Você está na página 1de 4

Leonardo Octavio Belinelli de Brito

SCHWARZ, Roberto et alli. Nós que amávamos no período, a qual, simultaneamente, foi ele-
tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. São vada a um grau de elaboração superior, devido
Paulo, Boitempo Editorial, 2017. à sua feição universitária, como também foi
destacado instrumento para a elaboração de
diagnósticos e posições políticas de resistência
à ditadura inaugurada em 1964.
Como se trata de exposições de quatro
Leonardo Octavio Belinelli de Brito
autores muito diferentes entre si, essa coin-
cidência se torna um ponto saliente que, ao
mesmo tempo, aparece de formas variadas.
Uma das formas que essa coincidência assu-
me está na evocação avaliativa da importância
Nós que amávamos tanto O Capital reú- dos estudos universitários a respeito de Marx
ne as intervenções feitas por Emir Sader, João levados a cabo por jovens professores e alunos
Quartim de Moraes, José Arthur Giannotti e que se puseram a lê-lo de maneira coletiva no
Roberto Schwarz no dia 22 de março de 2013, contexto da Faculdade de Filosofia da Univer-
por ocasião do “IV Seminário Internacional sidade de São Paulo (USP), tal como o fizeram
Margem Esquerda: Marx e O Capital”. O mote o primeiro e o segundo seminário Marx. A pró-
das exposições foi a análise de algumas das pria composição da mesa que originou o livro
leituras brasileiras de Marx. Portanto, é nesse aqui resenhado nos dirige nesse sentido, pois
registro que devemos compreender o livro. Schwarz participou dos dois seminários; Gian-
Preliminarmente, cabe destacar que notti apenas do primeiro e Quartim de Moraes
essas reflexões constituem documentos pre- e Sader somente do segundo.
ciosos sobre o assunto, tendo em vista que os Em sentido similar, esse contorno ganha
autores, além de intelectuais competentes na reforço logo na abertura do ensaio de Schwarz,
interpretação da tradição de Marx, também fo- momento em que esclarece que seu intuito é o
ram protagonistas da recepção do pensamento de apresentar a forma de leitura adotada pelo
do autor de O Capital por aqui. Essa consta- conhecido Seminário Marx (1958-1964), que
tação já tornaria a leitura do livro de grande congregou alguns jovens professores e alunos.
valia, mas existem outros motivos para tanto. Entre eles, estavam José Arthur Giannotti, Ruth

Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 80, p. 397-400, Maio/Ago. 2017


Nesta resenha, vamos colocar nosso foco em Cardoso, Fernando Henrique Cardoso, Fernando
apenas um deles: a relação entre marxismo e Novais, Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Mi-
universidade, ocorrida em determinado perío- chael Löwy, Bento Prado Júnior e outros menos
do de nossa história recente. frequentes. O intuito do grupo era ler Marx de
Com efeito, o conjunto das argumenta- forma acadêmica, longe dos oficialismos do Par-
ções dos autores forma um painel diversifica- tido Comunista Brasileiro (PCB). Esse objetivo
do, no qual se cruzam memórias, interpreta- traduziu-se na produção de teses de doutorado e
ções e posições políticas distintas. Essa hete- de livre-docência que articulavam os resultados
rogeneidade, no entanto, guarda um ponto em dos debates realizados nos seminários, tais como
comum, que pode nos servir na organização de Capitalismo e escravidão no Brasil meridional
nossa reflexão: de um modo ou de outro, to- e Empresário industrial e desenvolvimento eco-
dos os autores tomam como referência lógico- nômico no Brasil, de Cardoso, Portugal e Brasil
-temporal os anos 1960, nos quais 1964 e 1968, na Crise do Antigo Sistema Colonial, de Novais,
por motivos sobejamente conhecidos, ocupam Ao vencedor as batatas, de Schwarz. Segundo
lugares destacados. Daí que se imponha uma Schwarz (p.19-20), esse conjunto de teses teria
reflexão sobre a ambivalente recepção de Marx em comum a atenção a um ponto normalmen-

