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A física do século XX

Article  in  Estudos Avançados · January 2010


DOI: 10.1590/S0103-40142010000100025

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Silvio R. A. Salinas
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A física do século XX
Silvio R. A. Salinas

M do ichel paty, pesquisador emérito


CNRS, fundador da “Equipe
maior da física britânica nessa época, uti-
lizava medidas de temperatura das minas,
REHSEIS”, grupo de trabalho sobre epis- analisadas com a sofisticação da equação
temologia e história das ciências da Uni- do calor de Fourier, para estimar a idade
versidade de Paris VII, que tem acolhido da Terra, colocando em xeque os cálculos
um bom número de estudantes brasilei- geológicos e a teoria da evolução. No fi-
ros, foi pesquisador em “física das par- nal do século, foi descoberta a radioativi-
tículas elementares” no início de carrei- dade, fonte imensa de energia, e, no “ano
ra, com posição de trabalho no Centro milagroso” de 1905, Einstein propôs no
de Pesquisas Nucleares de Estrasburgo, contexto da relatividade a relação famosa
transformando-se mais tarde em filóso- entre massa e energia, mudando o pano-
fo e historiador da ciência reconhecido, rama dos cálculos sobre a idade da Terra e
com diversos textos publicados na França do sistema solar. Cem anos depois, creio
e alguns no Brasil. Michel Paty está espe- que também nos encontramos diante de
cialmente aparelhado para escrever sobre dúvidas e indagações, especialmente nos
a física do século XX, que ele vivenciou domínios da nova cosmologia astrofísica
como aprendiz e como pesquisador atu- e das tentativas de unificação dos campos
ante, e que tem sido tema das suas refle- fundamentais, que podem mudar a nossa
xões de filósofo. É ótimo que um texto visão da natureza, embora haja conquis-
dessa qualidade, numa linguagem correta, tas bem estabelecidas, como a teoria da
mas evitando tecnicalidades e o formalis- relatividade e a mecânica quântica, tão
mo matemático da física contemporânea, bem descritas nesse texto.
seja publicado em português, oferecendo Os capítulos iniciais percorrem a tra-
material histórico e epistemológico para jetória conhecida da física no século XX:
um público amplo. relatividade, mecânica quântica, átomos
O texto de Paty se inicia com uma pa- e estados da matéria, o interior do nú-
lavra de cautela, pois talvez ainda não haja cleo atômico, os campos fundamentais
distanciamento para apreciar o impacto e suas forças. Ninguém mais duvida do
das ideias e descobertas dos últimos cem “modelo atômico”, que se transformou
anos. O que diria sobre os cem anos ante- na própria realidade física contemporâ-
riores um historiador da ciência no início nea, pois os átomos atualmente podem
do século XX? Acho que certas conquis- ser “vistos” nos microscópios de força
tas da “física clássica”, incluindo os des- atômica, mas a situação era bem diferen-
dobramentos da mecânica newtoniana, a te no início do século, sob a influência
física de Laplace e Fourier, a construção dos energeticistas, quando ainda não se
da termodinâmica e do eletromagnetismo conheciam os resultados das experiências
na segunda metade do século XIX seriam de Perrin sobre o movimento brownia-
devidamente reconhecidas. Mas teria sido no. As seções sobre a “interpretação dos
realmente difícil prever novos desenvol- conceitos quânticos” são particularmente
vimentos. Lord Kelvin, personalidade interessantes. Apesar do extraordinário

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Foto Eric Schaal/Foto Associated Press

O físico e humanista alemão Albert Einstein (1879-1955).

