Você está na página 1de 3

TH

istória

A participação das crianças


nos sacramentos: BATISMO
O Testemunho da História
José Carlos de Souza
Sadao Watanabe: Batismo
Nossa intenção é fazer
um inventário dos principais
testemunhos a respeito da
participação das crianças na
vida sacramental da Igreja.
Sem discutir até à exaustão
todas as implicações desse
tema, queremos modesta-
mente oferecer um roteiro
para posterior investigação e
aprofundamento. Neste nú-
mero do Mosaico – Apoio Pas-
toral, vamos discorrer sobre
o Batismo, resgatando aqui-
lo que o Novo Testamento,
a literatura patrística e os
reformadores – Lutero, Cal-
vino e Wesley – ensinam a
esse respeito. No próximo
número, iremos analisar os
textos que documentam a
participação das crianças na
Ceia do Senhor. Pedro após o Pentecostes, em (4) Importância da fé da (6) Certos autores suge-
At 2.39: “... para vós outros comunidade: nem sempre a rem que o clima de intensa
Novo Testamento é a promessa, para vossos fi- fé dos beneficiados pelos expectativa escatológica vivi-
lhos, e para todos os que ain- milagres de Jesus foi decisi- do pelos primeiros cristãos
Não há, no NT, nenhu- da estão longe...”). Embora va (Cf. Mc 2.5; 9.14s; 9.23s; favorecia igualmente a ado-
ma ordem expressa que au- não se mencione explicita- 17.19s: Mt 8.10). Evidente- ção do batismo infantil. Em
torize o batismo de crianças. mente a presença de crian- mente, isso não exclui a ne- vista da urgência da hora e
Tampouco, existe qualquer ças, ela não é inverossímil, cessidade de uma opção pos- na expectativa do retorno
proibição! De qualquer mo- como atesta o procedimen- terior a favor de sua mensa- glorioso de Cristo, era preci-
do, é incorreto interpretar tal to judaico semelhante tocan- gem acerca do Reino. so, o quanto antes, incorpo-
silêncio em sentido catego- te ao batismo de prosélitos. (5) A atitude de Jesus em rar-se, pelo batismo, à comu-
ricamente negativo, pois es- (2) As figuras do Antigo relação às crianças (Mc 9.33- nidade messiânica. Esse fator
tudos exegéticos e históricos Testamento, que os escritos 37; 10.13-16; Mt 18.1-5; explicaria também porque o
recentes têm indicado a pro- do NT vêem relacionadas ao 19.13-15; Lc 9.46-48; 18. cuidadoso e extenso período
babilidade de que tal prática batismo – dilúvio (1 Pe 3.20- 15-17; Cf. Mt 21.15-16, de preparação para o ato
se impôs à Igreja Cristã logo 21) & travessia do Mar Ver- etc.). Em particular, o em- batismal, tão caro no perío-
em seus primeiros anos. Au- melho (1 Co 10.1-2) – acen- prego do mesmo verbo do posterior, fosse abreviado
tores antigos, como Irineu tuam a dimensão comunitá- (κωλυω= impedir, embara- e simplificado.
(130-200) e Orígenes (184- ria e solidária da salvação (Cf. çar), na passagem sobre a (7) Outro ponto decisi-
254), confirmam a tese, ao também 1 Co 7.14: noção bênção dos infantes e nos vo é que a prática do batis-
sustentarem tratar-se de “cos- coletiva de santidade). relatos batismais do NT (At mo de crianças não está em
tume apostólico”. Evidênci- (3) Paralelo entre o ba- 8.36; 10.47, 11.17; Mt desacordo com a visão total
as disso: tismo e a circuncisão (Cl 3.13-14; Cf. Evangelho dos da teologia batismal neotes-
(1) O batismo de famíli- 2.11-12), como sinais da Ali- Ebionitas 30.13), levou a tamentária. Antes, o contrá-
as inteiras (At 10.2, 24, 44- ança que Deus, em sua Gra- Igreja primitiva a situar a rio, ele encontra-se em har-
48; 16.15; 16.30-33; 18.8; ça, estabelece com o seu palavra de Jesus a favor do monia com a primazia con-
1 Co 1.16; Cf. discurso de povo. batismo de crianças. cedida à Graça de Deus. O

