Você está na página 1de 2

Ciência básica para conhecer e inovar

Luiz Davidovich

H
á uma pergunta feita há séculos que ain- Unidos. Segundo um artigo de Max Tegmark e
da se apresenta com alguma insistência: John Wheeler, publicado na Scientific American,
“Para que serve a ciência básica?” Tomo o em 2001, estimava-se então que 30% do Produto
exemplo da descoberta recente de um bóson que Nacional Bruto dos Estados Unidos baseava-se
poderá ser a partícula de Higgs. O experimento em invenções tornadas possíveis pela mecânica
foi feito num grande laboratório europeu e en- quântica. Isso alude aos caminhos complexos
volveu recursos da ordem de US$ 13,5 bilhões. da ciência. O laser era considerado, quando foi
Ouvi muitas indagações sobre até que ponto vale demonstrado (1960), uma solução em busca de
a pena gastar tanto com esse tipo de experimento. um problema. Arthur Schawlow, que junto com
E então resolvi, em lugar de recorrer a revistas Charles Townes o propôs num artigo na Physical
científicas, tomar outra mais distante deste uni- Review em 1958, o que lhes valeu o Nobel, men-
Luiz Davidovich é
verso. A Forbes pareceu-me interessante porque professor titular do cionou que se os dois estivessem preocupados
trata das grandes fortunas do mundo. Instituto de Física com a cura da catarata enquanto trabalhavam
da Universidade Federal
O comentário da Forbes menciona que a quan- do Rio de Janeiro nunca teriam chegado à ideia do laser.
tia investida é grande, mas que em sua lista dos (UFRJ) e diretor da Não há uma resposta simples para explicar por
Academia Brasileira
mais ricos do mundo há mais de 50 bilionários de Ciências (ABC)
que as aplicações da física quântica aconteceram
cuja fortuna é maior que isso. Observa que US$ nos Estados Unidos. Mas foi fundamental ali o
13,25 bilhões parecem uma bagatela ante o po- aparecimento de fábricas de ideia, entre elas
tencial de avanço na tecnologia de computação, o laboratório da Bell, que reunia engenheiros,
de diagnóstico por imagem, em break throughs técnicos e cientistas notáveis com sólida forma-
científicos e – destacando outra faceta da ciência ção básica, e onde Bardeen, Shockley e Brattain
– diante do quanto o experimento nos aproxima tiveram a ideia de desenvolver o transistor. Os
do entendimento dos mistérios do Universo. três ganharam o Prêmio Nobel de Física por isso
Vale a pena, ante a pergunta “para que serve e Bardeen, mais tarde, ganhou o segundo Nobel
a ciência básica?”, voltar-se para o começo do em física pela supercondutividade.
século XX e observar o surgimento da física Hoje ainda há uma preocupação em algumas
quântica. Uma galeria de jovens movia-se pela empresas de juntar o desenvolvimento da pesqui-
curiosidade e pela paixão nesse momento mági- sa aplicada com a pesquisa básica. É esse o exem-
co. Certamente, jamais poderiam imaginar que plo da Microsoft, onde o matemático Michael
aquela teoria que desenvolviam para melhor Freedman, especialista em topologia, ganhador
entender a natureza poderia mudar o mundo. A da Medalha Fields, em 1986, por seu trabalho
física quântica resultou mais tarde no desenvol- sobre a conjectura de Poincaré, é diretor de um
vimento do laser, ponto de partida dos discos de grupo de pesquisa em computação quântica.
laser, das unidades centrais de processamento dos Mas a ciência não pode ser vista apenas com
computadores modernos, dos leitores dos códigos esse olhar utilitarista, ela é parte da cultura de
de barra e de relógios atômicos que são a base do uma época. Les demoiselles d’Avignon (1907),
sistema GPS, hoje utilizado em todo o mundo. de Picasso, e o trabalho Sobre a eletrodinâmica
Curioso que todas essas descobertas não te- de corpos que se movem (1905), de Einstein, ca-
nham ocorrido na Europa, onde trabalhavam racterizam ambos uma época extraordinária na
esses jovens, mas principalmente nos Estados história da humanidade. Em 1902, Einstein for-
mou um grupo de estudos, a Academia Olímpia,
Este artigo e os das páginas seguintes resultam de palestras junto com o matemático Conrad Habicht e o es-
proferidas no primeiro dos sete encontros preparatórios tudante de filosofia Maurice Solovin, para discu-
para o Fórum Mundial da Ciência 2013, realizado na sede
da Fapesp de 29 a 31 de agosto de 2012.
tir trabalhos de Karl Pearson,
Ernst Mach, John Stuart Mill,
Henri Poincaré, David Hume,
Baruch Spinoza e Miguel de
Cervantes. Mais ou menos na
mesma época, Picasso formou a
famosa La bande à Picasso, que
reunia gente como André Sal-
mon, Max Jacob e Guillaume
Apollinaire. E ambos estuda-
vam A ciência e a hipótese, de
Poincaré, para quem “o cientis-
ta não estuda a natureza porque Les demoiselles d’Avignon
ela é útil, mas porque o deleita. e o trabalho Sobre a
eletrodinâmica de corpos
