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CONCEITOS EM GENÉTICA

Herança monogênica:
além de Mendel,
além do DNA

Maria de Nazaré Klautau-Guimarães1, Sabrina Guimarães Paiva2, Silviene Fabiana de Oliveira1


1
Departamento de Genética e Morfologia, Instituto de Ciências Biológicas, campus Darcy Ribeiro, Universidade de Brasília.
2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO) e doutoranda no Departamento de Genética e Morfologia,
Instituto de Ciências Biológicas, campus Darcy Ribeiro, Universidade de Brasília.

Autor para correspondência: nklautau@unb.br

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O artigo propõe uma reflexão sobre o ensino da herança monogênica, apontando


as limitações decorrentes da sua simplificação e sugerindo a apresentação do
quadro atual dos conceitos envolvidos.É importante transmitir ao aluno de graduação
a diversidade de novos conhecimentos que se contrapõem à ideia simples da herança
monogênica, que foi inicialmente proposta e ainda persiste no ensino. O artigo
não pretende apresentar uma fórmula pronta e sim uma ideia a ser construída por
professores e demais graduados.

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O ENSINO DA lhos demonstrou que as variações detectadas


para algumas características da ervilha eram
HERANÇA MONOGÊNICA transmitidas de geração a geração, em um

O modelo clássico de investigação genéti-


ca, principalmente da espécie humana,
baseia-se em estudos familiares e na trans-
determinado padrão. Após a redescoberta
dos trabalhos de Mendel em 1900, o interes-
se nesta área envolveu estudos em diferentes
missão de um fenótipo, que é tradicional- organismos modelos, os quais confirmaram,
mente utilizado como exemplo em sala de de forma geral, a aplicação dos princípios
aula e nos livros didáticos. Porém, de fato, da herança mendeliana. Esses princípios
apenas poucas características apresentam referem-se aos pares de fatores (genes), aos
reconhecidamente herança monogênica, que conceitos de dominância/recessividade e à
conceitualmente representa a transmissão de segregação aleatória dos alelos para os ga-
uma característica, de uma geração a outra, metas. Assim, a variação fenotípica está re-
cuja expressão do fenótipo depende de so- lacionada à presença de dois alelos para um
mente um gene. E ainda, o número de carac- determinado gene nas características anali-
terísticas e doenças cuja variação fenotípica sadas que apresentem o padrão de segrega-
pode ser explicada por mutações em um úni- ção mendeliana.
co lócus está se reduzindo significativamente
Após o desenvolvimento da microscopia, foi
ao longo das décadas, devido ao avanço do
possível associar os conhecimentos gerados
conhecimento na área da genômica.
na área da herança com os da área da cito-
Rotineiramente, para o ensino dos padrões logia. Desta forma foi observado que os fa-
de herança em humanos utiliza-se a obser- tores de Mendel (genes) e os cromossomos
vação da transmissão de características fe- tinham comportamento similar durante a
notípicas de fácil visualização, como cor dos meiose, o que levou a proposta da Teoria
olhos, lóbulos da orelha, cor de cabelos, entre Cromossômica da Herança. Essa proposta
outros. Porém, comumente o fenótipo dessas estabelece que as características hereditárias
características é simplificado para duas clas- são controladas por genes que se localizam
ses distintas derivadas do produto da expres- nos cromossomos, que são transmitidos por
são de um único gene e dois alelos com rela- meio dos gametas, mantendo a continuidade
ção de dominância completa entre eles, isso genética de geração em geração. Esse foi o
é, um de expressão dominante e o outro, de inicio do conhecimento sobre as bases físicas
expressão recessiva. Grande parte dos livros da herança.
didáticos apresenta a variação e a expressão
No século XX, com o desenvolvimento da
fenotípica desse modo simplificado, apon-
genética, começaram a ser observadas varia-
tando uma relação genótipo-fenótipo direta
ções ao padrão de segregação mendeliana.
e associada a um padrão de herança mende-
Com isso, novos conceitos foram cunhados
liana, como apresentado no artigo Mitos da
na tentativa de registrar e explicar esses even-
Genética Humana (MCDONALD, 2011).
tos. A partir da observação dessas variações,
Considerando a literatura atual e o banco de
o conhecimento sobre a variação genética já
dados Online Mendelian Inheritance in Man
se encontrava além de Mendel.
(OMIN), grande parte das características
humanas de fato não se encaixa nesse mode- Ainda no século XX, o segundo grande mar-
lo genético simples. co na área da Genética foram as descobertas
das bases química, molecular e funcional da
HISTÓRICO herança com a definição da estrutura dos
ácidos nucléicos e do Dogma Central da
O interesse humano pela compreensão da
Biologia Molecular, conceito de que o fluxo
variação genética é descrita desde a cultura
da informação genética ocorre do DNA ao
grega até a contemporânea. Porém, o pri-
RNA e do RNA para as proteínas. Contu-
meiro grande marco nesta área ocorreu em
do, uma série de descobertas sobre os genes
meados do século XIX com os trabalhos de
e os processos de expressão gênica dificultou
Gregor Mendel, que introduziram os prin-
a interpretação clássica do gene como unida-
cípios da herança biológica. Em seus traba-

