, ao final dessa parte, Sócrates exorta seus companheiros de diálogo a
examinar com mais calma a questão: “devido à magnitude da matéria tratada e por
desconfiança face da fraca natureza humana.” (107a-b).

(B.4) O mito do destino das almas: 107b-116a. Trata-se de uma narrativa de caráter
escatológico que narra a “geografia” do Hades (mundo dos mortos), em um espírito
marcadamente órfico. Mas também é incluída uma curiosa descrição do mundo físico.

(B.5) Epílogo (a morte de Sócrates): 116a-118a. Sócrates se prepara para tomar a


Cicuta. Toma o veneno enquanto os companheiros choram, sendo reprendidos por

20Apresento esta visão de modo mais detido no artigo “A metafísica platônica como método das
Formas”. Dissertatio, vol. 49, 2019, p. 175-245.

74
isso por parte de Sócrates. Já deitado, sob o efeito quase total do veneno, Sócrates
descobre a cabeça e faz seu último pedido: “Críton, devemos um galo a Asclépio; não
te esqueças de pagar a dívida.” (118a).

75
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 12

PLATÃO, DIÁLOGO FÉDON (SEGUNDA AULA)

ALGUNS ARGUMENTOS DO DIÁLOGO

(A) FILOSOFAR COMO APRENDER A MORRER:

1. Um dos aspectos espantosos do início do diálogo Fédon se encontra no argumento


segundo o qual “filosofar é aprender a morrer” (64a ss). O argumento diz respeito à
função purificadora da filosofia, tanto em relação à vida após a morte quanto,
sobretudo, ao sentido propriamente platônico do método filosófico como meio de
conhecimento das Ideias, um meio de conhecimento que, no entanto, não pode ser
tomado unicamente como uma metodologia puramente instrumental, mas também
(senão sobretudo) deve ser entendida como um modo de viver, ou seja, um exercício
primariamente ético. Isso é importante porque é necessário termos em mente que, no
pensamento platônico, o fazer filosófico correlaciona, de modo indissociável, uma
atividade intelectual e atitude de vida. O argumento pode ser assim estruturado:
Premissas:
1.1. A morte pode ser definida como a separação da alma em relação ao corpo.

1.2. Se a alma pode se separar do corpo no momento da morte, é porque ela possui
uma parte separável do corpo ainda em vida.

1.3. Aquilo que é o objeto do conhecimento filosófico (as Ideias) não é dado na
percepção imediata, mas é algo de ordem não sensível.

1.4. Para conhecer algo desse objeto, na medida do possível, é preciso separar, ainda
em vida, a parte racional da alma das atribulações (desejos e sofrimentos) do corpo.

1.5. A filosofia é um processo de separação (parcial e temporária) da parte racional da


alma em relação ao corpo.

Conclusão: a filosofia é o meio para obter conhecimento das Ideias em vida na medida
em que é capaz de separar (ainda que parcial e temporiamente) a parte racional da
alma em relação às atribulações do corpo.

(B) OS TRÊS ARGUMENTOS INICIAIS PARA A IMORTALIDADE DA ALMA:

2. Através da máscara dramática de Sócrates, Platão apresenta inicialmente três


argumentos em favor da crença racional na imortalidade da alma e, portanto, para
justificar o não temer a morte como se fosse necessariamente um mal.

76
(B.1) O ARGUMENTO DOS CONTRÁRIOS:

2.1. O primeiro argumento é geralmente chamado ‘o argumento dos contrários’. Ele


pode ser assim apresentado em sua estrutura:
Premissas:
2.1.1. Na natureza, vemos que muitas coisas (senão todas elas) possuem propriedades
contrárias em momentos distintos.

2.1.2. As coisas na natureza só podem vir a ser o que elas são a partir dos contrários.
Assim, por exemplo, o maior só pode se tornar o que é em relação com o menor, e vice-
versa.

2.1.3. Se um dos contrários dominasse, então não seria possível a transformação e as


coisas permaneceriam em um mesmo estado, sem alteração. Por isso, o nascimento e
a morte são a forma pela qual os contrários se dão em ciclos permanentes na natureza.

Conclusão: se a vida vem a ser a partir da morte e a morte a partir da vida, então a
vida só pode ser um renascimento e a morte não é um estado permanente.

Corolário: se a alma é o princípio da vida, e se as coisas na natureza obedecem a


transformações cíclicas, então a alma não pode morrer e o nascer não é um nascer
absoluto, mas um renascer.

(B.2) O ARGUMENTO DA REMINISCÊNCIA:

2.2. O segundo argumento é geralmente chamado de ‘argumento da reminiscência’.


Ele retoma explicitamente, em novos termos, um argumento apresentado no diálogo
Mênon. Sua estrutura pode ser apresentada do seguinte modo:
Premissas:
2.2.1. Se, por definição, aprender/saber (manthanô) é recordar-se de algo que já se sabe,
então a reminiscência (anamnêsis) é o modo de ser do conhecimento enquanto saber
consciente (saber que se sabe de algo).

2.2.2. Se há dois tipos distintos de coisas (as coisas sensíveis que se experimenta ao
longo da vida e as coisas que estão para além da percepção sensível), então deve haver
dois modos de ter conhecimento desses objetos, cada um relativo ao seu tipo de objeto.
Se ter conhecimento é recordar, então deve haver dois modos de recordar, cada qual
correspondente ao seu tipo de objetos de conhecimento.

2.2.3. Para podermos recordar, é preciso que antes tenhamos esquecido.

77
2.2.4. É preciso que a recordação seja diferente do objeto recordado, quer esse objeto
seja recordado a partir de algo a ele semelhante, quer a partir de algo a ele
dessemelhante.

2.2.5. Os objetos inteligíveis não podem ser experimentados em vida, pois estão fora
do mundo sensível dado na experiência particular e temporal.

Conclusão: Se temos algum conhecimento (lembrança) dos objetos inteligíveis, então


este conhecimento tem de ser a recordação de algo “experimentado” antes do
nascimento e da vida presente.

(B.3) O ARGUMENTO DA AFINIDADE:

2.3. O terceiro argumento é geralmente chamado de ‘argumento por afinidade’. Este


argumento pode ser apresentado na seguinte estrutura:
Premissas:
2.3.1. Há dois tipos de coisas: as coisas perecíveis, que são compostas e, por isso, que
podem se compor e se decompor (se transformar ou se alterar); e coisas imperecíveis,
que são não-compostas (simples) e, por isso, que não podem se compor nem se
decompor (não se transformam ou se alteram).

2.3.2. As coisas compostas são aquelas que nos são dadas na percepção sensível
durante o tempo de nossa vida (são coisas “visíveis”). Por oposição, as coisas não-
compostas não podem ser experimentadas pela percepção sensível e, portanto, são
coisas para além da percepção (são coisas “invisíveis”).

2.3.3. As coisas perecíveis são as coisas mortais e as coisas imperecíveis são as coisas
imortais.

Conclusão: se podemos ter ou temos algum tipo de conhecimento das coisas


imperecíveis e imortais, então é porque temos uma parte da alma que se assemelha a
elas, sendo tal parte também imperecível e imortal.

(C) O PROBLEMA DA FÍSICA E O CONCEITO DE IDEIA

3. Dentre outros aspectos, na segunda parte do diálogo Fédon, encontramos os


argumentos de Sócrates em respostas a duas objeções feitas, respectivamente, por
Símias e por Cebes. A resposta a Símias é razoavelmente rápida e pode ser considerada
a primeira discussão explícita da problemática atualmente denominada de ‘causação
mental’, especialmente abordada no diálogo do seguinte modo: se assumimos que há
atos realizados por nós que contrariam tendências do corpo, então podemos concluir
que ao menos uma parte da alma comanda o corpo (ao menos em alguns momentos e
em algumas pessoas), e, portanto, a alma não pode ser colocada em analogia com a

78
relação entre uma harmonia musical (invisível) e o instrumento (visível) de onde
surge, ou seja, a alma não pode ser definida como um epifenômeno resultante das
relações materiais corpóreas.

3.1. Por mais interessante que seja o argumento em resposta a Símias, o que nos
interessa analisar um pouco mais aqui é aquilo que aparece na resposta à objeção de
Cebes, a qual coloca um problema a respeito da imortalidade da alma defendida por
Sócrates através de uma analogia entre a diferença entre uma roupa produzida por um
tecelão e este próprio tecelão: embora a roupa possa ter uma duração maior do que a
pessoa que a produziu (o tecelão), mesmo assim, ela continua a ser mortal, mesmo que
possa ser usada por diversas pessoas distintas.

3.2. Segundo Sócrates, a objeção de Cebes (usualmente chamada de ‘argumento do


tecelão’) toca em uma questão mais ampla concernente à causa da geração e da
corrupção de todas as coisas. É por conta disso que Sócrates (Platão) apresenta alguns
argumentos sobre sua concepção acerca desta questão, misturados a uma narrativa
autobiográfica. Conforme a essa narrativa, em sua juventude, Sócrates (Platão) teria se
interessado pelo estudo dos seus antecessores, considerados como pessoas que fizeram
o ‘exame da natureza’ (historia tês physeôs), na esperança de que esse estudo pudesse
esclarecer suas questões iniciais sobre as causas das coisas.

3.3. Após algum tempo de estudo, o jovem Sócrates (Platão) teria encontrado não
apenas opiniões opostas e divergentes (impasses) sobre as causas (condições de ser e
de existência) das mais diversas coisas (mente, números, natureza da terra etc.), mas
teria, inclusive, aumentado seu estado de dúvida e perplexidade diante da questão
sobre as causas das coisas.

3.4. A narrativa segue dizendo que o jovem Sócrates (Platão) teria se entusiasmado
quando ouviu alguém dizer que, segundo Anaxágoras, “o espírito (nous) é o ordenador
e a causa de todas as coisas.”(97b-c) Depreende-se do relato que Sócrates imaginou
que Anaxágoras explicasse que o espírito é a causa de todas as coisas no sentido de tê-
las produzido como elas são do melhor modo possível, ou seja, que sua explicação nos
daria acesso àquilo que, mais tarde, Aristóteles denominou de causa formal e causa
final, ou seja, a explicação das condições necessárias de existência de algo segundo seu
tipo (forma) e segundo sua finalidade intrínseca. Notamos aqui que o jovem Sócrates
(Platão) está apresentando um tipo de exigência explicativa que, em nosso jargão
filosófico, chamaríamos de universal, necessária e nomológica, ou seja, segundo leis
gerais que se aplicam a tipos de fenômenos e que descrevem seu modo de ser de modo
previsível. Esse tipo de exigência explicativa é contrastado implicitamente com as
descrições causais “mais fracas” de seus antecessores, as quais se limitariam, usando
a terminologia aristotélica, a descrever causas eficientes (condições a partir das quais
algo se torna o que é) e causas materiais (condições puramente físicas nas quais algo
se torna o que é).

79
3.5. Todavia, continua o relato de Platão (usando-se de Sócrates como personagem), ao
ler o livro de Anaxágoras, acontece uma decepção, pois este pensador teria se valido
do espírito (nous) apenas quando não conseguia apresentar as causas materiais e
eficientes das coisas. A sequência do relato, porém, nos indica que tais tipos de causas
são, no máximo, causas auxiliares (ou, em um jargão mais técnico, ‘concausas’), que
não explicam realmente aquilo que se deveria explicar, explicação esta que, ainda
seguindo a terminologia conceitual aristotélica, só seria dada pela descoberta das
causas final e formal dos tipos de coisas explicadas. No exemplo dado por Sócrates,
este tipo de explicação causal ainda considerado insuficiente seria como quem dissesse
que Sócrates se encontra preso porque tem um corpo capaz de mover-se até a prisão,
quando, segundo Platão, a verdadeira explicação é aquela que diz ser Sócrates um ser
humano social que aceita como sendo melhor seguir as leis e, por conseguinte, aceitar
sua condenação.

3.6. Diante dessa decepção tanto com os primeiros estudos, quanto com o livro de
Anaxágoras, Platão nos relata aquilo que foi sua maneira de encontrar um outro
método de explicação causal: a hipótese das Ideias. Essa passagem descreve aquilo que
se costuma chamar de ‘segunda navegação’ (deuterous plous). Grosso modo, em lugar de
se voltar ao exame direto dos objetos dados na percepção, o método alternativo
consiste em investigar e tentar descobrir a definição das coisas sobre as quais versa a
explicação causal. Eis a passagem central que apresenta este novo método:
“Pareceu-me conveniente (chrênai) buscar refúgio nas definições (logous) e
investigar (skopein) nelas a verdade sobre os seres (tôn ontôn alêtheias).
Todavia, não me parece de todo adequado o modo pelo qual figuro (hô(i)
eikadzô) <a comparação>, pois não admito sem mais que o investigar os
seres nas definições (en tois logois) através das imagens (en eikosi) seja melhor
do que investigar <os seres> através das coisas efetivas (en tois ergois). De
qualquer modo, foi por esta <via> que me lancei. Hipotetizando
(hypothemenos) em cada caso a definição (logon) que escrutino (krinô) como
sendo a mais segura, tomo (tithêmi) como sendo verdadeiro o que com ela
concorda – quer seja sobre as causas, quer sobre quaisquer outros seres
(hapantôn ontôn) –, e o que não <concorda com ela>, <tomo-o> como não
verdadeiro.” (Fédon, 99e-100a)

3.7. Aquilo que é, nesta tradução, vertido como ‘definições’ (logous), na tradução usada
em nossa disciplina é vertido pelo termo ‘ideias’. Tal tradução não está errada, mas já
é uma opção de tradução “não-literal” de uma passagem bastante debatida entre os
intérpretes e tradutores. Ela não é errada porque, para Platão, são efetivamente as
Ideias o tema das definições que são aqui aludidas. Essas definições, como também
será depois explicitado por Aristóteles no Livro II dos Segundos Analíticos, não apenas
devem ser capazes de nos dizer o que determinado tipo de coisa é, mas primariamente
devem ser capazes de nos dizer (de forma abreviada) por que determinado tipo de

80
coisa é como é. E esse tipo de definição, que tem nas Ideias seu tema, é aquilo que
permitiria determinar os tipos de causas (formal e final) que o jovem Sócrates (Platão)
imaginava encontrar em Anaxágoras, mas ali não os encontrou.

81
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 13

PLATÃO, DIÁLOGO REPÚBLICA, LIVRO VI

(A) INTRODUÇÃO GERAL AO DIÁLOGO REPÚBLICA

1. O longo diálogo República (Politeia), somente superado em extensão pelo diálogo Leis
(Nomoi), é talvez o mais conhecido dos diálogos de Platão. Embora o tema central ou
“fio condutor” de seus dez Livros seja a definição e a discussão do conceito (Ideia) de
justiça, o texto percorre uma gigantesca gama de questões e temas, propondo
argumentos dos mais diversos tipos sobre as mesmas. É comum a interpretação
segundo a qual o texto teria sido escrito (talvez não em sua totalidade) quando Platão
contava com aproximadamente quarenta anos. Além disso, a evidente preocupação
com o tema da educação sugere que a República tenha sido composta
aproximadamente em conjunto com a fundação da Academia, primeira instituição de
ensino que poderíamos considerar como o protótipo de uma escola de nível superior,
completamente voltada para a investigação filosófico-científica e que só seria
encerrada por um edito do imperador romano Justiniano, em 529 d. C.

2. Do ponto de vista de nossa disciplina, apenas um tema presente em seus dez Livros
nos interessa mais diretamente: o delineamento e a definição da figura do/da
filósofo/a, bem como da filosofia como atitude de vida e atividade intelectual, tema
que aparece primordialmente no final do Livro V e nos Livros VI e VII. Para além dos
esparsos elementos sobre a figura do filósofo que vimos quando tratamos
sumariamente o pensamento de Heráclito, é em Platão e especialmente no diálogo
República que temos o primeiro texto da tradição filosófica onde esta temática é
discutida de forma explícita e aprofundada. Assim, se podemos considerar Platão
como o primeiro filósofo a se preocupar explicitamente com o tema do que seja a
filosofia e, sobretudo, de como se pode ou se deve fazê-la, o diálogo República tem um
papel central nesta posição de pioneiro das discussões que atualmente chamamos de
‘metafilosofia’.

3. A articulação entre o tema central sobre a justiça na alma individual e na cidade e o


tema da descrição e definição do filósofo e da filosofia se dá através da polêmica tese
segundo a qual a cidade justa deveria ser governada pelos/as filósofos/as, quer por
apenas um/a (“monarquia”), quer por vários/as (“aristocracia”). Enquanto guardiões
e guardiãs da cidade idealmente justa, os/as filósofos/as precisariam se aproximar ao
máximo de características éticas e antropológicas ideais delineadas sobremaneira nos
Livros VI e VII, características que só poderiam “aflorar” através de um detalhado
“currículo” de estudos que é mais propriamente delineado no Livro VII, logo após e
em correlação com a passagem que talvez seja a mais conhecida de Platão: a Alegoria
da Caverna. Esse currículo, provavelmente inspirado na “escola” pitagórica, dará
origem ao chamado quadrivium: aritmética, geometria, música (harmonia) e

82
astronomia. Juntamente com o trivium (gramática, dialética e retórica), esse currículo
será a base de toda educação superior desde o século IV d. C. até o final do século
XVIII. Em certo sentido, esse fato nos mostra que o texto de Platão é uma das bases
históricas fundamentais para a justificação filosófica do “currículo” da educação
superior ao longo da tradição intelectual posterior. Assim, ao analisarmos a formação
e a definição da figura do/da filósofo/a nos Livros VI e VII da República, estamos, ao
mesmo tempo, analisando um dos pilares filosóficos de toda a filosofia e teoria da
educação do ocidente.

(B) DIVISÃO APROXIMADA DO LIVRO VI DA REPÚBLICA

4. O Livro VI da República pode ser aproximadamente dividido em quatro partes:

4.1. A caracterização do/da filósofo/a de um ponto de vista ideal: 484a-487a; diálogo


de Sócrates com Glauco.
4.2. O questionamento e discussão da caracterização idealizada do/da filósofo/a em
relação aos sentidos reais (“vulgares”) associados a essa figura: 487a-497b; diálogo de
Sócrates com Adimanto.
4.3. A visão da relação correta do/da filósofo/a através da correta educação: 497a-
502e.
4.4. A formação ideal do/da filósofo/a em vista da Ideia de Bem: 503a-511e.

Tomemos em atenção as subdivisões presentes em cada uma dessas divisões.

4.1. A caracterização do/da filósofo/a de um ponto de vista ideal: 484a-487a; diálogo


de Sócrates com Glauco.