E deleita porque isso é bonito”. que se movem (1905)
As grandes personagens do integram ambos a cultura
começo do século XX também de uma época
escreveram textos sobre a co-
nexão estreita entre cultura,
ciência, arte e o próprio senti-
do de beleza. Max Planck disse que era um estudo interno com sérias críticas top universities cresceria em torno de
impossível fazer um corte definido entre ao funcionamento da universidade nos 24%. Sua promessa, feita em janeiro
ciência, religião e arte e afirmava que “o anos precedentes observou que “o valor de 2012, foi mais que dobrar o gasto da
todo não é nunca igual à simples soma da educação no longo prazo deve ser nação em pesquisa e desenvolvimento
de suas partes”. E Einstein observou encontrado não somente no acúmulo de nos próximos cinco anos. Associa-se,
que “a coisa mais bonita que se pode conhecimentos ou práticas, mas na ca- assim, a batalha contra a crise global ao
experimentar é o mistério. Ele é a fonte pacidade de estabelecer conexões entre desenvolvimento da ciência. E o Brasil
da arte verdadeira e de toda a ciência, eles”. E ainda que, “se há um único prin- em relação a isso? Seguimos uma trajetó-
e aquele para o qual essa emoção é es- cípio motivador que liga as várias mo- ria ascendente nos últimos anos e temos,
tranha, que não pode mais pausar para tivações que se seguem nesse relatório, de fato, uma longa história de grandes
refletir e ficar assombrado com ela, está ele é a nossa determinação de quebrar sucessos, como a Petrobras, a Embraer
morto, seus olhos estão fechados”. Isso as fronteiras na vida dos estudantes, de e a Embrapa. Todas estão associadas a
mostra a complexidade que deve ter oferecer uma educação igual aos grandes uma verdadeira política de Estado de
qualquer planejamento científico, qual- desafios e oportunidades que esperam formação de recursos humanos. Tive-
quer discussão sobre o papel da ciência por eles”. A mesma observação foi feita mos depois uma grande ideia, que foi a
na inovação, porque no fazer da ciência em Harvard, que reformou seu currículo. formação dos fundos setoriais, impostos
o que conta é a paixão, é a curiosidade. E aqui no Brasil a Academia Brasileira recolhidos em empresas a fim de aplicá-
Isso está entrelaçado com a inovação. de Ciências (ABC) contribuiu para esse -los em pesquisa. Mas sua evolução mais
Há uma forte pressão utilitária sobre debate, através de vários documentos recente não parece estar de acordo com
a universidade atualmente. No entanto, sobre a reforma da educação superior, a estratégia adotada por outros BRICs
quando perguntaram a Robert Bayer, a reforma da educação básica, o ensino para combater a crise global. Faço por
que foi vice-presidente de pesquisa da de ciências e a aprendizagem infantil. A último uma referência a um artigo do
Universidade Stanford e membro do ABC propõe quebrar as barreiras entre físico Brian Greene, publicado no New
Conselho de Ciência e Tecnologia do os departamentos nas universidades, York Times, em junho de 2008. Ele fala
estado da Califórnia, qual era o papel de promover uma educação mais sintoniza- de uma carta que recebeu de um solda-
Stanford no Vale do Silício, ele respon- da com a nossa época. As propostas são do americano no Iraque, contando-lhe
deu que “o mito era que a tecnologia de boas, sua implementação porém enfrenta como naquele ambiente hostil e solitá-
Stanford tornou o Vale do Silício bem- dificuldades e, neste caso, não podemos rio um de seus livros tinha se tornado
-sucedido”, mas uma pesquisa com 3 culpar o governo: a própria comunidade uma espécie de linha de vida para ele.
mil pequenas companhias mostrara que acadêmica resiste às transformações. Propiciara-lhe o contato com o poder
apenas 20 delas usaram tecnologia de Numa época de crise global como a da ciência para dar à vida contexto e
Stanford direta ou indiretamente em que estamos vivendo, o primeiro-minis- significado. Então, esse é um grande ob-
seu negócio. A grande contribuição de tro da China, ao anunciar no Congresso jetivo da ciência, ao qual eu acrescentaria
Stanford foram estudantes educados e Nacional do Povo que o crescimento do que, devido a uma sutil peculiaridade da
altamente talentosos. PIB chinês passaria de 8% para 7,5%, evolução da espécie humana, a paixão
Nos últimos anos houve uma forte para eles uma grande tragédia, anunciou pela ciência serve à humanidade. Ela
solicitação sobre Stanford para se envol- também que o investimento em pesquisa revoluciona a vida diária das pessoas,
ver diretamente nas empresas do Vale básica em 2012 teria um aumento de 26% afeta nossa organização social, nossos
do Silício. Mas já em janeiro deste ano e que o financiamento das chamadas modos e costumes. n

PESQUISA FAPESP 200 | 51

Você também pode gostar