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Apresentação aos textos de Iniciação

Partidária: uma introdução ao Pesamento


Marxista
Cumprindo decisão do colegiado da Secretaria Nacional de Formação
Política, estamos promovendo uma atualização dos textos para
a Iniciação Partidária, na Seção de Formação Política de nossa página
na internet. Utilizamos, centralmente, para esta renovação, textos
traduzidos e adaptados de capítulos do livro “Aproximações ao Marxismo
(uma introdução), do intelectual comunista argentino Néstor Kohan,
investigador e docente na Universidade de Buenos Aires (UBA). Kohan
publicou numerosas obras sobre teoria marxista e história do
pensamento revolucionário, entre os quais se destacam: “O capital:
história e método”; “Ernesto Che Guevara: o sujeito e o poder”, “Gramsci
para principiantes” e “Fidel para principiantes”. Vários deles têm sido
editados na Argentina, Brasil, México, Cuba, Venezuela, Colômbia e na
Espanha.

Para a nossa seção de formação, servimo-nos dos textos que foram


pensados, segundo Kohan, como um convite ao estudo. Assim ele próprio
afirma, no prefácio do seu livro: “Os textos … constituem uma ferramenta
destinada a leitores e leitoras individuais, porém também voltada a
coletivos de movimentos sociais e organizações políticas que hoje sentem
a necessidade da (auto)formação. Em seu conjunto, tentam promover e
contribuir para um processo de socialização do conhecimento, da leitura,
do debate e da discussão entre companheiros e companheiras. Queremos
construir o socialismo do século XXI? Pois bem, enquanto atuamos temos
que estudar.”

Dispomos os textos de maneira didática, para facilitar o estudo do


marxismo a quem está se aproximando das lutas populares e da
militância política e deseja conhecer mais profundamente as ferramentas
conceituais e teóricas construídas pelos fundadores do materialismo
histórico (Karl Marx e Friedrich Engels) e de seus continuadores
revolucionários (Lênin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács, Althusser,
Mészáros, dentro outros). Apresentamos, pois, a seguinte relação de
textos para a formação inicial:

1) Um Guia Introdutório ao Pensamento Marxista, que contém um


manual completo de perguntas, assim como recomendações para o
aprofundamento de futuras leituras, fundamentais para a compreensão
da teoria marxista e de seus principais conceitos. Como texto
introdutório, foi pensado a partir de uma aproximação junto à realidade
social em que vivem os setores populares da América Latina. Parte da
análise da situação de crise econômica permanente em que vivemos e das
suas origens, polemizando com a ideologia dominante, que busca sempre
naturalizar a ordem existente, através do senso comum e das ideias e
teorias hegemônicas. O texto trabalha a necessidade de se aprofundar a
filosofia marxista e o método dialético, como ferramentas dos
trabalhadores para a análise e a compreensão da realidade, visando
formar novas consciências para a luta revolucionária.

2) O Marxismo Revolucionário na História do Socialismo. Trata-se de


texto que analisa o processo de formação do materialismo histórico,
demonstrando como surgiu, na história mundial das lutas contra a
exploração, o pensamento revolucionário de Marx e Engels.

3) O Dicionário Básico de Categorias Marxistas apresenta definições


sucintas para os principais conceitos e termos desenvolvidos pela teoria
marxista.

4) Sugestões para iniciar a leitura de Marx: traz indicações de como se


aproximar das obras fundamentais dos fundadores do materialismo
histórico e de seu pensamento político, filosófico e estruturador de uma
nova teoria da história e da crítica revolucionária à economia política.
Contém também uma cronologia das principais obras, notas explicativas
sobre as publicações dos clássicos do marxismo em língua espanhola e
uma pequena relação de sítios marxistas na internet.

5) Marxismo no Brasil desenvolve uma breve síntese sobre a difusão das


ideias marxistas e a publicação das principais obras dos fundadores da
filosofia da práxis em nosso país, centrando o relato no trabalho
promovido, dos anos 1920 até o golpe empresarial-militar de 1964, pelo
PCB, através de seu aparato político-cultural, desbaratado pela
repressão. Após o golpe, editoras como a Civilização Brasileira,
Brasiliense e Paz e Terra, então dirigidas por comunistas, cumprem papel
decisivo nesta difusão. Ao final do artigo, há uma relação de obras mais
recentemente editadas no Brasil.

6) Capitalismo ontem e hoje é um dos textos que compõem o Livro das


Resoluções do XIV Congresso do PCB (2009). Não constitui uma
resolução partidária, mas serve de base para a compreensão dos
processos de formação, desenvolvimento, consolidação, crises e
aprofundamento do capitalismo no mundo e no Brasil. Aponta ainda
quais são as tarefas centrais para os comunistas no trabalho
revolucionário de organização dos trabalhadores para a resistência e
enfrentamento à ordem do capital e à hegemonia burguesa.
7) Socialismo: Balanço e Perspectivas, a exemplo do documento sobre
capitalismo, não é resolução, mas representa o acúmulo hoje existente
no interior do PCB a respeito do balanço histórico das experiências
socialistas do século XX e sobre as possibilidades e responsabilidades da
militância na consecução do projeto socialista no rumo do comunismo.

8) Resoluções de Estratégia e Tática é o documento orientador das


ações dos militantes do PCB no movimento de massas e na luta política,
como resultado final das discussões do XIV Congresso. É texto
obrigatório a todo aquele que se aproxima do PCB e deseja fazer parte de
nossa organização.

Pretendemos, com tais documentos, facilitar a aproximação dos


camaradas com a teoria marxista e indicar caminhos para fazer do estudo
uma prática permanente da militância comunista. Estudar é uma
necessidade vital do militante, desde que o estudo não se torne algo
diletante, com vistas à fútil demonstração de conhecimentos. Também
não podemos encarar o entendimento da teoria como solução para todos
os problemas. Por isso evitamos a utilização de textos que reproduzem os
velhos manuais da escola soviética, muitos dos quais foram estruturados
a partir de uma visão economicista do marxismo. Trata-se aí de uma
redução extrema das teses de Marx, como se a economia pudesse ser
separada da política, da ideologia, da cultura e da filosofia.

Devemos fugir também das fórmulas prontas e acabadas. A proposta de


se trabalhar o estudo a partir dos textos de Néstor Kohan leva em
consideração o seu método de construção do conhecimento pelo
estudante, através dos questionamentos feitos com base na própria
realidade vivencida por quem estuda, que é a realidade de todo o
trabalhador latino-americano: submetido à exploração capitalista num
mundo cada vez mais integrado à ordem do capital, ao mesmo tempo em
que vivem-se as experiências de resistência e de luta contrária a ela.

A tarefa da formação política não é especialidade dos quadros


“intelectuais” do Partido. No Partido, todos somos intelectuais, todos
contribuímos coletivamente para as formulações táticas e estratégicas. A
formação política não se restringe à organização de cursos, palestras e
seminários, fundamentais para sedimentar a teoria revolucionária entre
nós, mas procedimentos insuficientes, se não vierem acompanhados da
disciplina que cada militante precisa desenvolver no sentido do estudo
individual. Este é absolutamente indispensável para orientar a ação
prática do militante. E o estudo individual deverá ser sempre
complementado com a reflexão coletiva sobre os temas estudados, no
interior da organização partidária. Por tudo isso, planejamento é
fundamental. E é por esta razão que são constituídas as secretarias de
formação política nas bases, nos comitês municipais e estaduais e no
Comitê Central: para planejar e organizar o estudo coletivo da teoria
marxista.

Como afirma Néstor Kohan:

“A formação política e o estudo teórico devem ser feitos então de forma


rigorosa e sistemática. Constituem uma tarefa de longo prazo. Porém, não
os concebemos como um fim em si mesmo, mas como integrados na
história e com vistas a contribuir para as lutas coletivas de nossos povos.”
Guia de perguntas introdutórias para a
discussão, o estudo e o debate

Adaptado do texto de Néstor Kohan

O desacordo entre os sonhos e a realidade não produz dano


algum, desde que a pessoa que sonha creia seriamente
em seu sonho, se fixe atentamente na vida, compare suas
observações com seus castelos no ar e, em geral, trabalhe
escrupulosamente para a realização de sus fantasias
Lênin

Nota preliminar
O seguinte material constitui um convite aberto cujo objetivo prioritário é a
interrogação e o debate sobre alguns dos problemas centrais da sociedade
capitalista contemporânea e o modo pelo qual o pensamento marxista
permite abordá-los. Ele é concebido como uma ferramenta introdutória
destinada à formação política da nova militância social, anticapitalista e
anti-imperialista. Em seus traços ideológicos essenciais, aponta para a
superação tanto do basismo populista como do academicismo, tentações
recorrentes e igualmente nocivas para o pensamento marxista que pretende
ser revolucionário e radical.

Como texto introdutório, foi pensado a partir de uma aproximação junto à


realidade social em que vivem os setores populares da América Latina, numa
época de mundialização capitalista e imperialismo. A agenda de problemas e
os pontos de vista a partir dos quais pretendemos abordá-los fazem parte de
um esforço para desviar o imenso bombardeio ideológico com que nos
inunda a ditadura midiática dos monopolios de (des)informação.

Em cada ponto do debate partimos do senso comum e da vida cotidiana, não


para ficarmos prisioneiros do mundo feito de aparências fetichistas, mas
para submetê-lo à discussão, problematizando-o e buscando ir para além
dele. Cada unidade deste guia está acompanhada de uma bibliografía básica
sugerida, que pretende auxiliar a quem queira se profundar nos debates ou
abrir um novo leque de perguntas.

Esta proposta de trabalho coletivo apresenta uma agenda mínima de temas,


problemas e, fundamentalmente, questões, em sua maioria, não resolvidas.
A escolha de tais temas e o modo de tratá-los não são neutros. Baseia-se
num enfoque dialético, isto é, centralmente histórico, articulado sobre o eixo
metodológico e político da luta de classes. A centralidade dessa dimensão
não é casual. Nós a consideramos fundamental, sem que isso signifique
desprezo pelas dimensões de gênero ou ecológicas, nem desconhecimento
acerca da cultura dos nossos povos originários, tampoco subestimação aos
efeitos da hegemonia sobre a subjetividade, entre muitos outros ângulos
igualmente presentes nas lutas atuais.
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(I) A crise da sociedade latino-americana
e a resistência dos povos contra o capitalismo
Todos os jornais coincidem: ―A América Latina está em crise‖. A televisão diz
o mesmo. Os dados, inegáveis e já difíceis de ocultar, são alarmantes.
Excetuando a sociedade cubana, para o resto de nossos países o diagnóstico
é o mesmo:

- A pobreza cresce a um nível inusitado.


- As jornadas de trabalho são cada vez mais extensas (para os que têm
emprego...).
- O poder aquisitivo dos salários dos trabalhadores se contrai
progressivamente.
- O desemprego aumenta a cada momento.
- A mortalidade infantil não diminui.
- As crianças que vivem na rua são cada vez mais numerosas.
- Enfermidades curáveis ameaçam aniquilar nações inteiras.
- As mulheres continuam sendo marginalizadas e humilhadas.
- Os velhos se convertem, com sorte, em sobreviventes.
- As filas de quem não tem moradia ou terra se multiplicam.
- A terra sofre erosão e perde a fertilidade.
- O clima muda; o ar, a água potável e os mares estão cada vez mais
contaminados.
- As polícias, os paramilitares e os exércitos reprimem cada vez com mais
violência e crueldade.
- Os direitos humanos se convertem em enganosas ilusões.

Definitivamente, na sociedade atual vive-se cada vez pior! Enquanto as


economias latino-americanas naufragam uma a uma, a militarização e a
presença estadunidense aumentam dia-a-dia. O novo pretexto é a luta
contra ―o narcotráfico e o terrorismo‖. Já há bases militares dos EUA em
Manta (Equador), Três Esquinas e Letícia (Colômbia), Iquitos (Peru), Reina
Beatriz (Aruba), Hato (Curaçao), Vieques (Puerto Rico), Guantânamo (Cuba),
Soto de Cano (Honduras). A isto se soma o intento de construir novas bases
em Tierra Del Fuego (Argentina) e controlar a base de Alcântara (Brasil).

Ao Terceiro Mundo se exige o pagamento de uma dívida de 2,5 trilhões de


dólares, uma dívida completamente fraudulenta. Tanto a penetração dos
Estados Unidos na área econômica, como sua estratégia pela militarização
do continente a sangue e fogo, geram em nossos povos múltiplas e cada vez
mais persistentes forças de resistência antiimperialista. Onde há poder, há
resistência!

Por que a resistência popular, ainda que crescente, continua


sendo frágil para derrotar o imperialismo?
Apesar da resistência, o capitalismo continua dominando e gerando mais e
mais crise. Não é necessário que alguém nos conte como é esta crise, sem

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precedentes na história mundial. Sentimos na nossa própria carne. Podemos
tocá-la, podemos intuí-la, vivemos nela.
Nós, latino-americanos, sofremos todos os dias suas consequências. O que
mais pode ser dito? Já o sabemos. Já o conhecemos! Os efeitos e as
consequências da crise geram ódio e indignação de forma imediata. Estão ao
alcance da mão (qualquer um pode facilmente enumerar). Entretanto, as
causas e as razões nem sempre estão à vista nem são tão fáceis de
conhecer...

Qual é o fundamento da crise da sociedade capitalista?


Quem se beneficia com ela?

É precisamente nesse ponto que os poderosos intervêm sobre a consciência


popular. Evitam, por todos os meios, que se identifiquem as classes que se
beneficiam com a crise e que acumulam capitais e riquezas a partir da
miséria popular. Aí, funciona a propaganda ideológica inimiga que nos
mente e nos engana. Disfarça a realidade para que não conheçamos as
causas de nossa crise. Não há melhor maneira de manter a dominação sobre
nossos povos que converter em senso comum as seguintes mentiras:

- “A culpa da crise é nossa, de TODOS os latino-americanos”.


- “TODOS, empresários e trabalhadores, patrões e operários, somos
igualmente prejudicados. Ninguém se beneficia”.
- “Na América Latina vive-se mal porque falta capitalismo”.
- “O povo latino-americano é preguiçoso; não economiza porque esbanja”.
- “A economia tem sido a base das grandes fortunas”.
- “Sempre houve ricos e pobres; e sempre haverá”.
- “TODOS somos iguais perante a lei”.
- “Os juízes aplicam justiça; se há alguém que não faz isso, é uma exceção à
regra”.
- “O Estado somos TODOS nós”.
- “O Estado nos defende a TODOS por igual”.
- “A finalidade da polícia é nos proteger; se não faz isto não cumpre com sua
verdadeira função”.
- “A finalidade das Forças Armadas é defender a pátria; se não fazem isto
não estão cumprindo com seu autêntico dever”.
- “Os cárceres prendem as pessoas más; se há gente boa presa é somente um
erro”.
- “O Mercado funciona de maneira automática: as leis do Mercado são
intocáveis e imodificáveis”.
- “No capitalismo o Poder está repartido / dividido em: Legislativo, Executivo e
Judiciário”.
- “No Ocidente os meios de comunicação são o quarto poder”.
- “Os meios de comunicação são neutros e independentes”.
- “Os meios de comunicação têm a missão de informar e controlar o governo;
se algum toma partido não está cumprindo com sua missão”.
- “Vivemos em uma sociedade livre e democrática - não há eleições a cada
quatro anos?”.
- “Os movimentos sociais que não se expressam nas eleições não existem”.

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- “Nosso país é totalmente soberano e independente; não temos bandeira,
brasão e hino nacional?”.
(relembre outras afirmações como estas)

O conjunto destas ficções é utilizado dia-a-dia, hora a hora, minuto a


minuto, para convencer os trabalhadores de que ―a culpa‖ da crise latino-
americana é nossa. De vez em quando escutamos essas frases na TV, na
escola, nos noticiários, nas rádios. É uma mensagem única que se repete
exaustivamente. Desde a infância, até a velhice. Portanto, ainda que
sintamos de forma imediata como é nossa sociedade, porque sofremos
diariamente, também é verdade que é preciso ir mais além do imediato e do
senso comum. É necessário romper o muro construído dia-a-dia pela TV,
pelo rádio, a ideologia a serviço dos poderosos.

Para conhecer realmente por que estamos, como estamos e por que vivemos
tão mal, torna-se necessário suspeitar do relato oficial que quer justificar
essa situação. As perguntas do poder não são nossas perguntas. Temos que
desmontar esses relatos e nos perguntar como se estrutura realmente nossa
sociedade. E, dado que esta é capitalista, é preciso investigar e debater
coletivamente sobre:

Que é e como funciona o capitalismo?


Como ele pode ser vencido?

Torna-se, então, imprescindível estudar para ir além do que, à primeira


vista, aparece nos meios de comunicação. Definitivamente, é necessário
passar dos efeitos e das conseqüências da crise para suas causas e razões.

BIBLIOGRAFIA

La militarización de América Latina. Campaña continental contra el


ALCA. En América Libre N°20, enero de 2003. pp.135-137.

James Petras. Clase, Estado y Poder en el Tercer Mundo. Bs. As., FCE,
1993.

___________. Democracia de la pobreza y pobreza de La democracia.


Rosario, 1995.

Fernando Martínez Heredia. Imperialismo, guerra y resistencia [24 de


enero 2003]. No site da internet http://www.lajiribilla.cubaweb.cu/.

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(II) A ideologia do poder e o senso comum popular
Se pretendermos desmontar o relato oficial da crise e passar da simples
descrição de seus efeitos e consequências para o conhecimento de suas
causas e razões, temos diante de nós dois desafios:

1) Identificar a concepção social de mundo que, de modo implícito,


articula os inúmeros esforços da mídia para convencer nosso povo de
que a crise latino-americana não tem responsáveis e beneficiários
muito precisos.
2) Realizar a crítica dessa concepção social de mundo a partir de um
método de estudo e uma filosofia própria. Indignar-se, ficar com raiva
é fundamental, mas não é suficiente! Intuição, também não. Temos
que estudar, que aprofundar, ir até às raízes do problema.

Comecemos afirmando: todas as ficções ideológicas que a TV e outros meios


difundem dia-a-dia para legitimar a dominação dos poderosos e esconder as
causas reais da crise não são um conjunto caótico de absurdos, bobagens ou
mentiras caprichosas. Têm uma ordem! Têm uma coerência!

Qual é a raiz do discurso midiático oficial?


Além de ministros, presidentes, jornalistas ou empresários o discurso da
sociedade oficial é sustentado e articulado por uma concepção de mundo.

Que é uma concepção de mundo?

Uma concepção de mundo é um conjunto articulado, sistemático e coerente


de idéias, conceitos, valores e normas de conduta prática que nos guiam na
vida cotidiana. Essa concepção molda nossa visão de como deve ser a
sociedade e qual o lugar do ser humano. A concepção de mundo (também
chamada ―ideologia‖ ou ―filosofia‖) confere um sentido à vida de grandes
grupos humanos e também de cada indivíduo.

Por que não identificamos à primeira vista


quais são as concepcões de mundo?

Na maioria das vezes, a concepção de mundo – ideológica ou filosófica – está


escondida. Não se vê, não se toca, não está ao alcance da mão. Por isso,
acaba sendo aceita passivamente. Quando qualquer pessoa dá sua opinião
sobre como se deve educar os filhos, ou se é errado roubar, ou sobre o que
acontece com as pessoas depois da morte, ou sobre o suposto
―descobrimento‖ da América e assim por diante, está se apoiando em uma
visão social de mundo. Ninguém escapa das concepções de mundo! Ninguém
está alheio às ideologias!

Todos temos uma filosofia, saibamos ou não. Isto significa que nosso senso
comum – o terreno de nossas opiniões cotidianas – não está alheio às
ideologias. Ao contrário: o senso comum transpira ideologia por todos os
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poros. Cada palavra, cada opinião, está impregnada de ideologia. Cada
observação da vida cotidiana, por mais ―inocente‖, acidental ou ingênua que
pareça, está marcada por uma concepção de mundo.

É impossível uma visão direta da realidade. Olhamos sempre a partir de um


filtro ou uma lente: esta ―lente‖ ou esse ―filtro‖ é dado pela ideologia.
Podemos tomar consciência de sua existência, ou não, mas existe. Se não
tomamos consciência terminamos aceitando-a passivamente. Por que não
somos conscientes? Porque a ideologia – quando não se analisa criticamente
– opera de maneira oculta, inconsciente e escondida.

Que diferença existe entre a filosofia e o senso comum?

A visão social ―espontânea‖ da vida cotidiana, anterior a qualquer reflexão,


se chama senso comum. A visão social coerente, crítica, reflexiva e
sistemática, consciente de seus fundamentos e razões, chama-se filosofia. A
filosofia (seja própria ou alheia, que defenda os poderosos ou os
trabalhadores) sempre dirige o senso comum. Se a concepção filosófica e
social de mundo é coerente, articulada e sistemática, como é o senso
comum? É exatamente o contrário: contraditório, desordenado e não
sistemático. No senso comum convivem e se misturam diversas concepções
de mundo, ao mesmo tempo, embora contraditórias.

Um exemplo: a mesma pessoa pode querer um presidente socialista para seu


país, mas se opõe a que esse presidente seja um trabalhador. Tem que ser
um ―doutor‖. Os trabalhadores não podem governar; nem mesmo no
socialismo. Outro exemplo: um senhor se opõe à violência da polícia porque
lhe parece terrível e, ao mesmo tempo, bate em sua mulher e exige que se
prenda as crianças de rua. Faz isso sem nenhum problema! Tudo ao mesmo
tempo!

Por que estes exemplos se repetem sem fim? Porque o senso comum é assim,
contraditório. Pode incluir uma visão progressista da sociedade e uma visão
reacionária, contraditórias e misturadas, ao mesmo tempo. A propaganda
burguesa da TV, os jornais, a escola, o rádio, tenta neutralizar, no povo, o
que seja progressista. Para isso, incentiva o preconceito racista, a
competição, a fantasia de uma ascensão social individual (às custas dos
demais), a defesa ―a qualquer preço‖ da propriedade privada e a
subordinação aos valores das classes dominantes.

A política revolucionária (ideológica e cultural) dos movimentos sociais, dos


partidos políticos classistas, dos sindicatos, das organizações camponesas,
dos centros de estudantes, dos cursos de educação popular, dos movimentos
de mulheres, os jornais de trabalhadores, as rádios comunitárias etc.,
tentam neutralizar a ideologia inimiga. Para isso incentivam no povo a
consciência de classe, a solidariedade, a igualdade, a cooperação e muitos
outros valores práticos anticapitalistas.

O senso comum é homogêneo e uniforme?

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O senso comum é um CAMPO DE BATALHA entre diversas concepções de
mundo, entre diversas ideologias, entre diversas escalas de valores. A
ideologia da burguesia e a ideologia da classe trabalhadora disputam a
mente e o coração do povo. Ambas querem dirigir e marcar o caminho que
vai ser dado à vida, mas em direções opostas. Se os trabalhadores
organizados se omitem ou não fazem esta disputa, cedem terreno ao inimigo
(que conta com um imenso aparato de propaganda e muitíssimo dinheiro).

Nada cresce espontaneamente, só as ervas daninhas. Sem uma luta pela


consciência e pela hegemonia socialista, o senso comum continua passivo,
alimentando-se da ideologia inimiga. No máximo, pode se chegar à
indignação e à raiva contra os patrões. Nada mais. Para passar da simples
indignação à ação política, temos que semear, adubar e regar o senso
comum, todos os dias. É o único caminho para que floresçam a consciência
e os valores do homem novo e da mulher nova.

Se quisermos passar do senso comum para uma filosofia própria que


sustente a ideologia dos trabalhadores, temos que refletir criticamente e de
forma ativa sobre nossas próprias opiniões cotidianas. A repulsa, a fúria e a
indignação contra a injustiça do capitalismo são um passo importantíssimo
na consciência popular; mas não são o bastante. Temos que analisar que
usamos – sem dar-nos conta e de forma passiva! – a concepção de mundo e
a filosofia de nossos inimigos.