A caracterização ideal do/da filósofo/a se apresenta através das seguintes


características:
(A) O filósofo deve procurar o saber da essência (ousia) de algo e não aquilo que desse
algo se apresenta na aparência.
(B) Além disso, o filósofo deve procurar o saber da essência em seu todo e não apenas
em algum de suas partes.
(C) A partir dessas duas características, conclui-se que o filósofo deve sempre procurar
a verdade, entendida como a correspondência entre a alma/discurso e a essência em
seu todo.
(D) Por isso, o filósofo busca o todo da verdade e não apenas parte desta, assim como,
por consequência imediata, deve odiar a mentira.
(E) Por conta de todas essas características, o filósofo não dá valor às coisas corpóreas
e aos bens materiais, mas haure seu prazer unicamente da alma consigo mesma.
(F) Essa última característica o leva a cultivar primariamente as virtudes cardeais já
anteriormente discutidas (especialmente no Livro IV): a coragem (andreia), a

83
temperança (sôphrosynê), a justiça (dikaiosynê) e a sabedoria (sophia), as quais lhe
conferem um caráter cordato e não rebelde.
(G) Esse caráter cordato se relaciona com a facilidade e a disposição para aprender.
(H) E a facilidade e disposição para aprender tem de estar associada a uma boa
memória.

4.2. O questionamento e discussão da caracterização idealizada do/da filósofo/a em


relação aos sentidos reais (“vulgares”) associados a essa figura: 487a-497b; diálogo
de Sócrates com Adimanto.

Em um determinado momento da exposição de Sócrates, Adimanto o interrompe


dizendo que tudo o que acabara de ser dito parece ótimo. Contudo, no senso comum,
a imagem de quem faz filosofia é bastante diversa daquela apresentada por Sócrates.

(A) De início, Adimanto apresenta uma interessante caracterização do método


socrático, comparado ao do bom jogador de gamão da seguinte maneira: assim como
o bom jogador de gamão vai conduzindo aos poucos seu oponente para a direção que
deseja, assim também Sócrates conduz seu interlocutor a admitir sua tese por meio das
perguntas adequadas que, somadas, o levam a perder o jogo da argumentação
filosófica.
(B) Em conexão com essa analogia, Adimanto apresenta os dois sentidos nos quais o
vulgo entende as pessoas que se dedicam à filosofia: ou como inúteis (achrêstoi) ou
como perversas (pamponeroi). Sócrates, de modo surpreendente, concorda com a
verdade factual da objeção levantada por Adimanto e se propõe a mostrar quais as causas
dessa imagem vulgar do filósofo, ou seja, mostrar as causas dos desvios da imagem ideal
delineada, até que, pela corrupção da natureza do filósofo ou da filosofia, se mostre
como essa imagem ideal chega à imagem real apontada por Adimanto.

A partir daqui, podemos subdividir aproximadamente 4.2 em duas partes:


4.2.1. A discussão sobre as causas de algumas pessoas que se dedicam à filosofia serem
consideradas inúteis para a cidade: 488a-489c.
4.2.2. A discussão sobre as causas de a maioria das pessoas que se dedicam à filosofia
serem consideradas perversas para a cidade: 489d-497a.
Vamos a uma exposição sumária das partes de cada uma dessas subdivisões.

4.2.1. A discussão sobre as causas de algumas pessoas que se dedicam à filosofia


serem consideradas inúteis para a cidade: 488a-489c.
Sócrates apresenta duas alegorias (“metáforas”) para mostrar o porquê de algumas
pessoas que se dedicam à filosofia serem consideradas inúteis na cidade:
(A) A analogia do barco: assim como um barco cujo dono é desleixado está sujeito a
não ser comandado pela pessoa adequada, assim também a cidade, descurada de seu
comando, está sujeita a que pessoas inaptas para dirigi-la promovam algum tipo de

84
sedição e destituam as pessoas que saberiam governá-la (os/as filósofos/as), alegando
que essas pessoas são inúteis para o que a tripulação amotinada (maioria da população
manipulada) deseja fazer com o barco.

(B) A analogia do médico: pode causar estranheza que as pessoas que se dedicam à
filosofia não se revoltem contra os desmandos feitos pela maioria da população
manipulada por algumas pessoas. No entanto, assim como não é o médico que tem de
procurar o doente (mas o inverso), assim também não é próprio da pessoa que se
dedica à filosofia querer se impor como governante; mas antes deveria ser ela
conclamada por seus concidadãos a fazê-lo.

4.2.2. A discussão sobre as causas de a maioria das pessoas que se dedicam à filosofia
serem consideradas perversas para a cidade: 489d-497a.
Essa parte é a mais extensa das duas e apresenta diversos argumentos que não são
facilmente distinguíveis entre si. Apesar disso, uma esquematização aproximada seria
a seguinte:
(A) Os primeiros argumentos têm em comum uma mesma hipótese: as almas aptas à
filosofia (segundo as características apresentadas na primeira parte do Livro VI), ao
serem corrompidas, se tornam perversas no mais alto grau.
(B) Em primeiro lugar, para justificar essa hipótese é apresentada a analogia com a
semente. Uma boa semente, quando plantada em um solo ruim e/ou mal cuidada
durante seu crescimento acaba por desvirtuar suas potencialidades em direção a uma
constituição deformada.
(C) Em seguida (aproximadamente entre 492a e 497a), Platão apresenta uma dura
crítica aos sofistas como os principais responsáveis pela corrupção das poucas almas
naturalmente aptas para a filosofia. De modo geral, o sofista é descrito como alguém
que não está interessado em ensinar a população a se tornar melhor, mas, ao modo de
um domador, deseja adestrá-la e manipulá-la (por meio da persuasão em sentido
ruim), de modo a realizar seus fins. Note-se aqui a “devolução” da acusação feita a
Sócrates como se este (e não os sofistas, tal como descritos por Platão) fosse um
corruptor da juventude de Atenas.
(D) Ao final do trecho, Platão descreve a situação segundo a qual, de um lado, uma
vez que as almas naturalmente aptas para realizar a filosofia se corrompem, o “templo
da filosofia” é invadido por pessoas inaptas que pioram ainda mais a imagem da
filosofia diante do vulgo. De outro lado, Platão ainda observa que é por um certo tipo
de “milagre” que algumas poucas pessoas aptas à filosofia escapam a esse destino e
vêm a ser consideradas como inúteis diante da cidade totalmente corrompida pelas
práticas sofísticas antes indicadas.

4.3. A visão da relação correta do/da filósofo/a através da correta educação: 497a-502e.
Uma vez enfrentada a objeção de Adimanto, Sócrates retoma a questão da natureza
ideal do filósofo e a relaciona com a necessidade da educação adequada para que não
se corrompa. Mas essa parte é ainda um tipo de transição entre a parte anterior e a

85
parte final do Livro VI. Nessa parte são apresentados, aproximadamente, os seguintes
argumentos:

(A) Ninguém acredita na caracterização da figura do filósofo porque nunca viram


aquela pessoa que é descrita. Para que isso se torne visível, é preciso que a cidade justa
(ideal) tome a seu cargo a correta educação filosófica. Na cidade real (injusta) em que
se vive, os jovens aprendem de modo indevido a dialética, que representa o conceito
definidor do método filosófico para Platão. Esse ensino errôneo da dialética (como
veremos, sem a devida preparação), corrompe-a em uma simples erística, ou seja, fá-
la passar por uma técnica de refutar para vencer as discussões a qualquer custo e, por
isso, sem consideração pela natureza do tema (“objeto”) sobre o qual versa a discussão.
(B) Como não há convivência com a correta dialética e a população só a vê em sua
forma degenerada na erística das assembleias e tribunais, aquilo que se descreve no
diálogo parece algo impossível.
(C) Para que a possibilidade da cidade justa (ideal) se torne real, é preciso que as
naturezas aptas à filosofia se eduquem de modo adequado e venham a governar,
assumindo o comando da cidade real e conduzindo-a em direção à cidade ideal.
Assim, o argumento em favor da possibilidade dessa cidade depende da possibilidade
da correta formação das almas naturalmente aptas à filosofia.

4.4. A formação ideal do/da filósofo/a em vista da Ideia de Bem: 503a-511e.


Nesta parte temos o encerramento do diálogo, que, como que em uma espiral, retoma
a parte inicial – já defendida das objeções apresentadas por Adimanto – e a coloca em
um nível mais alto, encaminhando o diálogo para a temática que será discutida no
Livro VII. Nesta parte, também aproximadamente, temos os seguintes argumentos e
suas respectivas discussões:
(A) O dom da filosofia é o mais raro porque alguma almas não apenas precisam
possuir, em conjunto, as características apresentadas na primeira parte do Livro VI,
mas também precisam receber a adequada educação para não se “perverterem”. Por
isso, o caminho da filosofia é o mais longo e o mais difícil dentre todas as atividades
humanas realizadas na cidade.
(B) A finalidade última desse caminho de aprendizado filosófico é a mais alta de todas
as ciências: a ciência do Bem (505a). É somente através da busca dessa ciência que as
outras virtudes antes discutidas (incluindo a justiça) se tornam possíveis em sua ordem
adequada.
(C) Passa-se, então, a uma discussão crítica sobre a natureza (definição) do Bem. Para
a maioria das pessoas, o Bem estaria no prazer, enquanto para as mais nobres estaria
no saber (phronêsis). Os que defendem que o Bem é prazer, facilmente são refutados,
pois admite-se que há prazeres maus ou que conduzem a males. Essa admissão
acarreta, rapidamente, uma contradição, pois como pode o que é considerado como
Bem por definição (o prazer) conter ou gerar o que é seu contrário: o mal? Com isso,
passa-se à discussão da outra alternativa: que o Bem seja o saber. Todavia, o principal
problema dessa definição consiste em que todo saber é saber de algo, e anteriormente

86
já se assumiu que o mais alto saber é o saber do Bem. Em outras palavras: o Bem é o
saber e o saber é saber do Bem. Forma-se, portanto, um tipo de círculo que impede
uma definição em sentido estrito. Para “sair” desse círculo, Sócrates propõe duas
analogias: (C.1) a analogia do Bem com o Sol, e (C.2) a analogia da formação (educação)
filosófica adequada com uma linha segmentada.
(C.1) A analogia do Bem com o Sol (506d-509d) pode ser esquematicamente
apresentada do seguinte modo21:
(1) Sol = Ideia do Bem
(2) Luz do Sol = a verdade
(3) Objetos da visão ou visíveis (“cores”) = objetos do conhecimento (Ideias)
(4) Pessoa que vê = Pessoa que conhece
(5) Órgão da visão = órgão do conhecimento (nous)
(6) Capacidade da visão = Capacidade da razão (nous)
(7) Exercício da visão = Exercício da razão (noêsis, gnôsis, epistêmê)
(8) Aptidão para ver = aptidão para conhecer

É no contexto da discussão dessa complexa analogia que se apresenta uma das


concepções de Platão mais discutidas e admiradas pelos neoplatônicos, em especial a
partir de Plotino (séc. III d. C.), o mais célebre dos neoplatônicos; a saber: por ser a
Ideia mais fundamental de todas e, portanto, ser condição tanto de existência (ratio
essendi ou “razão de ser”) quanto de conhecimento (ratio cognoscendi ou “razão de
conhecer”) de todas as demais Ideias a ela subordinadas, a Ideia do Bem estaria “acima
e para além do ser” (epekeinas tês ousias; 509b). Essa posição superior conferida à Ideia
de Bem indica que mesmo contendo em seu núcleo uma ontologia (uma concepção
sobre o conceito de ser), a metafísica platônica não se esgota nesta ontologia. Em outras
palavras: ao dizer que a mais elevada das Ideias, a de Bem, está para acima e para além
do ser, a metafísica platônica “transborda” a visão parmenídica e aristotélica (ainda
hoje majoritária), segundo a qual a metafísica seria equivalente à ontologia. Dando a
essa passagem (juntamente com outras) um sentido normativo, os neoplatônicos a
partir de Plotino entenderão que a metafísica é primariamente uma henologia que
incluiria, mas não se reduziria a uma ontologia, ou seja, para os neoplatônicos a
metafísica seria uma investigação sobre o Uno primordial como princípio do ser das
Ideias e do mundo sensível, associando este Uno primordial àquilo que, aqui, Platão
chama de Ideia de Bem. Mas para além dessa acepção mais conceitual e abstrata, a
própria noção platônica da filosofia como um caminho para chegar à mais alta ciência,
enquanto ciência do Bem, determina o sentido ético da metafísica neoplatônica, a
saber: o desejo que todo ser tem de retornar ao Uno como sua origem primeva. Esse
tema será depois associado aos temas da redenção preconizada pelo cristianismo e
pelo islamismo. Tudo isso nos mostra que, à primeira vista, aparenta ser apenas uma

21Tomamos, aqui, quase literalmente a apresentação esquemática encontrada na nota 38 da página 311
da tradução de Maria Helena da Rocha Pereira: A República. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. Esta
apresentação esquemática, por sua vez, adota a apresentação feita por James Adam em sua edição crítica
do texto publicada originalmente em 1902.

87
analogia didática para contornar a dificuldade na definição do Bem possui uma
extraordinária recepção na história da filosofia e da teologia posteriores.

(C.2) Em íntima relação com a anterior, a analogia da linha dividida (509d-511e)


apresenta e discute sucintamente o seguinte esquema diagramático:

BEM
Ideias/essências Inteligência (nous/noêsis)
(inteligível)
Ciência
(epistêmê)
Imagens hipotéticas das Ideias Entendimento (dianoia)

Objetos sensíveis Crença (pistis)


(sensível)
Opinião
(doxa)

Imagens dos objetos sensíveis Suposição (eikasia)

Embora seja um diagrama que facilita uma compreensão inicial do caminho da


educação filosófica (caminho que será novamente tematizado na e a partir da Alegoria
da Caverna), há muitas discussões sobre como interpretar este diagrama, em especial
em sua parte superior, e ainda mais particularmente no que tange à distinção entre o
nível do entendimento (dianoia) – aparentemente restrito à compreensão e discussão das
Formas ou Ideias matemáticas – e o nível da inteligência (nous), no qual as Ideias
seriam tanto compreendidas de modo não hipotético quanto seriam “degraus” em
direção à Ideia de Bem.

Observação: Essa linha, na realidade, retoma e especifica em um novo nível uma outra
linha que já havia sido “delineada” no Livro V, no contexto da primeira definição
do/da filósofo/a (476a-480a) como o/a amante do espetáculo da verdade, por oposição
àquelas pessoas que são os amantes do espetáculo da opinião (philodoxoi). Esta linha
pode ser apresentada do seguinte modo:

88
Ser/ Ideias/Formas (eidê) Conhecimento (epistêmê)

Aparência (to doxadzein) Opinião (doxa)

Não-ser (mê on) Ignorância (agnoia)

89
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 14

PLATÃO, DIÁLOGO REPÚBLICA, LIVRO VII

(A) INTRODUÇÃO: O LIVRO VII DA REPÚBLICA COMO FONTE


ICONOLÓGICA DA FILOSOFIA E SUA DIVISÃO ESQUEMÁTICA

1. O Livro VII da República talvez seja o texto platônico mais conhecido de sua obra.
Isso se deve à alegoria que é narrada em seu início: a célebre Alegoria da Caverna. Essa
alegoria condensa em uma imagem ao mesmo tempo icônica e simbólica o todo da
filosofia platônica, ao menos daquela parte tradicionalmente conhecida como expondo
a chamada ‘teoria das Ideias’. Essa imagem é icônica porque é uma alegoria que
apresenta uma cena que se assemelha a algo que podemos imaginar com certa
facilidade. Mas ela é também simbólica porque essa imagem não é uma ilustração que
compara “coisas” que se apresentam na experiência comum, mas é uma ilustração que
condensa uma multiplicidade de conceitos abstratos em um signo (“imagem”)
complexo e polissêmico. Para além do incomparável talento de Platão na criação de
analogias (metáforas, metonímias, alegorias, mitos etc.), a Alegoria da Caverna é um
tipo de abertura que dá o tom geral de todo o Livro VII da República, repleto de
analogias do início ao fim, assim como retraduz (aproximadamente) em termos mais
visuais as duas analogias que fecham o Livro VI.

2. Embora a Alegoria da Caverna não seja propriamente um mito, sua repercussão na


história intelectual posterior justifica em parte aquelas pessoas que a denominam de
‘Mito da Caverna’, pois para uma parte da tradição filosófica posterior essa alegoria
funciona como um tipo de “mito fundador”. Em uma possível interpretação,
poderíamos dizer que essa imagem icônica e simbólica apresenta a dramaturgia
filosófica de Platão, projetando o espaço conceitual e imaginário do teatro filosófico
não somente de toda a tradição platônica posterior, mas também de uma parte
considerável da tradição filosófica ocidental, mesmo quando esta tradição repudia esse
“mito fundador”, como no caso do início do poema filosófico Assim falou Zaratustra de
Nietsche, que inicia apresentando uma imagem icônica e simbólica da descida de
Zaratustra ao mundo comum, em uma clara inversão da noção de ascensão
apresentada na alegoria platônica. Com efeito, ainda que já estejamos completamente
habituados ao uso das diversas metáforas conceituais que gravitam em torna da tópica
‘luz versus trevas’ para falar das múltiplas formas de evolução no caminho do
conhecimento, a Alegoria da Caverna é uma das fontes primárias de onde emanou e
ainda emana o poder desse conjunto de metáforas conceituais, que ganhou ainda mais
força quando se juntou, a partir do século I a. C., com a narrativa bíblica do Gênesis, a
outra fonte de onde essa mesma metáfora conceitual recebeu e ainda recebe seu poder
e fascínio sobre nós. Mesmo que em outros registros e contextos históricos, a metáfora
conceitual cartesiana da clareza e distinção, assim como a metáfora conceitual

90
encontrada no Iluminismo e na noção de esclarecimento são ainda ecos dessa vigorosa
imagem icônica e simbólica devida ao gênio de Platão.