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de hereditária que possui estrutura, função e REFLEXÕES SOBRE


localização definidas, afetando diretamente a
compreensão da herança monogênica. Dian-
O ENSINO ATUAL DA
te da complexidade do genoma e da maqui- HERANÇA MONOGÊNICA
naria celular, a proposta de uma relação de NA GRADUAÇÃO
1:1:1 entre um gene, um produto proteico e Os novos conhecimentos nos obrigam a fa-
uma função apresenta-se simplificada. Con- zer uma reflexão sobre o ensino da herança
siderando a crise do conceito de gene, ressal- monogênica, principalmente diante da cri-
ta-se que sua expressão não ocorre de forma se do conceito de gene. Destacamos alguns
isolada e sim na dependência da estrutura do pontos importantes a abordar como: a) a
DNA, do ambiente celular e externo, o que ampliação da visão sobre hereditariedade
demonstra a definição de padrão de heran- para além do genecentrismo; b) a amplitu-
ça muito mais complexa ( JOAQUIM; EL de da variação fenotípica esperada para uma
HANI, 2010). característica monogênica; c) e a diversidade
Já no século XXI, o terceiro grande marco, de fatores envolvidos na relação genótipo x
foram os conhecimentos sobre a estrutura fenótipo. Se considerarmos os vários modos
e função dos genes e genomas advindos das de interação alélica e o número de alelos, essa
novas tecnologias. Nos últimos anos, a área relação com certeza será de um gene: muitos
da epigenética está esclarecendo as bases da fenótipos. Se adicionarmos a interação com
variação fenotípica herdada por meio de pro- outros genes e com o meio ambiente, poderá
cessamento de sinais externos. As interações advir uma maior variação fenotípica.
do genoma com uma diversidade de fatores Por outro lado, a compreensão da etiologia
ambientais geram diferentes padrões de ex- molecular de doenças genéticas está alteran-
pressão por meio de modificações químicas do nossa percepção da transmissão da doen-
reversíveis do DNA e da estrutura da croma- ça. Foi evidenciado um maior nível de com-
tina (KLUG et al. 2013). plexidade da variação fenotípica em doenças
Realmente, não é possível predizer comple- de herança mendeliana e isso nos leva a ver
tamente o quadro fenotípico com base na que a nossa classificação em herança mono-
alteração genética para a maioria das caracte- gênica e multifatorial é uma simplificação.
rísticas e/ou doenças ditas monogênicas, de- Cada vez mais se observa que grande parte
vido a efeitos adicionais que a transformam das doenças genéticas apresenta variação fe-
em características complexas de padrões de notípica como resultado de ação de alelos de
herança atípicos. Assim, o padrão de herança vários genes, além de outros fatores extragê-
monogênica já se encontra além de Mendel nicos (BADANO; KATSANIS, 2002).
e além do DNA. Os clássicos exemplos de herança monogê-
nica, Fibrose cística (FC) e Fenilcetonúria
(PKU), apresentam complexidade genética
que envolve genes modificadores na extensa
variação fenotípica, mesmo na presença de
genótipos idênticos para os genes principais,
CFTR e PAH, respectivamente. A herança
do gene específico segue o padrão de segrega-
ção mendeliana, entretanto o conhecimento
da mutação não pode predizer exatamente o