Todas as ficções, mentiras e enrolações sobre a crise da sociedade latino-


americana com que a TV e a DITADURA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
nos bombardeiam pertencem a uma mesma concepção de mundo: a de
nossos inimigos, a dos poderosos, a de quem vive às custas do povo, ou seja,
a burguesia e o imperialismo. Este conjunto coerente, articulado e
sistemático de idéias, valores e normas de conduta prática se estrutura
sobre os seguintes núcleos ideológicos:

- “O NORMAL consiste em que a sociedade tenha uma ORDEM: os de cima, em


cima e os de baixo, embaixo”.
- “Qualquer mudança brusca e radical é ANORMAL”.
- “A sociedade se baseia em uma HARMONIA”.
- “Cada um tem sua FUNÇÃO na sociedade: quem tem dinheiro ordena e
dirige; o povo aceita e trabalha”.
- “A justiça consiste em que cada um cumpra com essa FUNÇÃO: os ricos
dirigem, os pobres trabalham. Cada um tem o que lhe corresponde”.
- “A INJUSTIÇA ocorre quando: (a) os ricos ”se aproveitam” exigindo mais do
que o povo deve trabalhar NORMALMENTE; (b) algumas pessoas do povo se
rebelam inclusive quando os ricos os pagam NORMALMENTE e os tratam
NORMALMENTE”.
- “Se alguém do povo não aceita ser dirigido pela burguesia é um subversivo,
um militante, um terrorista, um ativista, um infiltrado, um agitador, etc., etc.”.
- “A ORDEM da sociedade se baseia na PAZ. Se há conflito, isso é uma
exceção à regra”.
- “Se há conflito social, é porque um revoltado o trouxe de fora: um infiltrado,
um ativista, um militante, um agitador, um subversivo”.
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- “Sempre houve ricos e pobres”.
- “SEMPRE foi assim e sempre será; nada há de novo debaixo do sol”.
- “O povo ignorante não pode governar a sociedade nem governar a si
mesmo”.
- “O que vive mal e passa fome é um perdedor. Ninguém é responsável, só ele
mesmo”.
- “As ideologias que propõem a Revolução são coisas do passado”.
- “A Revolução é impossível porque desapareceu o sujeito da Revolução”.
- “É preciso gente com muito dinheiro para governar um país”.
- “As pessoas que têm dinheiro podem dirigir a sociedade porque já dirigem
suas empresas. Se souberem fazer uma coisa, claro que poderão fazer a
outra”.
- “A política é suja. É melhor ficar em casa. Os que sabem que governem”.

(Acrescente outras afirmações como essas, que você conhece).

Todas estas expressões de senso comum remetem a uma mesma concepção


de mundo, a de nossos inimigos. Existem diversas teorias filosóficas e
sociológicas que tratam de legitimar esta concepção ideológica. Algumas
delas são:

- Positivismo: Corrente filosófica fundada no século 19 por Auguste Comte


(1789-1857), na França, e Herbert Spencer (1820-1903), na Inglaterra. Surge
quando o capitalismo e a burguesia já estão consolidados na Europa. Seu
lema é ―Ordem e Progresso‖. Acredita na evolução e no progresso linear da
sociedade e mantém uma fé absoluta nas ciências naturais, principalmente
a biologia. Despreza completamente as ciências sociais, porque pensa que a
ordem social responde à ordem natural e que a sociedade é como um
organismo biológico onde cada um cumpre uma ―função‖ (os trabalhadores
trabalham, os patrões mandam...).

- Funcionalismo: Corrente sociológica de origem estadunidense que concebe


a sociedade como se estivesse conformada por uma harmonia subjacente. O
funcionalismo classifica os conflitos sociais e as contradições de classe como
―anomalias‖, ―falta de adaptação‖ ou interrupções ao desenvolvimento
evolutivo e pacífico da sociedade. Por exemplo: a pobreza e o atraso latino-
americanos são ―efeitos da escassez de desenvolvimento capitalista‖, da
persistência de relações tradicionais e da falta de investimentos de capital.
Outro exemplo: as populações negras vivem mal porque ―não se adaptam‖ à
civilização moderna.

- Pós-modernismo: Corrente filosófica de origem francesa que emprega


depreciativamente a expressão ―a grande narrativa‖ para referir-se às
ideologias e concepções do mundo com pretensões totalizantes. O marxismo,
a psicanálise e o cristianismo são exemplos de grandes narrativas. A partir
dos anos 80 o pós-modernismo sustentou que estas grandes ideologias
haviam ―entrado em crise‖. Essa tese reatualizava as afirmações
estadunidenses de Daniel Bell: O fim da ideologia [1960], texto típico da
guerra fria que decretava ―o esgotamento da política‖. Coroando o suposto
fim da política de Daniel Bell e o ceticismo pós-moderno frente às grandes
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ideologias, o funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos,
Francis Fukuyama publicou ―O fim da história‖ (1989). Uma caricatura
―filosófica‖ que foi amplamente difundida por todas as agências de noticias e
jornais capitalistas do Ocidente. Com o pós-modernismo acabaria -
supostamente - a política, a ideologia e a história.

Das três correntes (na realidade existem muitas mais), o positivismo


conseguiu maior penetração, desde o final do século 19 até a primeira
metade do século 20, enquanto o funcionalismo teve maior audiência a
partir da segunda guerra mundial, até os anos 60. Durante os últimos 20
anos – desde a era neoliberal de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, no
começo nos anos 80, até as últimas rebeliões de Seattle, Davos, Buenos
Aires e Gênova – é o pós-modernismo que tem conseguido maior influência
nos círculos acadêmicos.

O discurso pós-moderno (difundido a todo vapor a partir das universidades


estadunidenses e francesas e reproduzido em todos
os grandes monopólios de comunicação em nossos países) conseguiu seduzir
algumas correntes do campo popular com o seguinte argumento: “cada
movimento social – por exemplo as minorias sexuais e os grupos étnicos, entre
outros – deve ter reivindicações fragmentárias, porque se se articulam com
outros movimentos na luta anticapitalista, perdem sua especificidade”.

Não é por acaso que esse tipo de discurso tenha tido quem os escutasse nos
anos 80 e 90, justamente quando o neoliberalismo fragmentava e dispersava
toda a resistência anticapitalista e popular. Também não é por acaso que,
quando a resistência aumenta, o pós-modernismo perde rapidamente
popularidade.

Toda crítica da modernidade capitalista


tem que ser, necessariamente, pós-moderna?

O marxismo constitui uma ferramenta sumamente útil e produtiva para


questionar a modernidade eurocêntrica (Europa como centro do mundo),
racista, sexista, colonialista e imperialista (que realizou vários genocídios na
história...), mas como teoria crítica da sociedade atual, ao contrário do pós-
modernismo, a teoria fundada por Karl Marx não rechaça nem abandona:

- o projeto de emancipação humana;


- a ―grande narrativa‖ que consiste numa explicação totalizante;
- a utopia que propõe a criação de um mundo realmente humano.

O discurso pós-moderno se mostrou tão atrativo e sedutor porque se


apresentou de modo sutil como “defesa das minorias”, ao invés de mostrar-
se como uma legitimação aberta do capitalismo. Contudo, apesar de sua
simplicidade e eficiência, na sociedade capitalista contemporânea a luta
contra as diversas dominações é muito mais complexa.

Não há possibilidade real de levar a cabo as críticas e reivindicações


pontuais contra o patriarcalismo e o machismo, contra a destruição do meio
9
ambiente, contra o autoritarismo escolar, contra a discriminação racial e
sexual ou contra qualquer outra dominação cotidiana se não se luta ao
mesmo tempo contra a totalidade do modo de produção capitalista. Sem esta
luta pela emancipação radical contra o conjunto da sociedade capitalista e
suas dominações, os movimentos feministas, ecologistas, dos povos
indígenas, da juventude, etc. serão neutralizados e incorporados pelo
sistema. Os aparatos de repressão do imperialismo norte-americano se dão
ao luxo de ter comandantes de suas Forças Armadas negros e latinos,
mulheres negras ou de origem asiática como assessoras em temas de
―segurança‖ e inclusive militares homossexuais. O porta-voz militar dos EUA
na recente guerra genocida e imperialista contra o povo do Iraque
(abril/2003) é negro.

Os discursos pós-modernos deixam uma perigosa e tentadora porta aberta


para incorporar e neutralizar a luta contra cada uma das opressões, sem
apontar, ao mesmo tempo, contra o coração do sistema capitalista como
totalidade. Mas a emancipação anticapitalista será total ou não será nada.
Se não se conseguir articular os diversos movimentos sociais contra um
inimigo comum, as reivindicações pontuais de cada um poderão converter-
se, no máximo, em válvula de escape para realizar a modernização
(―pluralista‖) dentro da ordem imperialista, sempre de cima e deixando
intacto o capitalismo como modo indiscutível de vida.

O que têm em comum as teorias filosóficas e sociológicas


dominantes?
O que o positivismo, funcionalismo e pós-modernismo compartilham, apesar
de suas diferenças recíprocas, é a incapacidade para pensar a sociedade
capitalista como um momento transitório e, portanto, superável, da história.
A ausência de historicidade é a nota comum das diversas teorias que tentam
legitimar a concepção de mundo dos nossos inimigos. Todas congelam,
parcelam e segmentam a realidade em movimento. Para eles o capitalismo é
eterno! Sempre existiu e sempre existirá. Além disso, pensam a sociedade
invariavelmente a partir de harmonias. Ocultam ou camuflam as
contradições internas da sociedade capitalista.

Existe alguma concepção social do mundo alternativa, onde


a ideologia e os intereses da classe trabalhadora sejam
centrais?

Se existe (e nós pensamos e acreditamos que existe), esta concepção


filosófica e sociológica teria que se apoiar precisamente na historicidade da
ordem atual e na contradição como motor da transformação (o que negam as
teorias burguesas em uníssono). Só uma concepção social de mundo desse
tipo poderia fazer frente tanto ao positivismo, como ao funcionalismo e ao
pós-modernismo. Com esta ferramenta, se facilita a tarefa de disputar a
mente e o coração de nosso povo. Deste modo, fica mais fácil a crítica do
senso comum burguês. Essa concepção social de mundo existe há muito
tempo. Tem uma história. Os trabalhadores latino-americanos, como os

10
trabalhadores de outros países do mundo, já fizeram uma larga experiência
política a partir dela.

BIBLIOGRAFIA

Antônio Gramsci. O marxismo ortodoxo. In: Introdução ao estudo da


Filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999.

Ernest Mandel. O lugar do marxismo na história. São Paulo: Xamã, 2001.

Henri Lefebvre. O Marxismo. São Paulo: Saber Atual/Difusão Europeia do


Livro,1963.

Louis Althusser. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal,


1992.

Michael Löwy e Daniel Bensaid. Marxismo, utopia e modernidade. São


Paulo: Xamã, 2001.

Néstor Kohan. Fetichismo y hegemonía en tiempos de rebelión. La


Habana, Ciencias Sociales, 2005.

11
(III) Por onde começar a estudar?
Necessidade de um método e de uma filosofia
próprios
Para identificar as causas e as razões da crise latino-americana temos que
desmontar o relato oficial da burguesia e do imperialismo. Para isto, é
necessário refletir criticamente sobre nosso senso comum. Temos que nos
esforçar para descobrir o que está oculto: a ideologia de nossos inimigos. Por
isso é necessário identificar a concepção social de mundo implícita nas
justificativas do capitalismo. Este foi nosso primeiro desafio.

Passemos então ao nosso segundo desafio. Esta difícil tarefa só pode ser
assumida a partir de um método de pensamento próprio e a partir de uma
concepção filosófica do mundo que defenda os trabalhadores. Se esse
método e esta filosofia não existissem, teríamos que criá-los do zero.
Teríamos que começar do nada. Teríamos que ir tateando, de olhos fechados,
errando a cada passo, indo de encontro às paredes. Mas este método e esta
filosofia já existem. Em nossa América, existe uma grande história anterior a
nós mesmos, onde várias gerações de revolucionários e revolucionárias se
apropriaram deste método e desta filosofia para fundamentar e legitimar
suas rebeliões e revoluções.

Quais são, então, este método e esta concepção social demundo e de ser
humano? O método é o método dialético. A filosofia éa filosofia da práxis. (Já
analisamos o que consiste uma filosofia ecomo se diferencia do senso
comum).

Que é um método?

Método é um conjunto de regras que marca uma determinada ordem no


pensamento, na reflexão e na investigação.

Se observarmos as notícias de TV, a realidade parece ser absolutamente


caótica: imediatamente depois da imagem de umassassinato urbano,
aparece uma bela modelo com um vestido de um milhão de dólares. Logo
depois, a última partida de futebol e, continuando, uma matança no norte
da África. Seguem as declarações do presidente dos EUA anunciando
alguma guerra ou intervenção militar no Terceiro Mundo, a previsão do
tempo e a última moda nas praias do Caribe. Tudo parece estar no mesmo
nível! Tudo está misturado!

Por que na TV tudo aparece misturado?

É assim a realidade social? Não, esta mistura e esta confusão correspondem


a uma decisão política dos que manipulam a TV. Eles mostram coisas para
que, de fato ... nada seja visto e nada seja compreendido profundamente.
Mas a realidade tem uma ordem. Se não tivesse seria absolutamente
incompreensível. Não valeria à pena estudar como funciona a sociedade para
poder intervir e modificá-la. Como a sociedade não é um caos
12
incompreensível, mas tem uma ordem, o pensamento que pretenda
compreendê-la, em profundidade, tem também que ter uma ordem. Não se
pode captar e colocar tudo num mesmo nível. Esta ordem do pensamento é
garantida por um método.

O método, então, proporciona regras e orientações para se tentar conhecer a


sociedade, ordenando o conhecimento por meio de categorias.

O que são as categorias?

As categorias constituem conceitos teóricos utilizados pelas ciências sociais


para explicar e compreender determinado tipo de relações sociais entre as
pessoas. Cada categoria expressa, no plano da teoria, uma relação social que
existe na realidade. Como as relações sociais são históricas (vão mudando
com o tempo, como resultado das lutas sociais), as categorias devem ser,
indefectivelmente, históricas. Quando a ciência social erra o caminho e perde
o rumo crítico, termina construindo categorias a-históricas, supostamente
válidas para todo tempo e lugar. Nesse momento, a ciência deixa de ser tal
para converter-se em apologia aberta da ordem social, já não permite criticar
nem questionar, passando a apenas legitimar e defender os poderosos.

Exemplo de categorias: família, classe social, mais-valor, dinheiro, força de


trabalho, consumo, capital, etc. Para uma teoria que questione o capitalismo
como sistema social, a classe social será uma categoria de maior peso
explicativo do que o tipo de consumo: o consumo das pessoas se dá segundo
a classe social a que se pertença e não o contrário. Em troca, para outro tipo
de teoria, que não questione o capitalismo, mas que o legitime, o consumo
não terá relação alguma com as classes sociais.

Portanto, nas teorias que tentam explicar a realidade social, nem todas as
categorias podem estar no mesmo nível. Algumas são mais importantes que
outras (porque possuem maior capacidade explicativa). A ordem na qual se
disponham essas categorias nas explicações teóricas da sociedade dependerá
do método adotado.

Qual método nos resta como imprescindível para questionar o


capitalismo como totalidade?
Existem muitos métodos. Alguns priorizam os fatos isolados e fragmentados,
pinçados e confundidos entre si como numa colagem. Estes métodos deixam
de lado a totalidade em que os acontecimentos se inserem e ganham sentido.
Desta maneira os acontecimentos isolados se tornam incompreensíveis
enquanto a realidade social se torna eterna. A árvore individual não nos
deixa ver o bosque de que ela faz parte. Em contrapartida existem outros
métodos, como o método dialético, onde cada acontecimento pontual só pode
ser compreendido se inserido numa totalidade social. Não existem
acontecimentos isolados.

Um exemplo: uma criança de rua rouba um toca-fitas. O noticiário da TV vai


mostrá-lo como um fato isolado, sem contexto, sem história, sem relações
13
sociais, procurando provocar no telespectador uma reação única: “É preciso
mais polícia na rua, é preciso linha dura!” Em nenhum momento se formula a
pergunta sobre a história da criança de rua e da sociedade em que vive.
Ninguém pergunta: como vive? De onde vem? Que perspectiva de vida tem
diante de si? Só se mostra o fato isolado, fora de contexto.

Ao contrário deste mecanismo corriqueiro na TV, o método dialético enfatiza


sempre o contexto social e a história que, como totalidade, confere sentido a
cada acontecimento pontual. Esta totalidade social precisa ser analisada a
partir de suas mudanças históricas, a partir de sua historicidade. Esta
historicidade não é um capricho. Tem sua origem nas contradições internas
que a perpassam. Se a sociedade não fosse contraditória nunca poderia ser
transformada.

Continuaria sempre igual a si mesma. Nossos inimigos seriam vencedores


até o final dos tempos! Não teríamos esperança! Mas, de fato, não é assim.
Portanto, o método dialético é uma ferramenta de trabalho imprescindível.
Serve para compreender a realidade social e tratar de modificá-la. O método
dialético nos ajuda a entender:

- A sociedade como TOTALIDADE.


- A sociedade como CONTRADIÇÃO permanente na história.
- A realidade social não como uma soma de fatores isolados nem como soma
de INDIVÍDUOS, mas como um conjunto articulado de RELAÇÕES
SOCIAIS.
- A exploração dos trabalhadores não como um fenômeno NATURAL, mas
como um processo SOCIAL.
- A dominação exercida por nossos inimigos como processo histórico,
passageiro, transitório e modificável e não como algo eterno.
- As lutas populares a partir da HISTÓRIA.
- A realidade social (o ―objeto‖) a partir das relações sociais entre os sujeitos
(sociais, não só individuais).
- A atividade prática (práxis) do sujeito coletivo a partir da história.
- A HISTÓRIA a partir das lutas populares e a luta de classes.
- A HISTÓRIA a partir da atividade das grandes massas e não dos
―indivíduos importantes‖.

Esse método que nos permite analisar a sociedade capitalista de maneira


histórica - recusando a pretensão burguesa de ―eternidade‖ - se chama
método dialético.

Que é a dialética?
A dialética é um modo de existência, essencialmente dinâmico e
contraditório, que atravessa tanto a sociedade como o pensamento sobre
esta sociedade. A dialética se baseia numa unidade inseparável: a do objeto
e do sujeito.

Apesar do que tenta mostrar (e ocultar) a TV do sistema, tanto na sociedade


como no pensamento, não se pode isolar, por um lado, as relações sociais e,
14
por outro, os sujeitos sociais. Não existem sujeitos à margem das relações
sociais. Muito menos existem relações sem sujeito. Ambos se pressupõem
reciprocamente, se articulam a partir de contradições. Ambos se modificam,
historicamente, a partir destas mesmas contradições.

Quando surgiu o método dialético?

Mesmo tendo surgido há muitíssimo tempo com os primeiros filósofos


ocidentais na Grécia (no século sexto a.C.), seu principal elaborador foi um
filósofo alemão chamado J.G.F. Hegel (1770-1831). Hegel não era um
pensador a serviço dos trabalhadores. Não queria o socialismo. Era um
burguês. Mas em sua época, há dois séculos, a burguesia tinha pretensões
de mudar o mundo. Era revolucionária. Por isso Hegel, o principal filósofo
burguês daquele tempo, elaborou uma concepção dialética da realidade e do
pensamento.

Mais tarde, Karl Marx (1818-1883) e Frederico Engels (1820-1895) se


apropriaram dessa concepção dialética e a utilizaram a serviço dos
trabalhadores contra a burguesia. Mas não a tomaram do mesmo jeito que
Hegel havia formulado (ambos admiravam Hegel por ter colocado em
primeiro plano as contradições e a história, a unidade do sujeito com o
objeto, mas reprovavam o fato de ele ter confundido a realidade social com o
pensamento acerca dessa realidade).

Se o método que nos permite estudar a sociedade de um modo histórico-


crítico e do ponto de vista dos trabalhadores é o método dialético, então:

Qual é a filosofia que nos ajuda a refletir sobre o modo em


que nossos inimigos deixam sua marca no senso comum
popular?
Os trabalhadores necessitam de uma filosofia que não somente questione a
concepção de mundo da burguesia, mas que também coloque na atividade
revolucionária o foco e o eixo de sua concepção de mundo. Se o que
queremos é questionar a sociedade capitalista atual, necessitamos de uma
filosofia que coloque sua ênfase na transformação do mundo. A chave das
mudanças está na prática, na ação transformadora, na atividade das massas
populares e não no olhar passivo e na confortável contemplação de como são
as coisas, hoje em dia.

Numa linguagem ―técnica‖ da história da filosofia, a atividade é denominada


como ―práxis‖. Portanto, nossa filosofia deverá ser uma filosofia da práxis.
Porém, não de qualquer práxis, mas de uma atividade transformadora
articulada, a partir da história e das contradições de classe (precisamente o
que a propaganda do poder e dos meios de comunicação escondem,
deformam ou disfarçam). A práxis, a transformação e a atividade
revolucionária são a chave para compreender a transitoriedade do
capitalismo. Essa concepção de mundo que se conhece como filosofia da
práxis tem como centro:

15
- a atividade das massas populares
- a criação permanente
- a iniciativa política dos/as revolucionários/as
- a unidade do dizer, sentir e o fazer
- o vínculo da teoria com a prática
- a vontade de luta
- a recusa da passividade
- o questionamento de toda visão da sociedade que pretenda olhála de fora e
sem intervenção
- uma concepção de sujeito em que este nunca é individual e isolado, mas
que está formatado por um conjunto de relações sociais
- um olhar científico sobre a história onde os principais protagonistas são os
sujeitos coletivos
- a compreensão da construção do sujeito coletivo a partir da história, do
confronto e do conflito de classes
- uma concepção social da história onde as lutas atuais recuperam todas as
lutas do passado e a memória de todas as pessoas ofendidas, humilhadas,
marginalizadas, exploradas, desaparecidas, aniquiladas e massacradas
- a crítica da perda de consciência (ou ―alienação‖) dos/as trabalhadores/as
- o questionamento de todo endeusamento e toda adoração (o ―fetichismo‖)
do dinheiro, da mercadoria, do mercado e do capital.

A filosofia da práxis permite estabelecer, ao mesmo tempo, uma polêmica


com diversas filosofias burguesas. Tanto aquelas que colocam seu interesse
nas leis da sociedade como se estas existissem à margem dos sujeitos
(chamadas ―materialistas‖), como aquelas que lidam exclusivamente com os
sujeitos, como se estes existissem à margem das relações sociais (chamadas
―idealistas‖). A filosofia da práxis é a superação das correntes materialistas e
idealistas e a crítica do positivismo, do funcionalismo e do pós-modernismo.

Que é o materialismo? Que é o idealismo?


Em filosofia, o termo ―materialismo‖ não significa culto ao dinheiro e ao
poder, como é entendido na linguagem popular. Tecnicamente,
―materialismo‖ seria o nome da corrente filosófica que tem como eixo aquilo
que existe de forma completamente alheia e independente dos sujeitos, suas
atividades, sua consciência e suas relações sociais.

Quando Marx e Engels denominam ―materialista‖ a sua concepção de


sociedade e de história, entendem por ―materialismo‖ algo muito distinto das
filosofias materialistas clássicas (de Leucipo e Demócrito, na Grécia, até
Holbach, Helvetius ou Diderot na França, sem nos esquecermos de Ludwig
Feuerbach, na Alemanha). Diferentemente de todos eles (que outorgavam
prioridade às categorias de ―matéria‖ e objeto natural, sem nenhuma
referência à história), para Marx, a concepção materialista da história remete
a um tipo de explicação social que privilegia as relações sociais por sobre as
representacões imaginárias e os discursos dos individuos. Para Marx, a
categoria fiosófica de ―matéria‖ não tem referência privilegiada com a física
ou a química — ou seja, com a natureza —, mas com a sociedade e a

16
história. A ―matéria‖ de que nos fala Karl Marx em seus livros é uma matéria
estritamente histórica e social.