3. Aprofundando esta interpretação de espírito semiótico, podemos dizer que a


metafísica platônica tem na imagem icônica e simbólica da Alegoria da Caverna a sua
“metafórica” primordial. Em outras palavras, o poder inegável da metafísica platônica
ao longo da tradição posterior está intimamente associado ao poder igualmente
inegável da complexa e polissêmica metáfora entranhada nesta imagem icônica e
simbólica. É curioso que em muitos casos, como neste, uma metafísica precise se
estabelecer através de uma metafórica, ou seja, por um conjunto de metáforas
conceituais suficientemente poderosas para se tornar persuasiva (“sedutora”) a um
público indefinido. Embora tenha uma história que remonta ao período renascentista,
a iconologia como campo de estudos sobre as múltiplas camadas de significação das
imagens (artísticas e conceituais) na história da cultura só se estabelece plenamente no
século XX, especialmente pelo trabalho de historiadores das artes e da cultura material
e intelectual como Alois Riegl, Aby Warburg, Giulio Carlo Argan, Friedrich Saxl,
Raymond Klibansky, Erwin Panofsky, Ernst Curtius, Johan Huizinga, Francis Yates,
Rudolf Wittkower, Didi-Huberman, apenas para citar apenas alguns dos mais
célebres. No caminho aberto por essa refinada tradição, podemos dizer que o Livro VII
da República – como um tipo de emblema de toda a imagética conceitual encontrada
nesta obra gigantesca – representa o que podemos chamar de uma fonte iconológica
da filosofia, ou seja, um texto donde ainda emana, como uma fonte, um fluxo de
imagens icônicas e simbólicas (metáforas conceituais) que perpassa mais de dois mil
anos de história material e intelectual. Essa fonte iconológica é a parte imagético-
literária que nos permite falar que a Alegoria da Caverna enfeixa em uma única
“fábula” aquilo que antes chamamos de dramaturgia platônica da filosofia iniciada no
Livro V, quando os/as filósofos/as são caracterizados como “os amantes do
espetáculo da verdade” (tous tês alêtheias philotheamonas) (475e). Em suma, como fonte
iconológica fundamental da história da filosofia, no Livro VII da República (que abre
seu palco com a Alegoria da Caverna), Platão nos apresenta o teatro filosófico das
Formas, no qual os/as filósofos/as são os protagonistas de um “drama” (conjunto
coordenado de ações) ao mesmo tempo ético-político e metafísico, uma vez que a
caracterização do fazer filosófico como teoria deve ser entendida como uma prática
teórica que é, simultaneamente, uma atitude ético-política de vida e uma atividade
intelectual.

4. Entendido deste ponto de vista semiótico e iconológico, o Livro VII da República


pode ser esquematicamente dividido como se fosse uma peça em quatro “atos”
(partes):
(I) A Alegoria da Caverna e seus desdobramentos imediatos: 514a-521d.
(II) A descrição e discussão das ciências necessárias na formação (educação) dos/das
filósofos/as: 521d-531e.
(III) A descrição e discussão da dialética como ciência filosófica suprema: 531e-535a.

91
(IV) Retorno à linha segmentada e a descrição (prescrição) das idades da educação:
535a-541b.
Todavia, mesmo dividida em quatro “atos” a “peça” platônica possui um fio condutor
inegável: a noção de educação filosófica.

(B) A ALEGORIA DA CAVERNA E SEUS DESDOBRAMENTOS IMEDIATOS


(514a-521d)

A Alegoria platônica da Caverna (Antrum platonicum) representada em gravura de


Cornelius van Haarlem, impressa por Jan Saenredam, 1604, em foto-reprodução do
Museu Britânico de Londres. No topo da gravura: citação de um trecho do versículo
19 do capítulo 3 do Evangelho de João na versão da vulgata latina de São Jerônimo: “E
a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz.”

5. A Alegoria da Caverna – enquanto uma ilustração aproximada da analogia


diagramática da linha segmentada exposta no final do Livro VI – começa com as
seguintes palavras:
Sócrates – Depois disto – prossegui eu – imagina (apeikason) a nossa
natureza, relativamente à educação (paideias) ou à falta de educação
(apaideusias), de acordo com o seguinte experimento <de pensamento>
(pathei). Figura mentalmente (ide), pois, seres humanos que habitam em um
subterrâneo em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que
se estende ao longo da caverna. Estão lá dentro desde a infância, algemados
de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no
mesmo lugar e olhar para a frente; são incapazes de voltar a cabeça, por

92
causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que queima ao longe,
numa eminência, por detrás deles; figura mentalmente entre a fogueira e os
prisioneiros um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um
pequeno muro, como aqueles que os titereiros (thaumatopoiois) interpõem
diante de um público e sobre o qual mostram suas proezas (thaumata).
Gláucon – estou vendo, disse. Sócrates – Visualiza, agora, ao longo desse
muro, homens que transportam todo tipo de objetos por sobre o mundo:
estatuetas de humanos e animais, de pedra e de madeira, e todo tipo de
obras; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem
silentes. Gláucon – Estranha imagem (eikona), afirmou e estranhos
prisioneiros descreves, disse ele. Sócrates – Semelhantes a nós, continuei.
Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si
mesmos ou dos outros, algo mais que sombras (skias) projetadas pelo fogo
na parede da caverna? (514a-515a; tradução de Maria Helena Rocha Pereira
modificada em partes).

5.1. Logo após essa postulação inicial, são discutidos, em traços gerais, os seguintes
passos da imagem:
(A) Na vida dentro da caverna os prisioneiros tendem “naturalmente” a tomar as
sombras dos objetos como se fossem a realidade mais básica.
(B) A hipótese segundo a qual um dos prisioneiros seja liberado de seus grilhões e seja
conduzido (até contra sua vontade) para fora da caverna e contemple a verdadeira
realidade.
(C) Em seguida, retornando à caverna, o prisioneiro libertado seria considerado por
uns como louco, por outros como tendo arruinado sua inteligência. Além disso, em
clara alusão filosófica à figura do Sócrates histórico, considera-se que esse prisioneiro
poderia mesmo ser assassinado.

5.2. Em 517a-c, faz-se a primeira comparação da alegoria com a linha segmentada


apresentada no final do Livro VI:
Sócrates – Meu caro Gláucon, este quadro (tên eikona) – prossegui eu – deve
agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o
mundo sensível/o que aparece (phainomenên) através dos olhos à caverna
da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida
ao <mundo> superior e à visão (théan) do que lá se encontra, se tomares
como ascensão da alma ao mundo/lugar inteligível (noêton topon) não
iludirás minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O deus sabe se
ela é verdadeira. Pois, assim as coisas me parecem, no limite do cognoscível
(gnôstô(i)) é que se avista, a custo, a Ideia do Bem; e, uma vez avistada,
compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo;
que, no <mundo> visível (horatô(i)), foi ela que criou a luz, da qual é
senhora; e que, no <mundo> inteligível, é ela a senhora da verdade e da
inteligência (noun), e que é preciso vê-la (idein) para se agir (praxein) de

93
modo sensato (emphronôs), quer individualmente (idiai), quer na vida
pública (dêmosia(i)).

5.3. Logo após discutir o problema da obrigação daqueles que contemplaram a


realidade fora da caverna retornarem ou não a ela, o diálogo apresenta a mais célebre
“definição” de educação encontrada na obra platônica (518b-d):
Sócrates – Temos então – continuei eu – de pensar o seguinte sobre esta
matéria, se é verdade o que dissemos: a educação (paideian) não é o que
alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir
ciência/conhecimento (epistêmês) numa alma em que ela não existe, como
se introduzissem a vista em olhos cegos. Gláucon – Dizem, realmente.
Sócrates – A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma
(dynamin en tê(i) psychê(i)) e de um órgão pelo qual aprende (katamanthanei);
como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão
juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de
suportar a contemplação (theômenê) do ser e da parte mais brilhante do ser.
A isso chamamos o Bem. Ou não? Gláucon – Chamamos. Sócrates – A
educação seria, por conseguinte, a arte (technê) desse desejo, a maneira mais
fácil e eficaz de fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não
está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para
isso. Gláucon – Acho que sim.

5.4. Esta parte inicial do Livro VII se encerra com considerações sobre a necessidade
de fazer com que aqueles/as que mais se esmeram por contemplar as Formas ou Ideias
tomem o governo da cidade (não por vontade própria, mas por necessidade ético-
política), para que deem a ela a forma justa antes delineada. O trecho se encerra
colocando a questão que abre a próxima parte (521c-d):
Sócrates – Queres então examinar já de que maneira se formarão homens
dessa qualidade e como é que uma pessoa os fará ascender até à luz, tal
como aqueles que se diz que saíram do Hades, para se elevarem até aos
deuses? Gláucon – Como não hei de querê-lo? Sócrates – Isso não seria
como o jogo de atirar um caco, mas um voltar da alma de um dia que é
trevas para o verdadeiro dia, ou seja, a sua elevação até à realidade (tou
ontos ousan epanodon), que diremos ser a verdadeira filosofia. Gláucon –
Absolutamente. Sócrates – Logo, deve analisar-se qual das ciências
(mathematôn) é que tem esse poder?

94
(C) A DESCRIÇÃO E DISCUSSÃO DAS CIÊNCIAS NECESSÁRIAS À
FORMAÇÃO (EDUCAÇÃO) DOS/DAS FILÓSOFOS/AS (521d-531e)

6. Nesta parte do texto, Platão apresenta as ciências (mathêmata) que compõem a


formação (educação) básica dos/das filósofos/as, ciências que preparam o
coroamento que será dado pela dialética como sinônimo da filosofia.

6.1. A primeira das ciências desse currículo é a aritmética, abordada entre 522c-526c.
Ela é a ciência (mathêma) inicial porque é a arte (technê) mais básica, inicialmente por
sua evidente utilidade prática, tanto na vida cotidiana quanto nos trabalhos de guerra.
Contudo, essas utilidades não são senão consequências de seu poder específico. Esse
poder consiste em permitir resolver as aporias (contradições) geradas por certos
objetos sensíveis, em especial em relação a propriedades contrárias, tais como a leveza
ou o peso, a grandeza ou pequeneza etc. De modo geral, a aritmética nos permitiria
resolver, desde um ponto de vista ideal e correto, as contradições entre unidade e
multiplicidade geradas no campo da percepção, pois nos ensina a contemplar a
unidade em si mesma e suas características intrínsecas, bem como, por contraste,
aquilo que permite falar corretamente de qualquer tipo de multiplicidade. Com isso, a
aritmética é a primeira e a mais básica das artes que conduzem a alma filosófica desde
o nível contraditório e inseguro do sensível até a compreensão inicial do nível não
contraditório e verdadeiro do inteligível.

6.2. A segunda ciência prescrita para o estudo filosófico é a geometria, brevemente


tratada entre 526c-527c. A brevidade desse tratamento se justifica pelo parentesco que
a geometria tem com a aritmética. Note-se que, conforme uma lenda antiga, no pórtico
da Academia constava o seguinte dito: “Não entre quem não souber geometria”.
Talvez a brevidade com que a geometria é tratada no Livro VII se deva não apenas ao
seu inegável parentesco com a aritmética, mas também pelo tratamento mais extenso
da astronomia que se faz logo a seguir. De qualquer modo, em vários outros diálogos,
a geometria tem um papel de destaque, como vemos no diálogo Mênon, Teeteto e,
especialmente, no Timeu. É interessante notar que os cinco sólidos geométricos
descritos no Timeu como as formas matemáticas dos elementos básicos do mundo são
tratados no décimo terceiro Livro dos Elementos de Euclides de Alexandria, o qual
teria, segundo certos relatos, estudado na Academia.

6.3. A terceira ciência prescrita para o estudo filosófico é a astronomia, tratada entre
527d-530d. Malgrado uma parte deste trecho seja dedicada à geometria dos sólidos
(chamada de ‘estereotomia’), o primeiro aspecto essencial defendido é que a
astronomia deve ser estudada por ser realizada através de um certo tipo de síntese
entre aritmética e geometria. Outro aspecto essencial do trecho consiste em diferenciar
a astronomia considerada em seu aspecto prático (conhecimento das leis que regem a
passagem do tempo) e em seu aspecto empírico (a observação direta dos fenômenos
celestes) da astronomia mais elevada e verdadeira que seria puramente matemática.

95
Para nós, essa diferenciação pode parecer estranha; contudo, no contexto das práticas
astronômicas antigas e medievais essa diferenciação é decisiva, pois quando olhamos
as teorias astronômicas mais bem elaboradas, encontramos uma ciência altamente
matemática.

6.4. Por fim, a quarta ciência prescrita para o estudo preparatório dos/das filósofos/as
é a harmonia, brevemente considerada entre 530d-531c. Em analogia com o que se
disse da astronomia, também a harmonia deve ser diferenciada do estudo puramente
prático e empírico dos sons musicais concretos. A harmonia “filosófica” ensina as
proporções matemáticas mais gerais que são os fundamentos da música em geral. No
diálogo Timeu (que, dramaticamente, seria uma continuação da República), há uma
discussão mais célebre sobre a harmonia em íntima correlação com a astronomia, uma
correlação que provém, supostamente, dos pitagóricos e que forma a tópica da
harmonia das esferas celestes.

6.5. Como uma breve consideração conclusiva à exposição desta parte do Livro VII,
podemos dizer que a descrição dessas ciências básicas, mesmo sendo uma apropriação
de uma concepção pitagórica por parte de Platão, é um dos textos fundadores do que,
séculos mais tarde, será chamado o quadrivium, uma das partes das chamadas ‘sete
artes liberais’, ou seja, aqueles conhecimento fundamentais que deveriam ser
estudados pelos homens livres porquanto não visam primariamente uma aplicação
prática (daí a oposição às ‘artes manuais’, como a medicina e a arquitetura), mas são
estudadas para a elevação do espírito e para o aprendizado do prazer intelectual.

(D) A DESCRIÇÃO E DISCUSSÃO DA DIALÉTICA COMO CIÊNCIA


FILOSÓFICA SUPREMA (531e-535a)

7. No estágio mais elevado da educação filosófica através das ciências (mathêmata)


anteriormente descritas se encontra a dialética. Não é possível apresentar aqui em
detalhe as várias facetas dessa descrição e discussão da dialética. O que será
apresentado são apenas algumas indicações gerais.

7.1. Em primeiro lugar, de um lado, todas as ciências (mathêmata) anteriores devem ser
estudadas unicamente como preparações para a aquisição da habilidade dialética. De
outro, é somente quando se estuda efetivamente a dialética que se compreende a
unidade orgânica do currículo prescrito. Assim, podemos dizer que a dialética é a
causa final que justifica o estudo das outras ciências e é também sua causa formal, pois
é a partir do momento em que se aprende esse método que os demais ganham sua
razão de ser. Mesmo assim, como várias passagens indicam, a dialética possui uma
natureza distinta dessas outras ciências, tomadas como preparatórias. Podemos citar
apenas um dos trechos que evidencia essa diferenciação:
Sócrates – Com efeito – disse eu – ninguém nos contestará dizermos que
este [sc. o dialético] é um outro método, que se põe a caminho para

96
apreender, de modo completo, acerca de cada objeto <inteligível>, a
essência de cada um (peri hó estin hekaston). (...) Quanto às restantes <artes>,
aquelas que dissemos que compreendem certo <aspecto> do que-é (has tou
ontos ti), a geometria e suas afins, vemos que apenas têm sonhos acerca do
que-é, que lhes é impossível ter uma visão acordada (hypar ... idein) <sobre
o que-é>, enquanto se servirem de hipóteses se manterão afastadas <do
que-é>, não sendo capazes de dar definições destes <entes> (mê dynamenai
logôn didonai autôn). (533a 8-c 3)

Pouco abaixo (533c-e), Sócrates apresenta uma interessante distinção semântica e


conceitual, a saber: embora por vezes chamemos as artes (technai) antes descritas (no
jargão do diálogo, as mathêmata) de ciências (epistêmas), a rigor é apenas à dialética que
deveríamos aplicar este termo. Ademais, essa distinção entre as artes que passam por
vezes como ciências e a dialética como ciência em sentido estrito é equiparada à
divisão, apresentada na linha segmentada, entre o nível do entendimento (dianoia) e o
nível da inteligência ou razão (nous).

7.2. Conforme o trecho citado acima, a dialética procura o ser ou essência de cada um
dos objetos inteligíveis, com os quais as outras ciências lidam apenas de forma
hipotética. Contudo, há dois níveis no método hipotético. No primeiro, usado pelas
ciências antes descritas, as hipóteses não estão conscientes de serem apenas hipóteses.
No segundo, a dialética como que toma cada uma das definições das Ideias ou Formas
como um tipo de hipótese para se chegar ao conhecimento da Ideia de Bem, que é,
enquanto Ideia primária, não-hipotética.

7.3. Como corolário destas breves indicações, podemos dizer que, a partir dos diálogos
da maturidade (a começar, provavelmente, por este trecho da República que estamos
observando), torna-se o sinônimo do termo ‘filosofia’, ou seja, filosofia é dialética. Em
outros diálogos decisivos, como o Parmênides e o Sofista, Platão discutirá novas facetas
desse conceito. Mesmo assim, embora Platão tenha começado a identificar
explicitamente filosofia e dialética apenas na República, essa identificação recupera
retrospectivamente todos os diálogos anteriores, pois, em sentido lato, a dialética é o
método de conhecimento que só é possível por meio do diálogo.

(E) RETORNO À LINHA SEGMENTADA E A DESCRIÇÃO (PRESCRIÇÃO) DAS


IDADES DA EDUCAÇÃO (535a-541b)

8. A última parte do Livro VII apresenta um conjunto amplo de discussões que podem
ser sumariadas como um tipo de corolário das discussões anteriores.

8.1. Depois de um tipo de prólogo (535a-537a), no qual são relembrados alguns temas
do Livro VI e se apresenta a ainda atual tese segundo a qual a educação não pode ser
realizada de modo forçado, mas por meio do jogo ou brincadeira (paidia), Sócrates

97
apresenta as idades correspondentes às etapas da educação delineadas desde o Livro
II:
(i) Da primeira infância até aproximadamente os vinte anos, deve-se exercitar o corpo
pela ginástica, para fortalecê-lo e torná-lo saudável, e a música, que exercita a
harmonia da alma através da música propriamente dita e pela literatura adequada.
(ii) Dos vinte aos trinta anos, deve-se estudar e tornar-se hábil nas ciências
preparatórias da dialética, ou seja, a aritmética, a geometria, a astronomia e a
harmonia.
(iii) Dos trinta aos trinta e cinco anos, deve-se estudar a dialética, pois sem essa
preparação a dialética corre o risco de “degenerar” em uma mera erística e sofística,
como é indicado tanto no Livro VI quanto no Livro VII.

8.2. A partir dos trinta e cinco anos, quem atingiu a perfeição neste currículo, deve se
ocupar dos assuntos políticos, em consonância com a discussão anterior sobre a
necessidade de retornar à caverna e ajudar na educação das outras pessoas da cidade
ainda não educadas. Depois desse tempo de “serviço público”, conforme os méritos
das ações durante estes quinze anos, algumas dessas pessoas se tornam aptas ao
governo da cidade, seja em uma forma mais próxima da monarquia, seja em uma
forma mais próxima da aristocracia. Depois de cumprido esse “serviço político” (por
necessidade e não por desejo), levarão o resto de suas vidas apenas a filosofar e serão
honrados pela cidade por sua vida justa e pelas realizações ético-políticas através das
quais moldam e mantêm a justiça na alma e na cidade, segundo o paradigma supremo
obtido pela contemplação da Ideia de Bem.