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792017000200013
397
RESENHA

te esquecido: o de que era preciso realizar uma ao “cosmopolitismo” abstrato das fórmulas do
operação intelectual para aclimatar o marxismo Partido Comunista – as quais, em última ins-
no Brasil, uma vez que o seu referencial histó- tância, dispensavam o estudo da realidade lo-
rico era o capitalismo inglês do século XIX. A cal, pois forneciam, de antemão, a “solução”
exposição sucinta dessa argumentação é um dos política para seus problemas. Assim, a busca
pontos altos do livro, pois nela se combinam ex- por firmar a capacidade da dialética marxista
plicações teóricas e históricas. no plano científico resultou no entendimento
A assimetria, identificada por Schwarz, de que as mazelas locais tinham relação com
entre as exigências do pensamento de Marx e a formação do país, a qual ocorreu no plano
o acanhado contexto intelectual nacional foi de expansão do mercado internacional acon-
reduzida a partir do estudo sistemático, pro- tecido na aurora da modernidade. “A distân-
piciado pelas instituições universitárias, das cia entre a teoria do capitalismo e as relações
sutilezas próprias do pensamento do filósofo peculiares de uma ex-colônia passava a ser
alemão e de sua tradição. Nesse sentido, se o encarada como parte significativa – política
marxismo emprestava certo dinamismo políti- e culturalmente – da gravitação do presente
co à reflexão universitária, costumeiramente mundial” (Schwarz, 2017, p.25). Talvez tenha
apegada à ideia de neutralidade nesse campo, faltado ao crítico mencionar que essa intuição,
por outro lado, ela mesma revigorava a força consubstanciada nos trabalhos acadêmicos de
de um pensamento que passava por uma vul- Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais
garização sistemática. e do próprio Schwarz, fundou toda uma tradi-
A importância da sistematicidade uni- ção de pensamento que resultaria, no momen-
versitária no estudo do marxismo apareceu na to da redemocratização, na formação de dois
forma de ler O Capital e de organização do gru- dos principais partidos políticos do Brasil.
po. Quanto à leitura, adotou-se a técnica de ex- A interrupção das reuniões desse se-
plicação de texto da tradição francesa, vigente minário se deveu ao golpe de 1964; da mesma
no curso de Filosofia da Universidade de São forma, a formação de outro grupo, chamado
Paulo, cujas referências intelectuais eram, en- pelo crítico literário de “Seminário II”, par-
tre outros, Gilles-Gaston Granger, Victor Golds- cialmente inspirado no anterior, também pa-
chmidt e Martial Guéroult. Conhecedor delas, rece ter sido motivada pelos acontecimentos
Giannotti foi alçado à liderança epistemológi- políticos do período. Esse segundo grupo era
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 80, p. 397-400, Maio/Ago. 2017

ca do grupo. De maneira correlata, como obser- composto pelo já mencionado Schwarz, Emilia
vou o crítico literário, os jovens seminaristas Viotti da Costa, João Quartim de Moraes, Emir
buscavam valorizar as especialidades acadê- Sader, Sérgio Ferro, Marilena Chauí, Ruy Faus-
micas então em formação, como denotam as to, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Albertina
escolhas de filósofos, historiadores, sociólogos Oliveira Costa, Claudio Vouga, Célia Quirino
e economistas para compor o grupo. dos Santos, José Francisco Quirino dos Santos,
Outro aspecto no qual a liberdade de Betty Milan, Lourdes Sola. “O segundo semi-
espírito propiciada pela universidade e a sua nário […] pertencia a um momento histórico
busca pelo aprofundamento dos estudos coin- diferente. Sob a pressão de 1964, o grupo de
cidiram de maneira produtiva aparece naqui- estudos acabou entrando para a luta social de
lo que Schwarz chamou de “intuição nova maneira mais direta. Também aqui se estudava
do Brasil”. Que era ela? Os estudos de Marx O capital em detalhe, mas o espírito era mais
desses seminaristas uspianos lograram tanto ativista, ou menos especulativo” (Schwarz,
fugir do “localismo” epistemológico e teórico 2017, p.18). Tanto foi assim que alguns de seus
próprio do pensamento nacionalista predomi- membros, como Sérgio Ferro, entraram para a
nante no período, como também escaparam resistência armada. Um dos resultados desse