Do mesmo modo, ―idealismo‖ não significa, em termos filosóficos, ter ideais,


como sugere a linguagem popular. ―Idealismo‖ é o nome da corrente
filosófica que destaca as realidades espirituais e subjetivas, em detrimento
das relações sociais e da história.

O que têm em comum as filosofias materialistas e idealistas?


O que há de comum a estas correntes de pensamento reside no fato de que
ambas, apesar de uma antiga disputa recíproca (antiga, pois vem desde a
Grecia clássica, há cerca de 2.500 anos…), contentam-se em contemplar o
mundo. Porém, na realidade, o que se busca é transformar e mudar o
mundo. Segundo a filosofia da práxis inaugurada por Marx, a chave não está
na interpretação passiva do mundo — seja de maneira materialista ou
idealista, a favor do objeto ou do sujeito, a favor da matéria ou do espírito —,
mas na prática revolucionária que pode transformá-lo.

Os monopólios de (des)informação, através da TV, do rádio e dos jornais,


apostam que o povo permaneça passivo e quieto, contemplando o que os
poderosos fazem com a política. (Na Argentina, um conhecido canal de TV
usa como vinheta, entre um programa e outro, o ―Fique em casa assistindo
TV ‖ e, no Brasil, ―A gente se vê por aqui!‖).

O pensamento marxista revolucionário, ao contrário, a partir do método


dialético e da filosofia da práxis, aposta num povo que compreenda as
contradições e relações existentes na totalidade social e seja capaz de
intervir de modo ativo para transformar a sociedade.

17
BIBLIOGRAFIA

Adolfo Sánchez Vasquez. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1977.

Antônio Gramsci. O marxismo ortodoxo. In: Introdução ao estudo da


Filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999.

Carlos Nelson Coutinho (org.). O Leitor de Gramsci. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2011.

Ernesto Che Guevara. Sobre los estudios de filosofía [Carta a Armando Hart
Dávalos del 4/XII/1965.]. Incluida en Néstor Kohan. Che Guevara: El
sujeto y el poder. Buenos Aires, Nuestra América, 2005.

Georg Lukács. História e Consciência de Classe- estudos da dialética


marxista. Rio de Janeiro: Elfos, 1989.

Karl Marx & Friedrich Engels. A ideologia alemã (Teses sobre Feuerbach).
São Paulo: Hucitec, 1986.

Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos


selecionados. São Paulo: Ed. Abril, 1985. (Coleção Os Pensadores).

Karl Marx. Introdução aos Grundrisse. Capítulo 3: O Método da Economia


Política. São Paulo: Boitempo Editorial/Editora da UFRJ, 2011.

Michael Löwy. Método dialético e teoria política. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1978.

José Carlos Mariátegui. Defensa del marxismo. En J.C.Mariátegui: Obras. La


Habana: Casa de las Américas, 1982. Tomo I.

Néstor Kohan. Marxismo para principiantes. Buenos Aires: Longseller,


2005.

18
(IV) A conquista da América, o genocídio
e o nascimento do capitalismo
O método dialético nos permite abordar a sociedade e suas relações de um
ponto de vista histórico. Somente poderemos compreender o estado atual de
uma sociedade indagando sobre a gênese histórica de sua formação, o
desenvolvimento de suas contradições e as lutas que a atravessaram até ela
constituir-se como tal.

Deste ângulo metodológico constatamos que os males sociais da América


Latina e do Terceiro Mundo não começaram há poucos dias. O poder dos
exploradores também não. Ambos têm uma longa história. Analisar a
sociedade a partir da ótica do método dialético e da filosofia da práxis
significa colocar em primeiro plano a historicidade destes fenômenos sociais.

“O descobrimento” - afirma Karl Marx em seu livro O Capital - “das comarcas


de ouro e prata na América, o extermínio, a escravização e o sepultamento nas
minas da população indígena, a conquista e o saque das Índias Orientais, a
transformação da África em um canto reservado para a caça comercial de
escravos negros, caracterizam o amanhecer da era de produção capitalista”.

Mais adiante, com ironia, Marx continua dizendo: “Estes processos idílicos
constituem fatores fundamentais da acumulação originária”.

Isto significa que, sem a conquista brutal de nosso continente, sem as


matanças, sem a exploração e sem o roubo sistemático de nossas riquezas,
não teria existido o capitalismo, em escala mundial, como conhecemos (e
sofremos) hoje.

Como fizeram os capitalistas europeus


e norte-americanos para acumular tanto capital?
Para que a Europa Ocidental e, em seguida, seu filho contemporâneo, os
EUA, pudessem acumular imensas somas de riqueza e de capitais,
necessários para impulsionar os primeiros saltos tecnológicos da indústria,
no final do século 18 e durante o século 19, foi preciso pisar, subjugar,
destruir, humilhar e explorar milhões de pessoas.

A soma total de todos esses roubos sistemáticos, realizados entre 1500


e 1750, alcança a cifra de mais de 1 bilhão de libras esterlinas de
ouro. Quer dizer, mais que todo o capital reunido em todas as
empresas industriais movidas a vapor que existiam na Europa até o
ano de 1800!

Desde a conquista e pilhagem do México e Peru até o saque da Indonésia e


da Índia, a história dos séculos 16 até o 18 é uma cadeia ininterrupta de
atos de bandidagem capitalista. Estes saques contribuíram para a
extraordinária concentração internacional de valores e capitais na Europa
Ocidental. Sem este fluxo de riqueza do Terceiro para o Primeiro Mundo não
19
teria havido a Revolução Industrial, no final do século 18, a revolução que
inaugura a máquina a vapor.

A partir daí duas formas complementares de exploração se combinaram ao


saque da América Latina e Terceiro Mundo: a apropriação direta pela força
(forma violenta) e a apropriação indireta por meio do comércio desigual
(forma ―pacífica‖).

A conquista e o “descobrimento” da América foi um


“encontro pacífico” entre dois mundos?

Este processo social não foi fruto de acordo nem de consenso mútuo e não
teve nada de pacífico. É uma grande mentira a interpretação de 1492 (a
chegada de Cristóvão Colombo na América) como um suposto ―encontro de
dois mundos‖. Não houve nenhum ―encontro‖! Para que haja um ―encontro‖
genuíno é preciso que as partes se encontrem na forma respeitosa dos
iguais. Na América, ao contrário, não houve igualdade nem respeito pelas
culturas de nossos povos indígenas. Foi um massacre perpetuado sem
nenhuma piedade. Primeiro, através dos métodos sanguinários da conquista;
depois, através dos métodos ―civilizados‖ da exploração capitalista. O
conjunto dos assassinatos acontecidos na América no período da gênese do
capitalismo europeu não foi acidental nem caprichoso.

Uma coisa é, numa manhã, um indivíduo louco sair por seu bairro e ao
acaso matar um vizinho de modo irracional. Isto seria um assassinato
realizado por um demente. Outra coisa muito diferente é uma matança de
massas e uma destruição planificada, apoiada ao longo do tempo e,
inclusive, argumentada filosófica e teologicamente (pois, segundo o relato
dos opressores – salvo raras exceções como Bartolomeu de las Casas - os
povos indígenas da América, como os povos negros escravizados na África,
seriam ―seres inferiores‖).

Quando a matança de muitas pessoas é feita com o objetivo de subjugar e


aniquilar sistematicamente um povo submetido, se chama ―genocídio‖. A
matança de judeus e ciganos realizada por nazistas alemães de Hitler, na
Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, é um exemplo típico de
genocídio (um dos mais sinistros). O assassinato massivo, a subjugação e o
aniquilamento de povos, realizados na América pelos colonizadores europeus
(espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, holandeses e estadunidenses) é
também um genocídio. Nos dois exemplos morreram milhões de pessoas.

20
Os genocídios podem ser explicados a partir da “maldade” de
um indivíduo particular (por exemplo, Hitler)?
Nenhum genocídio é acidental. Nenhum genocídio se explica unicamente
pela perversão, maldade ou loucura de um indivíduo isolado. Somente pode
ser compreendido a partir da história e dos processos sociais. Ao longo da
história, o genocídio tem sido uma ferramenta imprescindível na construção
do sistema capitalista mundial. O capitalismo não pode existir sem realizar
genocídios periódicos que têm a função de ―ordenar‖ e disciplinar a
sociedade subjugada. O genocídio americano foi um dos muitos genocídios
realizados durante a história do capitalismo. Referindo-se a esta utilização
da violência na história por parte do capitalismo europeu nascente, Marx
afirmava que: “A violência é a parteira de toda a sociedade velha, grávida de
uma nova. Ela mesma é uma potência econômica”.

O genocídio americano que acompanhou e possibilitou a conquista não foi


simplesmente fruto da ―maldade‖ humana. Os conquistadores perseguiam
objetivos específicos. Dentre todos, sobressai, em primeiro lugar, a
exploração das condições de vida de nossos povos indígenas. Com a
apropriação das terras indígenas, suas minas, matas e o roubo de seus
metais preciosos (fundamentalmente ouro e prata), os colonizadores
despojaram os povos indígenas de suas condições de vida.

Esta finalidade primeira, subordinada à lógica de acumulação capitalista,


veio acompanhada de outros mecanismos de violência não menos perversos:

- redução da mulher de nossos povos vencidos a um ―prêmio de guerra‖, com


estupros e submissão sistemática;

- destruição sistemática da natureza para submeter as comunidades (como


aconteceu, por exemplo, com o personagem infelizmente famoso, Búfalo Bill,
que aniquilava massivamente os animais para deixar os povos indígenas dos
Estados Unidos sem ter o que comer).

O machismo mais feroz e o patriarcalismo, combatidos hoje pelo


feminismo, e a destruição sistemática da natureza, rechaçada pelos
movimentos ecológicos, são, assim como a exploração dos(as)
trabalhadores(as), consubstanciais ao capitalismo.

“Um povo sem ódio não pode triunfar contra um inimigo brutal”, afirmava Che
Guevara em seu testamento político. O ódio e a indignação que a memória
destes processos gera em nossos povos são plenamente justificados. São
legítimos e são necessários. Estranho seria não sentir ódio diante de tanta
injustiça. Mas o ódio e a indignação - em si mesmos - não são suficientes.
Temos que entender o que realmente houve, para impedir que estes
fenômenos se repitam. Temos que dar um passo para além da indignação.

Como explicar então estes processos?

21
A concepção científica da história que é a filosofia da práxis - elaborada por
Marx e Engels - aponta para determinadas razões que permitem
compreender semelhantes processos de dominação e submissão.

Durante a Idade Média europeia, principalmente nos séculos 9 e 10, se


desenvolveram as primeiras grandes cidades italianas. Aí se organizaram as
primeiras empresas que não funcionavam para satisfazer necessidades
humanas, mas sim para obter dinheiro e lucro. Mas, naquele tempo, este
processo econômico ainda era bem pequeno. Somente alcançava a periferia
marginal da vida econômica que estava centrada na produção para o
consumo (se produz não para obter lucro e sim para satisfazer as
necessidades de alimento, vestimenta, moradia, etc.). A busca de dinheiro
como um fim em si mesmo ainda não era predominante.

Somente nos séculos 15 e 16 a forma capitalista conquista o coração da


sociedade europeia. O capital deixa de estar recluso nas margens da
sociedade para ocupar o centro. Estas formas iniciais de capital giram ao
redor do capital comercial (aquele que compra de um lado para vender de
outro e assim obter lucro). É essa forma inicial do capital que vai financiar
as expedições de Colombo e seus seguidores. Por isso, a empresa europeia
que faz a conquista é uma empresa surgida no calor do nascimento do
capitalismo. Ainda que assumindo formas de ―barbárie‖ e de violência das
sociedades pré-capitalistas (como a escravidão e o feudalismo), a conquista
da América pela Europa esteve subordinada, desde sua origem, a uma lógica
inserida no processo de expansão comercial: a conquista de novos mercados.

A invasão europeia, a matança sistemática, o roubo, o saque, o estupro das


mulheres, a destruição da natureza, a exploração e a conquista de nossos
povos interromperam o desenvolvimento interno das sociedades americanas.
Em nosso continente, antes da chegada dos europeus, existiam diversos
tipos de organização social, de povos e de culturas. Entre outros povos, os
cherokee, caddo, hasinai, apalache, sekani, carrier, sioux, comanche,
omaha, kiowa, apache, kichai, arapajó, cheyene, zapoteco, mixteco,
tlapaneco, huaxteco, tlaxcalteca, totonaca, maya, lacandón, zoqué, tzeltal,
chol, tzotzil, quiché, poloman, otomí, nicarao, araucano, aymará, bororó,
calchaquí, chibcha, diaguita, guaraní, jibaro, ona, puelche, quechua,
tehuelche, yanomami, tupi, guaicurú, kayapó, tupinambá, arwak, karajá,
mapuche, sateré, mawé, macuxi, marubo, xavante, baniwa, wapichana,
ingarakó, tucano, paraná, guarani, kaingang, kaiowaa, xokleng, mynky,
terena, pataxó, hã hã hãe, tikuna, krahô, m´byá, zuruahã, nivacché, nivaclé,
etc, etc, etc. A quantidade de povos e culturas é imensamente maior do que
mostram os filmes ianques de Hollywood.

Estas culturas e muitas outras que não mencionamos tinham maior ou


menor desenvolvimento, extensão territorial e poder, mas todas sofreram um
impacto brutal com a conquista. Os povos indígenas que sobreviveram a este
massacre inicial e a todos os outros que vieram depois, de modo sistemático
seguem, ainda hoje, lutando e resistindo em todas as regiões do continente.
Desde o norte do Canadá, Estados Unidos e México, passando por
Guatemala, Equador e Colômbia, chegando até o sul do continente na
22
Bolívia, Argentina, Paraguai, Brasil e Chile. Em todos os países da América,
apesar do genocídio, apesar do racismo de Estado (que continua intacto,
ainda que melhorado), apesar das políticas estatais que apontam para
aniquilar e desmobilizar todo confronto, os povos indígenas seguem
resistindo contra o capitalismo e o imperialismo, como parte da luta popular
e do conjunto da classe trabalhadora.

Mesmo que a rica variedade de culturas americanas, de ontem e hoje,


abarque um campo praticamente inesgotável, algumas sociedades
conseguiram construir, antes da invasão de Colombo, sistemas sociais e
institucionais com extensões territoriais inclusive maiores que os atuais
Estados-nação estruturados no continente. Sem desconhecer a rica
variedade e a multiplicidade cultural destas sociedades (que não podem ser
reduzidas ao esquema racista que quer ―classificá-las‖ nos museus, e tentam
reduzi-las às políticas oficiais das diferentes burguesias latino-americanas),
algumas das mais importantes foram a sociedade Inca, no Peru, e a
sociedade Asteca, no México, sem esquecer os povos de origem Maia, muitos
deles agrupados na resistência do zapatismo.

Apesar dos relatos simplificados, junto a estas três grandes culturas,


existiram e continuam existindo, muitos outros povos indígenas que
conseguiram sobreviver e resistir à dominação. Entretanto, estas sociedades
mais estruturadas foram tomadas como arquétipo (símbolos) porque
conseguiram chegar mais longe em seu poder, na sua arquitetura
institucional e na extensão territorial. Tanto os Incas como os Astecas
estavam organizados a partir de um modo de produção que combinava a
exploração comunal da terra com o tributo ao rei-deus que governava de
maneira autoritária em nome de todas as comunidades.

Como surgiram estes grandes impérios originários da América


— por exemplo, os incas — que foram conquistados e
massacrados pelos colonizadores europeus?

Na história de toda a humanidade (não somente a humanidade europeia...) a


comunidade primitiva era formada por membros que se ocupam da natureza
e vivem da caça, da pesca e da coleta de frutos. Não estão assentados em
nenhum lugar determinado. Os assentamentos vão surgir quando começam
a se dedicar à agricultura. Mais tarde, à medida que avança a capacidade do
trabalho humano (criando novos instrumentos e técnicas), os membros da
comunidade produzem mais do que antes. Já não satisfazem unicamente
suas necessidades básicas. Surge, assim, um excedente. Uma parte do que
se produz sobra, e não é consumido imediatamente.

Com o desenvolvimento do trabalho, a separação da agricultura e do


artesanato e o crescimento da população, tornou-se necessário realizar
tarefas em comum e centralizadas entre várias comunidades. Surge então
um poder que se encarrega de proteger os interesses comuns e afastar os
interesses contrários. Além disso, realiza grandes obras que beneficiam
todas as comunidades; cada uma, isolada, não poderia realizar a construção
de canais, andares para a irrigação da terra.
23
No começo, este poder cumpre uma função social. Mas ao mesmo tempo
começa a explorar, a viver do trabalho alheio. Também no caso dos Incas. A
exploração de toda uma comunidade por parte de um poder centralizado,
semente do Estado, assume uma figura respeitada e reverenciada por todos
os membros das comunidades. Assim como no Egito antigo é o faraó, em
outras partes é o rei-deus. No Peru é o Inca. O poder centralizado e
encarnado no Inca passa a ser o proprietário da terra, substituindo cada
comunidade. Portanto, entre o indivíduo e a terra se coloca primeiro sua
comunidade e, segundo, a comunidade superior ou o Estado encarnado no
rei-deus.

O Inca explora, de forma autoritária, as comunidades locais porque se


apropria de seu excedente na forma do tributo, mas entre eles ainda não
havia surgido a propriedade privada da terra. A exploração de camponeses
das tribos conquistadas pelos Incas – que continuam produzindo de forma
comunitária - é coletiva, e não individual. Então, antes da chegada dos
europeus, os Incas se encontravam na transição para a formação do Estado
e havia uma forma embrionária de exploração classista sem propriedade
privada da terra. Naquele tempo estava em formação uma burocracia estatal
(com a existência de funcionários especializados que serviam ao Inca e
administravam a ―comunidade superior‖ e seus trabalhos agrícolas em
grande escala).

A conquista europeia interrompe esta evolução e insere a sociedade incaica,


como a asteca e outras mais, numa lógica diversa. A partir daí, os
colonizadores estabelecem plantações ou explorações minerais que se
utilizam, internamente, de formas de submissão do trabalhador típicas das
relações sociais pré-capitalistas. Os trabalhadores de origem indígena não
recebiam salários por seu trabalho e os escravos negros trazidos à força da
África, também não.

Deste modo nada ―pacífico‖ e nada ―voluntário‖, os colonizadores europeus


subjugaram as diversas culturas dos povos originários. Desde aqueles que
viviam da caça e da pesca até os grandes impérios territoriais, como foi o
caso emblemático da sociedade dos incas.

Que acontecia na sociedade americana nos séculos


posteriores à primeira invasão dos europeus?

Na América colonial - depois da Conquista - não existem trocas ―livres‖ e


salariais entre fazendeiros e trabalhadores. Este seria um requisito mínimo
para que comece a predominar a relação social tipicamente capitalista: um
patrão que paga um salário, um trabalhador que aluga sua capacidade de
trabalhar. Uma relação puramente econômica entre os dois. Pelo contrário,
na América colonial existiram múltiplas formas extra-econômicas que
obrigavam ao índio e ao escravo negro a trabalhar pela força e sem
pagamento.

24
Entretanto, ainda que o fazendeiro local e o patrão europeu usassem de
formas de submissão não econômicas, o produto que resultava da
exploração (o açúcar do Brasil e Cuba, a prata da Bolívia, o charque da
Argentina, o café da América Central, etc.) era vendido no mercado mundial.
Não se produzia para o consumo. A produção era pensada na forma
mercantil para a venda, para obter dinheiro na troca. Deste modo, na
América colonial - posterior à Conquista e à destruição dos impérios
comunais-tributários dos Incas e Astecas - se formou um tipo de sociedade
que articulava de forma desigual e combinava relações sociais pré-
capitalistas com as disputas entre os capitais de origem mercantil no
mercado mundial. As relações sociais eram distintas entre si, estavam
combinadas e umas predominavam sobre as outras.

Conclusão: O nascimento do capitalismo como sistema mundial teve


roteiros distintos nas diversas regiões do planeta. Apesar do que se
ensina nas escolas de nossos países, nunca houve um desenvolvimento
linear, homogêneo e evolutivo.

Na Europa ocidental, o nascimento do capitalismo esteve precedido pelo


feudalismo e, antes, pela escravidão e a comunidade primitiva. Em vastas
áreas da Ásia e África, este movimento seguiu um caminho diverso: da
comunidade primitiva ao modo de produção asiático e daí para o feudalismo,
ou também da comunidade primitiva ao modo de produção asiático e daí
para o capitalismo. A escravidão - típica na Grécia e Roma antigas - não foi
universal. O feudalismo, também não. Na América Latina, se passou das
sociedades comunais tributárias para uma sociedade híbrida, inserida no
mercado mundial subordinado à lógica do capital mercantil e baseada num
desenvolvimento desigual e articulado de relações sociais pré-capitalistas e
capitalistas.

BIBLIOGRAFIA

Caio Prado Jr. História do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,


1973.

Caio Prado Junior e Florestan Fernandes. Clássicos sobre a revolução


brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2002.

Eduardo Galeano. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1971.

José Carlos Mariátegui. Sete ensaios de interpretação da realidade


peruana [1928]. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.

Karl Marx. A chamada acumulação primitiva do Capital. In: O Capital.


Capítulo nº 24, tomo I. São Paulo: Ed. Abril Cultural, Os Economistas.

Maurice Godelier. Natureza e Leis do Modo de Produção Asiático. p. 83-


97.In: Philomena Gebran. Conceito de Modo de Produção. São Paulo: Paz e
Terra, 1978.
25
(V) A sociedade capitalista:
o capitalismo como modo de produção e reprodução
Em muitos filmes de Hollywood, tentaram nos convencer que o capitalismo é
sinônimo de ―mundo livre‖. Supostamente, qualquer pessoa, de qualquer
classe social, de qualquer cor, pode chegar a ser um milionário. Bastaria se
esforçar e economizar. Quem não consegue, é simplesmente ―um perdedor‖.
A culpa do fracasso é pessoal.

Os grandes jornais sensacionalistas do sistema insistem com a mesma ideia.


O destaque da manchete é dado para o caso de um ex-trabalhador ou
empregado que virou milionário porque ganhou na loteria ou para o pai de
uma estrela do futebol internacional que, antes, vivia na favela, e agora vive
num palácio. No caso dos homens, é comum explorar ao máximo a trajetória
clássica do campeão mundial de boxe: da fome e da miséria do bairro de
periferia, diretamente para a fama, as festas, os carrões e as mansões. Para
as mulheres, a televisão apresenta um possível atalho. Milhares de novelas
recriam a cada dia na TV o velho conto machista da Cinderela: a empregada
doméstica se casa com o patrão e, com vestidos novos e jóias caras, sobe
milagrosamente de classe social.

Por que na TV a ascensão social é sempre individual?

Não é casual. Sempre se trata de uma ascensão individual. Os antigos


companheiros de miséria seguirão na miséria. Agora os olhará de cima.
Estes relatos dos jornais e revistas, estas novelas e estes contos infantis
reproduzem cotidianamente a concepção de mundo das classes dominantes.
Transformam em senso comum os mitos ideológicos fundantes e as fantasias
perversas da sociedade capitalista.

Na vida cotidiana, o capitalismo que existe é muito diferente. Teremos que


estudar, então, como é mesmo que funciona.

Que é o capitalismo?