8.3. O Livro VII se encerra fazendo um balanço de todas as partes percorridas,


reiterando que mesmo sendo algo difícil de se realizar, não se trata de algo impossível.
De certo modo, há um tipo de encerramento tanto do que começou a ser discutido nos
Livros I e II, assim como da tese explicitada no Livro V, segundo a qual a cidade justa
tem como condição necessária mais fundamental o ser governada pelos filósofos e/ou
pelas filósofas devidamente educados conforme o currículo prescrito nos Livros VI e,
sobretudo, VII.

98
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 16

INTRODUÇÃO GERAL AO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES E À


METAFÍSICA
(A) INTRODUÇÃO GERAL AO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES
1. Juntamente com Sócrates e Platão, Aristóteles talvez seja um dos pensadores mais
conhecidos de todos os tempos, não apenas no âmbito acadêmico, mas na cultura em
geral. Assim como Platão, é considerado o pensador grego que mais decisivamente
determinou os rumos do pensamento e da mentalidade circum-mediterrânea, seja em
termos de continuidade, seja em termos de críticas.

2. De sua monumental obra, acredita-se que tenhamos atualmente certa de um terço.


Uma parte dela, a partir da crítica filológica feita no século XIX, é atualmente
considerada espúria, tendo sido provavelmente realizada por discípulos diretos. Os
escritos de Aristóteles acessíveis a nós e considerados autênticos são exclusivamente
uma parte daqueles que usualmente são chamados de ‘esotéricos’, ou seja, destinados
aos estudantes de sua escola filosófica, o Liceu. Dos chamados ‘escritos exotéricos’,
destinados ao grande público, especialmente os diálogos (entre quinze e vinte), só
temos fragmentos.

3. Mesmo representando, ao lado de Platão, um dos pilares do pensamento


“ocidental”, o caminho da obra de Aristóteles foi bastante tortuoso. Pouco tempo após
a morte de Teofrasto, discípulo e sucessor do Estagirita na direção do Liceu, reza a
lenda que seus escritos esotéricos teriam permanecido inacessíveis até o século I a. C.,
quando foram “reeditados” por Andrônico de Rodes. No intervalo temporal entre sua
morte e a reedição de Andrônico, Aristóteles só era conhecido através dos seus
diálogos. Mesmo assim, embora as atividades do Liceu não tenham sido encerradas, o
prestígio dessa escola foi diminuído pela ascensão das escolas Epicurista e Estoica,
além da presença ainda relevante no cenário cultural antigo da Academia platônica. A
rigor, a história do Liceu se encerra praticamente com a atividade do filósofo e
comentador Alexandre de Afrodísias, nomeado professor de filosofia aristotélica pelos
imperadores romanos Sétimo Severo e Caracala, no século III. Neste momento, a
preservação, ensino e comentário das obras de Aristóteles passa a ser realizada pela
escola Neoplatônica, em especial a partir de Plotino e Porfírio, que vivem neste mesmo
século. A partir dessa escola, que se estende até o início do século VII, a filosofia e os
textos de Aristóteles são conservados e comentados principalmente na tradição sírio-
árabe. Na tradição europeia de língua latina, a obra de Aristóteles, via as traduções e
comentários de Boécio, sobrevive como tema de estudo apenas através dos tratados
Categorias, Sobre a interpretação e uma síntese da silogística dos primeiros capítulos dos
Primeiros Analíticos. Será através do contato com a filosofia árabe que os europeus terão
acesso aos outros escritos de Aristóteles a partir do século XIII. É especialmente através
das poderosas interpretações e apropriações da obra de Aristóteles devidas a Avicena
e Averróis que ela adentra na tradição europeia de língua latina. É neste momento que

99
Aristóteles passa rapidamente a ser tomado como um parâmetro da filosofia que
rivaliza com seu mestre Platão. Com a recepção dos comentários de Averróis por essa
tradição europeia, torna-se difundido o epíteto ‘o Filósofo’, tão comum, por exemplo,
nos textos de Tomás de Aquino. Assim como, em um exemplo de convivência
intelectual entre religiões, Averróis passa a ser chamado pelo epíteto ‘o Comentador’.
Do século XIII ao XVI, progressivamente, Aristóteles passa a ser considerado como a
base fundamental da teologia, das ciências naturais e da filosofia escolástica. A
importância do pensamento de Aristóteles, contrariamente ao que se pode pensar à
primeira vista, se consolida quando, a partir do século XVI, suas concepções e aquelas
dele diretamente derivadas passam a ser abertamente criticadas por diversos
pensadores (filósofos, teólogos e cientistas) que compõem, para nós, o complexo
quadro do Renascimento. Essa resistência, porém, é acompanhada de defesas que
mantêm viva a importância do aristotelismo durante a primeira fase da Idade
Moderna. Talvez o último capítulo da lenta mas decisiva entrada de Aristóteles na
tradição intelectual do ocidente seja aquele representado nos efeitos causados pela
recuperação, tradução e discussão da Arte Retórica e da Arte Poética, particularmente a
partir do século XVI, obras que serão a base para uma parte considerável das
discussões sobre as artes até o século XVIII. Para além dos efeitos diretos ou indiretos
de Aristóteles na filosofia moderna, o último capítulo da história de sua recepção
começa no século XIX, quando o trabalho de reedição crítica dos manuscritos e os
estudos especializados de história da filosofia começam, em especial através da edição
crítica de sua obra iniciada por Immanuel Bekker, publicada em 1831, bem como da
edição crítica do volumoso material (em aproximadamente 23 alentados volumes) dos
comentários antigos às obras de Aristóteles entre aproximadamente 1870 e 1890.
Atualmente, a citação dos textos de Aristóteles segue a chamada numeração Bekker.
Embora, como já dito antes, o pensamento de Aristóteles permaneça produzindo
efeitos diretos ou indiretos ao longo da filosofia moderna, o advento da moderna
história da filosofia no século XIX renova e prepara uma nova apropriação do
pensamento aristotélico no século XX. Em linhas muito gerais, essas são as etapas da
longa e complexa inserção da obra de Aristóteles ao longo dos últimos dois mil e
trezentos anos.

4. Seguindo aproximadamente a divisão estabelecida a partir de Andrônico de Rodes,


a filosofia aristotélica e as obras que a compõem podem ser assim apresentadas:

4.1. “Lógica” (entendida como um conjunto de discussões metodológicas em torno dos


usos do discurso): Categorias, Sobre a interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos
Analíticos, Tópicos e Refutações sofísticas; sendo acrescentados, especialmente pela
filosofia árabe, os tratados Arte Retórica e Arte Poética (colocados por Bekker no final
do corpus aristotelicum por diversas razões).

4.2. Ética: Ética Nicomacheia, Ética Eudemia, Política e A constituição dos atenienses,
descoberta apenas no século XIX. O texto Magna Moralia, atribuído a Aristóteles, é
considerado atualmente pela maioria dos/das estudiosos/as como não sendo de
Aristóteles
100
4.3. Física: Física, Sobre o Céu, Da geração e da corrupção, Metereológicos, Sobre a alma ou
De anima, Parva naturalia (composta por vários pequenos tratados), História dos animais,
Geração dos animais, Das partes dos animais, Do movimento dos animais. Para além dessas
obras, a longa obra intitulada Problemas, cuja maior parte é atualmente atribuída aos
seus discípulos diretos, trata quase exclusivamente de questões físicas e,
eventualmente, de questões éticas e matemáticas.

4.4. Metafísica: esta parte é composta pela obra Metafísica, organizada e assim
intitulada por Andrônico de Rodes, contendo quatorze tratados reunidos e que, para
a posteridade, discutem o que passou a ser chamado de ‘filosofia primeira’. O título
Metafísica é uma contração de uma descrição, a saber: ta (bibla) meta ta (bibla) physika,
ou seja, “os (livros) após os (livros) físicos”. Embora seja também uma classificação de
espírito “biblioteconômico”, diversos textos mostram que este título reflete um
ordenamento didático e metodológico segundo o qual esses textos deveriam ser lidos
após os livros que compõem a física aristotélica.

5. Como conclusão geral dessa brevíssima introdução ao pensamento de Aristóteles,


podemos dizer que sua lenta e decisiva entrada no cânone do pensamento após o
mundo grego se faz sentir, de modo geral, em todos os campos do saber:

5.1. Na filosofia: desconsiderando seu papel no neoplatonismo tardo-antigo,


inicialmente como modelo ou fonte privilegiada da filosofia árabe e da escolástica
europeia; e, a partir do século XIV, como fonte de ressurgimento da ética e na política
como campos autônomos de discussão do Renascimento em diante.

5.2. Nas ciências: tanto no que concerne à discussão da natureza do conhecimento


científico quanto nos campos mais específicos da psicologia, física e na biologia, os
quais começam a se constituírem como ciências autônomas, em grande medida, a
partir da recepção de sua obra, quer seja essa recepção conservadora, quer seja crítica.

5.3. Nas artes: especialmente na discussão sobre a poesia e a retórica entre os séculos
XVI e XVIII, discussão que passa essencialmente pela autoridade dos tratados Arte
retórica e Arte poética, cuja recepção, como indicado antes, pode ser considerada como
o último grande capítulo da inserção da obra aristotélica na tradição intelectual.

5.4. Nas religiões: como fonte metodológica para os argumentos em defesa do


cristianismo, do islamismo e do judaísmo, além da apropriação de suas ideias para a
discussão dos temas teológicos específicos, como a origem do mundo, a liberdade
humana e a natureza do divino.

5.5. De um ponto de vista da história de longa duração, podemos dizer que a obra de
Aristóteles tanto penetra de modo decisivo nesses campos de saber quanto é
responsável por abrir a possibilidade mesma da divisão entre eles, ou seja, é somente
graças às suas obras que esses campos de saber passam a existir.

101
(B) INTRODUÇÃO GERAL À METAFÍSICA DE ARISTÓTELES

6. Como indicado acima, a Metafísica de Aristóteles pode ser considerada, a partir da


reedição de seus escritos por Andrônico de Rodes, como uma parte específica da
filosofia aristotélica. Contudo, do ponto de vista mais teórico e interno, essa “parte”
da filosofia aristotélica pode ser considerada como uma tentativa de unificação de
todas as outras partes, contendo, por isso, elementos provenientes de muitas de suas
outras obras. Do outro lado e do ponto de vista de sua recepção, essa obra é tanto
problemática em sua estrutura quanto demandou aproximadamente mil e duzentos
anos para se tornar uma parte não apenas da filosofia aristotélica, mas da própria
compreensão da filosofia posterior, um processo que tem como marco inicial o Tratado
de filosofia primeira do grande filósofo e teólogo árabe Al-Kindi (séc. IX), o qual pode
ser considerado como o primeiro texto depois de Aristóteles a assumir a noção de
filosofia primeira como um campo específico da filosofia (em estreita correlação com
a teologia).

7. Em termos textuais, a obra é composta por quatorze Livros (“capítulos”). Desde o


início, essa reunião de textos foi problemática e apenas tentativa. Sinal disso é o fato
provavelmente devermos a Andrônico a colocação de dois Livros com a mesma
numeração, a saber: o Livro I ou Alfa Maior (A) e o Livro II ou Alfa Menor (α). Esse
sinal é indicativo da complexidade encontrada em várias partes do texto, nas quais
essa “ciência” é descrita de distintos modos: (a) no Livro I, capítulo 1-2, é descrita tanto
como sinônimo de ‘sapiência’ (sophia) e “a ciência dos primeiros princípios e primeiras
causas de todas as coisas”, quanto como “a ciência procurada” e “a ciência do
divino/deus”; (b) no Livro II, capítulo 1, é denominada como “a ciência da verdade”;
(c) no Livro III, capítulo 1, é repetido que seria “a ciência procurada”; (d) no Livro IV,
capítulo 1, dita como “a ciência que teoriza o ser enquanto ser e aquilo que se lhe
atribui por si mesmo”; (e) no Livro VI, capítulo 1, é descrita como “filosofia teológica”;
e, por fim, (f) no Livro XII, capítulo 1, é descrita como a “teoria da substância (ousia)”.

8. De modo geral, desde as primeiras recepções antigas e árabes, os seus intérpretes se


dividiram, grosso modo, entre os que dizem ser essa ciência a ontologia (não
necessariamente excluindo a teologia), como no caso de Al-Farabi e Avicena; e os que
dizem ser essa ciência a teologia (tendendo a submeter o aspecto ontológico ao
teológico), como no caso de Al-Kindi e Averróis. Após séculos dessas disputas
interpretativas, especialmente a partir da monumental obra de Francisco Suárez
intitulada Disputações metafísicas (1597), formou-se a concepção moderna de metafísica
(aplicada retrospectivamente à Metafísica de Aristóteles), concepção segundo a qual a
metafísica se dividiria em duas partes: a metaphysica generalis, identificada com a
ontologia, e a metaphysica specialis, subdividida em psicologia racional (que discutia as
questões relativas à natureza da alma humana), cosmologia racional (que discutia as
questões relativas à natureza do mundo) e a teologia racional (que discutia as questões
relativas à natureza de Deus). Dessa concepção moderna sobre a estrutura da
metafísica como ciência, a ontologia e a teologia remetem diretamente à Metafísica de
Aristóteles, sendo a psicologia e a cosmologia inserções devidas principalmente aos

102
desenvolvimentos da metafísica medieval, embora com inspiração em outros tratados
de Aristóteles.

103
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 17

METAFÍSICA, LIVRO I, CAPS. 1-3

OS PRIMEIROS CAPÍTULOS DO LIVRO I DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES


1. Introdução:
O Livro I (“Alfa maior”) é um dos textos mais conhecidos da obra remanescente de
Aristóteles. Mesmo assim, possui um teor mais introdutório do que propriamente uma
discussão direta sobre aquilo que em seu início é chamado de ‘sapiência’ (sophia),
‘ciência dos primeiros princípios e causas de todas as coisas’ e mesmo de ‘ciência
procurada’. Como é comum em outras obras de Aristóteles, o texto começa por discutir
o tema através de uma análise crítica das opiniões geralmente aceitas (endoxa) sobre o
tema, quer as opiniões mais gerais, quer as opiniões sustentadas pelas pessoas
reputadas como as mais sábias na discussão do tema. A partir disso, o Livro I da
Metafísica pode ser dividido em três partes:

(I) A apresentação da “ciência que buscamos/procuramos” (epistêmê dzêtoumen) nos


capítulos 1-2, abordando-a a partir de opiniões que seriam partilhadas por todo o senso
comum (grego ou humano?).

(II) A discussão desta ciência, nos capítulos 3-6, através do exame das concepções sobre
os quatro tipos de causas (material, eficiente, final e formal) tal como Aristóteles
entende que seus antecessores trataram estes tipos.

(III) A discussão desta ciência, nos capítulos 7-10, através do exame das concepções
sobre os princípios elaboradas pelos filósofos anteriores a Aristóteles.

Não teremos tempo de analisar essas três partes. Falaremos, de modo muito geral,
sobre as duas primeiras, com maior ênfase para a primeira delas.
2. O capítulo 1 do Livro I da Metafísica:

2.1. O principal objetivo deste capítulo é apresentar uma hierarquia progressiva das
formas de saber (eidenai); hierarquia que tem a seguinte ordem: sensação (aisthêsis),
memória (mnêmê), experiência (empeiria), arte/técnica (technê) e ciência (epistêmê).
Indica-se, ademais, que a sapiência (sophia), seria o último grau do último tipo de saber,
ou seja, da ciência, sendo, portanto, a mais elevada forma de saber. Essa hierarquia não
é apenas do saber propriamente humano, mas, em parte, também do saber animal.
Com efeito, todos os animais (incluindo o humano) possuem sensação, uma parte
deles também possui memória, e, uma pequena parte, possui ainda experiência.
Todavia, a arte/técnica e a ciência, segundo Aristóteles, seria exclusividade dos seres
humanos diante dos outros tipos de animais.

2.2. O primeiro capítulo da obra inicia com uma da asserção com pretensão universal:
“Todos os seres humanos, por natureza, desejam de saber.” Essa asserção é
imediatamente corroborada por uma célebre reflexão sobre o amor ou apego (agapêsis)

104
que, supostamente, todas as pessoas possuem pelas sensações, mesmo quando estas
não estão operando em vista de alguma finalidade. Mas dentre todos os tipos de
sensações, aquele tipo que logo de início é estabelecido como privilegiado é o da visão,
pois nos revela e nos faz conhecer, mais do que todos os outros tipos de sensação, o
maior número de diferenças. É interessante notar que o termo grego para saber usado
no contexto, eidenai, provém diretamente do verbo ‘eidô’, que possui também,
conforme os contextos de uso, o sentido de ‘ver’.

2.3. Outro aspecto importante que está presente na hierarquia das formas de saber
apresentada neste capítulo consiste na diferenciação entre as formas de saber que se
relacionam com o ‘saber que algo é’ (eidenai hoti) e aquelas que se relacionam com o
‘saber por que algo é’ (eidenai dioti). Sensação e memória são as formas de saber que
algo é como é, enquanto a técnica e a ciência são as formas de saber por que algo é
como é. No caso da experiência (sempre compreendida como um saber restrito ao
indivíduo), essa forma de saber permanece preponderantemente como uma forma de
saber que algo é como é, embora já tenha, minoritariamente, uma relação com o saber
por que algo é como é, mas apenas no caso dos seres humanos. Essa “dupla natureza”
da experiência em Aristóteles pode ser comparada com a diferenciação (atualmente
corrente) proposta por Gilbert Ryle, a saber: a diferença entre um saber prático
(knowing how: ‘saber como fazer’) e um saber abstrato ou proposicional (knowing that:
‘saber que...’).