12 Mosaico – Apoio Pastoral ? Ano 6, no 9, agosto/setembro de 1998


Batismo é, antes de tudo e infantil encontra-se, entre- ce-se a ordem do rito batis- o dom de Deus deve ser con-
substancialmente, obra de tanto, na obra Contra as He- mal: em primeiro lugar vêm cedido o quanto antes às cri-
Deus, o Pai (At 2.39-41), o resias, de Irineu, bispo de as crianças; depois os ho- anças; outra, negativa: o pe-
Filho (Ef 5.25s) e o Espírito Lião, na Gália, escrita entre mens e, por fim, as mulhe- cado original do qual devem
Santo (1 Co 12.13). Daí ser os anos 180-185. Segundo res, de cabelos soltos e sem ser purificadas. De todo
administrado em nome da cria, Cristo veio para salvar jóias. Pais e familiares apre- modo, é patente a sua uni-
Trindade (Mt 28.19). A exi- toda humanidade, ou seja, “a sentam-se como porta-vozes versalidade.
gência da fé é cumprida, todas as pessoas que, através dos pequenos que ainda não (8) No século IV, porém,
nesse caso, com base na fé de si mesmo, renascem para sabem falar (p. 51). acaba se impondo o hábito
dos pais (pensa-se nas crian- Deus, lactantes e crianças, (5) Cipriano, bispo de de protelar o batismo até a
ças cujos pais são cristãos, e adolescentes, adultos e ido- Cartago, em meados do 3º idade adulta. Todos os gran-
não num prática generaliza- sos. Por isso é que passou por século, em correspondência des escritores desse período
da e sem critérios), da co- todas as fases da vida: fez-se com outro bispo africano, – Basílio Magno, Crisósto-
munidade orante (disso de- criança para com as crianças, discute sobre a ocasião em mo, Ambrósio, Agostinho e
corre o fato do ato batismal santificando a infância...” que se deve aplicar o batis- outros – apesar de nascerem
ser sempre realizado numa (Adv. Haer. 2.22). A chave mo. O debate é sobre quan- em lares cristãos, receberam
reunião celebrativa da igre- para compreensão do texto é do se deve aplicar o batismo o sacramento apenas na mai-
ja), e da própria criança que o verbo “renascer” que des- (no oitavo dia, por causa da oridade. Constantino, o im-
deve confirmar, no futuro, creve, na linguagem cristã, o analogia com a circuncisão?), perador que mudou o esta-
os compromissos batismais ato batismal (Cf. Jo 3.3-7; e não se ele deve ser aplica- tuto legal do cristianismo na
(essa é a razão da ênfase dada Tt 3.5). do! Na opinião de Cipriano, sociedade romana, será ba-
à educação na fé). É surpre- (3) Tertuliano, de Car- não existem razões para re- tizado somente à hora da
endente, nesse sentido, o tago, escreve, por volta de tardar o batismo, porquanto morte. As razões são eminen-
comentário do teólogo batis- 205, a primeira monografia a circuncisão é apenas uma temente pragmáticas - temia-
ta Neville Clark: “Pode-se sobre o batismo cristão, na figura do que havia de vir e, se cair no pecado e, conse-
defender o batismo infantil qual atesta que a aplicação ademais, nada falta aos re- qüentemente, nos rigores da
à base da natureza escatoló- deste às crianças achava-se cém-nascidos para receber o penitência - e não teológi-
gica do sacramento. Pode- bastante difundida. Rigoro- dom de Deus. Portanto, nin- cas. É bom assinalar esse fato
se afirmar que ele tem um so e legalista, desaconselha, guém deve ser impedido de contra aqueles que simplori-
elemento inegavelmente porém, esse costume, funda- receber “a graça segundo a lei amente afirmam que a uni-
proléptico... que ele existe em mentado não em motivos já estabelecida... E se algo versalização do batismo in-
vista da fé. Esse é um argu- teológicos, e sim em razões pode impedi-lo, isto é por fantil é resultado da consti-
mento poderoso...” (Apud de ordem pastoral. “Se se culpa dos adultos. Se estes, tuição de uma Igreja multi-
Brand, Eugene L. Batismo – compreende a importância quando chegam à fé, obtêm tudinária, isto é, de massas,
Uma Perspectiva Pastoral. São do batismo, temer-se-á mais a graça, quanto mais alcan- à época de Constantino. A
Leopoldo, Sinodal, 1982, p. o recebimento que a prote- çarão aqueles que, como as constantinização do cristia-
25). lação” (O Sacramento do Ba- crianças, não têm culpa al- nismo teria posto fim ao ca-