O capitalismo é um modo de produção historicamente determinado. Todo


modo de produção é um conjunto articulado de relações sociais. Na história
existiram muitos modos de produção. Antes do capitalismo, houve outros
modos de produção:

• A comunidade primitiva: baseada em laços de sangue, de parentesco, de


língua, de costumes. Predomina a propriedade comunitária da terra (quando
se supera a etapa de coleta de frutos e da caça de animais), a produção e o
consumo de autosubsistência - fundamentalmente sem excedentes - e a
divisão sexual do trabalho. Não existe um Estado separado da sociedade.

• O modo de produção asiático: surge quando já existe um excedente


econômico a ser repartido. Já apresenta um início de poder estatal
centralizado que organiza as grandes obras de irrigação (necessárias na Ásia)

26
e explora de forma autoritária as comunidades rurais apropriando-se de seu
excedente, ainda que mantendo a posse comunitária da terra. Nas
civilizações americanas, précolombianas, este modo de produção combinava
a propriedade comunal com a existência de tributo devido ao poder
centralizado.

• A escravidão antiga: pressupõe (na Grécia e Roma antigas) a produção de


um excedente e a propriedade privada da terra. Baseia-se no emprego de
mão-de-obra escrava ao lado de um campesinato livre. Pressupõe a
separação entre a agricultura e o artesanato. Já existe o Estado que garante
a dominação necessária para o controle dos escravos e a apropriação
coercitiva do excedente. Nos Estados Unidos, por exemplo, durante o século
19 se manteve a escravidão, mas subordinada completamente ao processo
mundial de expansão do capital mercatil.

• O feudalismo: na Europa ocidental, se baseava na servidão da mão-de-obra


empregada nas grandes extensões territoriais e na pequena produção
artesanal nas pequenas cidades que surgiam; o predomínio da produção de
valores de uso sobre os produtos fabricados para o mercado, e o contrato
jurídico entre o senhor e o servo. A propriedade do senhor estava
subordinada por sua vez à hierarquia dos senhores. O senhor feudal é um
vassalo do rei. Os camponeses devem pagar um tributo em espécie ou em
dinheiro com o excedente que produzem na forma privada. Agrupam-se em
aldeias.

Ao longo da história da humanidade, estes modos de produção nunca


existiram de forma ―pura‖. Cada uma das relações sociais se combina entre
si e com outros modos de produção, ainda que, em cada sociedade concreta,
um tipo de relação social termina predominando sobre o conjunto. Quando o
modo de produção capitalista surge e se consolida - principalmente na
Europa ocidental - as relações sociais de capital terminam predominando e
subordinando as relações sociais anteriores. O capitalismo reorganiza a
sociedade em novas bases - pela primeira vez em escala mundial. Este novo
tipo de ordem social está baseado fundamentalmente na:

- produção de mercadorias
- produção de mais-valor
- produção (alienada) da subjetividade
- produção de hegemonia
- produção de violência sistemática
- produção e reprodução da relação social do capital

Como era a sociedade antes do capitalismo?

Nas sociedades anteriores ao capitalismo (feudalismo europeu, modo de


produção asiático ou o modo comunal-tributário da América antes da
conquista) existia uma relação direta entre o ser humano e suas condições
de vida. As condições de vida são todas aquelas instâncias que permitem ao
ser humano trabalhar e reproduzir sua vida um dia depois do outro, ano
após ano. Antes do capitalismo, a principal condição de vida era a terra.
27
Assim, a grande maioria do que se produzia era valor de uso. Sua finalidade
era o consumo direto e a sobrevivência, destinado a satisfazer as
necessidades humanas (comida, vestimenta, moradia).

Antes do capitalismo, a produção de objetos como valores de troca - quer


dizer, como mercadoria destinada à troca ou ao mercado - era periférica e
minoritária. Somente com a emergência do capitalismo a produção de
mercadoria - objetos destinados à troca - se torna absolutamente
predominante sobre outras formas de produção. Do mesmo modo, antes do
capitalismo, o conceito de propriedade expressava uma relação direta entre o
ser humano (o sujeito) e suas condições de vida (o objeto), mediadas pela
comunidade.

Para que o capitalismo possa se constituir sobre suas próprias bases é


necessário uma grande soma de dinheiro para se lançar no mercado e obter
lucros. Essas imensas somas de dinheiro provêm da exploração dos
trabalhadores e do trabalho não pago apropriado pelos empresários,
banqueiros e latifundiários.

Porém, antes que o modo de produção capitalista tenha se constituído:

De onde provinham as primeiras grandes


somas de dinheiro investidas no mercado?

A única fonte de origem desses bens é bem diferente daquelas que as


novelas e os contos infantis nos contam. A primeira acumulação, a
originária, a que inicia todo o ciclo de exploração dos trabalhadores e o
enriquecimento do capitalista, não está nem nas suas economias nem no
esforço individual, muito menos na loteria. A origem está na expropriação
violenta dos camponeses, da conquista e do saque do Terceiro Mundo e
da ruptura da propriedade (quer dizer, da ruptura da relação direta
entre o ser humano e a terra).

Esta ruptura e esta expropriação não foram feitas de ―comum acordo‖. Não
houve um ―contrato social‖ onde todos se puseram de acordo, por consenso,
em deixar a posse direta de suas terras. O que houve foi violência extrema. A
sociedade moderna capitalista é filha desta violência. Não nasceu como
produto de livre acordo, mas sim de uma brutal coerção e imposição
capitalista. Através desta violência extrema (roubos, saques, prisões,
massacres, conquistas, escravização, etc.) a propriedade da terra foi
fraturada. Tanto na Europa Ocidental quanto no Terceiro Mundo.

De um lado ficaram os camponeses europeus e os índios americanos. Todos


perderam seu vínculo com a terra. Ficaram pelados e ―livres‖ (livres porque
já não tinham acima deles um senhor feudal - no caso europeu – ou um rei-
deus - no caso americano - mas também livres porque não tinham
propriedade). Somente ficaram com a ―capacidade corporal para trabalhar‖
que Marx chama de força de trabalho. A existência de força de trabalho
―livre‖ é, então, um produto artificial - e violento - da história moderna.

28
Do outro lado, ficaram as terras e as condições materiais de vida (o que Marx
chamava de meios de produção). Como escravos - majoritariamente de
origem africana - eram considerados por seus amos como coisas e objetos,
nessa ruptura da propriedade comunitária da terra ficaram do lado dos
meios de produção. No olhar de seus senhores, os escravos não eram mais
do que um tipo especial de ―ferramenta‖, aquela que fala. No capitalismo,
tanto a capacidade humana de trabalhar, ou força de trabalho, como os
meios de produção se transformam completamente em mercadorias. São
comprados e vendidos no mercado.

Então, com a ruptura da propriedade comunitária (entendida como


―expropriação‖), de um lado, ficaram os sujeitos e, de outro, o objeto. Entre
estes dois pólos se colocaram os banqueiros, os comerciantes e os recém-
surgidos empresários, que impunham sua disciplina de ferro. Assim nasceu
a relação social que Marx chamou de capital.

Que é o capital?

O capital não é uma coisa, uma soma de ―fatores de produção‖, uma soma
de máquinas e ferramentas, uma simples soma de dinheiro. O capital é
uma relação social de produção que relaciona, por um lado, os donos do
dinheiro e dos meios de produção (previamente expropriados) e, de outro, os
trabalhadores que só são donos de seus corpos, de sua capacidade de
trabalhar, de sua força de trabalho. Uma vez que a sociedade capitalista se
baseia no mercado, e como o mercado implica na falta de controle dos
produtores sobre seus próprios produtos, sobre suas práticas e sobre suas
relações sociais, a sociedade capitalista gera, invariavelmente, alienação e
fetichismo.

A alienação se constitui num processo de perda de controle. O que é que se


perde no capitalismo? Perde-se a possibilidade de gerenciar racionalmente a
economia tendo como base as necessidades da imensa maioria da sociedade,
e não tomando como base a busca frenética de lucro para a pequena minoria
de empresários. Perdendo toda a racionalidade, o mercado capitalista fica
independente das pessoas, adquire vida própria e se volta contra as pessoas.
Os trabalhadores, que são os criadores da sociedade, de suas riquezas e
seus valores, terminam submetidos pelo produto de seu próprio trabalho.

Por que quanto mais brilha o mundo das mercadorias e dos


valores no mercado, menos vale e menos importa o ser
humano?
A esta inversão, onde as coisas valem mais que o ser humano e as pessoas,
denomina-se alienação.

O fetichismo é o processo de inversão pelo qual os seres humanos e suas


relações sociais se tornam coisas (―coisificação‖) e as coisas adquirem
características de seres humanos (―personificação‖). Esta inversão entre o
sujeito e o objeto, entre as coisas e os seres humanos, é chamada de

29
fetichismo porque adorar uma coisa consiste, precisamente, em adorar um
fetiche (ídolos, objetos, dinheiro, etc.).

Então, a relação social de capital se constitui como relação social alienada,


coisificada e fetichizada: os meios de vida ganham existência autônoma, e
os(as) trabalhadores(as) se transformam em coisas, são feitos simples
mercadorias que se pode comprar e vender no mercado ( ali onde o patrão
compra a capacidade de trabalhar em troca de salário), como se fosse uma
mercadoria como outra qualquer.

O capital é uma relação social que ―vive‖, que tem existência autônoma, é
dinheiro que por si só gera mais dinheiro, graças à exploração produtiva da
força de trabalho. Sem esta exploração não pode crescer. Inclusive quando
se deposita uma quantia de dinheiro no banco e, depois de um mês, este
dinheiro aparentemente ―cresceu‖ sozinho, na realidade, este ―crescimento‖
provém do outro lado. O lucro bancário - a forma mais enganosa de capital,
pois aparenta ―crescer‖ sozinho, sem trabalho operário - não tem vida
própria. Seu ―crescimento‖ tem sua origem no trabalho não pago dos
trabalhadores da indústria, parte que os industriais dão aos banqueiros sob
a forma de lucro pelo dinheiro que os banqueiros haviam emprestado.

Sempre, em todos os casos, o crescimento do valor do capital tem sua


origem na expoliação do trabalho.

Um exemplo: os capitalistas pagam, na forma de salário, somente uma parte


do trabalho incorporado pelos trabalhadores nas mercadorias. Toda uma
parte do trabalho, realizado e incorporado que concretiza a mercadoria (que
é vendida no mercado) ―não entra‖ no cálculo do valor que o capitalista paga
ao trabalhador, por ter utilizado sua capacidade de trabalhar. Essa parte
que ―não entra‖, mas que foi realizada, é o mais-valor, o núcleo do lucro
empresarial.

Dentro desta compreensão de trabalho explorado, que alimenta o lucro


empresarial, não está somente o trabalho não pago realizado pelo
trabalhador ou trabalhadora no espaço da fábrica ou da empresa. Também
existe um outro trabalho não pago... menos ―visível‖ que o trabalho nas
fábricas, mas não menos explorado pelo sistema capitalista.

O trabalho realizado em casa para que cada trabalhador(a) e sua família


possa comer a cada dia, possa vestir-se e possa voltar no dia seguinte para
ser explorado na empresa, também é trabalho não pago. É chamado
TRABALHO DOMÉSTICO – serve para manutenção e reprodução da prole.
Na sociedade capitalista, machista e patriarcal, esse trabalho doméstico é
basicamente realizado pelas MULHERES.

O capitalista não paga este trabalho, mas precisa e se utiliza dele. Não só se
apropria do trabalho doméstico de forma ―gratuita‖ (porque não entra no
cálculo do salário), como nem mesmo o reconhece como trabalho. Aparece
misturado, graças a diversos mecanismos hegemônicos vinculados à cultura,
às tradições, etc, com uma aparência de ―puro afeto‖ (da mãe para com os
30
filhos e o marido, da esposa para com o companheiro, etc.). No interior da
família o afeto existe, mas está justaposto com a necessidade de reprodução
social capitalista que não tem nada a ver com ―afeto‖, mas sim com a
exploração. Se fosse calculado o valor do salário incluindo o custo do
trabalho doméstico, o lucro empresarial se reduziria de forma galopante e o
salário do trabalhador aumentaria de forma inversamente proporcional.

Pode o sistema capitalista prescindir


da exploração do trabalho doméstico?
Essa é uma das muitas razões pelas quais o sistema capitalista precisa
reproduzir no plano da subjetividade e das relações de gênero as normas e
condutas de submissão patriarcal, culturalmente consideradas ―normais‖ e
―naturais‖.

O capitalismo é um sistema de exploração que, necessariamente, se alimenta


de diversas dominações justapostas e combinadas. A exploração das
mulheres – duplamente exploradas: como trabalhadoras na empresa e como
trabalhadoras no espaço doméstico - é um dos instrumentos fundamentais
para a reprodução do capital.

A dominação da mulher não se limita somente às formas tradicionalistas ou


conservadoras da vida cotidiana (as mais visíveis e, por outro lado, também
as mais questionadas nas discussões sobre gênero, inclusive pela direita
liberal ou nos filmes norte-americanos). A dominação da mulher se encontra
no coração mesmo da sociedade e do sistema capitalista e de sua
reprodução.

Pode haver emancipação real da mulher à margem da luta


contra o sistema capitalista?

Homens e mulheres, capitalistas e trabalhadores, constituem grandes


aglomerados de pessoas que se denominam classes sociais. As classes
sociais se definem pela posse ou não dos meios de produção e por sua
experiência de luta e consciência de classe. A classe operária, a classe
genuinamente revolucionária da sociedade moderna, se constitui como tal,
na medida em que toma consciência que foi expropriada e consciência de
seu antagonismo e contradição com seu inimigo, a classe capitalista. Essa
consciência nunca surge automaticamente. É produto do conflito e da
confrontação. Assim se forma e se desenvolve a história.

No capitalismo, a força de trabalho produz mais valor do que ela mesma


vale. O valor da força de trabalho equivale à soma total dos valores de todas
as mercadorias necessárias para que a família trabalhadora subsista e a
pessoa assalariada possa voltar a trabalhar, no mês seguinte. O preço do
que vale a mercadoria força de trabalho tem um nome: salário. No
capitalismo (mesmo com variações) o salário sempre é menor que o valor
total do que produz a força de trabalho. A diferença entre o valor de tudo o
que se produz e o valor de tudo que se paga em salários, tem outro nome:
mais-valor.
31
O mais-valor é a expressão do trabalho excedente que na sociedade
capitalista os trabalhadores realizam. O mais-valor expressa aquele trabalho
que o patrão não paga. Mas não é um ―roubo‖, ou, em todo caso, é um roubo
absolutamente legal. O mais-valor é um trabalho não pago. Essa é a fonte
autêntica do lucro empresarial. O lucro não provém de ―comprar barato e
vender mais caro‖, mas sim da exploração do trabalho não pago realizado
pela força de trabalho e apropriado pelos patrões.

Quando o mais-valor e o lucro que os patrões extraem dos trabalhadores são


gastos em objetos de consumo supérfluos e luxuosos - típicos da vida
burguesa - não são reinvestidos na produção. Nesse caso o mais-valor e o
lucro se destinam ao crédito. Mas se o trabalho não pago obtido pela
exploração dos trabalhadores volta a ser investido, nesse caso o que existe é
acumulação. A acumulação consiste no reinvestimento da mais-valia no
processo produtivo. Assim se incrementa o valor do capital inicial por meio
da transformação da mais-valia em capital adicional. O empresário que não
acumula, a longo prazo, não pode competir com outros empresários e
quebra. Para além das boas ou más intenções de cada patrão ou do que
deseja fazer com seu capital particular, a lógica capitalista de toda a
sociedade é comandada pela acumulação. Sua lógica de ferro não permite a
discussão livre. O capitalista que sonhar em desafiar esta lógica irá
irremediavelmente quebrar.

Em que consiste esta lógica, esta forma em que o modo de


produção capitalista se reproduz e recria cotidianamente
suas relações sociais?

Consiste numa tendência de concentração e centralização do capital. A


centralização do capital consiste na fusão de vários capitais sob um
controle comum (em geral, o mais poderoso). O peixe grande come o peixe
pequeno. O empresário mais poderoso engole o empresário pequeno. Esta é
uma tendência de toda a sociedade capitalista.

A concentração do capital - ou acumulação - consiste no crescimento do


valor do capital em cada uma das empresas capitalistas como resultado da
acumulação e da concorrência. Como a fonte de lucro capitalista surge da
exploração do trabalhador, a relação social do capital não é harmônica.
Muito menos pacífica. Existe uma tensão interna, uma contradição que
atravessa esta relação. A relação entre a classe capitalista e a classe
trabalhadora é contraditória. Esta é a base da luta de classes.

Toda a história da humanidade não é mais que a história destas lutas de


classes. E mais: sem estas lutas não haveria história. Seguiriamos de igual
forma que há milhares de anos.

A luta de classes é uma luta pessoal entre indivíduos?

A luta de classes não é uma luta pessoal entre indivíduos. Não depende da
bondade ou maldade de um patrão individual (ou de suas pretensões
32
pessoais). É o conjunto da classe capitalista que tem interesses
contraditórios ao conjunto da classe trabalhadora. A luta de classes se
expressa tanto no nível econômico, como no político e no ideológico. Nos
momentos de crise aguda, a luta de classes se expressa no plano político
militar. É o momento mais agudo da luta, o da guerra civil entre as classes
sociais. De acordo com o método dialético, a contradição está no próprio
coração da sociedade de classes. A luta entre as classes não é um ―acidente‖.

O modo de produção capitalista está atravessado por múltiplas contradições.


Uma das principais consiste nas forças produtivas cada vez mais sociais
enquanto as relações sociais de produção são cada vez mais privadas e
concentradas. As forças produtivas são constituídas pelos instrumentos de
trabalho, a tecnologia, os meios técnicos e a própria habilidade da classe
trabalhadora. Marx afirma, em seu livro A miséria da filosofia (1847), que: “A
existência de uma classe oprimida é a condição vital de toda a sociedade
fundada na contradição de classes. A emancipação da classe oprimida
implica, pois, necessariamente, na criação de uma sociedade nova. Para que a
classe oprimida possa libertar-se, é preciso que as forças produtivas já
adquiridas e as relações sociais vigentes não continuem existindo umas ao
lado das outras. De todo os instrumentos de produção, “a força produtiva
maior é a própria classe revolucionária”.

As relações sociais de produção são aquelas relações que os seres


humanos estabelecem entre si para reproduzir suas vidas trabalhando sobre
a natureza.

Como distinguir uma época social de outra?

As diversas épocas históricas e os diversos modos de produção se


distinguem entre si, fundamentalmente, pelo tipo de relações sociais que
predomina em cada época. A contradição antagônica e a luta entre as
classes (entre quem produz cada vez mais de forma social e aqueles que se
apropriam cada vez mais de forma privada) estão aninhadas no coração da
sociedade capitalista.

A dinâmica da acumulação não é independente desta contradição de classes.


Assim, a base do lucro não é ―economizar‖, nem os ricos são ricos por
―esforço‖. A base da riqueza e da acumulação é a violência e a exploração de
uma classe sobre a outra. Ambas só são entendidas a partir de sua própria
história (que os ideólogos capitalistas tentam ocultar sistematicamente com
suas narrativas infantis).

É possível distinguir um capitalismo bom


de um capitalismo mau?
A base da sociedade capitalista é a exploração e a dominação de uma classe
sobre a outra. Não há um capitalismo ―bom‖ e um capitalismo ―mau‖, um
capitalismo ―puro‖ e um capitalismo ―impuro‖, um capitalismo ―humano‖ e
um capitalismo ―desumano‖. O capitalismo é um só: um pequeno setor -
cada vez mais minoritário – que vive às custas da imensa maioria dos povos
33
do mundo. Sem esta relação de dominação e exploração o capitalismo não
poderia sobreviver.

Mesmo que, à primeira vista, o capitalismo gere caos e desordem (os


capitalistas competem entre si, há crises, há desperdício de trabalho social,
guerras, etc.), na realidade este tipo de organização social tem uma lógica
bem precisa: o capitalismo gera sempre mais capitalismo. Por isso, o
capitalismo gera sempre novas relações sociais. Não de qualquer tipo, mas
sempre capitalistas. O capitalismo se autoproduz, volta a produzir-se
diariamente, se reproduz.

Por que o capitalismo se reproduz?


Porque a sociedade capitalista está organizada, de tal maneira, que, de um
lado, se acumulam todas as riquezas, os capitais e os valores produzidos
pelo conjunto dos trabalhadores de todos os países e, de outro, se acumula
miséria, fome, desnutrição e analfabetismo dos povos. A minoria cada vez
mais tem mais, a maioria cada vez mais tem menos. Isso não é um
―acidente‖ ou uma casualidade que logo será superada, como dizem os meios
de comunicação... esta é a essência do sistema.

Este fenômeno não depende das boas ou más intenções dos empresários, da
decência ou da corrupção dos políticos burgueses que os representam, nem
do profissionalismo ou do golpismo dos militares que os defendem. Para
além das intenções pessoais de empresários, políticos, burgueses e militares,
a lógica do sistema capitalista gera essa polarização. Isto repercute sobre o
conjunto da vida social. O capitalismo é, além disso, um tipo de sociedade
onde predomina a quantidade sobre a qualidade; as mercadorias e o capital
sobre as pessoas; o mercado e as trocas sobre a razão e o amor; o frio
interesse material sobre a ética e os valores; o cálculo sobre a amizade e o
fetiche do dinheiro sobre os seres humanos. Tudo se compra. Tudo se vende.
Tudo tem um preço! O capitalismo quebra com todos os preconceitos e
sentimentalismos das sociedades anteriores (como a sociedade medieval) e
tudo reduz a uma fórmula única: o débito e o crédito. Cada pessoa vale de
acordo com o que tem. O dinheiro se converte em Deus todo-poderoso deste
tipo de sociedade.

Por que o dinheiro joga um papel tão fundamental no


capitalismo?
O capitalismo sempre foi assim. Não é que ―agora funciona mal‖. Foi assim,
desde seu início. Mas, a partir da última década do século 20, este tipo de
organização social experimentou uma violenta expansão. Devorou todo o
globo! Mesmo tendo desde sua origem uma estrutura de sistema mundial, a
partir da década de 90 o mercado mundial arrastou em sua corrente todas
as sociedades nacionais.

A luta atual dos trabalhadores contra os patrões não se origina na ―inveja‖


ou no ―ressentimento‖. Os trabalhadores lutam contra o capitalismo porque
a única maneira de viver melhor pressupõe acabar com este tipo de
34
sociedade. Enquanto um trabalhador consegue subir na vida porque ganha
na loteria ou porque seu filho se tornou um ídolo do futebol ou do boxe;
enquanto uma empregada consegue subir na vida casando-se com o patrão -
casos extraordinariamente raros e excepcionais - milhões seguem afundados
no pântano da miséria e da exploração. A única saída é coletiva! Não virá das
―boas intenções‖ ou dos ―bons sentimentos‖ de um patrão que ―se importa
com seu país‖. Também não dependerá da sorte individual. Dependerá da
luta de classes dos trabalhadores de todo o mundo. A luta de classes contra
o capitalismo é uma luta por toda a humanidade.

BIBLIOGRAFIA

Karl Marx. A chamada acumulação primitiva do Capital. In: O Capital –


Livro I, Volume 2: O Processo de Produção do Capital. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1998.

Karl Marx. Formações econômicas pré-capitalistas (em Grundrisse). Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

Karl Marx. A transformação do dinheiro em capital. In: O Capital.


Capítulo n. 4, tomo I. São Paulo: Ed. Abril Cultural, Os Economistas.

Karl Marx. O Manifesto Comunista. São Paul: Ed. Global.

Néstor Kohan. El Capital. História e Método (Uma Introducción). La


Habana: Ciências Sociais, 2005.

Yvone Gebara. Cultura e relações de gênero. São Paulo: CEPIS, 2001.