2.4. Por fim, o capítulo apresenta as razões para atribuirmos a sapiência (sophia),
apenas para os níveis do saber restritos à arte e a à ciência, pois ao serem conhecimento
do porquê algo é como é, são também o saber de caráter universal e mais próximo do
necessário. Além disso, o texto indica ainda uma diferenciação entre as artes que forma
descobertas ou inventadas em vista de alguma utilidade ou necessidade prática e
aquelas que o foram para o deleite, sendo estas últimas superiores àquelas. Dentre as
artes do último tipo, Aristóteles apresenta o exemplo da construção das matemáticas
nas castas sacerdotais do Egito. O texto encerra sugerindo que dentre as pessoas
consideradas sábias (sophoi), a sapiência (sophia) deve ser entendida como uma
investigação em vista do conhecimento das causas primeiras e dos princípios.
Aristóteles subentende aqui uma diferenciação que é explicitada no capítulo 2 do Livro
V da Metafísica, a saber: todas as causas são princípios, mas nem todos os princípios
são causas, como por exemplo os princípios de não-contradição e do terceiro excluído
(discutidos no Livro IV, caps. 3-8).
3. O capítulo 2 do Livro I da Metafísica:

3.1. Este capítulo continua as reflexões de Aristóteles sobre as opiniões gerais sobre a
sapiência (sophia) a partir de outra perspectiva. De modo geral, este capítulo pode ser
dividido em duas partes: (i) a determinação do caráter geral da sapiência a partir dos
sentidos em que os termos ‘sábio’ (sophos) e ‘sapiência’ (sophia) seriam usados no senso
comum grego (982a4-b10); e (ii) o caráter puramente teórico (“inútil”) da sapiência

105
como forma mais elevada do desejo de saber as causas e os princípios mais universais
e “divinas” de todas as coisas do mundo (982b11-983a23).
Primeira subdivisão:
3.2. Segundo a análise semântica de Aristóteles, são quatro os sentidos encontrados no
uso do adjetivo ‘sábio’ como usado no senso comum: (1) ter conhecimento de uma ou
da totalidade; (2) ter conhecimento das coisas mais difíceis; (3) ter o conhecimento das
causas; (4) ter capacidade de ensinar esse conhecimento das causas a outras pessoas.
A partir desses quatro sentidos de ‘sábio’, Aristóteles apresenta dois sentidos corretos
em que se aplica o adjetivo ‘sapiência’ (sophia): (a) a sapiência é própria de um
conhecimento escolhido em função de si mesmo e não de alguma utilidade; e (b) a
sapiência é superior e dominante em relação às outras ciências inferiores a ela.

3.3. Segue-se, imediatamente, uma condensada argumentação em favor de que a


sapiência, enquanto a ciência buscada nesta investigação, preenche todos esses
sentidos. (1’) A sapiência é conhecimento da totalidade por ser ciência do universal
que determina todas as coisas particulares nele “contidas”. (2’) O conhecimento do
universal é sempre o conhecimento mais difícil, pois se afasta em grau máximo da
sensação, que é sempre de coisas particulares. (3’) A partir disso, a sapiência é o
conhecimento mais elevado e mais exato das mais elevadas e causas. (4’) Por conta de
tudo isso, essa ciência é aquela que, para quem a possui, é a mais passível de ser ensina.
(a’) Tendo em visto todas as características anteriores, a sapiência é a ciência escolhida
por si mesma e não em vista de outra coisa, pois é ciência do que é cognoscível no mais
alto grau. (b’) Por fim, é a mais elevada das ciências porque é o conhecimento mais
elevado da finalidade (“sumo bem”) de todas as coisas, sendo, portanto, a mais apta a
comandar todas as demais ciências.
Segunda subdivisão:
3.4. Nesta subparte encontramos as indicações sobre dois temas intimamente
correlacionados: (i) a sapiência como realização da finalidade última da origem de
todo o saber: a admiração/o espanto (to thaumadzein); e (ii) o ser a sapiência a ciência
mais divina e sobre o divino, sendo, por isso, a mais digna de ser
estudada/investigada pelas pessoas livres.

3.5. Sobre (i), Aristóteles adapta aqui um tema que já encontramos em Platão (Teeteto,
155d): que a origem do filosofar é a admiração/o espanto (to thaumadzein). Eis a frase
inicial do trecho: “Pois é por causa da admiração que os seres humanos atualmente e
nos primeiros tempos começaram a filosofar: com efeito, no princípio, pela
perplexidade (atopôn) diante das coisas corriqueiras (procheira); em seguida, passaram
das coisas menores ao questionamento (diaporêsantes) sobre as maiores, como por
exemplo: sobre as propriedades (pathêmatôn) da lua, do sol e dos astros; e <por fim>
acerca da geração de todo <o universo>.” (982b12-17) Como é costumeiro, Aristóteles
explica em termos gerais esse “sentimento” de admiração como a origem do filosofar
(desejo de saber) apresentando “fenomenologicamente” tal sentimento como o

106
reconhecimento do ignorar (oietai agnoein) o porquê de determinada coisa ser como é
ou acontecer como acontece. E assim como esse “sentimento” de admiração não se
deve a algum tipo de necessidade prática, mas de um tipo de curiosidade natural dos
seres humanos, assim também, o processo de se livrar da ignorância (a busca pelo
saber) é feito em vista do conhecimento por si mesmo e não do conhecimento em vista
de alguma utilidade prática. A evidência disso, segundo Aristóteles, se encontra no
fato de que o sentimento de admiração só ocorreria quando as necessidades mais
básicas da vida cotidiana já estão satisfeitas. A sapiência seria a forma mais acabada e
oposta da admiração, ou seja, o estado oposto à ignorância, o conhecimento mais
completo das causas que não é buscado por alguma finalidade exterior a ele próprio,
mas unicamente pelo prazer intelectual inerente a sua posse. Uma vez adquirida a
sapiência (tanto como conhecimento das causas “secundárias” nas ciências quanto
como conhecimento das causas primeiras na sapiência em seu sentido pleno (a
“metafísica”)), nos familiarizamos com as coisas como elas são ou acontecem porque
sabemos suas causas, sendo de se admirar que elas ocorressem de modo distinto
daquele que chegamos a saber. Para encerrar a exposição sumária dessa parte do
capítulo 2, é interessante notar que temos aqui, de modo geral, o tom da questão
metafísica fundamental que perpassa a filosofia grega, a saber: “por que o mundo é
como ele é e não de outro modo?”. Essa questão metafísica fundamental seria mais
tarde modificada ao longo da filosofia medieval e moderna, tendo consequências até
hoje discutidas. Essa modificação se expressa na questão explicitada por Leibniz, a
saber: “Por que há um mundo e não simplesmente nada?” Essa última questão só pode
emergir quando se postula (pela fé e pela razão) uma divindade criadora de todas as
coisas, divindade que poderia não as ter criado.

3.6. O outro tema que é discutido neste capítulo (em estreita relação com o anterior), é
o tema do caráter divino dessa ciência (a sapiência em sentido estrito) e o fato de ter o
divino como tema. Dado ser o saber (ciência) mais elevado, poderia parecer que tal
ciência não é própria ao ser humano, dado que, em vários aspectos, a natureza humana
é servil e, portanto, indigna de tal ambição. Segue-se uma confrontação implícita com
os poetas anteriores e sua concepção trágica da vida humana e da divindade, uma
confrontação que nos lembra novamente Platão. Em primeiro lugar, segundo
Aristóteles, “os poetas mentem demais” (frase curiosamente retomada no poema
Assim falou Zaratustra de Nietzsche), de tal forma que sua concepção segundo a qual a
divindade teria inveja da possibilidade de realização desta felicidade intelectual e
tornaria quem a desejasse vítima de desgraças deve ser vista como uma mentira
poética. Ao contrário, não haveria maior felicidade e mais nobre e digna finalidade a
ser perseguida pelas pessoas livres. Em segundo lugar, essa ciência é capaz de
produzir tal felicidade porque é uma ciência do divino nas duas acepções que o
genitivo ‘do’ possui. De um lado e no sentido objetivo do genitivo, essa ciência é
ciência do divino porque tem o divino como seu tema de investigação, dado que o
divino é, desde os primeiros pré-socráticos, identificado filosoficamente com a causa
primária (ou as causas primárias) do mundo ser como ele é. De outro lado e no sentido
subjetivo do genitivo, ela é a ciência do divino porque é aquela possuída pela própria
107
divindade, de maneira que quem chega a possuí-la assume, na medida das
capacidades humanas, o ponto de vista divino sobre a totalidade do mundo.
4. O capítulo 3 do Livro I da Metafísica
4.1. Introdução: as quatro causas como critério para a análise da história da filosofia
grega.
(A) Divisão geral do capítulo 3:
Podemos dividir o capítulo 3 do Livro em duas partes. A primeira parte, introdutória,
nos fala das quatro causas e indica os motivos de fazer uma análise de como os
antecessores de Aristóteles trataram essa quatro causas como algo importante para se
poder estabelecer as bases históricas da sapiência como ciência das primeiras causas
de todas as coisas. Essa primeira parte vai de 983a 24 até 983b 6. A segunda parte,
começa efetivamente o tratamento dos antecessores, notadamente dos chamados
primeiros filósofos, no tocante à causa material e às causas eficiente e final. Essa parte
vai de 983b 6 até 984b 22. Essa segunda parte do capítulo pode ser subdividida em
duas. Uma primeira subdivisão expõe como os primeiros filósofos e os seus sucessores
conceberam a causa material como a única ou principal causa de todas as coisas. Esta
primeira subdivisão vai de 983b 6 até 984a 16. A segunda subdivisão do capítulo
apresenta os problemas de se tomar apenas a causa material como causa de todas as
coisas, mostrando como alguns dos filósofos pré-aristotélicos entreviram a
necessidade de uma outra causa capaz de modificar essa matéria de todas as coisas,
causa esta que oscila entre a causa eficiente e a causa final.
(B) Uma visão geral sobre as quatro causa em Aristóteles:
O capítulo 3 marca uma mudança na abordagem da sapiência como ciência das
primeiras causas de todas as coisas. A partir deste capítulo até o final do Livro I, a
abordagem de Aristóteles não parte mais das opiniões geralmente aceitas pelo senso
comum em geral, mas a partir das opiniões dos filósofos anteriores no que tange ao
tema das causas, uma vez que a sapiência é determinada como a ciência das causas e
princípio primários de todas as coisas. O início do capítulo, portanto, estabelece que a
noção de causa se diz em quatro sentidos, remetendo ao tratamento dessas causas que
está presente no capítulo 3 do Livro II da Física. A teoria das causas de Aristóteles é
bastante complexa e não poderemos, aqui, senão fazer uma apresentação muito breve
da mesma. Embora sejam quatro, as causas aristotélicas, em sua apresentação no
presente capítulo mostram-se mais facilmente em seu sentido quando pensadas como
dois pares correlacionados. O primeiro par é composto pelo que se convencionou
chamar de causa formal e causa material. Conforme nosso hábito linguístico já
consolidado, trata-se da forma e da matéria (ou mesmo conteúdo) como aspectos
complementares de uma coisa. No vocabulário de Aristóteles neste capítulo, a causa
formal é denominada como a substância (ousia) e a essência (to ti ên einai) de algo. Já o
que chamamos de causa material é denominada por Aristóteles pelos termos matéria
(hylê) e substrato (hypokeimenon). O segundo par é composto pelo que se convencionou

108
chamar de causa eficiente e causa final. Esse par pode ser entendido, inicialmente como
o princípio que move algo e a finalidade para a qual este algo é movido. É importante
entender, porém, que a causa final não é apenas uma resultante de forças mecânicas
que interagem. A causa final já deve estar, de algum modo, prescrita no início da
transformação de algo. Portanto, a causa eficiente e a causa final são, na metáfora
popular, os dois lados de uma mesma moeda. No jargão aristotélico do capítulo a
causa eficiente é denominada pela expressão ‘princípio/início de movimento’ (arché
tês kinêseôs), enquanto a causa final é denominada pela expressão ‘aquilo em vista do
quê’ (to hou heneka), pela expressão ‘finalidade da geração e do movimento’ (telos) ou
simplesmente pelo termo ‘o bem’ (tagathon), no sentido daquilo que é a completude ou
perfeição no desenvolvimento de alguma coisa. Se quisermos estabelecer uma
diferenciação no sentido dessas causas, podemos dizer, em termos puramente
didáticos, que a causa formal responde a pergunta ‘o que algo é?’; a causa material
responde a pergunta ‘em que algo é?’; a causa eficiente responde a pergunta ‘a partir
do que algo é?’; e, por fim, a causa final responde a pergunta ‘para que algo é?’. Em
um quadro esquemático:

Causa formal = o que é

Causa material = em que é

Causa eficiente = a partir do que é

Causa final = para que é

Até os dias de hoje, tanto na filosofia quanto nas ciências, há grande controvérsia no
que diz respeito ao sentido ou aos sentidos do conceito polissêmico de causa. Nos dois
últimos séculos, por conta da difusão da física newtoniana, nós nos acostumamos a
compreender, de modo geral e vago, a noção de causa no sentido da causa eficiente
aristotélica, mesmo que os outros sentidos ainda estejam presentes em nossos usos da
noção de causa. Com isso, tendemos a pensar a noção de causa como algo que tem
relação direta ou exclusiva com a noção de princípio do movimento ou transformação
de algo, como aquilo que, de fora de algo, causa neste algo alguma transformação,
considerada como o seu efeito. A noção de causa aristotélica inclui essa compreensão
moderna comum, mas de modo algum pode ser reduzida a ela. Uma maneira de nos
aproximarmos mais da noção aristotélica de causa é compreender esta noção como
estabelecendo as condições que tornam possível que uma coisa seja o que ela é. Assim,
para que algo seja o que é, é necessário que possua uma forma, uma matéria, um início
de sua existência ou de seu estado atual, bem como uma finalidade para esta mesma
existência ou estado. Em resumo: a noção aristotélica de causa nos aponta para as
condições necessárias de existência de algo, aquelas condições sem as quais essa coisa
não poderia ser o que ela de fato é. Para Aristóteles, as causas devem nos apresentar
todos os sentidos do porquê (to dioti) de algo. Além disso, Aristóteles estabelece uma
sinonímia parcial entre as noções de causa e de princípio do seguinte modo: todas as
causas podem ser chamadas de princípios de algo, embora nem todos os princípios
sejam também causas.
109
(C) A importância da “história da filosofia” presente na segunda parte do Livro I:
Como já foi dito acima, do capítulo 3 até o capítulo 10 do Livro I da Metafísica,
Aristóteles apresenta uma análise crítica dos seus antecessores a partir do modo como
eles teriam tratado das quatro causas mencionadas. Embora diversos intérpretes já
tenham marcado corretamente que não podemos tomar a análise de Aristóteles como
um exemplo de história da filosofia no sentido em que esta passou a ser realizada a
partir do século XIX, é importante notar que Aristóteles é o primeiro filósofo grego a
incorporar como um momento necessário do desenvolvimento de sua própria filosofia
a análise crítica das filosofias anteriores. Essa é uma das razões pelas quais Hegel, que
também toma a história da filosofia como parte fundamental da elaboração de sua
filosofia, concebe Aristóteles como o marco divisório da filosofia antiga. Na realidade,
esse procedimento de análise crítica dos argumentos de seus antecessores não se
restringe ao Livro I da Metafísica, mas aparece também, por exemplo, no Livro I de sua
Física e no Livro I de seu tratado Sobre a alma ou De anima. Contudo, a “história da
filosofia” que aparece nesta segunda parte do Livro I da Metafísica se tornou, por
diversas razões, o momento mais famoso em que opera este procedimento de revisão
dos argumentos e teorias seus antecessores. Mas talvez a maior importância da análise
histórica apresentada no Livro I da Metafísica se encontre no seguinte fato: embora
Aristóteles esteja claramente propondo uma nova ciência que seria a ciência primária
acima de todas as outras, ele procura mostrar que essa ciência é capaz de realizar algo
que já estava presente nos esforços de seus antecessores e, na realidade, em toda a
filosofia anterior a ele. Com isso, não apenas o texto da Metafísica, mas a própria noção
de metafísica que começa a se desenvolver a partir da filosofia árabe não pode deixar
de se posicionar como uma maneira de interpretação do passado da filosofia. A
maneira como Aristóteles apresenta a posição de seus antecessores a respeito das
quatro causas que ele organizou se tornou uma visão dominante sobre a filosofia pré-
aristotélica até o século XX. Com isso, a Metafísica não é apenas um texto de suma
importância para o posterior desenvolvimento da metafísica como campo de
investigações e debates da filosofia, mas também como uma das perspectivas de
realização da história da filosofia.
(D) A causa material como primeira causa reconhecida na história da filosofia pré-
aristotélica e a distinção entre monistas e os pluralistas:
O primeiro momento do capítulo consiste em apresentar a tese segundo a qual: “Os
que primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os princípios de todas as
coisas fossem exclusivamente materiais” (p. 15, 983b 6-7) Assim, no quadro das quatro
causas, esses primeiros filósofos teriam identificado apenas a causa material. A
sequência imediata da citação acima apresenta o argumento geral que os teria levado
a essa constatação. Esse argumento é assim apresentado:

110
“De fato, eles afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos e aquilo de
que originariamente derivam e aquilo em que por último se dissolvem é elemento e
princípio dos seres, na medida em que é uma realidade que permanece idêntica
mesmo na mudança de suas afecções.” (p. 15, 983b 8-11)22

Compreendemos com facilidade este argumento porque estamos familiarizados com


o princípio da conservação das massas, proposto em torno de 1775 pelo químico
francês Antoine Lavoisier: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma.”, o que quer dizer que apesar da diferença entre as coisas, a quantidade
de matéria de que são feitas não se altera com duas diferenças e suas transformações.
No caso dos primeiros filósofos visados por Aristóteles, isso significa que a única
condição necessária de existência (causa) de todas as coisas é a matéria última de que
são compostas.

Não obstante este argumento em comum, segundo Aristóteles, os primeiros filósofos


divergem “quando ao número e à espécie desse princípio.” (p. 17, 983b 19-20)
Seguindo a distinção que é apresentada por Aristóteles, podemos simplificar essa
divergência entre os que defenderiam ser um único o tipo de matéria que comporia a
causa material (monistas) e os que defenderiam serem múltiplos ou mesmo infinitos
os tipos de matéria através dos quais atuaria a causa material (pluralistas). Aristóteles
passa, então, a listar aqueles que teriam dito que o princípio (causa) material seria um
único. O primeiro a ser mencionado é Tales de Mileto, o qual, segundo Aristóteles,
teria sido “o iniciador deste tipo de filosofia” (983b 20). Essa é uma das passagens que
acabaram por estabelecer Tales como o primeiro dentre os filósofos gregos. A tese de
Tales é vulgarmente expressa pela máxima “tudo é água”, indicando, no contexto
aristotélico que estamos analisando, que a água é a matéria básica da qual todas as
coisas são feitas, sendo transformações desse elemento primário. Aristóteles sugere
que esta tese já estaria presente na poesia de Homero, contribuindo para a
compreensão ainda vigente entre nós de acordo com a qual a filosofia surge de uma
transformação do pensamento mítico-poético que a antecede e a acompanha. Depois
da menção a Tales, Aristóteles lista outros filósofos que teriam indicado um único
princípio material para todas as coisas: Anaxímenes de Mileto e Diógenes de Apolônia
teriam defendido que o princípio (causa) material de todas as coisas seria o ar e todas
as coisas seriam modificações desse elemento primordial; Hipaso de Metaponto (do
qual só temos essa menção) e Heráclito de Éfeso teriam defendido que o princípio
material único de todas as coisas seria o fogo.