398
Leonardo Octavio Belinelli de Brito

seminário foi a criação da revista Teoria e Prá- e Jacob Gorender. Nesse sentido, a relação do
tica, interrompida no seu 4º número pelas for- autor com o marxismo universitário parece
ças repressivas da ditadura. ambígua, pois, por um lado, reconhece o apro-
Na intervenção de José Arthur Giannotti, fundamento que ele trouxe ao pensamento
encontramos também a valorização da experi- local, mas, por outro lado, parece sugerir que
ência universitária. Os seus habituais leitores se tratou de uma “experiência intelectual pro-
encontrarão, nessa intervenção, a retomada de priamente teórica” (Moraes, 2017, p. 43). É sin-
questões já debatidas pelo professor de Filosofia tomático que o autor, logo adiante, reconheça,
da USP: a relação de Marx com Hegel, a formu- no entanto, que a “conotação política [do semi-
lação lógica presente em O Capital, a questão nário] era indireta” (idem, ibidem).
da necessidade (ou não) da ontologia do ser so- Sem negar a pertinência da observação,
cial etc. Mas esses temas, por assim dizer, “teó- cumpre notar que a ideia de uma “experiência
ricos”, são formulados ou pensados a partir de intelectual propriamente teórica” não se coa-
uma demarcação temporal cujo centro defini- duna bem com a ideia de que existe efeito po-
dor foram os estudos universitários de Marx. “A lítico, ainda que “indireto” e fortalecido depois
vulgata marxista impediu que lêssemos Marx de 1964; se for assim, somos levados a concluir
como um clássico, isto é, como um texto de um que não se tratava apenas de uma postura te-
filósofo que entra para o patrimônio da huma- orizante. Nesse sentido, essa passagem é bas-
nidade na medida em que suscita leituras que tante ilustrativa da tensão entre um momento
mudam visões e abrem caminho para ações” de institucionalização universitária, com suas
(Giannotti, 2017, p. 31). Esse, pois, parece ser regras e características próprias, e um contex-
o ponto central da reflexão histórica do filósofo to político que exigia uma postura combativa
paulista a respeito das leituras de Marx no Bra- dos intelectuais. Nessa problemática, o estudo
sil: antes da leitura universitária, especializada de Marx ganhou nova moldura, uma vez que
em questões de método, o marxismo, dominado se trata de um intelectual de sofisticadíssimas
por leituras partidárias e assistemáticas, teria raízes intelectuais, como a filosofia clássica
sido permeado por erros teóricos e, por conse- alemã e a economia política moderna inglesa,
quência, políticos. Não é difícil perceber que, as quais talvez só pudessem ser desvendadas
segundo essa argumentação, o rigor acadêmico por estudos acadêmicos pacientes. Entretanto,
aparece como possível solução para erros polí- esse estudo teve como centro de sua atividade

Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 80, p. 397-400, Maio/Ago. 2017


ticos, o que emprestaria novo fôlego e relevân- intelectual e política a busca da ação revolu-
cia à atividade intelectual. Vale notar, aliás, que cionária, que nem sempre combina bem com o
essa relação, se já era presente no contexto dos ritmo e com os problemas postos pela investi-
anos 1960, é retomada explicitamente nos dias gação de matriz científica. Marx não escreveu
de hoje por Giannotti, para quem uma parte sig- para acadêmicos, mas são eles que, habitual-
nificativa da esquerda combateria o capitalismo mente, dispõem do conjunto de ferramentas
como se estivesse no século passado. adequadas para compreendê-lo.
Em chave quase oposta, João Quartim A exposição de Emir Sader é a que parece
de Moraes busca valorizar a tradição comunis- mais distante da linha argumentativa que esta-
ta que precedeu os estudos universitários de mos tentando estabelecer. Isso porque o autor se
Marx no Brasil. Por consequência, sua reflexão põe a discutir as crises econômicas e políticas
é a que faz o panorama histórico mais amplo surgidas a partir de 1970, década em que nasce
a respeito da chegada da tradição marxista no a prática político-econômica neoliberal. Ape-
país, com destaque para intelectuais pré-uni- sar disso, nela o autor recorda, como Schwarz,
versitários, tais como Caio Prado Júnior, Nel- o que poderíamos chamar de “efeito multipli-
son Werneck Sodré, Alberto Passos Guimarães cador” dos seminários de estudos de Marx no