35
(VI) O capitalismo
como sistema mundial em expansão
O método dialético nos ensina e nos sugere tratar de pensar e compreender
o capitalismo historicamente, partindo do presente, mas focando nosso olhar
numa perspectiva histórica. Assim, promovendo o diálogo entre o presente e
o passado, entre o mundo contemporâneo e a gênese histórica, será possível
compreender o ―incompreensível‖, os supostos ―enigmas insolúveis‖ dos dias
atuais.

O capitalismo é uma maneira de organizar a sociedade em escala mundial.


Mesmo tendo nascido na Europa Ocidental, se estruturou desde seu início
como uma sociedade em permanente expansão. O capitalismo não pode
existir sem conquistar novos territórios geográficos e novas relações sociais.
As primeiras formas assumidas pelo capitalismo estavam centradas no
capital bancário e no capital comercial. Durante a Idade Média europeia, os
primeiros banqueiros e comerciantes apareceram no século 11. Neste
primeiro momento, tanto banqueiros como comerciantes buscavam a
obtenção de investimentos e lucros comerciais; entretanto, neste momento,
em nível social, predominava a produção de valores de uso para o consumo
(valores de uso são todos aqueles objetos que satisfazem necessidades
humanas). Mais tarde, nos séculos 15 e 16, as grandes casas comerciais
europeias – principalmente italianas – financiaram as viagens
expedicionárias em busca de novas rotas comerciais. Nascia o colonialismo
moderno: a primeira divisão do mundo em metrópole e domínios coloniais. A
partir deste momento, o capitalismo ocidental europeu se expandiu em nível
mundial. Foi a primeira ―globalização‖, ainda incipiente.

Ao final do século 15 e começos do 16, a partir das viagens de Colombo e


seus colegas, o mundo começa a ser unificado sob a tutela e expansão do
Ocidente, resultando num esmagamento brutal das sociedades periféricas. É
―a tarefa do homem branco‖ que carrega sobre seus ombros o dever de
―civilizar‖ e evangelizar os ―bárbaros‖ (os povos coloniais). A América Latina,
subjugada e conquistada, entra na ―civilização‖ ocidental capitalista do
mesmo modo que a África e a Ásia: como parte da natureza a ser
conquistada e evangelizada. A ―humanidade‖ chegava até onde chegavam os
brancos, ocidentais, proprietários e varões. Não é por acaso que os índios
americanos tenham sido comparados com animais (quer dizer, como se
pertencessem à natureza e não à sociedade) pelos conquistadores europeus.
Exatamente o mesmo aconteceu com os habitantes da África, que
alimentaram a sede do capital mercantil por riquezas com mão-de-obra
escrava.

O saque colonialista do Terceiro Mundo possibilita a acumulação originária


da Europa. Esta, por sua vez, permite o desenvolvimento da revolução
industrial no final do século 18. Com a introdução da máquina a vapor e a
passagem da produção artesanal e manufaturada para a grande produção
em escala industrial, o capitalismo das metrópoles (principalmente
Inglaterra) se expande ainda mais pelo mundo conquistando novas colônias
(ou roubando-as de outras potências como Portugal e Espanha). Até o final
36
deste mesmo século 18, acontece na França a principal revolução política
dos tempos modernos: a revolução burguesa de 1789.

O que foi a revolução burguesa?

O arquétipo (o modelo típico) de revolução burguesa europeia foi encabeçada


pela burguesia francesa, a mais radical de todas (porque, diferentemente da
burguesia inglesa, não negociou com a monarquia e cortou a cabeça do rei).
A burguesia realizou sua própria revolução política liderando todas as
classes excluídas pela realeza, a nobreza, o clero e a monarquia. Fez isso
tomando o poder e instaurando uma república parlamentar. Fez isto em
nome de todo o ―povo‖, mas, na realidade, inaugura a dominação política
burguesa (quer dizer, de uma pequena minoria social). Uma dominação
anônima, impessoal, generalizada, realizada em nome de ―todos os
cidadãos‖, mas em benefício exclusivo da burguesia. Mesmo com a
coexistência de diversas correntes de ideias no seio da revolução francesa,
incluindo os primeiros comunistas como François-Noël Graco Babeuf, o
liberalismo se torna hegemônico.

Que é o liberalismo?
Liberalismo é a doutrina que propõe a livre circulação de mercadorias no
terreno econômico. ―Deixar fazer, deixar passar‖ é o lema com o qual o
liberalismo enfrenta os entraves que a nobreza colocava para a expansão do
comércio burguês. No terreno político, o liberalismo propicia uma forma de
governo republicana onde a burguesia pode exercer seu domínio de maneira
anônima, geral e impessoal, sem os incômodos da ditadura ou da
monarquia.

O século 19 foi na Europa o de consolidação econômica do capitalismo


industrial e, em todo o mundo – posterior às viagens de Colombo – da
―globalização‖. Se em suas origens o capitalismo começou acumulando a
partir dos bancos e do comércio, no século 19 foi a produção industrial – sob
o reinado da suposta livre concorrência – que consolidou o predomínio
mundial do capital sobre um conjunto muito heterogêneo de relações
sociais.

Na América Latina, através do impulso e apoio do colonialismo inglês (em


disputa com outras potências), as nascentes repúblicas latino-americanas se
tornaram independentes dos velhos impérios coloniais de Espanha e
Portugal. Mas, será uma independência formal. Rapidamente, as repúblicas
recém-surgidas se convertem em semicoloniais e dependentes. Surge uma
classe dominante local, a burguesia dependente, estreitamente ligada e
associada – na economia, na política, na cultura e militarmente – ao domínio
das metrópoles. As burguesias dependentes são sócias menores da
dominação, primeiramente colonial, e depois neocolonial e imperialista.

É nesse século, que Marx escreve o Manifesto Comunista (1848) sobre a


expansão do capitalismo e a tendência de unificação do mundo sob o

37
reinado do valor de troca e a produção para o mercado. Nesse Manifesto,
Marx fala, com outra linguagem, com outra terminologia sobre o que hoje se
conhece como ―globalização‖. Marx assinalava que, com o capitalismo, “o
mundo se unifica”. Também afirma que “o mundo começa a ser redondo, pela
primeira vez” a partir dos barcos a vapor, o trem de ferro, o telégrafo, os
meios de comunicação que marcaram aquela época.

O capital se expande pelo mundo em extensão e profundidade. Por sua


própria lógica interna, o capital necessita expandir-se, tanto em extensão
como em intensidade, para ―fora‖ e para ―dentro‖, se desvencilhando de todo
o tipo de relação social que lhe seja adversa, externa ou estranha, que
resista; ou sociedades que não tenham sido incorporadas ainda à lógica
capitalista. Para dar conta deste processo, Marx utilizará duas expressões
que explicam a subordinação e a unificação mundial sob o reinado do valor
de troca, o mercado e o capital: subsunção formal (para expansão em
extensão) e subsunção real (para a expansão em profundidade).

Por subsunção formal Marx entende a subordinação do trabalho ao


empresariado sobre as bases de processos tradicionais de produção pré-
existentes, na época em que o processo de produção é comandado pelo
capital comercial. Nesse caso, o dono dos meios de produção domina e
exerce o poder dentro da oficina ou indústria, mas sem intervir nem
controlar completamente o processo de produção, pois o trabalhador ainda
exerce um grande controle sobre o ritmo e sobre o modo de produzir, ao
deter o monopólio do conhecimento (o saber-fazer) do processo de trabalho.

A subsunção real designa um processo de poder, mando, dominação,


subordinação, coerção, despotismo, autoridade, direção, vigilância,
disciplina e controle da empresa capitalista sobre o trabalho, que altera
completamente o processo de produção. Neste caso, o capitalista pretende
penetrar na subjetividade mesma do trabalhador, enquanto este se rebela e
busca resistir. Trat-se da relação de dominação e subordinação do trabalho
frente ao capital no período industrial. Nesse momento, o trabalhador passa
por um processo de expropriação do seu saber-fazer e cristalização desse
conhecimento em um processo mecânico e objetivo (as máquinas-
ferramentas).

Como o capital necessita expandir-se permanentemente, o capitalismo nasce


como um tipo de sociedade internacional, nasce de modo mundial.
Estrutura-se a partir dos Estados nacionais – a burguesia procura construir,
historicamente, em primeiro lugar, em cada sociedade, o mercado interno, o
exército nacional e o Estado-nação, mas, a partir daí, se projeta sempre em
nível internacional, desde suas origens. No final do século 19, nesta mesma
lógica, as grandes potências capitalistas ocidentais se lançam na disputa
pela conquista do planeta. A França competirá com os Estados Unidos na
tentativa de alcançar a Inglaterra (que naquele tempo estava na frente).
Alemanha e Itália estavam atrás porque ainda não haviam se unificado como
Estado-nação moderno.

38
No final do século 19, o mundo já está repartido. Quem quisesse novos
mercados para exportar seus capitais (não só seus produtos mercantis)
necessitaria começar uma guerra de conquista. É um tempo de salto
qualitativo para o capitalismo. O crescimento da competição entre as firmas
industriais nacionais dará lugar para o nascimento de grandes monopólios.
A livre concorrência das metrópoles e o colonialismo deixam caminho para o
nascimento do imperialismo. Lenin foi um dos principais teóricos do
movimento revolucionário em nível mundial (um dos líderes da revolução
bolchevique na Rússia, em outubro de 1917, a primeira revolução socialista
triunfante na história da humanidade). No livro O imperialismo, fase superior
do capitalismo (1916), Lenin afirma que, com a emergência do capitalismo
imperialista, termina a velha dicotomia e competição entre capitais
industriais e bancários. Produz-se uma nova fusão onde os mesmos capitais
se dedicam à produção industrial e ao mundo das finanças.

Este novo tipo de capital é o capital financeiro, hegemônico nos tempos de


imperialismo. Este tipo de capital já não promove a expansão territorial das
grandes potências – típica da época colonial onde a grande potência invade e
conquista sociedades menos poderosas - mas um tipo de expansão apoiada
na exportação de capitais. Estes desejam obter – em troca de seus
investimentos – diversos tipos de renda dos países subjugados, concedendo-
lhes uma independência política formal, mas mantendo a dependência
econômica.

Quais são as características do imperialismo?


Lênin resume as linhas centrais desta nova fase do capitalismo mundial
identificando determinadas características gerais:

1) Concentração da produção, centralização dos capitais e emergência de


imensos monopólios, oligopólios, empresas multinacionais, trust,
corporações e cartéis;
2) Novo papel dos bancos que abandonam sua antiga competição com os
capitais industriais para juntar-se a eles no mundo das finanças;
3) Surgimento do capital financeiro como fusão dos capitais bancário e
industrial;
4) Emergência de um setor extremamente concentrado do capital
financeiro, denominado ―oligarquia financeira‖;
5) Exportação de capitais a partir das grandes potências metropolitanas
para as zonas periféricas com o objetivo de diminuir os custos em
matéria prima e força de trabalho e maximizar os lucros;
6) Divisão do mundo entre as grandes corporações multinacionais
seguida da divisão do mundo entre as grandes potências capitalistas.

Não se pode entender as duas grandes guerras mundiais (e todas as guerras


―menores‖ que se seguiram, ao longo do século 20), sem reconhecer a
existência do imperialismo. Somente à luz do imperialismo se pode
compreender o genocídio nazista, na Europa, e o genocídio latino-americano,
promovido nos anos ´70 e 80 pelas ditaduras militares no Paraguai, Brasil,
Bolívia, Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Guatemala, Nicarágua, El Salvador,
39
etc. Um genocídio que foi articulado metodicamente – com instrutores de
tortura e guerra contra insurreições – pelo imperialismo estadunidense. Um
genocídio ―científico‖ e racionalmente planejado. Quando o capitalismo
consegue interromper a expansão da revolução bolchevique de 1917 e
disciplinar a força de trabalho em nível mundial depois da segunda guerra, o
imperialismo entra numa nova fase. Se o imperialismo ―clássico‖ existe na
Europa Ocidental e Estados Unidos entre, aproximadamente, 1890 e 1940, a
nova fase imperialista é inaugurada a partir do final da segunda guerra.

Desde 1945, até princípios dos anos ’70, o capitalismo imperialista das
metrópoles se consolida sobre uma base comum: o Estado começa a intervir
sistematicamente no mercado (a favor dos monopólios); concede-se certa
estabilidade trabalhista aos segmentos mais altos da classe operária
europeia (a aristocracia operária) em troca de que seus sindicatos respeitem
a ―nova ordem‖ capitalista; expande-se o setor capitalista de serviços
gerando uma sociedade de forte consumismo. Além disso, gera-se uma
inflação permanente como forma de financiamento de créditos para a
indústria e o consumo de massas. Continua crescendo – fundamentalmente
nos EUA – o setor de armamentos que chega a formar um complexo militar-
industrial, ainda poderoso em nossos dias.

Que relação existe entre o capitalismo tardio e o


neocolonialismo?
Esta nova fase do capitalismo imperialista metropolitano (que alguns autores
denominam ―neocapitalismo‖, outros ―capitalismo tardio‖, ―capitalismo
de organização‖ ou ―capitalismo fordista‖) se articula no exterior com o
neocolonialismo.

Sem colônias formais, a dominação continua no terreno econômico. No total,


esta fase do capitalismo dura aproximadamente 30 anos. Três décadas de
mansa submissão da classe trabalhadora europeia e norte-americana aos
mandos do capital. Enquanto isso, depois da derrota dos nazistas pelas
mãos do Exército Vermelho soviético durante a segunda guerra mundial, se
forma um bloco euro-oriental de países pós-capitalistas (autodenominados
―socialistas‖) liderados pela União Soviética. Estes países têm a desvantagem
de terem sido devastados em seus territórios (diferente dos Estados Unidos)
pela invasão dos nazistas. Além disso, se consolida entre eles o poder elitista
de uma forte burocracia política – formada na Rússia depois da morte de
Lênin e da época gloriosa da revolução socialista de 1917 – o que interrompe
todo o desenvolvimento da consciência socialista e todo o poder dos
trabalhadores. Esta interrupção assume diversas ―teorias‖ e ―doutrinas‖
oficiais naqueles países, a mais conhecida é a da ―coexistência pacífica‖ com
o imperialismo, através da qual a URSS se compromete a não apoiar
revoluções de países na órbita ocidental. Esta doutrina se implementa após
a morte de Stálin, que previamente havia dissolvido a Internacional
Comunista para ganhar a simpatia dos líderes capitalistas ocidentais.

No Terceiro Mundo, nesta mesma época, se sucedem diversos processos


revolucionários. Dentre eles, as revoluções do Vietnã, China, Coréia e Cuba
40
emergem como revoluções socialistas. Em outros casos (Argélia e diversas
colônias africanas), este processo se limita à independência nacional e à
descolonização política. Na América Latina, com exceção de Cuba, se vive o
auge de diversas experiências nacionalistas e populistas encabeçadas pelas
burguesias locais (e suas forças armadas) que ensaiam modelos industriais
de substituição do que não chega das metrópoles, e cobrindo os espaços
vazios das indústrias monopolistas. Esta industrialização latino-americana,
deformada e dependente, não modifica a estrutura agrária atrasada de
nossos países. Liderada pelos sócios locais do imperialismo e do
neocolonialismo, não consegue romper o estreito marco do capitalismo
periférico. É uma industrialização pela metade ou uma ―pseudo-
industrialização‖, como dizem alguns autores.

O imperialismo consolida, entre 1945 e princípios de 1970, sua hegemonia


para os países capitalistas metropolitanos, mas vai lentamente perdendo a
iniciativa na periferia do sistema mundial. No começo dos anos ’70, por
consequência da insubordinação generalizada que se experimentou no ano
de 1968 nas metrópoles e de diversas lutas de insurreição no Terceiro
Mundo (encabeçada pela revolução cubana na América Latina), o modelo
hegemônico do capitalismo tardio do pós-guerra entra em crise. A esta crise
se soma a grave crise do petróleo e outra crise do dólar, no terreno
econômico.

Que é e como nasce o neoliberalismo?


Respondendo a essas múltiplas crises em nível mundial, o capitalismo
retoma as ofensivas econômica, política, militar e ideológica que vinha
perdendo ao longo do século. A partir daí se coloca a tarefa de dobrar a
classe trabalhadora da metrópole, derrotar as insurreições do Terceiro
Mundo e fragilizar os países do bloco Leste. A ideologia que legitima esta
ofensiva em nível mundial se chama neoliberalismo. Este retoma do antigo
liberalismo do século 18 a bandeira da abertura comercial sem limites e a
livre circulação econômica do capital, mas combinando com formas políticas
ditatoriais, fascistas e repressivas e ideias culturais extremamente
conservadoras e autoritárias.

A primeira ―experiência‖ política, em nível mundial, da nova ofensiva


capitalista neoliberal foi o golpe de Estado no Chile, em 11 de Setembro de
1973, realizado pelo general Pinochet contra o presidente socialista Salvador
Allende. A partir daí, generalizando a experiência capitalista de novo tipo, a
sangue e fogo por todo o continente latinoamericano, Margaret Thatcher – na
Inglaterra – e Ronald Reagan – nos EUA – aplicaram as novas receitas para o
mundo metropolitano. A isto se somou a crise terminal interna do bloco do
Leste (que resultou na queda do Muro de Berlim e no desaparecimento da
URSS) e uma nova revolução tecnológica das comunicações.

Fruto desse conjunto de processos articulados, o capitalismo, que nasceu há


cinco séculos como sociedade em expansão, volta a experimentar uma nova
expansão planetária. Uma das características desta nova etapa do

41
imperialismo – cada vez mais agressivo e guerreiro – é a internacionalização
da produção. Não somente nas finanças, como dizem os jornais burgueses.

Com o neoliberalismo desaparece o Estado?

Com o neoliberalismo, o Estado não desaparece, apenas muda de


função,ao contrário do que dizem as academias universitárias latino-
americanas.

Abandonando o estilo de intervenção que vinha realizando desde 1930 –


aproximadamente – e principalmente a partir do final da segunda guerra, o
novo Estado capitalista neoliberal continua intervindo para garantir a renda,
o lucro e os interesses dos empresários. Retira-se dos serviços (saúde e
educação, por exemplo), mas está mais presente no terreno da repressão
interna e na criminalização dos protestos de trabalhadores e camponeses.
Com a repressão política, cresce a militarização e a superexploração da
classe trabalhadora.

O novo capitalismo imperialista redobra a assimetria de poder e dominação


em escala mundial a níveis inimagináveis. Atualmente, 600 empresas
monopolistas transnacionais controlam os Estados das grandes potências
capitalistas e o mercado mundial. Os povos do Terceiro Mundo – não suas
burguesias, sócias servis do imperialismo – cada vez mais, estão submetidos.
Segundo as Nações Unidas, a fortuna dos 358 indivíduos mais ricos do
planeta é superior aos ganhos anuais somados de 45% dos habitantes mais
pobres da Terra.

Não é, então, verdade, que o capitalismo segue exatamente igual como no


tempo de Lênin, no começo do século XX. Mas, também, não é verdade que o
imperialismo tenha desaparecido ou que os Estados-nação tenham
desaparecido. O imperialismo continua existindo. Continua existindo o
capitalismo. Continuam as guerras. Continua a luta de classes. A classe
trabalhadora segue lutando por outro mundo possível, um mundo
socialista... A ―globalização‖ atual nada mais é do que uma nova etapa dessa
longa história. Como todas as fases anteriores, não é um processo inevitável,
nem definitivo. É um produto da luta de classes. Uma vez que o capital se
universaliza cada vez mais, a luta dos trabalhadores e as resistências
populares também se globalizam.

42
BIBLIOGRAFIA

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Hardt y Toni Negri. Buenos Aires: CLACSO, 2002.

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2006.

Virgínia Fontes. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio


de Janeiro; Ed. UFRJ, 2010.

43
(VII) Por que o capitalismo não cai por si só?
(capitalismo = violência + consenso)
“Falta muito para o fim do capitalismo? A que hora vai acabar? Me avisem,
assim posso me preparar!” Podemos esperar sentados e, por séculos, até que
alguém nos responda a estas perguntas. Porque o capitalismo não ―acaba‖?
O capitalismo se sustenta sozinho, se reproduz. Por isso, não cai por si só. O
capitalismo é um tipo de sociedade histórica que, enquanto produz de forma
generalizada mercadorias e mais-valia, ao mesmo tempo reproduz a relação
social do capital.

Que é a reprodução?
A reprodução das relações sociais capitalistas consiste, de um lado, na
criação permanente de novos trabalhadores como força de trabalho que se
vende e se compra no mercado (como qualquer outra mercadoria) e, de
outro, de novos empresários que investem, obtêm lucros e acumulam. O
objetivo da reprodução é superar as crises do sistema e toda ameaça
revolucionária que crie obstáculos a este processo. A reprodução capitalista,
como a dominação burguesa, nunca são exclusivamente econômicas. A
reprodução precisa garantir um mínimo de ―ordem‖ para que o conjunto das
relações sociais de exploração possa continuar existindo e rendendo frutos
de modo ―normal‖... , quer dizer, de modo capitalista.

Que é uma crise?

A crise consiste na acumulação explosiva de múltiplas contradições que,


somadas, fazem balançar a ordem do sistema, abrindo a possibilidade – que
não necessariamente se concretiza – da intervenção revolucionária dos
trabalhadores para a destruição e transformação do sistema. A ―ordem‖ que
o capitalismo precisa não se produz sozinha. A reprodução, sem a qual o
sistema capitalista não pode recomeçar ano após ano, também não é
―automática‖.

Existem múltiplos mecanismos destinados a manter a ―ordem‖, garantir a


reprodução e neutralizar toda intenção política contrária. Em resumo, seus
grandes eixos são: a violência e o consenso, o poder e a ideologia, a
dominação político-militar e a direção cultural, a força material e a
hegemonia. Para explicar este processo, Maquiavel, fundador da moderna
ciência política, apelava para a figura de dois animais: a astúcia da raposa e
a força do leão.

Quanto mais frágil é a dominação capitalista e quanto maior a crise na


sociedade, mais violência necessitam os empresários para continuar vivendo
do trabalho alheio. Ao contrário, quanto mais sólida e forte é a dominação,
mais ―democrático‖ e ―pacífico‖ é o capitalismo. A combinação de violência e
consenso dependerá, então, da efetividade alcançada pelo domínio político
burguês e sua reprodução.

44
Que papel joga a violência na reprodução
da ordem social capitalista?
Da mesma maneira que, nas origens do capitalismo, durante a acumulação
originária, a violência foi a ―parteira da história‖, durante o capitalismo
maduro este papel não desaparece de cena. Ao contrário, periodicamente,
quando a crise fica mais aguda e já não são suficientes os mecanismos
―democráticos‖ para manter o povo em seu lugar, as forças repressivas
passam imediatamente para o primeiro plano.

O caso das duas guerras mundiais é extremamente expressivo a esse


respeito. O mesmo se pode dizer sobre o genocídio e o desaparecimento de
pessoas durante as lutas sociais dos anos 70 e 80 na América Latina.
Quando a dominação burguesa se vê em perigo, o terror mostra seu rosto
sem máscara. Um velho refrão diz que “não há nada mais parecido a um
fascista que um burguês assustado”.

Isto não é algo do passado nem está confinado às sociedades periféricas –


supostamente ―primitivas‖ – enquanto que no capitalismo desenvolvido
reinaria a paz, a tranqüilidade e a concórdia. Durante o ano de 1992, na
cidade norte-americana de Los Angeles, o Exército teve que colocar os
tanques nas ruas para estancar os protestos da população norte-americana
contra o racismo. Mais recentemente, em Seattle (EUA), ou em Gênova
(Itália), as forças político-militares do Estado tiveram que sitiar militarmente
as cidades para conter os protestos populares. Esta violência não tem nada a
ver com a violência dos de baixo, de um homem do povo alcoolizado, que
pega uma faca e sai ameaçando irracionalmente, pelas ruas. Muito menos
diz respeito à violência de gangues juvenis, de um bairro de periferia, de
qualquer cidade do mundo. Nem mesmo com a de militantes sindicais que
jogam pedras, durante uma greve de ônibus, num fura-greve.