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sucesso na explicação dos fenômenos na mica – no interior do núcleo atômico, os
escala atômica, a mecânica quântica in- campos fundamentais e as suas forças –
corpora ideias de indeterminação e não são particularmente primorosos, pois o
localidade, que se chocam com a tradi- autor se encontra à vontade, refletindo
ção determinista da física clássica. O pro- sobre seus antigos interesses e trabalhos
blema da medida na mecânica quântica de pesquisa. De forma breve, mas bem
arrebatou opiniões durante parte do sé- apropriada, vão sendo apresentadas as
culo XX: é difícil admitir que o “gato de primeiras “partículas elementares”, in-
Schroedinger” esteja numa combinação cluindo o méson identificado por Cesar
linear entre “a vida e a morte” antes que Lattes e colaboradores nas emulsões fo-
um observador (clássico) realize uma me- tográficas expostas no Monte Chacaltaya,
dida. Michel Paty relata o debate sobre na Bolívia, e posteriormente produzido
os fundamentos da mecânica quântica, “artificialmente” pelo próprio Lattes num
mostrando que certas questões acaba- dos primeiros aceleradores de partículas.
ram sendo postas de forma mais objetiva, A teoria das interações fracas, com neu-
sendo finalmente submetidas ao teste da trinos e antineutrinos, o predomínio dos
experimentação. As ideias de não locali- campos, a unificação com o eletromag-
dade se traduziram nas desigualdades de netismo maxwelliano e a necessidade de
John Bell, que finalmente foram testadas “renormalização”, a “multidão” de par-
com lasers e equipamentos modernos da tículas elementares e de “ressonâncias”
óptica física, revelando os “fenômenos de que vão sendo descobertas e resultaram
descoerência”, compatíveis com a visão no “modelo dos quarks” da década de
quântica. De certa forma, a dualidade on- 1960 são descritos com muita proprieda-
da-partícula, “problema epistemológico” de. Os quarks, partículas de carga fracio-
da mecânica quântica, acabou se transfor- nária com a propriedade de “confinamen-
mando na própria solução do problema! to”, que não podem ser observadas no
Segundo Paty, o princípio da superposi- estado livre, explicariam a estrutura das
ção e a não comutação dos operadores partículas subnucleares. Esses resultados
quânticos tornaram-se aos poucos uma conduziram à proposta de um “modelo
“segunda natureza”, formando parte da padrão” da física subnuclear, englobando
nova “intuição física”. Apesar dessa visão as teorias eletrofracas e a “cromodinâmi-
otimista, é preciso apontar certo incômo- ca” ou teoria de campos das interações
do que ainda permanece na física do sé- fortes, com enorme dose de legitimida-
culo XXI. Será que a mecânica quântica de, explicando até agora a miríade de fe-
fornece de fato a descrição definitiva da nômenos subnucleares, mas aguardando
natureza? Ainda há dúvidas sobre fenô- ainda certos testes experimentais, como
menos a distâncias muito curtas e sobre a comprovação da existência de uma “su-
sistemas complexos, como o próprio gato persimetria” misturando bósons e fér-
de Schroedinger, que talvez não possa mions, e a descoberta de uma partícula
mesmo ser descrito quanticamente, além maciça, denominada “bóson de Higgs”,
de especulações sobre a função de onda que funcionaria como uma espécie de
do universo, ou sobre a descrição quânti- cola da matéria subnuclear. A ilustração
ca de um aglomerado de universos... da figura 7.4 é providencial para nos guiar
Os capítulos sobre a matéria subatô- pelas etapas dessa grande unificação,