399
RESENHA

Brasil dos anos 1960. “Até o Seminário de O ca- Por tudo que se assinalou nas páginas
pital, tudo o que tínhamos para ler de Marx era anteriores, torna-se fácil perceber o interesse
‘Salário, preço e lucro’ e ‘Trabalho assalariado e do debate feito pelos autores, que, pelas so-
capital’, além, é claro do Manifesto Comunista. fisticações intelectuais que lhes são próprias,
Por isso, participar do seminário representou lograram realizar reflexões articuladas acerca
um salto teórico enorme para todos nós, uma da história da recepção de Marx no Brasil e da
experiência fora de série” (Sader, 2017, p. 61-2). atualidade de seu pensamento. Talvez tenha
O autor também recorda a originalidade de sua faltado às intervenções explorar os vínculos –
dissertação de mestrado, Estado e política em a nosso ver, existentes – entre essas gerações
Marx, produto de um momento em que reflexão que leram Marx nos anos 1960 e suas práticas
e militância se conjugaram. Essa dissertação, políticas hodiernas. Esse realce demonstraria
recentemente republicada, constitui um dos que, à sua maneira, as relações complexas que
primeiros estudos feitos sobre o pensamento essas gerações estabeleceram entre marxismo,
político de Marx nas universidades brasileiras. universidade e militância resultaram na vin-
As memórias desses autores e atores in- culação entre teoria e prática, tão preconizada
dicam um caminho rico para a pesquisa da his- nessa tradição. Consequentemente, desmenti-
tória das ideias marxistas no Brasil, pois tanto riam a tese de que a universidade neutralizaria
esclarecem alguns fatos como sugerem a impor- o potencial político de Marx – embora caiba
tância de suas especificidades. Cabe destacar pensar, a cada momento histórico, qual seria
que a recepção de Marx no Brasil dos anos 1960 esse potencial.
foi bastante diferente daquela ocorrida em ou- Ao longo do nosso texto, buscamos
tros países da América Latina. Como exemplo, destacar como essas memórias denotam a re-
basta citar a influência dominante do marxismo levância da universidade no aprofundamento
althusseriano no subcontinente daquele perío- do pensamento crítico brasileiro. Em um mo-
do, que discrepa do caso brasileiro. Não é à toa mento como o que vivemos, no qual se conju-
que Schwarz encerra sua intervenção recordan- gam, entre outros fatores, instabilidade demo-
do a investida crítica de Giannotti contra o au- crática e desafios às instituições educacionais
tor de Ler O Capital, descrita em seus termos públicas, essas recordações, que exploram um
como uma “crítica radical e notável às teorias período no qual a resistência política aos des-
de Althusser, naquela época a maior referência mandos dos poderosos se aliou à criatividade
Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 80, p. 397-400, Maio/Ago. 2017

internacional do marxismo. […] o esforço de intelectual, assumem inegável atualidade e tal-


umas poucas pessoas associadas pelo estudo, vez nos sirvam de inspiração.
em sintonia com o momento histórico, levava
um filósofo municipal […] a participar com
Recebido para publicação em 25 de maio 2017
força e representatividade da primeira linha do Aceito em 17 de agosto de 2017
debate contemporâneo” (Schwarz, 2017, p. 26).

Leonardo Octavio Belinelli de Brito – Doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo.
Trabalha com temas relacionados ao pensamento político e social brasileiro e à teoria política. Publicou,
junto com Rodrigo Gonçalves Santaella, o artigo “Notas teóricas sobre a ‘nacionalização’ do marxismo:
os casos do Seminário d’O Capital e do grupo Comuna”. Outubro (São Paulo), n.28. 2017.
belinelli.leonardo@gmail.com

400

Você também pode gostar