Por que o Estado é necessariamente violento?

Diferente destes exemplos (e de muitos outros parecidos...) a violência do


Estado é sistemática, é uma violência racionalmente planificada, é uma
violência oficial que conta com milhares e milhares de profissionais
treinados e uma imensa e poderosa máquina de guerra. A violência do
Estado é uma violência dos de cima.

Mesmo que na TV, nos jornais, na escola nos digam que essa imensa
máquina de violência tem como objetivo ―defender o país de ataques
externos‖ (quer dizer, de outros Estados), na realidade, no capitalismo
consolidado, o inimigo do Estado e da violência de cima está dentro do
próprio país. Toda esta maquinaria conta com milhares e milhares de
homens armados e dispostos a matar, está destinada a reprimir o povo e os
trabalhadores.

Que é o Estado?

45
Não existe uma única definição. Cada ideologia política define a seu modo. O
liberalismo burguês, por exemplo, afirma que o Estado é ―a nação
juridicamente organizada‖. Não faz distinção de classes: é ―a nação‖ em seu
conjunto, ou seja, todos os cidadãos de um país. O Estado, segundo o
liberalismo, representaria a todos igualmente... Isto é o que se costuma
ensinar às crianças nas escolas.

A filosofia marxista da práxis questiona esta ideologia liberal. Para o


marxismo, para a ideologia da classe trabalhadora, o Estado nunca
representa ―todos por igual‖. O Estado é a cristalização institucional de
determinadas relações sociais de força e, por isto mesmo, nunca é neutro,
nem independente da luta de classes. O Estado defende a alguns setores em
particular. Na sociedade capitalista estes setores pertencem à burguesia. O
Estado do capitalismo não é sinônimo de ―nação‖ em seu conjunto. É um
Estado burguês.

O Estado e o poder correspondem ao governo do dia?


Chegar ao governo é o mesmo que chegar ao poder?

O Estado burguês conta com um conjunto de instituições repressivas


permanentes (que não mudam com um governo de direita ou de esquerda,
liberal ou socialista). Estas instituições não estão sujeitas ao voto. Elas
servem para garantir a ―ordem normal‖ da sociedade capitalista e a
dominação da burguesia: o Exército, a Força Aérea, a Marinha, as diversas
polícias, os serviços de inteligência, os juízes, os tribunais, as prisões. O
povo, no melhor dos casos, pode votar num governo (inclusive de esquerda e
socialista), pode votar num presidente, pode votar em deputados e
senadores.

Mas o povo jamais vota se deve ou não existir um Exército, se devem existir
ou não serviços de inteligência, se devem existir cárceres ou tribunais, se
deve existir ou não a polícia. Isto não se vota! Isto não está sujeito a
nenhuma eleição. São instituições permanentes que contam com milhares
de profissionais treinados para exercer a violência. O exercício permanente
do poder do Estado (não importa quem seja o presidente ou o partido no
governo) tem um conteúdo: este conteúdo é o da classe que tem o poder.
Esse conteúdo de classe não está sujeito a eleição, não se vota nele. A única
maneira de mudar o conteúdo de classe de um Estado é mediante uma
revolução.

Por exemplo, o novo conteúdo de classe – nitidamente burguês – que se


inaugura, no Estado da França em 1789, corresponde a uma revolução. Este
conteúdo de classe do Estado, permanente, se exerce através de diversas
formas políticas. Excluindo uma ditadura, o Estado burguês, em geral, não
mostra abertamente suas garras. Disfarça-se de cordeiro. Aprendendo da
revolução burguesa vitoriosa em 1789, o Estado burguês fala em nome de
―todos‖, em nome dos ―cidadãos‖, em nome da ―pátria‖, nunca em nome dos
empresários e banqueiros que realmente defende. Neste sentido, se o Estado
burguês é realmente efetivo, nunca defende a um patrão individual. O
Estado burguês defende os interesses da burguesia, como conjunto. Por
46
isso, Marx, no Manifesto Comunista, afirma que ―O Estado não é mais que
uma junta de negócios comuns da burguesia moderna”. Quanto mais
―comuns‖ forem os negócios que defende, menos necessitará da violência de
suas instituições repressivas que se manterão latentes (só como ameaça).

Qual é a forma política de dominação


burguesa mais efetiva e eficaz?

A verdadeira dominação moderna, que supera as imperfeições da dominação


de um rei ou de uma ditadura de um indivíduo (habitualmente um militar), é
a dominação anônima, universal e despersonalizada. Quanto mais geral é a
dominação, mais difícil é resistir a ela, a partir da classe trabalhadora.
Identificar um general Pinochet como o ditador máximo, a serviço dos
monopólios capitalistas, é muito mais fácil que identificar o conteúdo de
classe de um Estado burguês republicano de um país que funciona na forma
despersonalizada, com parlamento, senado, eleições periódicas, imprensa,
diversos partidos políticos (de direita e esquerda), juízes ―independentes‖,
opinião pública ―livre‖, etc. Pensando precisamente neste processo, Marx diz,
no Manifesto Comunista, que “a burguesia, depois do estabelecimento da
grande indústria e do mercado universal, conquistou finalmente a hegemonia
exclusiva do poder político no Estado representativo moderno”.

Sob a forma política da república parlamentar, com sua imprensa


organizada nas grandes cidades, seus partidos políticos modernos, seu
poder legislativo, suas alianças políticas, os fracionamentos políticos de
classe, a autonomia relativa da burocracia, etc., o Estado representativo
moderno leva ao limite máximo de eficácia o domínio político burguês. Desta
maneira se superam as formas políticas impuras, incompletas e pré-
modernas.

Existem, então, distintas formas de dominação política:

a) monarquia absoluta;
b) monarquia constitucional;
c) ditadura militar;
d) república parlamentar;
e) formas híbridas (mistas).

A monarquia absoluta existiu como forma política, no período de transição


do feudalismo para o capitalismo. A burguesia nascente ainda disputava
com a velha aristocracia o poder do Estado, visando obter os mesmos
privilégios da nobreza. A monarquia constitucional surgiu, no século 17,
na Inglaterra, como forma mista de compartilhar o poder nascente da
burguesia inglesa e as velhas classes de grandes proprietários de terras,
momento em que nascia o liberalismo político como ideologia da classe
burguesa. Hoje em dia, diversas sociedades europeias têm monarquias
constitucionais, mas nelas já se define, de antemão, o conteúdo
absolutamente burguês do Estado.

47
A ditadura militar (nas formas clássicas europeias do fascismo italiano
[1922-1945], do nazismo alemão [1933-1945] ou das ditaduras latino-
americanas) expressa uma forma de dominação imperfeita. Mesmo não
coincidindo de forma completa ao conteúdo burguês, sem discussão, gera,
em geral, fortes resistências populares, inclusive armadas.

Quando o capitalismo experimenta uma crise orgânica a ditadura militar


vem para salvá-lo, inclusive assumindo formas menos ―puras‖.

Que é a crise orgânica?

A crise orgânica é uma crise estrutural de longo prazo – distinta da crise


pontual de conjuntura, onde somente está em discussão um ministro ou
uma medida de governo. A crise orgânica é a combinação explosiva da crise
econômica e da crise política... juntas! Consiste na crise e enfraquecimento
de um regime político e perda de consenso na população, no conjunto da
classe dominante e seus partidos políticos.

Para explicar os governos de força que tentam salvar o poder burguês


durante as crises orgânicas, os grandes teóricos do socialismo como Marx e
Gramsci, apontam duas formas de dominação. Foram batizadas recorrendo
a personagens famosos da história. Marx chamou de ―bonapartismo‖,
usando como exemplo a ditadura de Luis Bonaparte (sobrinho do famoso
Napoleão), na França, durante o século 19. O bonapartismo expressaria
aquela forma política na qual, durante um período de crise, o exército, a
burocracia e o Estado aparentam independência da luta de classes para ser
seu árbitro. No bonapartismo, os partidos políticos burgueses se separam da
burguesia como classe. Na ordem política, a burguesia passa a ser
representada, por exemplo, pelo exército.

Antônio Gramsci recorreu à figura do famoso político romano da


Antiguidade, César, para falar de cesarismo. Esta forma política
representaria, no terreno político, um equilíbrio aparente de forças sociais
em luta. Como fenômeno ainda mais geral, o cesarismo expressaria soluções
de compromisso entre setores enfrentados. Seja como ditaduras clássicas ou
como ditaduras bonapartistas e cesaristas, os empresários, como classe
coletiva e não em nível individual, correm o risco de gerar muita oposição a
seu poder. Isto é muito perigoso e explosivo!

Então, para resolver a crise orgânica e a crise de hegemonia, no lugar de


manter, por meio de ditaduras, a mesma ordem social que gera o conflito,
muitas vezes, na história, a classe capitalista e seus representantes políticos
mais lúcidos e inteligentes iniciam um processo de transformação
denominado de revolução passiva.

Que é a revolução passiva?


A revolução passiva é uma espécie de ―revolução-restauração‖, ou seja,
uma transformação social operada de cima, a partir do aparato de Estado,
por meio do qual os poderosos modificam lentamente (―molecularmente‖,
48
como diz Antonio Gramsci) as relações de força, para neutralizar as revoltas,
os protestos e a oposição de seus inimigos de baixo: as classes populares,
exploradas, submetidas e subalternas ao poder burguês. Mediante a
revolução passiva, a classe dominante e dirigente busca cooptar seus
adversários e opositores políticos, incorporando parte de suas reivindicações,
mas com uma nova roupagem, despojadas de todo perigo revolucionário. A
transformação, nesses casos, não vem de baixo, como resultado de um
impulso proletário, camponês, popular e plebeu, mas de cima, da mesma
classe dominante. O objetivo da modernização feita de cima para baixo (a
―modernização conservadora‖) não é mudar radicalmente a sociedade para
torná-la mais justa, senão manter e garantir a governabilidade do statu quo
no período de tempo mais longo possível.

Exemplos históricos de revoluções passivas: as transformações sociais e


políticas impulsionadas a partir do Estado por Bismarck, na Alemanha, e
Luís Bonaparte, na França, durante a segunda metade do século 19.

As revoluções passivas correspondem às transformações sociais e


econômicas onde se realiza uma modernização mantendo estritamente a
ordem anterior, sem modificar as estruturas de dominação. As revoluções
passivas são ―revoluções dentro da ordem‖ vigente. Na América Latina,
durante o último terço do século 19, as oligarquias burguesas e as
burguesias agrárias aprofundaram a vinculação dos países latino-
americanos ao mercado mundial, desenvolvendo as estradas de ferro, os
portos e modernizando a urbanização, sem modificar a estrutura agrária
atrasada e latifundiária.

Algo similar ocorreu entre 1930 e 1970, quando não mais as velhas
oligarquias, mas as diversas experiências populistas das burguesias
autóctones promoveram na América Latina, sem modificar a estrutura
dependente de nossos países, transformações modernizantes (cidadania da
classe trabalhadora, sindicalização massiva, incorporação pelo Estado das
reivindicações operárias por maior salário, abonos, férias, contrato coletivo,
etc.), destinadas a evitar quaisquer ameaças de revoluções radicais.

Para quem luta por transformações radicais e revolucionárias, é sempre


mais complexo enfrentar esse tipo de processo modernizante promovido de
cima para baixo, já que, muitas vezes, eles se apresentam portando
bandeiras progressistas de ―mudança‖ e discursos de ―reforma social‖. A
complexidade aumenta, para o campo revolucionário, quando estas
modernizações conservadoras se realizam sob formas parlamentaristas e
republicanas.

Por que é tão difícil identificar nossos inimigos quando nos


dominam através da república parlamentarista?

Diferentemente do que ocorre nas ditaduras abertas ou das formas


monárquicas, com a república parlamentarista os capitalistas estão mais
tranquilos e calmos. Seguem mantendo seu poder sem discussão (o que
confere conteúdo de classe ao Estado), mas neutralizam a insubordinação e
49
a indisciplina dos trabalhadores e toda oposição de fundo radical ao sistema,
através de um complexo mecanismo de dominação anônimo, impessoal e
burocrático.

Quando há crises, a imprensa burguesa publica um grande artigo de


―denúncia‖. Inicia-se a polêmica... tira-se a pressão da situação. Se o
descontentamento cresce, troca-se um ministro. Se isso não acalma o povo,
troca-se o governo, mas o poder do sistema permanece inalterado. Muda-se
algo... para que nada mude.

A república parlamentarista é a forma burguesa de dominação


política mais flexível e eficaz.

Quando a violência do Estado burguês, sua ameaça permanente, seu


castigo, sua punição, sua vigilância e sua disciplina são consideradas
legítimas pela população, essa violência cotidiana é vivida como... ‖paz‖. A
paz, então, não é mais do que o domínio estável da burguesia. A violência
precisa, então, de consenso permanente. Não há violência pura, nem nas
piores ditaduras. A violência sempre se apóia no consenso. Quanto mais
estável é a dominação, mais consenso há.

Esta é a razão pela qual, em determinados períodos da história, o Estado


burguês assume outros tipos de intervenção social como a gestão da escola,
dos hospitais e, inclusive durante o capitalismo do pós-segunda guerra, a
propriedade dos serviços fundamentais da economia. Em todos estes casos,
a função de fundo que cumpre é a de garantir a reprodução do capitalismo
em seu conjunto, prevenindo a crise que surgiria de um mercado sem
controle estatal. Esse Estado que intervém na economia (doutrina promovida
pelo economista inglês John Maynard Keynes) para deter a influência da
Revolução Russa no Ocidente, não é um Estado socialista. Continua sendo
um Estado burguês que busca ganhar consenso com finalidade capitalista.

Na construção do consenso, a ferramenta institucional mais próxima com


que o Estado conta é a lei e o direito. Maquiavel associava-os à ―raposa‖ em
oposição ao ―leão‖, muito mais feroz, violento e selvagem. Marx define o
direito como ―a vontade da classe dominante erigida como lei”. Não a vontade
de ―todo o povo‖, mas a vontade da classe dominante.

Porém, junto com a violência, os capitalistas também recorrem a


mecanismos hegemónicos.

Que é a hegemonia?

O conceito de ―hegemonia‖ foi desenvolvido antes da teoria socialista e do


nascimento do marxismo. Em suas origens, dizia respeito ao predomínio de
um Estado-nação poderoso sobre outro mais frágil. O marxismo incorpora
este conceito à sua filosofia da práxis conferindo um outro sentido. É
aplicado na relação entre as classes sociais pertencentes a um mesmo
Estado-nação.

50
O conceito de HEGEMONIA é muito útil para explicar porque o
capitalismo não desaba e nem cai sozinho.

A crise latino-americana mostra claramente que o sistema capitalista não


resolve os problemas materiais da maior parte da população. Entretanto, é
ideologicamente hegemônico. Convence as pessoas que não existe outra
forma de viver além desta que o sistema oferece. Uma vez que a maneira
mais eficaz de exercer o poder é na forma do consenso, na sociedade
capitalista existe um conjunto de instituições encarregadas de garantir a
reprodução do sistema, vinculadas ao consenso. São instituições distintas
daquelas encarregadas da violência sistemática (ou da ameaça). Estas
instituições pertencem à sociedade civil.

A sociedade civil é o espaço de mediação entre o mercado econômico –


âmbito das empresas capitalistas – e o Estado político – âmbito das Forças
Armadas, da polícia, etc.

Que instituições fazem parte da sociedade civil?

A escola, os sindicatos, as igrejas, os partidos políticos, as sociedades de


desenvolvimento, a opinião pública e os meios de comunicação de massa
fazem parte da chamada sociedade civil.

Nos inícios da modernidade capitalista, quando se constrói o Estado-nação,


a principal via de construção da hegemonia é a escola. Nesta instituição se
ensinam os valores mínimos de obediência à ordem estabelecida, aquilo que
é ―normal‖ e aquilo que não é, a reverência aos símbolos do poder, etc. Mas,
hoje em dia, este lugar – que não desapareceu – é complementado por outro
de alcance muito maior: os meios de comunicação de massa.

No espaço da sociedade civil, se constrói diariamente o consenso dos setores


populares, em favor do capitalismo. Aí, a concepção de mundo burguesa é
transformada em senso comum, graças à ideologia transmitida pelos meios
de comunicação. Deste modo, os valores da cultura dominante são
interiorizados e se constrói um sujeito domesticado e reacionário em relação
a mudanças radicais. Quando não existe uma organização popular que
disputa no terreno da sociedade civil com a ideologia burguesa, a
propaganda dos poderosos penetra com facilidade na mente e no coração do
povo. Mas, em contrapartida, quando existem poderosas organizações
populares que disputam a hegemonia contra o poder, a dominação burguesa
não é tão fácil nem ―automática‖. Tudo depende das relações de força entre a
hegemonia burguesa e a contra-hegemonia socialista.

A hegemonia é um processo de direção política de um setor social sobre


outro. É exercida no plano político, mas também no cultural e
ideológico. A hegemonia consiste na combinação da força e o consenso
(não é somente consenso).

A hegemonia burguesa combina a violência estatal e repressiva em relação


aos trabalhadores rebeldes e revolucionários com a paciente construção do
51
consenso cotidiano das classes populares. A contra-hegemonia socialista dos
trabalhadores se dá no esforço por dirigir política e culturalmente todas as
classes populares e os intelectuais contra o capitalismo e na resistência à
violência da repressão burguesa.

A HEGEMONIA não é exercida somente na política, entre as classes


sociais e os grandes partidos, mas também numa esfera menos visível:
A VIDA COTIDIANA E A SUBJETIVIDADE.

Através da vida cotidiana, se interiorizam os valores da cultura dominante e


se constrói uma subjetividade domesticada. O capitalismo não resolve os
problemas materiais da maior parte da população. Entretanto, é
ideologicamente hegemônico. Convence as pessoas de que não existe outra
forma de viver além desta que o sistema oferece.

Hegemonia = consenso com os aliados


+ violência com os inimigos

Nas sociedades capitalistas modernas, a dominação (violência) e a direção cultural


(consenso) não podem ser separadas. Sempre se articulam, de acordo com a
conjuntura política e a relação de força entre as classes sociais. O capitalismo nunca
vai desmoronar. Terá que ser derrotado. Para isto, é necessário ter uma estratégia
política que sirva para confrontar e enfrentar a violência que vem de cima e também
uma estratégia para construir uma hegemonia socialista a partir dos de baixo.

52
BIBLIOGRAFIA

Antônio Gramsci. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

Carlos Nelson Coutinho. Um estudo sobre seu pensamento político. Río de


Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 1999.

Ellen Meiksins Wood. Democracia contra capitalismo. São Paulo:


Boitempo Editorial, 2003.

Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo:


Ed. Cortez, 1998 (com prólogo de José Paulo Netto).

Karl Marx. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Editora


Alfa Ômega, 1977.

Karl Marx. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

Lênin, O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec, 1980.

Louis Althousser. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal,


1992.

Néstor Kohan. Filosofia de la práxis e teoria de la hegemonía. Rosário:


FPCAL, 2000.

Néstor Kohan-Miguel Rep. Gramsci para principiantes [en historietas].


Buenos Aires: Longseller, 2003.

Raymond Williams. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


1979.

53
(VIII) A luta política, a hegemonia
e a consciência socialista
Como o capitalismo não planeja e não é racional, a vida econômica está
atravessada por múltiplas contradições. Quando essas contradições se
cruzam numa determinada situação histórica, se abre um período de crise.
Mas a crise, por si mesma, não conduz à catástrofe nem à derrubada. Por
mais aguda que seja a crise, o capitalismo jamais cai por si só. Da mesma
forma que a reprodução não é automática, sua interrupção e queda também
não são. O capitalismo jamais cai por suas próprias contradições. Terá que
ser derrotado.

O socialismo é a superação histórica do capitalismo. Não é seu


“aperfeiçoamento”, nem a melhoria parcial dos furos que o
capitalismo não cobre e, muito menos, o remendo ou recauchutagem
daquilo que “faz mal”.

O socialismo nunca pode chegar por meio de uma evolução natural. Jamais
vem sozinho. Na história não há piloto automático, mas, sim, luta de
classes. Mas a luta contra o capitalismo e pelo socialismo não pode limitar-
se a uma luta simplesmente econômica.

Que é a luta econômica?

É a luta sindical, reivindicativa, pela garantia de emprego, melhores salários


e melhores condições de trabalho. Também é a luta para ter um teto, por
comida e por vestimenta. Em síntese: a luta econômica é uma luta por
melhorias pontuais e palpáveis para a vida cotidiana da classe trabalhadora.
Estas reformas são inúteis? Não. São fundamentais não só para a vida, mas
para ir acumulando forças e adquirindo consciência. Não se pode prescindir
delas, mas as reformas não são suficientes para mudar a raiz da sociedade e
terminar com a exploração.

Existem distintos tipos de luta. Não é a mesma coisa a reação espontânea


que podem ter alguns trabalhadores quando recebem o aviso de demissão, a
Guerra Civil Espanhola da década de 1930 ou a atual guerra civil
colombiana. Em todos estes casos há luta de classes. Mas são de níveis bem
distintos.

Todas as lutas estão no mesmo plano?

O nível mais simples de luta é a reação espontânea dos trabalhadores,


realizada sem nenhuma preparação nem planejamento. Simplesmente se
revoltam contra os patrões por alguma injustiça pontual. É uma primeira
reação. Mas estas revoltas espontâneas, também chamadas de motim, não
questionam o sistema capitalista em seu conjunto. Questionam um patrão
individual por um acontecimento circunstancial. São o primeiro embrião da
consciência de classe.

54
Um nível maior da luta é a luta sistemática, sindical e associativa por
melhorias para todo um setor de trabalhadores (da construção, bancários,
pequenos agricultores, etc.). Quando estes setores realizam uma
manifestação ou uma greve, se produz um certo avanço na consciência. Aqui
já existem níveis de planejamento. Existe uma semente de plano. Há um
maior desenvolvimento da consciência de classe. Este nível é eminentemente
―econômico‖.

Os poderosos, através de seus meios de comunicação, tentam neutralizar ou


paralisar todo processo coletivo de tomada de consciência. A tomada de
consciência é a experiência que cada trabalhador individualmente e todos os
trabalhadores juntos – como classe – vão construindo a partir de suas
próprias lutas e suas próprias vivências.

A consciência de classe se constrói todos os dias. Ninguém nasce com


ela. A consciência, como o senso comum, é um campo de disputa.

A militância revolucionária atua para que o povo eleve cada vez mais seu
alvo e não se preocupe somente com seus problemas particulares, mas com
todos os problemas da sociedade capitalista. Que a consciência de cada um
seja a de toda a classe trabalhadora explorada. Os capitalistas e
empresários, como não podem evitar que a classe trabalhadora construa sua
própria consciência, tentam frear este processo num limite puramente
econômico. Este é o limite do ―permitido‖ e do ―bem visto‖ pela ideologia do
poder. Por isto, tentam convencer o povo de que:

- uma greve é legítima somente se tem uma reivindicação pontual de um


pequeno grupo.
- se uma greve vai além da reivindicação pontual e coloca exigências para o
conjunto da classe trabalhadora... essa greve é “política” (ou seja: “coisa
ruim”) e não pode ser justificada em nenhum caso.
- um sindicato urbano ou um movimento rural têm o direito de pedir melhorias
desde que não questionem a propriedade privada das empresas e das terras.
- um dirigente sindical é “aceitável” e “racional” quando reduz sua atividade à
sua organização e não se dedica a uma aliança com outras associações contra
o capital.
- os trabalhadores têm direito de reclamar “para que o capitalismo seja justo e
distribua melhor a riqueza”.
- os trabalhadores não têm direito de exigir a autogestão dos trabalhadores,
nem o fim do capitalismo; tampouco que não apenas se “distribua melhor”,
mas sim que “se produza de outra maneira, sem patrões, latifundiários e sem
empresários.
- os trabalhadores e seus dirigentes sindicais não têm direito de intervir nos
assuntos políticos que ultrapassem sua área específica.