Em contraste com essa lista de filósofos que teriam defendido que a causa material
seria constituída por um único elemento, Aristóteles menciona em seguida aqueles
pensadores que teriam defendido não um único elemento, mas vários e mesmo
infinitos em tipo. Como defensor de que haveria vários elementos, Aristóteles

22Já foi notado por certos intérpretes que esse trecho serviu a Simplício como base para “filtrar” em
termos aristotélicos o célebre fragmento de Anaximandro que analisamos na segunda aula deste
semestre. Apesar dessa similaridade, Aristóteles não menciona Anaximandro no Livro I da Metafísica.

111
menciona Empédocles de Agrigento, que teria defendido que a causa material de todas
as coisas se distribuiria por quatro elementos igualmente fundamentais e irredutíveis
uns aos outros, a saber: água, fogo, ar e terra, tendo sido o primeiro a colocar a terra
como um elemento fundamental ao lado dos demais. As coisas seriam constituídas
pela agregação e pela desagregação desses quatro elementos. Em seguida, Aristóteles
apresenta Anaxágoras como o representante dos que defenderam serem “infinitos”
(apeirous) os elementos materiais, sendo as coisas por nós percebidas denominadas
pelo termo ‘homeomerias’, ou seja, ‘partes semelhantes’. Este é um termo
provavelmente cunhado por Aristóteles para o que Anaxágoras teria chamado de
‘sementes’ (spermata). Não podemos discutir aqui em detalhe essa complexa passagem.
Cumpre, porém, notar que a tradução do termo ‘apeiron’ por ‘infinito’ não é óbvia e
pode levar a sérios problemas filosóficos. O principal desses problemas é
compatibilizar a noção de infinito com a de das coisas finitas compostas de partes
semelhantes. Esse problema pode ser dirimido se traduzimos o termo ‘apeiron’ por
‘indefinido’, ou seja, o número dos tipos de elementos materiais não seria infinito, mas
indefinido, no sentido de não sabermos qual sua real quantidade, mas não implicando
que eles seriam em número infinito. Para além disso, a noção de homeomeria provém
da interpretação aristotélica de duas teses de Anaxágoras. A primeira tese é expressa
pela frase “no princípio/início, todas as coisas estavam juntas”. A segunda tese,
diretamente ligada à anterior, é que todas as coisas que vemos como diferenciadas são
porções dessa matéria primordial, uma tese expressa pela frase “tudo está em tudo”.
A diferença entre as coisas, portanto, se deve apenas à maior ou menor porção de
homeomerias (partes semelhantes) de que estas coisas são compostas, aquilo que
Anaxágoras denominava de ‘sementes’ das coisas. Seria a partir dessas homeomerias,
como um tipo de elemento básico, que todas as coisas a nossa volta seriam
constituídas, permanecendo tais homeomerias fora do processo de nascimento
(geração) e morte (corrupção, perecimento), uma vez que as coisas que nascem e
morrem são agregados dessas unidades materiais mais básicas. Embora não possamos
descartar a interpretação de Aristóteles, não podemos simplesmente assumi-la como
a única que dá conta de todos os aspectos do pensamento de Anaxágoras, sobre o qual
tem havido, nos últimos dois séculos, várias controvérsias.
(E) Os problemas de assumir apenas a causa material como causa de todas as coisas
e a exigência do reconhecimento das causas eficiente e final:
Como já indicado antes, a segunda subdivisão da segunda parte do capítulo 3 é
constituída pela reflexão aristotélica sobre como a própria natureza das coisas
investigadas pelos seus antecessores os forçou a admitirem uma outra causa para além
da causa material. Essa espécie de “imposição dos fatos” se apresenta na primeira
passagem que abre essa subdivisão do capítulo:

“Com base nesses raciocínios, poder-se-ia crer que exista uma causa única: a chamada
causa material. Mas, enquanto esses pensadores procediam desse modo, a própria
realidade lhes abriu o caminho e os obrigou a prosseguir na investigação. De fato,
mesmo tendo admitido que todo processo de geração e corrupção derive de um único

112
elemento material, ou de muitos elementos materiais, por que ele ocorre e qual é sua
causa? Certamente não é o substrato que provoca a mudança em si mesmo. Vejamos
um exemplo: nem a madeira nem o bronze, tomados individualmente, são causa da
própria mudança; a madeira não faz a cama nem o bronze faz a estátua, mas é outra a
causa de sua mudança. Ora, investigar isso significa buscar o outro princípio, isto é,
como diríamos nós, o princípio do movimento.” (p. 19, 984a 16-27)

O trecho nos mostra que as concepções anteriores (quer monistas, quer pluralistas)
tendiam a estabelece como única causa de todas as coisas a causa material. Contudo,
forçados pela própria natureza da realidade, alguns desses filósofos começaram a
entrever a necessidade de postular uma outra causa, uma vez que as mudanças na
matéria não poderiam ser realizadas por ela mesma, dado que, neste caso, a causa e o
efeito seriam uma mesma coisa, algo que Aristóteles supõe como sendo absurdo.
Aparentemente, a causa expressamente mencionada no trecho citado é a causa
eficiente (“o princípio do movimento”). Contudo, os exemplos da cama e da estátua já
apontam para algo que já mencionamos: a necessária correlação entre a causa eficiente
e a causa final, algo que também seja mais claramente apontado no final do capítulo 3.

A sequência imediata da citação acima parece descrever como essa dificuldade


começou a surgir na investigação de alguns dos primeiros filósofos que, supostamente,
já assumiam como evidente a causa material como causa de todas as coisas. Uma
primeira reação a esta dificuldade da incapacidade de a matéria causar em si mesma
as transformações que vemos no mundo consistiu em negar a existência da
transformação e afirmar a imobilidade (=imutabilidade) e unidade radical do
substrato material. Essa posição parece ser atribuída aos monistas. Contudo, dentre os
monistas que teriam defendido a unidade e imutabilidade do substrato material,
Aristóteles aponta que Parmênides parece ter reconhecido que haveria a necessidade
de ao menos duas causas: uma material e outra eficiente, uma menção que é
completada em seu significado por uma passagem do capítulo 5, no qual Aristóteles
atribui a Parmênides a tese segundo a qual o fogo seria causa eficiente e a terra causa
material das coisas no mundo. Após essa indicação de que Parmênides não teria sido
um monista em sentido completo, Aristóteles aponta para o fato de alguns pluralistas
(aqui, há controvérsia sobre a quem se refere o Estagirita) terem conseguido resolver
melhor o problema do que os monistas, uma vez que na pluralidade dos elementos
materiais que admitiram, uns tomaram como causa eficiente dos outros.

O capítulo se encerra com o passo seguinte ao reconhecimento ainda vago e inicial da


necessidade de postular uma causa eficiente além da causa material: o reconhecimento
da necessidade de reconhecer a necessidade de procurar uma causa final para as
coisas. Segundo Aristóteles, somente Anaxágoras e talvez Hermótimo de Clazômenas
(uma figura obscura da qual pouquíssimo sabemos) tenham estabelecido pela
primeira vez este tipo de causa como o correlato necessário da causa eficiente já
entrevista pelos seus antecessores. Esse “lampejo de sensatez” (como se depreende da
forma elogiosa com que Aristóteles menciona tal fato) proviria justamente de
Anaxágoras ter postulado que a Inteligência (nous) seria o princípio movente de todas
113
as coisas, o que, para Aristóteles, significa ter Anaxágoras compreendido ser o belo e
o bem uma causa de as coisas serem como são. A primeira coisa a se observar neste
trecho é que Aristóteles, ainda que implicitamente, adere à leitura feita por Platão no
diálogo Fédon sobre a figura de Anaxágoras (97c ss). Conforme já vimos em aulas
anteriores, diante das dúvidas que o jovem Sócrates (Platão) levantara diante das
investigações sobre a natureza feitas pelos seus antecessores, apenas Anaxágoras, à
primeira vista, teria se diferenciado ao propor que a Inteligência seria a causa primária
de todas as coisas. Mas essa aderência à interpretação platônica de Anaxágoras nos
conduz à segunda observação diante do final do capítulo 3: não devemos tomá-la pelo
seu “valor de face”. Assim como Platão faz no Fédon, no capítulo seguinte, Aristóteles
critica Anaxágoras por não ter retirado as consequências corretas da tese de que a
Inteligência é a causa ao mesmo tempo eficiente e final para todas as coisas. Convém
antecipar para o presente momento esta passagem crítica do capítulo seguinte: “O
próprio Anaxágoras, na constituição do universo, serve-se da <Inteligência> como de
um deus ex machina, e só quando se encontra em dificuldade para dar a razão de alguma
coisa evoca a Inteligência; no mais, atribui a causa das coisas a tudo, menos à
Inteligência.” (p. 23, 985a 18-21) Aqui, malgrado as diferenças evidentes entre o mestre
e o discípulo, Aristóteles compartilha com Platão a mesma decepção diante de
Anaxágoras: ele se vale da Inteligência em suas explicações da natureza tal como
alguns poetas dramáticos se valem de um deus baixado no palco por uma corda (o
deus ex machina) para resolver algum tipo de incoerência que a ação interna dos
personagens não foi capaz de fazê-lo. Em outras palavras, Anaxágoras teve uma ótima
ideia, mas não soube usá-la do modo correto.23 Todavia, mesmo sendo criticado deste
modo, Aristóteles (seguindo Platão) atribui a Anaxágoras e, no próximo capítulo, em
parte a Empédocles terem sido os primeiros a abrir caminho para o reconhecimento
da necessidade de se postular, em par com a causa eficiente e material, também a causa
final como condição necessária de explicação da existência e do modo como as coisas
se nos apresentam no mundo natural.

23 Não obstante o peso inevitável que as opiniões de Platão e Aristóteles possuem, devemos ser
cautelosos em relação a esse uníssono das interpretações do conceito de Inteligência proposto por
Anaxágoras. Uma leitura atenta dos fragmentos e dos testemunhos sobre sua filosofia nos permite
mostrar que a leitura de Platão e Aristóteles é bastante enviesada e feita nos termos de suas próprias
filosofias. Em relação a isso, a coisa mais importante a se observar é que Platão e Aristóteles procuram
atribuir à Inteligência de Anaxágoras as propriedades que reconhecem para a inteligência humana, ao
passo que Anaxágoras parece sugerir o contrário, ou seja, que deveríamos medir a inteligência humana
a partir das características da Inteligência enquanto princípio ordenador de todas as coisas.

114
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I, AULA 18

METAFÍSICA, LIVRO I, CAPS. 4-6


1. Introdução:
A sequência dos capítulos 4-6 pode ser considerada como um tipo de fechamento da
primeira subdivisão da segunda parte do Livro I. A segunda subdivisão da segunda
parte do Livro I é constituída pelos capítulos 7-10, sobre os quais não trataremos nesta
disciplina. No capítulo 7, Aristóteles realiza um tipo de resumo de suas primeiras
análises históricas para retomá-las, em outro nível, no capítulo 8, onde empreende uma
crítica mais geral aos filósofos até Platão, e no longo capítulo 9, no qual apresenta uma
extensa lista de argumentos contra Platão e os seus defensores imediatos. O capítulo
10, que fecha o Livro I, é apenas um breve epílogo de toda a investigação histórica,
filosófica e crítica realizada entre os capítulos 3-9. Como dizíamos, o capítulo 4
prossegue a discussão histórico-argumentativa sobre a necessidade de reconhecer a
causa final ao lado das causas material e eficiente, marcando em seu final a posição
heterodoxa assumida pelo atomismo de Leucipo e Demócrito. O capítulo 5 empreende
a discussão dos pitagóricos e dos eleatas, os quais, em certa medida, foram os
primeiros a entrever a causa formal. Por fim, o capítulo 6 faz uma gênese conceitual
da teoria das Formas ou Ideias de Platão em continuidade com os pitagóricos, bem
como indica algumas das críticas que somente são desenvolvidas com mais detalhe no
capítulo 9.

2. O capítulo 4 do Livro I da Metafísica


2.1. A divisão do capítulo:
Como dito há pouco, o capítulo 4 continua a exposição sobre a necessidade de
reconhecer a causa final como uma causa imprescindível na explicação da estrutura
do mundo. O capítulo pode ser dividido em duas partes. Na primeira (984b 23-985b
4), depois de uma breve menção a Hesíodo e Parmênides, são discutidos especialmente
aspectos da filosofia de Anaxágoras e Empédocles, os quais teria sido os primeiros a
entrever a necessidade de reconhecer a causa final como fator explicativo da ordem da
totalidade. Na segunda parte (985b 4-22), quase como um epílogo, são apresentadas
algumas das teses do atomismo de Leucipo e Demócrito como pensadores que teriam
rejeitado não apenas a causa final, mas também a causa eficiente, restringindo o tema
das causas à causa material, embora de maneira mais elaborada do que os primeiros
filósofos.
2.2. Os pensadores que primeiro entreviram a causa final, em particular Empédocles
e Anaxágoras:
O tema central do capítulo 4 é apresentar os que primeiro compreenderam, embora de
modo ainda vago e algo confuso, a necessidade de introduzir a causa final como um

115
dos fatores explicativos fundamentais da totalidade do mundo. O capítulo começa
fazendo uma referência a Hesíodo (Teogonia, versos 116-120) e a Parmênides (DK B 13)
como aqueles que pela primeira vez conceberam o amor e o desejo (epithymian) como
princípios das coisas existentes. Aos olhos de Aristóteles, ao pensarem assim, talvez
tenham sido estes pensadores os primeiros a pressentir a necessidade de reconhecer a
causa final ao lado da causa material e da causa eficiente, explicando esse
pressentimento do seguinte modo: “(...), como se ambos reconhecessem que deve
existir nos seres uma causa que move e reúne as coisas.” (985b 29-31) Essa menções a
Hesíodo e Parmênides, no entanto, parecem ser apenas um tipo de introdução ao
pensador que realmente tem a proeminência no capítulo: o poeta-filósofo Empédocles.
A abordagem aristotélica sobre Empédocles é ambígua. De um lado, encontramos não
apenas nesta trecho da Metafísica críticas duras ao seu antecessor, mas também em
outras obras. Na Poética, Aristóteles toma Empédocles como exemplo de que não é o
uso da métrica que torna algo um poema, mas o tema que é retratado no texto (cf.
Poética, cap. 1, 1447b 18-20). No próprio capítulo 4 do Livro I, logo após indicar que
Empédocles reconhece a causa final, compara-o aos pugilistas iniciantes, os quais, por
vezes, acercam alguns bons golpes, embora ainda sejam inexperientes na arte do
pugilato. De outro lado, porém, quando examinamos a coletânea dos fragmentos de
Empédocles realizada por Diels e Kranz na clássica obra Os fragmentos dos pré-socráticos
(1903-1951), percebemos que a maioria dos fragmentos ali coligidos provém de
citações de Aristóteles, o que mostra a atenção dada pelo Estagirita ao filósofo, poeta
e médico de Agrigento. Essa observação nos permite falar um pouco sobre a filosofia
de Empédocles que está em parte subentendida no capítulo 4, no qual é colocada no
centro do cena filosófica construída por Aristóteles.

Como já vimos, Aristóteles identifica Empédocles como tendo sido o primeiro a


defender que são quatro os elementos materiais, tendo sido o primeiro a incluir a terra
como um deles. Com efeito, Aristóteles, embora de modo mais complexo, defende a
tese dos quatro elementos em sua física. Na linguagem aristotélica, estes são chamados
de quatro elementos (stoicheia). Na linguagem de Empédocles, esses tipos básicos de
matéria são chamados de ‘raízes’ (rhizomata). Essas quatro raízes são a parte material
do mundo. Em uma bela e significativa metáfora poético-filosófica, Empédocles
compara essas quatro raízes materiais do mundo aos pigmentos básicos que os
pintores misturam entre si para obter uma miríade de outras cores (DK B 23). Mas
quem são os pintores que misturam esses pigmentos? Como menciona Aristóteles no
texto em análise, os responsáveis por misturar estes pigmentos de tal maneira a formar
a multiplicidade de coisas que vemos efetivamente no mundo são o Amor (Philia) e a
Discórdia (Neikos). Segundo Aristóteles, Empédocles indica, embora de modo confuso,
o Amor e a Discórdia são tanto causa eficiente quanto causa final de todas as coisas
materialmente constituídas pelos quatro elementos (ou raízes), sendo o Amor a causa
do bem (entendido por Aristóteles como símbolo da causa final) e a Discórdia como
causa do mal (algo que Aristóteles não está disposto a aceitar). Embora tanto para
Empédocles quanto para Aristóteles o mundo seja eterno, para o primeiro a eternidade
do mundo se faz por meio de ciclos cósmicos que alternam a predominância do Amor
116
e da Discórdia. O mundo atual, no qual percebemos as coisas a nossa volta, é um
estágio intermediário do ciclo cósmico, estágio no qual há tanto união dos elementos
materiais (por causa do Amor) e separações destes mesmos elementos (por causa da
Discórdia). Contudo, em momentos extremos, quando o Amor domina em seu
extremo, a totalidade do mundo se torna um estado divino que Empédocles chama
Esfera (Sphairos). Mas essa união não é perene, sendo apenas um estágio no ciclo
cósmico. Passado algum tempo, o Amor perde força e começa a influência da
Discórdia. No extremo oposto do estado da Esfera, quando domina em seu extremo a
Discórdia, as coisas se tornam caóticas e desagregadas, sendo as coisas que
percebemos no mundo atual monstruosas e separadas. A partir deste estágio, começa
novamente, de modo gradativo, a dominar o Amor. Os ciclos do universo, portanto,
são uma alternância entre a predominância do Amor sobre a Discórdia e vice-versa.
Talvez tenha sido esse mundo de tensões permanentes e cíclicas entre duas potências
contrárias que tenha feito Nietzsche afirmar que, dentre os filósofos da época trágica
(como chamava aqueles que denominamos pré-socráticos), Empédocles seria o filósofo
trágico por excelência. Esta imagem muito geral e abreviada é aquela que se encontra
no pano-de-fundo das palavras aristotélicas sobre Empédocles. Para Aristóteles,
porém, a fase intermediária de disputa entre Amor e Discórdia indicada por
Empédocles seria algo equivocado, pois neste estágio intermediário, pois “amiúde,
pelo menos no contexto de seu discurso, a Amizade separa e a Discórdia une. Quando,
ao contrário, por obra da Amizade/Amor os elementos se recompõem na unidade <da
Esfera>, as partes deles necessariamente se separam entre si.” (p. 25, 985a 23-29). Essa
é uma crítica motivada pela defesa aristotélica de um mundo cujas formas não se
alteram ao longo do tempo, tese a partir da qual a cosmologia de Empédocles se mostra
incoerente. Apesar dessa crítica, Aristóteles encerra sua consideração sobre
Empédocles de modo elogioso, identificando-o como o primeiro a ter entrevisto não
apenas a causalidade eficiente (aquilo que causa o movimento ou transformação na
matéria), mas que essa causalidade precisa ser acompanhada pela causalidade final
(aquilo para que o que é movido se dirige), tendo sido, ademais, o primeiro a contar
os quatro elementos como tipos básicos de componentes materiais do mundo, uma
tese que também Aristóteles, ainda que a seu modo, defenderá em sua cosmologia.