tismo, Petrópolis, Vozes, guma!” (apud Grasso, Do- ráter confessante da comuni-
Igreja Primitiva l981, p. 67). De acordo com menico. Hay que seguir bauti- dade cristã. Além do equívo-
o mesmo princípio, advoga zando a los niños? Salamanca, co histórico, a prática da
(1) Pode-se conjecturar o retardamento do batismo Sígueme, 47). Igreja, nos primeiros séculos,
que o batismo de crianças das virgens “pois têm tenta- (6) Outras referências demonstra eloqüentemente,
tomou forma ainda no pri- ções à frente” e das viúvas, significativas encontram-se não haver qualquer incom-
meiro século da era cristã, por causa de sua instabilida- na obra de Orígenes, impor- patibilidade entre ser confes-
com base em testemunhos de (Cf. 1 Tm 5.11-13). Nes- tante teólogo da Escola de sante (cf. relatos de martírio)
similares à carta circular da se capítulo ainda, Tertuliano Alexandria (c. 184-254). Em e aplicar o batismo às crian-
Igreja de Esmirna sobre o faz menção (pela primeira três circunstâncias diferentes, ças.
martírio de seu bispo, Poli- vez na literatura cristã!) da fi- comentando Lc 2.22; Rm (9) Foi Agostinho (354-
carpo (ano 156), o qual, di- gura dos padrinhos e da in- 1.5, 9 e Levítico, ele se re- 430) quem fixou a prática sa-
ante dos insistentes apelos vocação da bênção aos infan- porta ao batismo de crianças cramental cristã e estabeleceu
para que renegasse a Cristo, tes (Mt 19.4), utilizada, en- como uma ordenança apos- os seus fundamentos teoló-
declarou: “Há 86 anos que o tão, como argumento para os tólica, relacionando-o, além gicos. Ele será ardoroso de-
sirvo e nunca me fez mal al- que defendiam o batismo de disso, à impureza na qual fensor do batismo de crian-
gum. Como poderia blasfe- crianças. todos nascem (pecado origi- ças, porém, irá vinculá-lo à
mar meu Rei e Salvador?” (4) Na Tradição Apostóli- nal). doutrina do pecado original.
Não é de todo improvável ca de Hipólito (Petrópolis, (7) Os textos, acima evo- A Igreja no ocidente não o
que o ancião pense a partir Vozes, 1981), onde se des- cados, deixam claro o alcan- questionará durante toda a
do batismo recebido na sua creve a liturgia romana nos ce do batismo de crianças na Idade Média.
primeira infância (c. ano 70)! anos 225, o tema é aborda- Igreja dos primeiros séculos.
(2) O primeiro testemu- do com naturalidade, sem Constata-se, neles, uma du-
(Continua na página 15)
nho inequívoco do batismo quaisquer dúvidas. Estabele- pla motivação: uma positiva,
Mosaico – Apoio Pastoral ? Ano 6, no 9, agosto/setembro de 1998 13
miu a forma de servo. Essa Guiar, assistir a pessoa (Continuação da página 13) 16 das Institutas (na edição
passagem bíblica fala-nos no processo de tomar de- portuguesa, p. 304-338). Ele
de duas dimensões que se cisões, ou fazer escolhas, retoma e aprofunda princí-
pios bíblicos e patrísticos; re-
harmonizam em Cristo: diante de diversas alterna-
futa, uma a uma, as objeções
“fazer-se vazio”, “fêz-se a tivas de pensamento, reli- contrárias ao batismo infan-
si mesmo nada” (ekenosen, gião e ação especialmente til (15 argumentos anabatis-
em grego) e “entroniza- quando essas escolhas po- tas e 20 de Miguel Servetus);
ção”, “super-exaltação” dem afetar profundamen- e finaliza afirmando que se
(hyperypsosen). Essas duas te o momento atual e fu- deve ver essa prática como
dimensões atestam “a di- turo dessas pessoas; sinal da “abençoada provisão
mensão do encontro real Reconciliar, é acompa- divina a reclamar profunda
com o homem no cami- nhamento pastoral que gratidão” de nossa parte. Sem
nho da obediência até à procura restabelecer rela- Reforma dúvida alguma, vale a pena
revisitar o que diz o ilustre
morte, a qual culmina cionamentos rompidos
(1) Lutero expõe a sua reformador de Genebra.
com o encontro perfeito entre o ser humano e Deus doutrina sacramental em di- (3) Wesley se insere na
com Javé, Deus-Pai, na di- e entre as próprias pessoas versos escritos, notadamente mesma tradição. Para ele, o
mensão do hyperypsosen. (Clebsch, W. e C. Jaekle, no Cativeiro Babilônico da batismo de crianças está em
Ambos os momentos re- Pastoral Care in Historical Igreja e nos Catecismos Mai- perfeita continuidade com o