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fenótipo do paciente, indicando que outros ria envolvem, no mínimo, três processos:
fatores genéticos e ambientais são impor- a herança mendeliana (nuclear), a herança
tantes moduladores da expressão fenotípica citoplasmática, que envolve o mtDNA e os
(BADANO; KATSANIS, 2002). componentes citoplasmáticos do ovócito, e
o microquimerismo. Esse terceiro processo
A dificuldade no estabelecimento da corre-
envolve a troca de células entre o feto e a mãe
lação genótipo x fenótipo (PKU e CF), in-
(nos dois sentidos) que podem permanecer
dica que o modelo mendeliano é útil para a
ativas na vida adulta. A interação materno/
identificação primária da causa genética das
fetal durante a gestação e no aleitamento en-
doenças familiais e também para cálculos
volve a troca de macromoléculas, organelas
de riscos de recorrência, mas pode ser um
subcelulares e células vivas que envolvem
modelo incompleto para entender a natu-
processos epigenéticos na transmissão de
reza do defeito celular e fisiológico. Prova-
características. Esses processos apresentam
velmente, ao menos parte dessas doenças
efeito no desenvolvimento do embrião, no
genéticas hoje consideradas monogênicas
processo da regulação da função imune da
poderiam ser melhor descritas como de he-
criança e pode permanecer por várias gera-
rança oligogênica, isso é, a transmissão de
ções (MAUREL; KANELLOPOULOS-
características determinadas primariamente
-LANGEVIN, 2008).
por etiologia genética que requerem a ação
sinérgica de alelos de um pequeno número
de lócus. Embora as bases moleculares dos CONSIDERAÇÕES FINAIS
fenômenos descritos para as doenças de he- Os estudos dos mecanismos envolvidos nas
rança oligogênica permaneçam ainda pouco características de herança monogênica per-
entendidas, sabe-se que a etiologia de deter- mitiram o esclarecimento da fisiopatologia
minados casos são devidos à estrutura dos de diferentes doenças e, consequentemente,
produtos gênicos envolvidos, como no caso alterou a percepção de padrão de transmis-
de produtos poliméricos, complexos protéi- são, revelando a complexidade da determi-
cos, relação ligante-receptor e produtos que nação fenotípica. Embora muitas caracte-
participam de uma mesma via bioquímica. rísticas tenham um componente genético e
Assim, a maioria das mutações provavelmen- mostrem recorrência familiar, não é observa-
te apresenta efeito quantitativo no fenótipo, do um padrão de herança mendeliana.
o que faz parte da expansão do conceito mo- Torna-se necessário apontar ainda que, além
nogênico (BADANO; KATSANIS, 2002). do componente genético, há diversos fatores
Nesse sentido, Shawky (2009) apresenta os envolvidos na determinação de uma carac-
diversos aspectos a serem considerados sobre terística ou doença, que ampliam a variação
a extensão da variação que pode ser encon- fenotípica. É importante que o estudante
trada para uma característica de herança mo- tenha uma visão global e dinâmica dos pos-
nogênica, os quais envolvem a base molecu- síveis níveis de organização relacionados à
lar das mutações e outros mecanismos. São expressão fenotípica: o molecular (genes), o
eles: 1) um gene, uma mutação, muitos fe- micro (cromossomos e células), o macro (or-
nótipos; 2) um gene, muitas mutações, mui- ganismo e ambiente) e suas interações.
tos fenótipos; 3) outros mecanismos como No texto procuramos propor uma reflexão
dosagem gênica, regulação gênica, interação sobre o ensino da herança monogênica,
gênica, genes modificadores, processamento apontando as limitações decorrentes da sua
(splicing) alternativo, imprinting genômico, simplificação e sugerindo a apresentação
mecanismos epigenéticos e interação com o do quadro atual dos conceitos envolvidos.
ambiente. A revisão de conceitos anteriormente mal
Novas perspectivas de olhar a hereditarieda- compreendidos na formação dos professores
de considerando a importância do ambiente e profissionais da saúde pode permitir a me-
materno na transmissão de características lhor compreensão dos novos conhecimentos
hereditárias foram colocadas por Maurel e sobre a herança biológica e romper o precei-
Kanellopoulos-Langevin (2008). As auto- to de que a maioria das características fenotí-
ras enfatizam que a transmissão hereditá- picas apresenta herança monogênica.

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1- HE RANÇ A

Herança Monogênica

meiose meiose
Genótipo alelo do alelo do Genótipo
parental gameta gameta parental

Genótipo descendente
Herança Materna mtDNA componentes Herança Epigenética

interação alélica, interação gênica,


2 - A Ç Ã O E R E G U L A Ç Ã O G Ê N IC A Interação ambiente, efeito aditivo,
efeitos epigenéticos, efeito materno

Fenótipo do descendente

Figura 1.
Esquema sugerindo que a
percepção da transmissão de
um fenótipo possa ser abordada
em duas etapas: 1. transmissão
do material genético; 2. ação e
controle da expressão do gene.

Na tentativa de facilitar a visualização dos de gene, Scientla Studia, v.8, n.1, p.93-128,
diversos mecanismos envolvidos no ensino 2010.
da herança monogênica levantados nessa KLUG, W.S; CUMMINGS, M.R.; SPENCER,
reflexão, a Figura 1 sugere a apresentação da C.A.; PALLADINO, M. A. Conceptos de
transmissão de um fenótipo em duas etapas: Genética, 10a edición, Madrid: Pearson Edu-
1. transmissão do material genético (heran- cación, S.A, 2013.
ça) e 2. ação e controle da expressão do gene. MACDONALD, J. (2011). Myths of Human
Essa figura pode ser utilizada pelos docentes Genetics. University of Delaware. Dis-
no sentido de nortear a discussão e apresen- ponível em: <http://udel.edu/~mcdonald/
tação de cada etapa e/ou processo. MythsHumanGenetics.pdf>, Acessado em
03/02/2014.
REFERÊNCIAS MAUREL, M.C.; KANELLOPOULOS-LAN-
BADANO, J.L.; ANDKATSANIS, N. Beyond GEVIN, C . Heredity—Venturing Beyond
Mendel: a evolving view of human genetic dis- Genetics. Biology of Reproduction, v.79, p.2–8,
ease transmission, Nature Reviews, v.2, p.770- 2008.
789, 2002. SHAWKY, R. M . One gene, many phenotypes.
JOAQUIM, L.M.; EL-HANI,C.N. A genética Egyptian Journal of Medical Human Genetics,
em transformação: crise e revisão do conceito v. 10, p. 1- 12, 2009.

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