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que se inicia com Maxwell unificando para a explicação da supercondutividade,
os campos elétricos e magnéticos, passa com repercussões na própria formulação
pela eletrodinâmica quântica, incorpora das teorias de campos.
as interações fracas, inclui em seguida os Algumas escolhas de Michel Paty refle-
campos fortes, mas deixa em suspenso o tem preferências pessoais, opiniões do au-
campo gravitacional, problema para ser tor, que poderiam ser questionadas, mas
resolvido pela física do século XXI. Mi- que não prejudicam o conteúdo central.
chel Paty esteve no Brasil na década de Por exemplo, acho difícil justificar longas
1960, como estagiário de cooperação do seções sobre “sistemas dinâmicos”, tema
governo francês, participando das novi- de maior repercussão no domínio da ma-
dades e desventuras da Universidade de temática, mas que se beneficiou enorme-
Brasília no início do período militar, e co- mente da física computacional, que prati-
nheceu vários físicos que trabalharam no camente não é mencionada no texto. As
país. Registra o trabalho seminal de J. J. conexões entre o caos determinístico e os
Giambiagi sobre “regularização dimen- fundamentos da mecânica estatística ain-
sional”, que contribuiu para lidar com os da precisam ser estabelecidas. Quase nada
infinitos da eletrodinâmica quântica, mas se fala sobre a própria mecânica estatís-
não cita o coautor, Carlos Bollini, que tica, em boa parte construída no século
também esteve entre nós, e faleceu muito XX, com aplicações crescentes no domí-
recentemente na Argentina. Além disso, nio das “organizações complexas da ma-
refere-se ao trabalho pioneiro de Leite téria”, ou na “física do cotidiano”, forma
Lopes, que foi um precursor da unifica- pouco adequada de se referir aos interes-
ção da eletrodinâmica quântica com os ses pioneiros de Pierre-Gilles de Gennes.
campos das interações fracas. O estudo das transições de fase e dos fe-
No capítulo 5, “Átomos e estados da nômenos críticos recebe tratamento su-
matéria”, o tratamento dispensado à física perficial e às vezes equivocado, embora se
do estado sólido, que engloba atualmente mencione o “grupo de renormalização”,
toda a matéria condensada, incluindo as técnica fecunda destinada a lidar com fe-
aplicações de maior impacto da mecânica nômenos sem uma escala bem definida,
quântica, é infelizmente bem superficial. como as flutuações de tamanho das go-
Afinal de contas, dificilmente estaríamos tículas de um fluido nas vizinhanças do
aqui escrevendo num laptop ou nos co- ponto crítico. Nesse caso, os materiais da
municando pela internet sem essa mara- física dos sólidos – e os modelos da físi-
vilha dos semicondutores, explicados pela ca estatística – proporcionaram os testes
teoria quântica das bandas eletrônicas de adequados da teoria, que de outra forma
energia. A supercondutividade, em bai- teria que aguardar experiências delicadas
xas e altas temperaturas, a superfluidez, a (e caríssimas) no domínio das altas ener-
análise das propriedades elétricas e mag- gias. Outras escolhas de Paty são inte-
néticas dos materiais, o projeto de novos ressantes, mas também me parecem um
materiais, são conquistas do século XX. tanto distantes das conquistas do que se
O americano John Bardeen ganhou o poderia delimitar como a física do século
Prêmio Nobel duas vezes: pela descober- XX; refiro-me aqui ao capítulo 9, sobre
ta do transistor, logo depois da guerra, e a dinâmica da terra, com um apanhado
mais tarde pela proposta de uma teoria dos avanços da geofísica, mencionando

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até as hipóteses sobre a extinção dos di-
nossauros, e ao capítulo 12, sobre as ori-
gens, com atenção especial às origens do
homem, da vida e da terra, que sem dú-
vida podem ser atualmente analisadas sob
um prisma cientificamente mais rigoroso,
embora não haja um balanço da contri-
buição crescente dos físicos, pelo menos
da aplicação aos sistemas biológicos de
métodos e técnicas oriundos da física.
Francis Crick, físico de formação, parti-
cipou de uma das descobertas biológicas
mais marcantes do século XX, utilizando
técnicas de raios X, e tendo sido estimu-
lado talvez por conferências famosas de
Schroedinger, indagando sobre a vida e PATY, Michel. A física do século XX.
sobre a mente. Trad. sob coord. Pablo R. Mariconda.
Nos capítulos finais, sobre os objetos São Paulo: Ideias e Letras, 2009. 496p.
do cosmo (planetas, estrelas, galáxias, ra-
diações) e sobre a cosmologia contempo-
rânea (expansão e transformação do uni- ma década e continua com vigor, ante-
verso), Michel Paty retorna ao domínio vendo no século XXI as pesquisas sobre
histórico da física, que agora dispõe de outras formas de vida e de inteligência.
uma imensa coleção de dados experimen- Um resultado notável foi a detecção em
tais proporcionados por telescópios cada 1987 de neutrinos em laboratórios do
vez mais potentes, instalados até mesmo Japão e dos Estados Unidos em coinci-
em estações orbitais. A astronomia con- dência com a observação de uma estrela
temporânea se associa à astrofísica e à supernova na Nuvem de Magalhães. Tal-
cosmologia, permitindo indagações que vez Paty pudesse ter mencionado o tra-
no passado estariam fora dos domínios balho especulativo de George Gamow e
da ciência. A observação da radiação de Mario Schoenberg, na década de 1940,
fundo por Penzias e Wilson em 1965 sus- propondo o “processo Urca”, em que os
citou o enorme impulso da cosmologia neutrinos transportam a enorme energia
e dos seus modelos dinâmicos. A teoria liberada pela formação da supernova, à
geral da relatividade, aplicada inicialmen- semelhança das fortunas que trocavam de
te para explicar os avanços no periélio de mão no cassino do Rio.
Mercúrio e a curvatura dos raios de luz Paty argumenta que a cosmologia
nas vizinhanças do Sol, pode agora ser contemporânea é transformada em ciên-
aplicada para dar conta de fenômenos as- cia física, sem restrições, a partir do esta-
sociados a sistemas maciços e compactos belecimento empírico da lei de Hubble,
(pulsares, quasares e até buracos negros), propondo um universo em expansão
com vantagens evidentes sobre a gravita- constante. Como a distância fornece uma
ção newtoniana. A procura por planetas medida direta do tempo que a luz demo-
fora do sistema solar se iniciou na últi- ra para chegar até nós, os hipertelescópios