Ainda nesta parte do capítulo encontramos a crítica de Aristóteles a Anaxágoras, sobre


a qual já falamos antes. Deste modo, embora apontando que ao conceber a Inteligência
como uma causa eficiente e final para além da causa material representada pelas
homeomerias, Anaxágoras não teria sido consequente com essa tese, usando-a
somente quando não conseguia apresentar explicação causais puramente materiais.
Isso indica que Aristóteles está indicando que Empédocles, mesmo com falhas, se
aproximou mais e melhor da compreensão das causas eficiente e final.
2.3. O atomismo de Leucipo e Demócrito como redução das causas à causa material:
Como já indicado antes, o capítulo 4 se encerra com uma consideração ao mesmo
tempo expositiva e crítica em relação ao atomismo de Leucipo e Demócrito.
Inicialmente, Aristóteles expõe os princípios básicos do atomismo. Esses princípios são

117
que o ser (to on) equivale ao cheio (to plêres) ou ao sólido (to stereon), enquanto o vazio
(to kenon) equivale ao não-ser (to mê on). O que Aristóteles nomeia aqui como sólido ou
cheio é o que usualmente chamamos de átomo. Contudo, o atomismo não é a
afirmação absoluta do átomo sobre o vazio, como se o mundo fosse feito de átomos e
o vazio ficasse fora do mundo (algo deste tipo foi proposto pelos estoicos). Não, todas
as coisas que vemos são uma mistura de átomos e vazio. É por isso que Aristóteles nos
diz: “e por isso sustentam que o ser não tem mais realidade que o não-ser, pois o cheio
não tem mais realidade que o vazio. E afirmam esses elementos como causas materiais
dos seres.” (p. 25, 985b 7-10). Embora não o diga neste momento, para Aristóteles isso
é paradoxal e incoerente, pois significa que, de modo análogo a Platão, há um ser do
não-ser, o ser vazio. Ademais, a frase final mostra que Leucipo e Demócrito
reconhecem apenas aquilo que Aristóteles concebe como causa material,
desconsiderando tanto a causa eficiente como a causa final. Isso fica claro pelo
comentário que segue imediatamente a última citação acima: “E como os pensadores
que consideram única a substância que funciona como substrato [sc. a causa material]
e explicam a derivação de todas as outras coisas pela modificação dele, introduzindo
o rarefeito e o denso como princípios dessas modificações, do mesmo modo,
Demócrito e Leucipo dizem que as diferenças <dos elementos> são as causas de todas
as outras.” (p. 25, 985b 10-13; parênteses retos acrescentados). Para Aristóteles, isso
significa que Leucipo e Demócrito podem ser vistos como uma tentativa de retorno ao
modo de explicação da natureza do primeiro filósofos, que somente reconheciam a
causa material como causa suficiente para explicar todas as coisas do mundo.
Evidentemente, para Aristóteles, esse retorno é um tipo retrocesso, mesmo que
reconheça, em diversos momentos de sua obra, a força persuasiva dos argumentos e
teorias dos atomistas.

Na sequência desta observação, Aristóteles expõe a teoria de Leucipo e Demócrito de


como as diferenças nas coisas à nossa volta podem ser explicadas a partir de diferenças
que são propriedades da relação entre os átomos no vazio. Essas diferenças são de três
tipos: pela figura (schêma), pela ordem (taxis) e pela posição (thesis). Esta, porém, é a
tradução para a sua própria terminologia do que Leucipo e Demócrito chamavam,
respectivamente, de proporção (physmos), contato (diathigê) e direção/modo (tropos).
Assim, em um claro exemplo (provavelmente retirado de Leucipo e/ou Demócrito), a
letra A difere da letra N pela figura, o agregado AN difere do agregado NA pela
ordem, e, por fim, a letra Z difere da letra N apenas pela posição. Note-se a economia
conceitual desse modo de explicação, de resto em perfeita consonância com a
simplicidade conceitual explicativa de todo o restante do atomismo. Essa economia
conceitual e explicativa é criticada por Aristóteles no final de sua breve exposição nas
seguintes palavras: “Mas eles também, como os outros [sc. os que apenas tentaram
explicar o mundo como um todo pela causa material], negligenciaram a questão de
saber de onde deriva [sc. a causa eficiente] e como existe nos seres o movimento [sc.
causa final].” (p. 25-26, 985b 19-20). Todavia, essa economia conceitual se tornou
novamente atrativa para o mundo moderno, quando começou a declinar a dominância
do aristotelismo, que começou no século VIII d. C. com o mundo árabe e se
118
transplantou para o mundo cristão europeu da Escolástica, estendendo-se até o século
XVI. A partir do século XVII, a partir da retomada do atomismo de antigo por
pensadores como Giordano Bruno, Pierre Mersenne e Pascal, o atomismo de Leucipo
e Demócrito começa e ser recuperado como um horizonte teórico-metodológico mais
adequado para a física moderna, e com essa recuperação, também a elegância e
economia conceitual criticada aqui por Aristóteles passa a receber um valor positivo.
3. O capítulo 5 do Livro I da Metafísica
3.1. A divisão do capítulo:
A divisão do capítulo 5 é a mais difícil do que aquela dos outros capítulos que estamos
analisando. Essa dificuldade pode ser contornada se entendemos que o capítulo é
majoritariamente dedicado à exposição de alguns aspectos das ideias pitagóricas, com
um intervalo onde Aristóteles faz uma breve consideração sobre os eleatas,
especialmente sobre Parmênides (986b 8-987a 2), havendo ainda uma espécie de
resumo da investigação até este capítulo (987a 2-9). Poderia parecer que a introdução
de uma consideração sobre o eleatas seria um tipo de inserção fora de lugar em um
capítulo dedicado em sua maioria aos pitagóricos. Mas essa é uma impressão errônea.
Na última parte do capítulo, Aristóteles dá a entender que agrupa pitagóricos e eleatas
sob a denominação de ‘filósofos itálicos’ (Italikôs; lit. ‘os da Itália’). O que esses filósofos
têm em comum é justamente o fato de terem reconhecido, para além das causas já
mencionadas (material, eficiente e final), ou seja, a causa formal.
3.2. Os pitagóricos:
3.2.1. Introdução geral: a importância dos pitagóricos no pensamento antigo e
moderno:
Como alguns intérpretes do capítulo (como Giovanni Reale) apontam, aqui, em lugar
de falar de pensadores individualmente nominados, Aristóteles introduz a
denominação genérica de um grupo de filósofos: os pitagóricos. Durante a disciplina,
pouco falamos dos pitagóricos porque talvez sejam os pré-socráticos mais difíceis de
tratarmos, uma vez que a figura de Pitágoras, fundador da “escola” é uma figura
lendária cujas ideias são muito difíceis de separar da contribuição de seus discípulos e
discípulas, uma vez que há também diversas filósofas pitagóricas, talvez as primeiras
filósofas da história da filosofia. Na realidade, para participar da escola pitagórica, era
necessário fazer um pacto de silêncio para não revelar ao grande público aquilo que lá
era ensinado e discutido. Essa situação só se alterou pouco tempo antes de Aristóteles,
quando Filolau de Crotona (c. 470/80-385 a. C) e Arquitas de Tarento (c. 428-347 a. C.)
acabaram por publicar partes das teorias pitagóricas. No entanto, como Aristóteles
chama a atenção logo ao início do capítulo, é provável que Pitágoras tenha sido
contemporâneo de Tales, o que nos mostra que haveria uma dupla fundação da
filosofia grega, uma mais ligada à física (aqueles que Aristóteles chama de ‘fisiólogos’)
e outra mais ligada às matemáticas (justamente os pitagóricos). Mas a importância de
Pitágoras e dos pitagóricos não se restringe à época pré-aristotélica. Com efeito, como

119
veremos no capítulo seguinte, Platão foi, em certa medida e em vários aspectos, um
continuador do pitagorismo. Essa proximidade acabou por gerar, no século III d. C.,
com o surgimento do neoplatonismo, um tipo de neopitagorismo. Com isso, a presença
de Pitágoras e dos pitagóricos pode ser considerada como uma linha que vai desde o
surgimento explícito da filosofia grega até o final da filosofia antiga. E, em uma
reflexão filosófica mais ampla, podemos dizer que o desenvolvimento da ciência
matemática a partir do Renascimento traz novamente à tona a presença dos pitagóricos
no mundo moderno, uma vez que a máxima com que se costuma resumir seu
pensamento é a seguinte: “tudo é número e proporção numérica”, uma máxima que
ainda hoje guia uma parte considerável do espírito científico.
3.2.2. As matemáticas e a henologia pitagóricas:
A primeira coisa para a qual Aristóteles chama nossa atenção sobre os pitagóricos é
terem sido os que “por primeiro se aplicaram às matemáticas, fazendo-as progredir e,
nutridos por elas, acreditaram que os princípios delas eram os princípios de todos os
seres.” (p. 27, 985b 24-26) Assim, tomando as propriedades dos números (e das figuras
geométricas) como um modelo explicativo, procuravam em todas as coisas as relações
de semelhança com essas propriedades. Faziam isso em relação aos conceitos morais
e humanos (justiça, alma, intelecto, música) assim como a totalidade do universo (o
céu). Aristóteles resume do seguinte modo seu procedimento: “Eles recolhiam e
sistematizavam todas as concordâncias que conseguiam mostrar entre os números e
os acordes musicais, os fenômenos, as partes do céu e todo o ordenamento do
universo.” (p. 27, 986a 3-6)24 Todavia, na sequência desta descrição, Aristóteles
apresenta sua crítica a este procedimento através de um exemplo: a Antiterra:

“E se faltava alguma coisa, eles se esmeravam em introduzi-la, de modo a tornar


coerente sua investigação. Por exemplo: como o número dez parece ser perfeito [sc.
porque é a soma dos números mais básicos, ou seja, 1+2+3+4=10] e parece
compreender em si toda a realidade dos números, eles afirmavam que os corpos que
se movem no céu também deviam ser dez; mas, como apenas nove podem ser vistos
[sc. à época: Terra, Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Jupiter, Saturno, o céu das estrelas
fixas], eles introduziam um décimo: a Antiterra.” (p. 27, 986a 6-12; parênteses retos
acrescentados)

Tal observação é efetivamente uma crítica porque Aristóteles explicitamente defende


que são nossas teorias que têm de adequar aos fatos e fazer com que os fatos se
adequem às nossas teorias, sendo ainda pior criar fatos não verificáveis pela

24Neste ponto, devemos lembrar que a noção de matemática grega é distinta da nossa. Na realidade, o
termo grego é corretamente traduzido no plural ‘matemáticas’, termo que deriva do verbo ‘manthanô’,
que significa principalmente conhecer, do qual derivam os termos ‘mathema’ e ‘mathemata’;
respectivamente, ‘conhecimento’ e ‘conhecimentos’. Deste último surge o abstrato plural ‘ta
mathematika’, que poderíamos verter filosoficamente como ‘conjunto de conhecimentos’. Note-se que
Platão, como já vimos ao tratar do Livro VII da República, lista as quatro partes da matemática grega,
partes organizadas pelos pitagóricos e às quais Aristóteles está implicitamente se referindo aqui, a saber:
aritmética, geometria, astronomia e harmonia musical.

120
experiência para fazer com as teorias se mostrem consistentes. Embora não seja visível
na breve exposição dos pitagóricos que Aristóteles faz neste capítulo, sua consideração
sobre esta escola filosófica é em geral bastante crítica. Essas críticas já são mais visíveis
no capítulo 8 do Livro I, mas são apresentadas de modo mais extenso e detalhado no
Livro XIV da Metafísica.

Após indicar uma obra para nós perdida em que trata sobre esses temas, apontando
ainda que só trata das teorias desses filósofos neste contexto em função de sua análise
sobre a quatro causas, Aristóteles expõe os princípios mais básicos do que podemos
chamar de henologia pitagórica, ou seja, sua metafísica entendida a partir do conceito
de unidade ou uno enquanto conceito mais fundamental de todos, sugerindo que em
tal henologia se encontra um indício do tratamento da causa formal para além da
cauda material. O trecho diz:

“Também estes [sc. os pitagóricos] parecem considerar que o número é princípio não
só enquanto constitutivo material dos seres, mas também como constitutivo das
propriedades e dos estados dos mesmos [sc. aquilo que define o que determinada coisa
é, i. e., sua forma]. Em seguida eles afirma como elementos constitutivos do número o
par e o ímpar; dos quais o primeiro é ilimitado e o segundo limitado. O Um deriva
desses dois elementos, porque é par e ímpar ao mesmo tempo. Do Um procede, depois,
o número; e os números, como dissemos, constituiriam a totalidade do universo.” (p.
29; 986a 15-21; parênteses retos acrescentados).

Apesar da brevidade do trecho, ele é bastante importante para entendemos que não
apenas no caso de Heráclito, como já vimos, a metafísica grega assume a forma
predominante de uma ontologia, mas de uma henologia, mas isso também acontece
no caso dos pitagóricos, e, como veremos, de Platão e seus continuadores imediatos
(Espeusipo e Xenócrates), tal como Aristóteles os interpreta. Ademais, a interpretação
da metafísica pitagórica e platônica como estando centrada primariamente em uma
henologia (e não em uma ontologia) também é de suma importância porque ela é
também assumida nos pensadores neoplatônicos, em especial Plotino e Proclo. Em
uma breve reconstrução, temos a seguinte hierarquia metafísica: primeiramente temos
o Uno primordial; a partir dele surgem as duas propriedades fundamentais dos
números: o par e o ímpar; o par é identificado com o ilimitado (apeiron) e o ímpar com
o limitado (peras); por fim, na medida em que os números são a matéria de todas as
coisas, todas as coisas são constituídas a partir das propriedades mais básicas destes
mesmos números: o par/ilimitado e o ímpar/limitado. Essa sucinta descrição
hierárquica é corroborada por outro trecho, proveniente da parte final deste mesmo
capítulo:

“Os pitagóricos afirmaram do mesmo modo dois princípios [sc. a causa material e a
causa formal], mas acrescentaram a seguinte peculiaridade: consideraram que o
limitado, o ilimitado e o um não são atributos de outras realidades (por exemplo, fogo
ou terra ou alguma outra coisa), mas que o próprio ilimitado e o um eram substância

121
das coisas das quais se predicam, e que por isso o número era a substância de todas as
coisas.” (p. 33, 987a 13-19; parênteses retos acrescentados)

Note-se a conclusão de Aristóteles: os pitagóricos pensaram que “o número era a


substância de todas as coisas”, ora, a substância é justamente aquilo que é apreendido
pela causa formal (o que algo é). A substância é também o conceito fundamental da
ontologia que Aristóteles elabora nos livros centrais da Metafísica (IV, VII-IX, XII). Mas
os pitagóricos, em lugar de entender a substância a partir de uma ontologia, a
entendiam a partir de uma henologia, ou seja, em lugar de pensar a substância
associada diretamente ao conceito de ser, pensavam-na associada primariamente ao
conceito de unidade, interpretada a partir das propriedades dos números, em especial
as propriedades do ilimitado (par) e do limitado (ímpar).

O que importa reter dessa breve exposição sobre o papel das matemáticas e da
henologia dos pitagóricos consiste em ser essa uma outra matriz da metafísica grega,
diferente daquela considerada inicialmente por Aristóteles e associada mais
diretamente à investigação dos fenômenos físicos. Embora os pitagóricos tenham
também desenvolvido sua cosmologia, ela difere bastante daquelas apresentadas pelos
filósofos que Aristóteles costuma chamar de fisiólogos, uma vez que sua base, como
dirá no capítulo 8, não são as entidades sensíveis, mas as entidades matemáticas, que
são, por definição, não sensíveis. A partir disso, na interpretação de Aristóteles, sem a
metafísica henológica de matriz matemática e abstrata dos pitagóricos não teria sido
possível o surgimento da teoria das Formas ou Ideias de Platão.
3.2.3. Os pitagóricos e Alcméon sobre os pares contrários:
O momento seguinte do capítulo apresenta uma outra forma de metafísica elaborada
por alguns pitagóricos e por um pré-socrático chamado Alcméon de Crotona. Como
indica Aristóteles, há controvérsias sobre se Alcméon teria sido um pitagórico ou se os
pitagóricos tomaram dele algumas ideias e as desenvolveram ao seu modo. O
Estagirita deixa tal controvérsia em aberto, indicando mais as similaridades e
diferenças entre ele certos pitagóricos a respeito da teoria dos pares de contrários. Em
primeiro lugar, cumpre notar que enquanto certos pitagóricos procuraram reduzir a
totalidade dos fenômenos à henologia há pouco descrita, Aristóteles sugere que outros
procuraram apresentar uma teoria dos pares de contrários fundamentais que seriam a
base para a explicação de toda a realidade, indicando uma teoria mais complexa do
que a dos pitagóricos que defenderam a henologia como base das propriedades
numéricas e, portanto, dos fenômenos descritos nas matemáticas. Diferentemente da
economia conceitual de estabelecer apenas três princípios fundamentais (Uno,
ilimitado e limitado), esses pitagóricos, de modo similar a Alcméon, postulam dez
princípios que seriam dez pares de contrários. Esses pares são os seguintes: (1)
limitado-ilimitado; (2) ímpar-par; (3) um-múltiplo; (4) direito-esquerdo; (5) macho-
fêmea; (6) repouso-movimento; (7) reto-curvo; (8) luz-trevas; (9) bom-mau; (10)
quadrado-retângulo. Note-se, inicialmente, que os conceitos da henologia antes
expostos estão contidos nos três primeiros pares de contrários, mostrando que essa

122
teoria procura integrar a anterior e não substituí-la de todo. Em segundo lugar, o
número de dez, como já vimos, se justifica por ser considerado pelos pitagóricos como
o número perfeito. A diferença entre esses pitagóricos e Alcméon é justamente que este
não parece estabelecer um número fixo de pares contrários, e, por conseguinte, de
princípios constitutivos da totalidade. Apesar dessa posição mais favorável aos
pitagóricos frente a Alcméon, Aristóteles os critica nestes termos:

“Mas nem mesmo pelos pitagóricos esses contrários foram analisados de maneira
suficientemente clara a ponto de se estabelecer de que modo é possível reduzi-los às
causas das quais falamos; parece, entretanto, que eles atribuem a seus elementos a
função de matéria. De fato, eles dizem que a substância é composta e constituída por
esses elementos como partes imanentes a ela.” (p. 31, 986b 4-8)

Com esse comentário, Aristóteles parece estar sugerindo que enquanto alguns
pitagóricos parecem ter entrevisto a causa formal, os proponentes da teoria dos dez
pares contrários como princípios de todas as coisas parecem ter permanecido na
posição dos primeiros filósofos, para os quais a causa material seria suficiente para a
explicação de toda a realidade.