O segundo nível de consciência (aquele que supera o simples levante


espontâneo) representa ainda um limite de ferro para a consciência da classe
trabalhadora. Esse é o limite permitido pelo poder.

Que é o economicismo?
55
A crença equivocada (induzida pelo poder) de que a única luta que deve ser
feita contra o capitalismo é uma luta reivindicativa e somente pontual se
chama economicismo. O economicismo, como doutrina teórica, resume a
aspiração comum de todos(as) trabalhadores(as) de conseguir do Estado
medidas para remediar as más condições de vida, mas não acabam com a
situação, nem eliminam a submissão do trabalho pelo capital.

Mesmo com diferenças, nas experiências de trabalhadores, de país para


país, de acordo com a época, existe um fenômeno que sempre se repete: o
nível de consciência economicista tem um limite invariável e fixo. Chega até
a colocar: (a) a necessidade de organização sindical; (b) a necessidade de
lutar contra os patrões; e (c) a conveniência de exigir do governo esta ou
aquela lei paliativa. Nunca vai além disso.

O economicismo não só responde a uma experiência concreta da luta dos


trabalhadores de um determinado país, mas constitui uma ideologia geral
(presente em todos os países com roupagem distinta) sustentada por
determinadas correntes políticas. As principais características gerais da
ideologia das correntes economicistas, em relação aos trabalhadores, são:

- a despreocupação total com a formação teórica (pressupondo que a


discussão teórica e a formação política são exclusividade dos setores médios
e universitários).
- a subestimação da luta ideológica (é uma afirmação de que ―o que vale é a
luta concreta do dia-a-dia, a luta de idéias é coisa de intelectuais, não de
trabalhadores).
- o culto da espontaneidade (acreditando que o movimento da classe
trabalhadora não necessita de uma estratégia própria. Bastaria ir
respondendo às ofensivas dos patrões).
- a falta de espírito de iniciativa nos dirigentes economicistas (reduzindo a
classe trabalhadora à passividade política ou à política da recusa sem uma
perspectiva própria a longo prazo).
- a redução da luta política a um horizonte estritamente econômico-
corporativo (quem trabalha deve preocupar-se com seu contexto próximo e
não deve meter-se em problemas que ultrapassam as necessidades do dia-a-
dia).
- o desconhecimento da continuidade histórica da luta de classes e do
pensamento revolucionário (supondo que toda luta começa do zero.
Despreza-se e subestima-se o conhecimento de toda história anterior:
ninguém lutou antes que nós. Não há nada para aprender com revoluções
anteriores).
- a recusa a toda política de unificação da luta (priorizando sempre, em
nome da ―democracia e horizontalidade‖, a dispersão e fragmentação do
movimento).
- os métodos artesanais e improvisados de trabalho político (recusando
qualquer tipo de plano estratégico e planejado dos conflitos, dos desafios e
do trabalho a realizar. Vai se fazendo pelo caminho é a palavra de ordem
principal).

56
- alvos estritamente locais e regionais (impedindo um conhecimento da
situação global e o impulso geral do movimento revolucionário, para além da
experiência recortada e limitada que cada um vive).
- o reformismo, consistindo na reivindicação por paliativos (sem apontar
para a modificação da totalidade do sistema).
- a carência de uma estratégia positiva própria que distribua, no tempo e no
espaço, os enfrentamentos políticos entre trabalhadores e a classe
dominante (indo a reboque e sempre respondendo na forma de recusa à
iniciativa do poder).
- a limitação da consciência da classe trabalhadora às simples verdades do
senso comum (impedindo cada trabalhador de uma reflexão crítica sobre a
ideologia burguesa, tornando consciente sua recusa da concepção de mundo
das classes dominantes).

Por que o economicismo tem relativo êxito e grande difusão?

Em primeiro lugar, porque esta ideologia sempre se afirma em resultados


palpáveis e ao alcance da mão. Não modifica o contexto, mas se adapta a ele.
Mas esta não é a principal razão. O economicismo tem tanta presença na
consciência social porque quando as lutas da classe trabalhadora se
desenvolvem espontaneamente – sem uma estratégia política e uma filosofia
próprias – a concepção de mundo dos empresários se impõe rapidamente na
disputa. Esta concepção de mundo burguesa é sempre vitoriosa – exceto
quando se opõe a ela uma contra-hegemonia socialista – porque:

a) é uma ideologia mais antiga que o socialismo;


b) conta com meios de divulgação incomparavelmente mais poderosos que os
meios alternativos.

Se o nível mais simples da consciência é o motim espontâneo e o nível


seguinte é o da ideologia economicista, o nível mais alto da consciência
trabalhadora é a consciência socialista e a política revolucionária.

Como se constrói a consciência socialista?


Jamais se chega a este nível de modo automático ou repentino. A política
revolucionária e a consciência socialista de massas são o produto de um
longo desenvolvimento de experiências históricas concretas, de ensaios,
aprendizagens e erros, de avaliações e discussões ideológicas,
acompanhadas da formação política e teórica. Lênin, principal dirigente da
primeira revolução socialista triunfante na história, resumiu sua polêmica
com a ideologia economicista afirmando que: “Sem teoria revolucionária não
há movimento revolucionário”. Afirmou, também, que a luta de classes jamais
se reduz ao âmbito econômico.

Na história, existem três formas de luta: econômica-prática, política e


teórica. Ir além do economicismo traz como exigência construir e alcançar
um nível mais alto de consciência de classe: a consciência socialista e
revolucionária, consciência do antagonismo irredutível entre a classe

57
trabalhadora e os capitalistas. A criação de uma consciência revolucionária
socialista pressupõe uma luta, a longo prazo, para:

- a construção de organizações políticas classistas, autônomas,


independentes e próprias da classe trabalhadora (mantendo a continuidade
entre os momentos de alta da luta de classes e os momentos de refluxo e
retrocesso popular). Estas organizações sociais têm que exercer o papel de
vanguarda.

(“Vanguarda” não significa estar só, isolado e separado do povo;


significa o processo no qual as organizações populares e os movimentos
sociais tomam a iniciativa na luta de massas, estreitamente ligados ao
povo e ao conjunto dos trabalhadores.)

- a superação de todo limite exclusivamente sindical e economicista das


reivindicações populares.
- a criação de um sujeito social e político coletivo consciente de seu lugar na
história e de seu antagonismo irredutível com o capital.
- o desenvolvimento de uma luta contra-hegemônica de longo alcance pela
conquista do coração e a mente de nosso povo, de trabalhadores da cidade e
do campo e da juventude.
- a criação de instituições contra-hegemônicas (como jornais socialistas,
rádios comunitárias, redes de informação alternativa, canais de televisão
alternativos, editoras, etc.).
- Em resumo - A unidade indestrutível de uma estratégia política que
combine a independência política de classe com a luta pela hegemonia
socialista.

Este imenso desafio só pode se concretizar conhecendo as experiências


revolucionárias anteriores, positivas e negativas, triunfantes e derrotadas,
levadas em frente pela classe explorada, ao longo da história, e, nas quais,
milhares e milhares de companheiros e companheiras dedicaram suas vidas.

BIBLIOGRAFIA

Antônio Gramsci. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução e


orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968
(8a. ed., 1987).

Lênin. Que Fazer? São Paulo: Hucitec, 1978.

Textos de Che Guevara: www.comunismo.com.br/textos.html

58
(IX) A resistência, a dialética do progresso
e o conflito social na história
Quando a ideologia do poder quer nos convencer da suposta ―eternidade‖ da
desigualdade social, necessariamente precisa ocultar um dado
importantíssimo: a desigualdade tem sido rechaçada de mil maneiras e de
forma veemente pela classe oprimida, ao longo da história. Considerando
esta recusa, Marx e Engels afirmam no Manifesto Comunista que: “A história
de todas as sociedades que existiram até nossos dias é a história da luta de
classes”. Esta luta tem, no mínimo, 5.000 anos de história comprovada.

Algumas das rebeliões e revoluções que marcaram a fogo nossa história são:

- os levantamentos e protestos dos camponeses, no Egito dos faraós;


- as insurreições de escravos, na Grécia e Roma (a mais famosa foi a liderada
por Espartaco, no primeiro século depois de Cristo);
- as rebeliões camponesas, na Índia e principalmente na China clássica
(algumas triunfaram, dando origem a novas dinastias imperiais);
- as revoltas camponesas, no Japão (entre 1603 e 1863, quando ocorreram
mais de 1.100 levantes);
- as revoltas camponesas, na Rússia czarista (o levante mais conhecido é o
de Pougatchev, na Ucrânia, no século 17);
- as revoltas camponesas (conhecidas como jacqueries) e as rebeliões de
artesãos e aprendizes (entre os séculos 13 e 15), na Europa ocidental;
- as revoluções burguesas européias (desde as lideradas pelas primeiras
cidades italianas, no século 16, a holandesa e a inglesa no século 17, até a
francesa – a mais conhecida de todas – em 1789);
- a independência estadunidense, em 1776;
- a rebelião dos escravos negros na América do Norte no século 19
(principalmente a liderada por Nat Turner em 1831);
- as revoluções de 1848 e 1870 na França (esta última, conhecida como a
Comuna de Paris, foi a primeira na história mundial em que a classe
trabalhadora tomou o poder – sendo depois derrotada);
- as revoluções russas de 1905 e 1917 (em 1917, aconteceram duas
revoluções: a de fevereiro e a de outubro. Nesta última, os bolcheviques
tomaram o poder e foi a primeira revolução socialista vitoriosa na história
mundial);
- as insurreições na Itália, Hungria e Alemanha, ocorridas logo depois da
revolução russa (as três foram derrotadas);
- a revolução e a guerra civil espanhola, na década de 1930 (derrotada pelo
franquismo);
- a revolução vietnamita e a guerra do Vietnã (desde a proclamação da
independência, em 1945, até a derrota estadunidense, em 1975. Durante
estes 30 anos, os revolucionários vietnamitas derrotaram os japoneses,
franceses e estadunidenses);
- a revolução chinesa (vitoriosa, em 1949);
- a revolução da Argélia (vitoriosa, em 1962);
- a rebelião europeia de 1968 (que, além de Paris, Berlim, Trento e outras
cidades europeias, alcançou também Berkeley, nos EUA, Tóquio, no Japão, e
a capital do México);
59
- o levante tchecoslovaco, de 1968 (derrotado pela invasão soviética nesse
ano);
- a luta rebelde e por independência nacional da Irlanda do Norte (contra a
Inglaterra) e do país Basco (contra a Espanha), lutas que continuam, até
hoje;
- a revolução dos cravos de Portugal, em 1974;
- a luta por independência nacional de várias ex-colônias africanas,
destruídas, em muitos casos, pela mais violenta repressão (como o caso de
Patrício Lumumba, no Congo), triunfantes em outros como Namíbia, África
do Sul, etc.

Na América Latina, esta longa história de levantes, revoltas, rebeliões e


revoluções populares inclui:

- as rebeliões dos povos indígenas, na América do Sul, durante a colônia


espanhola (exemplos – a liderada, em 1780, por José Gabriel Condocanqui,
conhecido como Túpac Amaru, assassinado pelos colonizadores; no Brasil, a
dos Sete Povos das Missões liderada por Sepé Tiaraju);
- a insurreição vitoriosa dos escravos – os ―jacobinos negros‖- no Haiti no
final do século 18;
- a revolução continental da independência nas primeiras décadas do século
19, liderada por José San Martin e Simon Bolívar;
- a independência de Cuba e a guerra com a Espanha (com intervenção dos
Estados Unidos, em 1898);
- a revolução mexicana liderada por Pancho Villa e Emílio Zapata (1910);
- a rebelião anarquista, no sul da Argentina (entre 1920 e 1921);
- o levante e resistência de Sandino, na Nicarágua (de 1926 a 1933);
- a insurreição de El Salvador, liderada por Farabundo Martí (1932);
- a revolução cubana de 1933, com a liderança de Antônio Guiteras;
- a ―coluna‖ liderada por Luís Carlos Prestes no Brasil (1935);
- a revolução boliviana (1952);
- a revolução cubana vitoriosa (1959);
- as revoluções brasileira, argentina, uruguaia, boliviana, peruana e outros
países da América do Sul, nas décadas de 60 e 70 (derrotadas);
- a revolução colombiana (processo que se inicia antes da revolução cubana
e segue até os dias de hoje);
- a vitória eleitoral de Salvador Allende no Chile em 1970 (derrubado por
Pinochet no golpe militar em 1973);
- a revolução sandinista (vitoriosa na Nicarágua em 1979 e derrotada
eleitoralmente em 1990, depois de um período de intervenções norte-
americanas);
- a revolução salvadorenha, um empate que levou a um pacto.
- a revolução Guatemalteca, que chegou a um pacto sem força.
- o levante zapatista, em Chiapas (1994).

(Relembrar revoltas brasileiras, por exemplo, a Cabanagem, o Contestado... e


outras na América Latina: Venezuela – bogotazzo , no Equador - lutas
indígenas, etc.).

60
Esta longa série de resistências, protestos, rebeliões, levantes e revoluções
populares puseram no primeiro plano a tremenda injustiça da sociedade de
classes, baseada na exploração do ser humano pelo ser humano. Muitas
destas resistências foram perdedoras, faliram e foram derrotadas de forma
sangrenta e sanguinária. Dos tempos antigos... até nossos dias.

As classes dominantes na América Latina, por exemplo, através de suas


Forças Armadas e com a ajuda política, treinamento militar, assessoria de
inteligência, financiamento econômico e apoio de armas dos Estados Unidos,
realizam a sangue e fogo um autêntico genocídio que custou a vida de
milhares de latino-americanos. A tortura (ensinada aos militares latino-
americanos por assessores ianques e franceses) foi moeda corrente em nosso
continente durante décadas.

A derrota dos processos revolucionários significa que não


tenham sido válidos? Por acaso a justeza dessas revoluções e
levantes deve ser medida por seu “êxito”?

Nada mais errado e pernicioso, do ponto de vista da classe trabalhadora, do


que analisar a história a partir do critério do ―êxito‖. Esse critério
corresponde ao ponto de vista burguês, o ponto de vista dos exploradores e
da filosofia que se denomina pragmatismo. (A filosofia do pragmatismo é
completamente relativista: mede a verdade ou falsidade, a justiça ou a
injustiça segundo critérios de utilidade e êxito).

Desta maneira, se olha a história ―desde cima‖ e não do ponto de vista das
classes exploradas e subalternas, não dos povos oprimidos. Se fosse assim,
todas as rebeliões e levantes derrotados não teriam sentido e teriam sido em
vão. O ―progresso‖ da humanidade estaria exclusivamente do lado dos
vencedores que, de fato, ao longo da sociedade de classes foram, na maior
parte das vezes, as classes exploradoras. Com este olhar não confiável... as
classes dominantes seriam as portadoras do progresso!

Por exemplo: uma vez que os povos indígenas perderam todos os seus
conflitos com os conquistadores e saqueadores europeus, a vitória destes
teria que ser vista como inevitável e necessária. Não só isso... teria sido
melhor do que a vitória dos povos indígenas da América. O mesmo exemplo
poderia ser multiplicado: os brancos seriam portadores do progresso com a
escravidão dos negros; os nazistas e suas matanças planificadas seriam
portadores de progresso sobre os judeus e ciganos, e assim por diante...
Desta forma, o que aconteceu na história, acaba se transformando no que
―era necessário que acontecesse‖ o que acaba justificando e legitimando todo
o passado, por mais monstruoso e perverso que tenha sido.

O marxismo é “progressista”?

Este olhar superficial da história, ingenuamente progressista, que


entende o progresso de forma linear, evolutivo, ascendente e sempre do
lado dos poderosos, não tem nenhuma relação com o marxismo.

61
Mesmo que esteja marcado pelo pragmatismo, corresponde, na realidade, a
uma filosofia burguesa européia: o positivismo. (Para o positivismo - cujo
lema é ordem e progresso - este último sempre vai do pior para o melhor,
numa linha ascendente, contínua e evolutiva. O positivismo não serve para
compreender as contradições históricas nem os avanços e retrocessos na
luta de classes).

De que ângulo miramos a história?

Para o marxismo, ao contrário, o progresso na história é contraditório. Tem


avanços e retrocessos. Além disso, não pode ser avaliado de forma
independente do que sucede com os setores oprimidos. Seu ponto de vista
não é o ponto de vista dos opressores, mas da classe explorada, massacrada
e oprimida. O marxismo é um olhar da história ―a partir dos de baixo‖. Deste
ponto de vista, a revolução socialista contra o capitalismo retomará a
herança de todas as revoluções e levantes populares do passado, tenham
sido triunfantes ou derrotadas, tenham tido êxito ou tenham sido frustradas.
Na história, a razão e o progresso estão do lado dos explorados. A eles
pertence o futuro.

―A única luta que se perde é a luta que se abandona”

BIBLIOGRAFIA

AMAYO, E. e SEGATTO, J. A. (orgs.). J. C. Mariátegui e o marxismo na


América Latina. Araraquara: ed. UNESP, 2002.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política.


São Paulo: Brasiliense, 1986. 331p.

Ernesto Che Guevara. ―Táctica y estrategia de la revolución


latinoamericana‖. En Obras. La Habana: Casa de las Américas, 1970.

Fernando Mires. La rebelión permanente. Las revoluciones sociales en


América Latina. México: Siglo XXI, 1988.

José Carlos Mariátegui. As correntes de hoje: o indigenismo – sete


ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo: Alfa-Ômega,
1975.

Michael Löwy. O Marxismo na América Latina. São Paulo: Editora Perseu


Abramo, 1999.

Michael Löwy. A dialética do progresso. In: Marxismo, modernidade,


utopia. São Paulo: Xamã, 2000.

Néstor Kohan. Marx en su (Tercer) mundo. Buenos Aires: Biblos, 1998.

62
(X) O projeto socialista e seus valores
A luta dos trabalhadores não se limita a uma resistência negativa contra a
ordem existente. A negação do que existe – central, no método dialético – se
faz acompanhar de um projeto de futuro. A luta socialista não implica
somente numa recusa da atual ―nova ordem mundial‖, mas também
pressupõe uma luta para recuperar o que nos foi expropriado ao longo da
história.

É bom lembrar que o capitalismo nasce historicamente da acumulação


originária do capital, cujo núcleo consiste em uma violenta expropriação dos
camponeses europeus e todos os povos do Terceiro Mundo (graças à
conquista e à colonização). Por isso, Marx termina seu famoso livro O Capital
com um alerta político: “Os expropriadores são expropriados [...] Lá, se
tratava de uma expropriação da massa do povo por uns poucos usurpadores;
aqui, se trata da expropriação de uns poucos pela massa do povo”.

Para poder concretizar este programa histórico, é preciso superar o estreito


limite que a mesquinha e estreita ideologia do economicismo impõe aos
trabalhadores e aos povos de todo o mundo. Tem que ir além da luta
meramente sindical, associativa ou reivindicativa. Tem que superar o ponto
de vista da fragmentação que limita as lutas contra a mundialização
capitalista a lutas segmentadas, separadas e isoladas.

Até agora, tivemos lutas fragmentadas: pela terra, pelo emprego, por salário,
contra a exploração, pela educação, pela saúde, por habitação digna, pelo
meio ambiente, contra a discriminação sexual, pela autonomia estudantil,
contra a discriminação religiosa, contra a discriminação racial, contra o
patriarcalismo, contra a burocracia sindical, contra a repressão policial,
contra a guerra, contra a vigilância permanente das pessoas. Sem
abandonar a luta por reformas pontuais, em cada um destes espaços, temos
que ter presente que, se não conseguirmos articular estas lutas entre si,
jamais poderemos enfrentar eficazmente a hegemonia burguesa.

A dominação cultural do capitalismo se baseia precisamente na unidade e


centralização global de sua dominação e na fragmentação dos protestos e
resistências. É necessário globalizar também as resistências, uni-las e
articulá-las, sem perder a especificidade de cada luta. Pretender lutar
unicamente por cada uma destas demandas (conseguindo reformas
pontuais), sem apontar contra o sistema capitalista como totalidade, levará a
novas frustrações. É preciso ter presente a advertência que Che Guevara
deixou, em sua última mensagem aos povos do mundo, seu testamento
político: “Ou revolução socialista ou uma caricatura de revolução”.

Nosso projeto é meramente econômico?


O projeto político da revolução socialista não se limita, então, em recuperar o
que foi arrancado a sangue e fogo das mãos do povo. O socialismo não é um
projeto exclusivamente econômico. Inclui o econômico como um de seus
pressupostos, mas vai muito mais além. O mesmo Che Guevara dizia: “O
63
socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos
contra a miséria, mas lutamos ao mesmo tempo contra a alienação”. No
mesmo sentido, a revolucionária Rosa Luxemburgo afirmava que “O
socialismo não é um problema de garfo e faca. É um movimento de cultura,
uma grande e poderosa concepção de mundo”.

Por isso, o socialismo, como concepção de mundo, articulado a partir de sua


filosofia da práxis, pressupõe uma ética e um conjunto de valores humanos
totalmente alheios à ética do DEVER e do TER e da redução do ser humano
à mercadoria.

Que relação existe entre a ética e a política? É possível se


posicionar à esquerda na política e à direita na moral?

Toda a dominação burguesa se baseia no divórcio absoluto entre a ética e a


política. Por um lado, está o que dizem os políticos burgueses, os juízes, os
empresários, os militares e, por outro, está o que fazem. Cada eleição repete
a cerimônia. Promete-se tudo, não se cumpre nada. O que se diz, não se faz;
o que se faz não se diz. A ética socialista, cuja máxima expressão foi
encarnada no século 20 por Che Guevara, se articula a partir de uma
unidade inseparável do dizer e do fazer, do público e do privado, do sujeito e
do objeto, da ética e da política.

Pode haver uma cabeça de esquerda e um corpo de direita?

Não se pode lutar por uma nova sociedade se não se luta ao mesmo tempo
pela construção do homem novo e da mulher nova. Não haverá revolução
socialista se não conseguirmos desalojar o egoísmo, a mesquinhez, o cálculo
miserável, o patriarcalismo, o racismo e o individualismo de nossa vida
cotidiana. Não se pode estar à esquerda, na política, e estar à direita, na
moral. Nossos princípios não são ―instrumentalistas‖, não nos utilizamos
deles como um simples instrumento (que se usa ou não de acordo com a
necessidade). São parte fundamental da ética revolucionária.

Não se pode ter uma mensagem revolucionária e socialista na vida


pública, tendo uma atuação conservadora e burguesa na vida privada.
Não se pode ter a cabeça e o discurso na esquerda, enquanto o coração e
o corpo estão na direita.

O projeto da revolução socialista, se não quiser ser uma caricatura – como


dizia Che Guevara – deverá realizar na vida concreta e cotidiana os grandes
ideais não cumpridos pelas revoluções burguesas: liberdade, igualdade e
fraternidade. Porém, não para a burguesia e os exploradores, mas para todo
o povo. Não para explorar – em nome da ―liberdade‖ – mas para viver em
uma comunidade onde realmente desapareça a ―exploração do homem pelo
homem‖ e o poder real (não só o governo) esteja nas mãos do povo.

Se decidirmos colocar todos os nossos esforços e nosso grão de areia, por


menor que pareça, em função desse projeto revolucionário, nenhuma luta do
passado, nenhum sacrifício (derrotado ou vitorioso) terá sido em vão. A
64
memória dos milhares e milhares de companheiros(as) desaparecidos(as),
torturados e assassinados seguirá vivo na medida em que nós decidimos que
não morram.