sumem a atitude pessoal e Perspective, Englewood or e Menor. Para ele, o batis- NT. Aliás, ele acreditava que
o comportamento comu- Cliffs, Prentice-Hall, 1964, mo infantil testifica a salva- a palavra neotestamentária
nitário do ministério de p. 79). ção pela Graça. Com extre- “casa” certamente incluía cri-
Jesus. É aí que os cristãos Embora essas atribui- mo didatismo, Lutero reco- anças pequenas, como tam-
menda que, aos símplices, bém julgava difícil supor
encontram os critérios de ções apontem tarefas pe-
deve-se ensinar que tanto a “que os judeus, que estavam
seu comportamento” (Ca- renes, importantes e ne-
história quanto a experiência acostumados a circuncidar os
margo, S. Hacia una Cris- cessárias do pastoreio cris- revelam que Deus aprova o seus filhos, não os dedicas-
tologia Latino-americana. tão, elas têm se limitado, batismo de crianças, já que sem agora a Deus pelo batis-
San Jose, SBLA, 1975, p. quase que exclusivamente, o Espírito Divino não foi re- mo” (Notas Sobre o NT, At
136). ao nível individual e fami- tido a muitos que receberam 16.15). Wesley estava cons-
Quarto, estudiosos da liar. É necessário atualizá- o sacramento já na menini- ciente de que é Deus quem
Pastoral têm identificado las e examiná-las critica- ce. Aos doutos, continua ele, inicia a obra de regeneração
as quatro atribuições pas- mente para ampliar o seu é preciso esclarecer que não em nosso coração (primazia
torais mais destacadas na alcance. Por exemplo: a é a fé que confere eficácia ao da Graça), porém, reconhe-
ato batismal, e sim a Palavra cia que o seu propósito se
história da Igreja: curar, tradição do pastoreio não
de Deus. Em outras palavras, cumpria plenamente somen-
suster, guiar e reconciliar: tem se beneficiado, exten-
o batismo de crianças assen- te quando lhe respondemos
Curar significa “tornar sivamente, dos estudos de ta-se exclusivamente na or- positivamente, através do
inteiro ou íntegro”. É ação sistemas que contemplam, dem de Deus. A essa altura, novo nascimento. Daí, afir-
pastoral que objetiva supe- entre outros, instituições o reformador opõe-se aos en- mar categoricamente que “se
rar deteriorações nas pes- sociais e formações cultu- tusiastas, que condicionam a não o experimentarmos, nos-
soas e entre pessoas restau- rais. Esses estudos nos au- eficácia batismal à fé, e ar- so batismo não respondeu ao
rando-as à sua integrali- xiliam na compreensão do gumenta: “...se eu não creio, objeto de sua instituição”
dade e levando-as a cres- caráter estrutural do peca- segue-se que Cristo nada é” (Idem, Cl 2.12). Destaca-se,
cer em relação à sua situa- do e de seu impacto na (?), para concluir: “... o abu- nessa passagem, o caráter
so não suprime a substância, proléptico, escatológico, do
ção anterior (cf. Rosa, vida de individuos, famí-
senão que a confirma” (Cf. batismo, ao qual aludiu-se
Ronaldo Sathler, “A Bus- lias, igrejas e na sociedade
Catecismo Maior in Livro de anteriormente.
ca da Cura – Uma Análise (cf. Efésios 6.12). Concórdia. São Leopoldo, (4) Enfim, vale assinalar,
Pastoral”. Tempo e Presen- Afinal, hoje em dia Sinodal/Concórdia, 1980, p. à modo de conclusão, que a
ça 19 (294), (1997)); está cada vez mais difícil 482-3). Em suma, Lutero Igreja Metodista no Brasil,
Suster, é ajudar a pes- fazer a distinção entre o não somente incorpora a tra- ancorada nessa longa tradi-
soa “ferida”, ou em crise, privado e o público, ou dição cristã primitiva como ção, reconhece a prática do
a persistir e a transcender cultural. Daí a importân- critica os adversários do ba- batismo infantil como ex-
uma circunstância na qual cia da Pastoral da Igreja tismo de crianças. pressão de sua fidelidade a
a recuperação de condição analisar o atual momen- (2) Calvino segue a mes- Deus, que “deseja que todos
ma orientação e se ocupa ex- sejam salvos” e o afirma ca-
anterior ou de enfermida- to histórico e atuar, tam-
tensamente dessa questão em tegoricamente em seus docu-
de pareça ser impossível, bém, pela transformação
sua obra magna, precisa- mentos (Cf. Cânones da Igre-
remota ou improvável; cultural. mente, no livro IV, capítulo ja Metodista, 1998).

Mosaico – Apoio Pastoral ? Ano 6, no 9, agosto/setembro de 1998 15

Você também pode gostar