Como comentário final, é interessante notar que a noção de pares contrários já estava
presente desde ao menos Anaximandro. Aristóteles parece estar consciente deste fato
ao dizer, em um trecho do capítulo 2 do Livro IV da Metafísica, que “quase todos os
filósofos estão de acordo em sustentar que os seres e a substância são constituídos por
contrários: de fato, todos põem como princípios os contrários.” (p. 139; 1004b 29-31)
Aquilo que é novo no caso dos pitagóricos aqui indicados e de Alcméon consiste em
estabelecer a noção mesma de contrariedade como um princípio de organização da
natureza, embora isso também possa ser visto na filosofia de Heráclito, apesar de
Aristóteles claramente subestimar essa filosofia.
3.3. Parmênides e os pitagóricos sobre a causa formal:
Como já foi adiantado acima, a parte do capítulo que discute os eleatas (aí incluído, de
maneira que atualmente não mais aceitamos, Xenófanes) pode ser entendida por duas
razões: porque os eleatas estão incluídos nos filósofos que Aristóteles chama de
‘italianos’ e porque, dentre eles, Parmênides parece ter alcançado, ainda que de modo
confuso, alguma compreensão sobre a causa formal. Inicialmente, a discussão sobre os
eleatas é introduzida por contraste com o que Aristóteles considera ser o final de sua
investigação sobre os pluralistas. Eis o trecho em que se faz o contraste:

“O que foi dito é suficiente para se compreender o pensamento dos antigos que
admitiam uma pluralidade de elementos constitutivos da natureza. Outros filósofos
sustentaram que o universo é uma realidade única, mas não falaram do mesmo modo,
seja quanto à exatidão da investigação, seja acerca da determinação dessa realidade.”
(p. 31, 986b 8-12)

A sequência da citação apresenta dois tipos de monistas. De um lado, os que


concebiam a natureza como uma unidade (tal como Tales, Anaxímenes e Heráclito,

123
que tomavam a natureza como sendo formada por um único elemento material), mas
atribuíam a esta unidade a causa de todo o movimento e transformação das coisas que
nos são dadas na percepção sensível. De outro, porém, os que concebem a natureza
como uma unidade, mas que entendem esta unidade como sendo imóvel ou imutável.
Tais são justamente os eleatas. Aristóteles insinua que o seu tratamento extrapola o
quadro conceitual da Física, pois ao negarem a existência real da transformação como
parte constitutiva do conceito de natureza, eles negam a própria possibilidade de se
fazer uma ciência física. Isso constitui uma referência implícita ao tratamento crítico
mais extenso que Aristóteles dedica a essa posição nos capítulo 3-6 do Livro I da Física.
O que se segue, porém, tenta mostrar que se Xenófanes (que toma a Unidade da
natureza como idêntica a Deus) e Melisso (que parece ter concebido a unidade como
infinita e ligada à matéria) devem ser ambos deixados de lado na presente
investigação, o mesmo não ocorre no caso de Parmênides, justamente por este ter
considerado o Um segundo a forma (kata ton lógon), ou ainda, em uma tradução mais
literal, segundo a definição, a qual deve exprimir a forma de algo, ou seja, expressar
em um enunciado a causa formal deste algo. Na sequência, Aristóteles apresenta uma
dupla interpretação do pensamento de Parmênides. De um lado, o Parmênides
monista radical, que associa a unidade ao ser e exclui completamente da unidade o
não-ser. De outro lado, porém, “forçado a levar em conta os fenômenos”, um
Parmênides que teria admitido duas causas e dois princípios: o ser uno segundo a
definição (forma) e o não-ser múltiplo segundo os sentidos (matéria); e, supostamente,
estabelecendo a distinção entre quente e frio, associando o quente ao ser e o frio ao
não-ser.

Atualmente essa interpretação se mostra uma distorção insustentável do pensamento


de Parmênides por parte de Aristóteles. Contudo, o que importa notar aqui é
justamente a intenção de Aristóteles associar Parmênides e alguns dos pitagóricos
como tendo sido os primeiros a ter vislumbrado, ainda que de modo confuso, algo da
causa formal. Essa constatação, referida aos pitagóricos, aparece no final do capítulos
nos seguintes termos: “A respeito das causas, portanto, os pitagóricos se expressaram
do seguinte modo. Eles começaram a falar da essência (peri tou ti estin) e a dar
definições, mas o fizeram de modo superficial, pois consideravam que aquilo a que
primeiramente se atribuía determinada definição era a substância (ousian) das coisas:
como se alguém acreditasse que o duplo e o número dois são a mesma coisa, porque o
número dois é aquilo do qual em primeiro lugar se predica o duplo. Mas não são
certamente a mesma coisa a essência do duplo e a essência do dois; se fossem, o um
seria ao mesmo tempo muitas coisas, e esta é a consequência em que incorrem.” (p. 33-
35, 987a 19-27; termos gregos acrescentados) Assim, de um lado, alguns pitagóricos
têm o mérito (juntamente com Parmênides) de terem pela primeira vez vislumbrado a
causa formal ao lado da causa material. De outro, porém, começaram as definições que
apresentavam das coisas sobre a quais falavam eram ainda confusas. Essa confusão,
implícita na crítica apresentada por Aristóteles na passagem citada acima, consiste em
tomar conceitos gerais (ex. duplo) e conceitos particulares (ex. dois) como se fossem
igualmente a substância (a forma) das coisas. A mesma crítica, embora com outras
124
qualificações, será feita aos platônicos. De qualquer modo, alguns pitagóricos e
Parmênides são identificados como aqueles que de algum modo trouxeram à tona,
mesmo que confusamente, a necessidade de acrescentar à explicação da natureza a
causa formal, a qual, embora com muitas modificações, representa, para Aristóteles, a
mais importante das quatro causas.

4. O capítulo 6 do Livro I da Metafísica


4.1. Divisão do capítulo:
O capítulo que fecha a primeira parte da investigação histórico-crítica de Aristóteles
sobre seus antecessores a respeito do tema das causas é também o capítulo com o qual
encerramos nosso percurso expositivo do Livro I da Metafísica. Este capítulo pode ser
dividido em duas partes. Na primeira parte (987a 29-987b 18), Aristóteles faz uma
breve gênese da teoria platônica das Formas ou Ideias a partir do contato de Platão
com as filosofias de Heráclito (via Crátilo), de Sócrates e dos pitagóricos. Na segunda
parte (987b 18-988a 17), Aristóteles apresenta a concepção platônica das causas através
de uma exposição de sua teoria da Formas ou Ideias a partir do que podemos chamar
de henologia platônica. Como já falamos bastante sobre Platão em aulas anteriores,
procurarei destacar apenas certos aspectos que marcam a interpretação que Aristóteles
faz do pensamento de seu mestre. Apesar da densidade, a brevidade deste capítulo se
deve, provavelmente, ao fato de Aristóteles estar aqui mais interessado em fazer uma
exposição sumária dos traços gerais do pensamento platônico que considera
relevantes no contexto da discussão sobre as causas, reservando a exposição crítica da
filosofia platônica para o mais extenso capítulo 9 do Livro I.
4.2. A gênese da teoria platônica das Ideias:
Aristóteles abre o capítulo marcando certa similaridade entre a filosofia de Platão e as
filosofias dos itálicos apresentadas no capítulo anterior, mas igualmente enfatizando
que ela não pode ser posta em uma simples continuidade. Isso se deve ao fato de Platão
não apenas se apropriar da filosofia dos pitagóricos e eleatas, mas de, segundo
Aristóteles, incorporar de modo intrínseco o pensamento de Heráclito e de Sócrates.
Na realidade, é da composição dessas três filosofias que Aristóteles faz uma
interessante gênese da célebre teoria das Formas ou Ideias elaborada por seu mestre.
Com efeito, à luz do estado da arte sobre o desenvolvimento da filosofia platônica ao
longo da vida de Platão, a gênese aristotélica se mostra bastante acurada. Assim, são
três as etapas de desenvolvimento desta teoria que seguem aproximadamente a linha
cronológica da vida de Platão. Em um primeiro momento, Platão teria tido contato
com Crátilo, um discípulo radical de Heráclito, o qual enfatizava da filosofia do efésio
a tese segundo a qual tudo no mundo sensível à nossa volta está em perpétuo fluxo,
radicalizando, assim, a célebre imagem heraclítica do rio como metáfora conceitual do
mundo natural em que estamos imersos. Todavia, como indica Aristóteles, mantida
essa tese, Platão dá-se conta de que sobre aquilo que está em constante transformação

125
é impossível haver ciência/conhecimento (epistêmê). Em um segundo momento, Platão
se aproxima de Sócrates, o qual foi o primeiro a mostrar de modo explícito a
importância das definições através da compreensão dos universais como tipo mais
básico e necessário de conhecimento em sentido pleno. Contudo, sua busca se
restringiria às definições do universais éticos (justiça, coragem, beleza etc.) O terceiro
momento consiste no modo como Platão procura conciliar a tese heraclítica com a
busca socrática: como os objetos sensíveis (segundo a tese heraclítica) estariam em
constante fluxo, as definições que nos dariam o princípio do conhecimento genuíno
(segundo a investigação socrática) não poderiam se referir aos objetos sensíveis, mas
deveriam se referir a objetos que estariam fora do mundo sensível. Esses objetos do
pensamento (não da percepção) seriam justamente as Formas ou Ideias. É neste
momento de “síntese criativa” de Heráclito e Sócrates que Platão se aproxima dos
pitagóricos. Nas palavras de Aristóteles:

“De fato, ele considerava impossível que a definição universal se referisse a algum dos
objetos sensíveis, por estarem sujeito a contínua mudança. Então, ele chamou essas
outras realidades Ideias, afirmando que os sensíveis existem ao lado delas e delas
recebem seus nomes. Com efeito, a pluralidade das coisas sensíveis que têm o mesmo
nome das Formas existe por “participação” nas Formas. No que se refere à
“participação”, a única inovação de Platão foi o nome. De fato, os pitagóricos dizem
que os seres subsistem por “imitação” dos números; Platão, ao invés, diz “por
participação”, mudando apenas o nome.” (p. 35, 987b 6-11)

Desconsiderando aqui as críticas que se pode fazer à interpretação aristotélica de


Platão, nota-se que a resolução do impasse entre a tese de Heráclito e a de Sócrates
conduz Platão a estabelecer as Ideias ou Formas como entidades separadas das coisas
sensíveis. Em suma, para tornar possível o conhecimento/ciência (epistêmê), Platão
constitui objetos separados aos quais as definições se referem em primeira instância.
Essas definições universais só se aplicariam aos objetos sensíveis indiretamente, na
medida em que esses objetos “participam” das Ideias ou Formas. É neste ponto que
Aristóteles identifica a aproximação entre Platão e os pitagóricos: enquanto estes
últimos afirmam que as coisas sensíveis à nossa volta são imitações dos números,
Platão afirma que as coisas sensíveis que percebemos possuem algum tipo de
estabilidade por participarem das Formas ou Ideias.

O último momento da gênese da teoria platônica aproxima ainda mais Platão dos
pitagóricos, apresentando a polêmica tese dos objetos intermediários entre as Formas
e os objetos sensíveis. Essa interpretação repousa especialmente em uma leitura
específica da linha segmentada do Livro VI da República, sobre a qual já falamos em
aulas anteriores. De acordo com essa interpretação, os objetos matemáticos estariam
entre as Formas propriamente ditas e os objetos sensíveis percebidos por nós porque
ainda há certa semelhança entre os objetos matemáticos e os sensíveis, enquanto a
Forma propriamente dita seria uma única para todas as coisas que dela participam.
Essa interpretação indica que Platão incorpora o papel decisivo que os pitagóricos
davam aos objetos matemáticos (especialmente aqueles tratados na aritmética e na
126
geometria), mas os subordina aos objetos primários do conhecimento que são as
Formas ou Ideias. Como quer que consideremos esta gênese, ela acabou por se tornar
uma das maneiras dominantes de compreender o desenvolvimento da filosofia
platônica a partir da Idade Média, especialmente quando as obras de Aristóteles se
tornaram canônicas, inicialmente na filosofia islâmica e depois na filosofia cristã da
Europa ocidental.
4.3. A teoria platônica das Formas como henologia e sua concepção das causas:
A parte restante do capítulo 6 nos apresenta uma interpretação do que seria a
concepção platônica das causas. Essa concepção não apenas se encontra relacionada e
baseada no que comumente chamamos de teoria das Formas, mas a própria teoria
platônica das Formas é compreendida a partir de uma henologia, ou seja, de um
discurso metafísico centrado nos conceitos de unidade e multiplicidade. Essa
concatenação de concepção das causas, teoria das Formas e henologia fica explícita
logo ao início desta segunda parte capítulo nas seguintes palavras:

“Portanto, posto que as Formas são causas das outras coisas, Platão considerou os
elementos constitutivos das Formas como os elementos de todos os seres. Como
elemento material das Formas ele punha o grande e o pequeno, e como causa formal
o Um: de fato, considerava que as Formas <e> os números derivassem por participação
do grande e do pequeno no Um.” (p. 37, 987b 18-22)

Note-se que, diferente de outras maneiras de apresentar a teoria platônica das Formas,
a maneira aristotélica apresenta a seguinte hierarquia. (1) As Formas (por mais
estranho que possa parecer) são a causa material da qual as coisas são constituídas.
Que as Formas sejam a matéria das coisas sensíveis provavelmente significa que estas
coisas são o que são por participarem das Formas e, portanto, possuírem em si um tipo
de “cópia” ou “imitação” das Formas. (2) Esse elemento material que é imitado pelas
coisas sensíveis e que as constitui se encontra no par grande-pequeno. (3) A causa
formal que determina o grande e o pequeno nas Formas é o Um (ou o Uno; to hen),
uma vez que as Formas e os números (como entes intermediários) surgem da
participação do grande e do pequeno no Uno primordial. Nesta perspectiva, das duas
noções henológicas fundamentais (Uno, grande-pequeno), derivam-se as Formas e os
números, que são efetivamente a matéria da qual tudo seria constituído. Assim,
segundo Aristóteles, Platão teria reconhecido apenas duas causas: a causa material
(embora essa matéria das coisas seja indicada como sendo as Formas ou Ideias) e a
causa formal, que é o Uno primordial como aquilo que dá forma às Formas (para usar
um trocadilho não trivial). Essa apresentação da metafísica platônica que aqui é feita
com extrema brevidade é retomada e mais amplamente discutida no Livro XIII da
Metafísica. De um lado, essa apresentação foi assumida por vários dos neoplatônicos a
partir de Plotino (séc. III d. C.), mesmo tendo sido modificada e ampliada no período
final da filosofia antiga. De outro lado, quando do surgimento dos estudos rigorosos
da filosofia platônica no século XIX, diversos intérpretes estranharam a diferença entre
esta visão aristotélica da filosofia platônica e aquilo que efetivamente encontramos nos

127
diálogos. A partir da década de 1950, uma escola de interpretação (chamada de escola
de Tübingen-Milão) começou a levar essa visão a sério, conjugando-a com um
conjunto de outros testemunhos do que teriam sido os ensinamentos orais ou as
chamadas doutrinas não-escritas de Platão, as quais teriam sido confiadas diretamente
aos discípulos e não divulgadas nos diálogos. Outros intérpretes entendem que essa
interpretação de Aristóteles se encontra nos últimos diálogos de Platão, embora de
maneira algo velada ou latente. A polêmica ainda está em aberto, mas o que convém
assinalar aqui é justamente que Aristóteles estabelece um tipo de “gênese conceitual e
teórica” das próprias Formas: todas elas seriam derivadas da participação do grande
e do pequeno (em outros momentos chamados simplesmente de díade) no Uno
primordial. Depois de “geradas” nesse nível primário de participação, as coisas
sensíveis à nossa volta receberiam o seu ser (sua matéria e sua Forma) pela
participação nas Formas derivadas do Uno primordial. Em suma: a célebre teoria da
Formas ou Ideias seria fundada em uma henologia e a partir desta conteria uma teoria
das causas.

Não vem ao caso entrarmos em mais detalhes sobre o restante do capítulo neste
momento, algo que nos conduziria bem longe e nos exigiria uma longa explicação. Em
resumo: (a) Aristóteles estabelece as semelhanças e as diferenças da filosofia platônica
em relação à filosofia dos pitagóricos, sendo as semelhanças a ênfase nos números
como princípios explicativos do mundo e a diferença, em especial, a introdução da
investigação a partir de definições (remetendo a algo que já vimos ao discutirmos a
noção de Ideia no Fédon); (b) Aristóteles apresenta uma condensada crítica à teoria
platônica por inverter o papel da forma e da matéria na explicação do mundo sensível.

Tendo em mente as exposições anteriores, o final do capítulo reitera de modo mais


claro o que falamos sobre a henologia platônica como fundamento de sua teoria das
Formas e como estas duas, na visão de Aristóteles contêm a concepção platônica das
causas:

“Do que dissemos, fica claro que ele recorreu a apenas duas causas: a formal e a
material. De fato, as Ideias são causas formais das outras coisas, e o Um é a causa
formal das Ideias. E à pergunta sobre qual é a matéria que tem a função de substrato
do que se predicam as Ideias – no âmbito dos sensíveis –, e do qual se predica o Um –
no âmbito das Ideias –, ele responde que é a díade, isto é, o grande e o pequeno. Platão,
ademais, atribuiu a causa do bem ao primeiro de seus elementos [sc. o Um] e a causa
do mal ao outro [sc. a díade indefinida], como já tinham tentado fazer – como dissemos
– alguns filósofos anteriores, por exemplo Empédocles e Anaxágoras.” (p. 39, 988a 8-
17; parênteses retos acrescentados)

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