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modernos permitem a investigação do Collider”, SSC, um anel com cerca de 90
universo nos seus primeiros estados, pro- km, cuja construção chegou a ser inicia-
porcionando contato com as observações da no Texas, mas que foi descartado em
nos grandes aceleradores, que consideram 1993, quando o Senado americano vetou
dimensões “infinitamente pequenas”. um orçamento que atingia uma dezena
Surge então o modelo teórico do “Big de bilhões de dólares. A “big science”,
Bang”, elevado ao status de “modelo pa- praticada por equipes imensas, às vezes
drão”, embora haja dúvidas e problemas com centenas de pesquisadores, envolve
para o século XXI. Um balanço da massa instrumentos cada vez mais caros, talvez
do universo revela déficit impressionante, exorbitantemente caros, que dificilmente
que seria preenchido pela “matéria escu- serão justificados pelos seus benefícios in-
ra”, praticamente não interagente com a diretos. Desde o Renascimento, passando
matéria hadrônica normal. Medidas mais pelas propostas do século XX, a física sem-
recentes indicam que a expansão do uni- pre se desenvolveu por meio do diálogo
verso está sendo acelerada, fenômeno entre teoria e experiência, mas esse diálo-
que se explicaria pela presença de ener- go será mais complicado no século XXI.
gia escura, que também desconhecemos. Há poucos reparos ao texto: peque-
Fala-se ainda no déficit do balanço de en- nos errinhos que podem ser corrigidos na
tropia. Em suma, há uma boa coleção de próxima edição. Sugiro atenção à grafia de
problemas para os físicos do século XXI, algumas letras gregas e de certos símbolos
que talvez consigam quantizar o campo matemáticos. Os “quadros explicativos” e
gravitacional e completar as atuais teorias as ilustrações em geral são muito úteis.
de cordas... A tradução, com poucos deslizes, sob a
Num dos últimos capítulos, sobre responsabilidade do professor Pablo Ma-
“objetos e métodos”, Paty aborda a ques- riconda, foi feita por um grupo de pesqui-
tão da “big science”: a investigação do sadores*, como o próprio coordenador
infinitamente grande exige hipertelescó- esclarece em nota publicada em Scientia
pios, situados às vezes em órbita espacial; Studia. No final, há vasta bibliografia,
a investigação do infinitamente pequeno, além de índices de assuntos e nomes ci-
das curtíssimas distâncias, exige superace- tados. Em suma, trata-se de ótimo texto
leradores de partículas, com energias cada em português, escrito para um público
vez maiores, e certamente cada vez mais amplo, cumprindo com certeza a missão
dispendiosos. Paty se refere ao CERN, de transmitir ao leitor a “paixão intelec-
consórcio de vários países europeus para tual” dessa aventura que foi a construção
colaboração na área de partículas ele- da física no século XX.
mentares, que tenta colocar em funcio-
namento o maior desses aceleradores, o
“Large Hadron Collider”, ou LHC, um
túnel com 27 km de circunferência, entre Silvio R. A. Salinas é professor do Institu-
a França e a Suíça, e que talvez traga in- to de Física da USP. @ – ssalinas@if.usp.br
formações adicionais sobre a validade do * Irinéa de Lourdes Batista, Claudemir
“modelo padrão”. Mas Paty não mencio- Roque Tossato, Maurício de Carvalho Ra-
na o grande projeto da segunda metade mos, Lúcio Campos Costa, Maria Apareci-
do século XX, o “Superconducting Super da Correa Paty e Olival Freire.

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