BIBLIOGRAFIA

Adolfo Gilly. Paisaje después de una derrota. En América Libre nº 3,


1993. pp. 11-18.

Adolfo Sánchez Vázquez. Ética. México: Grijalbo, 1980.

Ernesto Che Guevara. El socialismo y el hombre en Cuba. Ediciones


varias.

Frei Betto y Michael Löwy. Valores de uma nova civilização. Texto


apresentado na conferência «Princípios e valores da nova sociedade» do FSM
2002.

Materiais da Cátedra Livre Ernesto Che Guevara da Universidad Popular


Madres de Plaza de Mayo.

Materiais do CEPIS - Centro de Educação Popular do Instituto Sedes


Sapientiae - do Brasil.

65
O marxismo revolucionário na história do
socialismo
(Adaptado do texto de Néstor Kohan
“Aproximações ao Marxismo: uma introdução possível”)

Sejam sempre capazes de sentir, no mais fundo de si, qualquer injustiça


cometida contra qualquer um em qualquer parte do mundo.

Che Guevara

Necessidade impostergável de uma alternativa

Uma espécie está ameaçada de extinção: a espécie humana! O depredador se


chama capitalismo. Velho, cruel e senil, o assassino desenvolve esta tarefa
há cinco infatigáveis séculos. Antes de culminar sua agonia e morrer de vez,
pretende arrastrar para sua tumba toda a humanidadee. Não se trata de um
indivíduo particular, senão de todo um sistema, um conjunto de relações
sociais frias, anônimas e burocráticas, nas quais as pessoas tornam-se
meros meios para a obtenção de lucro e acumulação.

Segundo um informe recente das Nações Unidas, a fortuna dos 358


indivíduos mais ricos do planeta é superior às rendas anuais somadas de
45% dos habitantes mais pobres da Terra. Segundo esse mesmo informe,
mais de 800 milhões de seres humanos padecem de fome e cerca de 500
milhões de indivíduos sofrem de má nutrição crônica. A injustiça nos rodeia
em cada esquina de bairro, da cidade, do país, do mundo.

Sempre foi assim? É inevitável esta injustiça? Devemos aceitar, passivos e


submissos, este brutal sistema de dominação?

Nós, que aspiramos instaurar a justiça na Terra e terminar com toda


exploração e dominação, acreditamos que a sociedade pode ser transformada
e que outro mundo é possível. Não apenas é possível, mas necessário e
imprescindível! Em oposição ao reino de morte, burocracia, mercado,
dominação e exploração, existe uma alternativa viável, realista e ao mesmo
tempo impostergável: o socialismo. Enfrentando dia a dia esta opinião, os
poderosos meios de (des)informação contemporâneos, autênticos monopólios
de alcance mundial, e os empresários que os controlam não se cansam de
batalhar contra as ideias socialistas de justiça, emancipação, dignidade e
igualdade.

Um dos lugares comuns mais habituais utilizados contra o socialismo é que


este seria ―contrário à natureza humana‖. O mundo atual seria o único
possível. A desigualdade seria ―inata‖ à nossa espécie. Sempre teriam
existido ricos e pobres, dominadores e dominados e... sempre existirão! A
injustiça, as hierarquias, o poder e a dominação estariam dentro do coração

1
das pessoas... portanto — concluem em sua propaganda mal intencionada
—, seriam imodificáveis.

Porém, a antropologia, a arqueologia, o estudo da pré-história, a etnologia e


algumas outras ciências sociais demonstram que este lugar comum da
propaganda midiática não corresponde à verdade. Os seres humanos
viveram durante várias dezenas de milhares de anos sem conviver com a
propriedade privada dos meios de produção, sem a economia de mercado,
sem exército nem sociedade dividida em classes. O homo sapiens não nasceu
historicamente com a bolsa de valores, o cartão de crédito e a polícia em seu
alcance.

A gênese das primeiras rebeldias

Aqueles que defendem a suposta ―eternidade‖ da desigualdade social


escondem ou desconhecem que esta tem sido rechaçada ede forma veemente
pelos oprimidos. Essa rejeição tem pelo menos 5.000 anos de história
comprovada. Provem de duas instâncias determinadas:

a) As revoltas, as rebeliões e os levantes dos oprimidos ao longo da


história:

Os levantes e protestos de camponeses no Egito dos faraós;

As insurreições dos escravos na Grécia e em Roma antigas (a mais famosa


foi encabeçada por Espártaco no primeiro século de nossa era);

As rebeliões camponesas na India e principalmente na China clássica


(algumas triunfaram, dando origem a novas dinastias imperiais);

As revoltas camponesas no Japão (entre 1603 e 1863 ocorreram mais de


1100 levantes);

Os protestos de camponeses na Rússia czarista (a revolta mais conhecida


é a de Pougatchev, na Ucrânia, no século XVII);

As rebeliões indígenas na América do Sul (a mais longa e célebre — mas


não a única — foi encabeçada en 1780 por José Gabriel Condorcanqui,
também conhecido como Túpac Amaru);

A insurreição vitoriosa dos escravos – os ―jacobinos negros‖- no Haiti em


fins do século XVIII, liderados por Toussaint Louverture (François-
Dominique Toussaint [1743-1803]);

A rebelião dos escravos negros na América do Norte no século XIX


(principalmente a dirigida en 1831 por Nat Turner);

As revoltas camponesas (conhecidas como jacqueries) e as rebeliões de


artesãos e aprendizes (entre os séculos XIII e XVI) na Europa Ocidental.

2
b) Os gritos de protesto, os relatos ideológicos e as concepções utópicas
que acompanham invariavelmente tais revoltas, apoiando-se sempre na
memória — ou na imaginação — de uma sociedade mais igualitária e mais
justa. Não é casual que a lenda de uma ―idade de ouro‖ seja um tema
recorrente em muitos povos rebeldes e insurretos. Em todos eles se repete a
mesma maldição contra a opressão, os protestos e as inflamadas
contestações contra a exploração de um setor da sociedade por outro, o
mesmo sonho e a mesma fantasia de uma sociedade superior, em que
fossem abolidas para sempre todas essas injustiças, explorações,
hierarquias e dominações.

Nas lutas de emancipação e nos relatos que as legitimam, a aspiração a um


futuro digno e justo vem acompanhada, em geral, de certa leitura do
passado. Não há rebeldia à margem da história. A identidade de quem se
rebela se constrói, precisamente, no campo da história, no estreito laço que
tece o passado, o presente e o futuro.

Por exemplo, encontramos estes relatos ideológicos e núcleos utópicos em:

Os profetas hebreus e as seitas judias radicais (que anunciam um reino


milenar de igualdade, felicidade e justiça messiânica, oposto a todo culto do
fetiche, dos ídolos, do comércio e do dinheiro);

Os padres originários da Igreja cristã (a expressão ―a propriedade é um


roubo‖, por exemplo, habitualmente atribuída ao anarquista francês Pierre-
Joseph Proudhon [1809-1865], provém, na realidade, do bispo de Bizâncio
João Crisóstomo [aprox. 347-407]);

Os donatistas da África do Norte (que seguem as doutrinas de Donato,


cismático da Igreja do século IV e partidário da propriedade comunal);

Os masdeístas do Irã (grupo de origem maniqueu, dos séculos V e VI de


nossa era, propulsor da divisão comunitária dos bens e propriedades);

Os hussitas na Boêmia e os anabatistas da Alemanha (durante as guerras


de religião dos séculos XV e XVI), os quais preconizavam – assim como o
ramo taborita – a comuna igualitária baseada na propriedade coletiva dos
bens. Tomás Münzer (aprox. 1493-1525), um de seus líderes máximos, foi
torturado e decapitado.

O socialismo do século XXI, o novo socialismo, é o herdeiro contemporâneo


desse antiquíssimo clamor de emancipação radical. Retoma e reatualiza
ambas as tradições entrecruzadas e entrelaçadas: tanto a dos levantes e
rebeliões efetivos de diversos povos insurretos ao longo da história (em sua
grande maioria, vencidos cruelmente pelos poderosos do momento), como a
de seus anseios, relatos, fantasias, imaginações e concepções utópicas (na
maior parte das vezes de índole religiosa) que acompanharam e
impulsionaram tais revoltas.

3
Os precursores utópicos

À medida que transcorria o tempo e a história, as primeiras concepções


utópicas foram se sedimentando, gerando modos sistemáticos de
reorganização da sociedade futura, fundados sobre a propriedadr comum e
coletiva (em grego ―topos‖ significa lugar, ―utopia‖ seria aquilo que não tem
lugar).

Entre os modelos utópicos, quase sempre condensados en alguma obra


literária, os principais são:

A República do filósofo grego Platão (428-348 a C);

Utopia do chanceler inglês Tomás Morus (1477-1535);

A Cidade do Sol do pensador italiano Tomás Campanella (1568-1639);

Oceana de James Harrington (1611-1677);

A Nova Lei de Justiça de Gerrard Winstanley (s/data), inspirador, em


1649, do movimento dos ―autênticos niveladores‖ durante a revolução
burguesa do século XVII;

As Aventuras de Telêmaco do escritor francês Francois Fénelon (1651-


1715);

O Testamento de Jean Meslier (1664-1729);

O código da natureza, inicialmente atribuído ao enciclopedista Denis


Diderot (1713-1784), mas, na realidade, pertencente ao filósofo Morelle
(século XVIII, s/data);

O Manifesto dos plebeus de François-Noël Babeuf, (chamado Graco, 1760-


1797).

Junto a Morelle e Babeuf há que agregar o filósofo e historiador francês


Gabriel Mable (1709-1785). Depois destes três últimos representantes do
século XVIII, os pensadores utópicos mudam de atitude. Deixam de se
preocupar unicamente em descrever com pluma e papel uma sociedade do
futuro, justa e igualitária, na qual seria implantada a propriedade baseada
na comunidade e no coletivismo. A partir de então florescem as tentativas
por alcançar mínimas doses de realismo no interior da atividade prática.

A transição entre as utopias de um século e outro está marcada pelo


primeiro ensaio comunista moderno para realizar o socialismo não somente
no céu etéreo das ideias, mas também no terreno tangível da sociedade. Essa
primeira tentativa corresponde a Graco Babeuf, republicano e comunista
partícipe da revolução francesa de 1789. Babeuf não apenas expôs em 1795
seu modelo de nova sociedade, mas encabeçou a ―conspiração dos iguais‖
contra a ala mais reacionária — o chamado Diretório — do processo político
4
francês daqueles anos. Babeuf, muito antes do nascimento de Karl Marx,
constitui um dos precursores da esquerda revolucionária contemporânea.
Não por acaso ele tem sido associado a Marx e Blanqui, à primeira fase dos
populistas rusos e a Lênin, aos partisans italianos, a Ho Chi Minh, a Che
Guevara, Fidel Castro e Santucho. Uma tradição específica no interior do
socialismo que não se restringe às belas ideias, ao colocar em primeiro plano
a luta frontal contra o poder institucional do estado burguês, seu exercício
desapiedado da força material e seus aparatos de dominação. Babeuf é um
dos iniciadores desta extensa e disseminada família radical.

Sua insurreição armada foi delatada por um agente duplo e brutalmente


reprimida em 1796. En 1797, após seu suicídio, o corpo sem vida de Babeuf
foi decapitado na guilhotina. Deste modo se encerrou um século
emblemático que anunciou a luz da razão, mas terminou reprimindo aqueles
que tomaram a sério essa mensagem de emancipação: os igualitaristas de
Babeuf, na Europa, e os negros haitianos insurretos, em nossa América.

A nova etapa histórica que se abre com o século XIX encontra o pensamento
utópico numa grande encruzilhada. Filho do casamento entre a revolução
industrial (desenvolvida com a máquina a vapor na Inglaterra em fins do
século XVIII) e a revolução política que derruba a monarquia (revolução
encabeçada pela burguesia francesa em 1789), o século XIX é o século da
modernidade e da expansão, violenta e sem limites, do capitalismo.

O capitalismo é um tipo de sociedade mercantil e burocrática na qual


predomina a quantidade sobre a qualidade, as mercadorias e o capital sobre
as pessoas, o mercado e a troca sobre a razão e o amor, o frio interesse
material sobre a ética e os valores, o cálculo despersonalizado de perdas e
ganhos sobre a amizade e o fetiche do dinheiro sobre os seres humanos.

O capitalismo rompe com todos os preconceitos e sentimentalismos próprios


da sociedade medieval e os reduz a uma só fórmula: a do débito e do crédito.
Como sistema, o capitalismo se impõe sobre os empresários individuais. A
lógica da acumulação do capital (baseada na exploração do trabalho alheio
através da extração de mais-valor e da exploração da força de trabalho)
independe da bondade ou da maldade de cada patrão individual. A lógica do
sistema se impõe a sangue e fogo, não apenas sobre as classes subjugadas,
oprimidas, expropriadas e exploradas, mas também sobre cada um dos
empresários capitalistas. Burguês que não se subordine a esta lógica de aço
é burguês que vai à falência.

Nesse difícil contexto social, não há lugar para os sonhos de um futuro justo
e igualitário nem para as fantasias de libertação radical. O único sonho
permitido, a única ilusão é a do êxito pessoal e da ascensão social
conquistada à custa dos outros. A competição feroz e sem dó se converte na
fada madrinha deste novo tipo de sociedade que a tudo engole e incorpora.
―O homem se converte‖, nas palavras do filósofo inglês Thomas Hobbes, ―no
lobo do homem‖.

Consolidação do socialismo utópico


5
Não obstante, contra tudo o que se poderia esperar, o milenar anseio de
fraternidade, libertade e igualdade — promessas não cumpridas pela
revolução burguesa de 1789 — não se apaga nem desaparece no século de
consolidação do capital. Ao contrário: quanto mais se expande o capitalismo,
tanto mais ganha força o protesto e o clamor por viver de outra maneira. Os
antigos sonhos utópicos renascem, com mais vigor ainda que no século
XVIII, na pena socialista de:

-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825);

Robert Owen (1771-1858);

François-Marie-Charles Fourier (1772-1837);

Contrariamente ao que se poderia supor, estes pensadores que começaram a


elaborar ideias socialistas durante a primeira metade do século XIX não são
homogêneos entre sí.

Se Saint-Simon é considerado um dos propulsores, na França do século XIX,


deste movimento político que teve muitíssimos adeptos, não é unívoca a
análise dobre sua filiação ideológica. Alguns historiadores — Friederich
Engels, por exemplo — o situam como precursor do socialismo. Outros, no
entanto — como Ernest Mandel — o identificam como ideólogo da nascente
burguesia industrial. Outros ainda — Herbert Marcuse —, como primeiro
teórico da corrente ideológica positivista (que se caracteriza por rechaçar o
socialismo e a filosofia, em nome da ―ordem‖ e do ―progresso‖, lemas de
Augusto Comte, discípulo de Saint-Simon). Já o historiador G. D. H. Cole
afirma que Saint-Simon foi as três coisas ao mesmo tempo.

A discrepância e ambiguidade de tais juízos sobre o saint-simonismo provém


da confusa defesa do trabalho industrial (em oposição aos ―ociosos‖),
propagada por Saint-Simon em suas Cartas de Genebra. Ali, se o autor
fustiga os nobres ociosos, jamais identifica alguma diferença entre os
operários fabris e seus patrões, os empresários da indústria.

O certo é que, para além destas ambiguidades, Saint-Simon deixou uma


máxima que o pensamento socialista abraçou em sua história posterior:
―todos os seres humanos devem trabalhar‖.

O futuro ao alcance das boas intenções?

Por outro lado, Robert Owen caracterizou-se por externar um profundo


sentimento de rejeição ao sofrimento dos trabalhadores na Grã Bretanha
(berço da revolução industrial). Ele mesmo era um jovem industrial de
apenas 29 anos que dirigia uma empresa em Manchester com mais de 500
operários. Ali começou a aplicar concretamente sua teoria. Mais tarde, em
New Lanark (Escócia), entre 1800 e 1829, gerenciou uma fábrica de tecidos
de algodão com mais de 2.500 trabalhadores. Apesar de ter estabelecido um
regime de trabalho muito menos espoliador que o de outras fábricas da
6
época e de ter enviado sistematicamente para a escola os filhos de todos os
operários (inclusive continuou pagando o salário a todos eles durante os
quatro meses em que a fábrica fechou por causa de uma crise de algodão),
Owen não se sentiu satisfeito. ―Aqueles homens eram meus escravos‖,
confessou amargamente em suas memórias.

A partir de 1823, além de defender uma legislação social, promoveu a


fundação de colônias comunistas na América para os operários da Irlanda. O
tipo de organização imaginada por Owen incluía desde o orçamento completo
com os gastos de estabelecimento e desembolsos anuais até os ingressos
prováveis de tais colônias comunistas. Não ficou apenas no sonho: buscou
realizar seus projetos, investindo neles (e perdendo...) toda sua fortuna.
Owen identificou três grandes instituições responsáveis pela oposição oficial
a tais experimentos reformadores, as quais deveriam ser removidas: a
propriedade privada, a religião e a forma atual do matrimônio.

Owen presidiu o primeiro congresso no qual se definiu a centralização dos


sindicatos ingleses em uma única confederação nacional, mas isso ele não
viu acontecer. Também propôs a criação de cooperativas operárias de
produção, a primeira das quais foi fundada em Rochester, no ano de 1839.
Owen será posteriormente lembrado como o pai do movimento
cooperativista.

Quando abandonou definitivamente a filantropia para passar ao comunismo,


Owen perdeu a simpatia que gozava entre as classes endinheiradas da
Europa. Dali por diante, passou a atrair o ódio inflexível de toda a sociedade
dominante e da grande imprensa de seu tempo.

Socialismo, falanstério e feminismo

Por sua vez, Charles Fourier, pequeno comerciante francês, destacou-se


como um dos grandes críticos da sociedade burguesa e da divisão social do
trabalho entre a agricultura e a indústria (entre a cidade e o campo). Ele
identificou na sociedade mercantil e na economia monetária as principais
fontes da venalidade e da corrupção universal.

Diferentemente do que acontece com Saint-Simon, não resta dúvida de que


Fourier deve ser considerado um dos precursores do socialismo. Como tal,
também deve figurar como um dos críticos mais lúcidos da sociedade
patriarcal, tendo sido um dos primeiros a proclamar que o grau de
emancipação da mulher em uma sociedade é o termômetro pelo qual pode se
medir o nível de emancipação geral dos seres humanos.

Ao contrário das correntes mais entusiastas da economia política que viam


na consolidação europeia do capitalismo um porvir luminoso de bem-estar
geral para todos, Fourier assinala que ―na civilização, a pobreza brota da
mesma abundância‖.

Quando compara as promessas não cumpridas dos enciclopedistas (que


iluminaram, com sua luz racionalista e seu otimismo desenfreado, o século
7
XVIII) com a miséria e opressão capitalistas do século XIX, Fourier se
transforma num crítico mordaz e satírico.

Para remediar o mal estar geral provocado pela propriedade privada e pelo
capitalismo, Fourier imagina uma solução: o falanstério. Este consiste no
projeto de uma coletividade de produtores e consumidores (onde todos
trabalham e consomem) de 1.000 a 2.000 pessoas, na qual todos se tornam
agricultores, artesãos e artistas.

Junto a Saint-Simon, Owen e Fourier temos de agregar outros dois


socialistas utópicos que, apesar de não possuírem igual peso, são relevantes
para se compreender a origem deste movimento: Étienne Cabet (1788-1856)
e Flora Célestine Thérèse Tristan (1803-1844).

Cabet foi o primeiro de todos estes pensadores a utilizar o termo ―comunista‖


para designar seu ideário. Seu principal livro, Viagem a Icária, uma ilha
imaginária onde existiria uma economia planificada e sem mercado, foi lida
por milhares de trabalhadores (o mesmo Cabet, talvez exagerando,
costumava dizer que contava com 200.000 seguidores).

Flora Tristan era uma trabalhadora francesa que defendeu, em A União


Obreira, a criação de ―palácios operários‖ em todas as cidades, nos quais
seria concretizada a igualdade absoluta entre os dois sexos, que receberiam
uma educação comum. Nesta obra, pela primeira vez se colocava a
necessidade de construção de uma organização internacional de
trabalhadores.

Tristan foi uma crítica radical do modo de existência das mulheres de sua
época e do matrimônio. Na sua obra Passeios em Londres, descreveu as
mulheres como ―as proletárias dos próprios proletários‖. Flora sustentava a
necessidade de se lutar em favor da emancipação das mulheres e, ao mesmo
tempo, de toda a classe trabalhadora. Diversamente de certo feminismo
burguês, liberal e pós-moderno de nossos dias, Flora conjugava de igual
modo o verbo feminista e a língua proletária do socialismo. Não é por acaso
que Marx assumiu com entusiasmo a defesa de seu feminismo contra os
críticos.

Nascimento do marxismo

Um salto qualitativo no socialismo moderno se produz com a passagem do


socialismo utópico para a filosofia da práxis e a concepção materialista da
história que o marxismo traz consigo.

Com os pensadores alemães Karl Marx (1818-1883) e seu companheiro e


amigo Friedrich Engels (1820-1895), a teoria socialista abandona
definitivamente todo rastro especulativo e todo projeto imaginário de futuro
para tentar vincular-se politicamente às classes trabalhadoras das
sociedades capitalistas de massas.

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Mesmo reconhecendo que os socialistas utópicos (de Saint-Simon e Fourier a
Owen e Flora Tristan) não eram simples ―sonhadores‖, somente com o
pensamento de Marx e Engels o socialismo deixará de ser algo mais que uma
seita — neste caso, reformadora da sociedade —, para converter-se no
protagonista central da política contemporânea, desde o século XIX aos dias
atuais.

Fazendo um balanço geral e referindo-se a todos os socialistas anteriores, a


suas imagens futuristas e seus projetos utópicos, Engels assinalou que ―O
socialismo é, para todos eles, a expressão da verdade absoluta, da razão e da
justiça, e basta ser descoberto para que, por su própria virtude, conquiste o
mundo‖.

A tradição de pensamento que fundam Marx e Engels forma a parte medular


da história do socialismo, mesmo que, na hora de batizar, em 1848, a
difusão de seus princípios fundacionais, ambos tenham optado pelo título
Manifesto Comunista.

O nome ―socialismo‖ era utilizado — especialmente na França a partir de


1830 — para designar, em termos gerais, as ideias e os partidários de
Babeuf, os owenianos, os fourieristas e os saint-simonianos. Todos eles,
muitas vezes sem distinção entre uns e outros, eram considerados
―socialistas‖ porque ressaltavam ―a questão social‖.

―Comunismo‖ foi outra palavra que começou a ser utilizada na França


durante a agitação social que se seguiu à revolução de 1830 (que derrubou a
monarquia bourbônica e a substituiu pela orleanista). Não se sabe
exatamente quando surgiu, mas se utiliza pela primeira vez em relação a
algumas das sociedades revolucionárias secretas de Paris durante a década
de 1830, passando a ser de uso corrente, desde 1840, para designar as
teorias de Étienne Cabet. Tal como a utilizavam os franceses, evocava a ideia
da comuna, ou seja, a unidade básica de bairro e do governo autônomo, e
indicava uma forma de organização social baseada em uma federação de
―comunas livres‖. Ao mesmo tempo, porém, sugeria a noção de comunidade,
isto é, a posse e a propriedade comum de todas as coisas.

Cabet utilizava o termo segundo a última concepção. De acordo com o


primeiro aspecto, o termo se relacionava aos clubes clandestinos radicais e,
por causa deles, passou a ser empregado no nome da Liga Comunista de
1847 e no do Manifesto Comunista de 1848 de Marx e Engels.

Ainda que o termo ―comunismo‖ (utilizado na Inglaterra a partir de 1840)


contasse com uma referência semântica sumamente próxima a de
―socialismo‖, acabava incorporando um aroma mais militante, radical e
clandestino. Por isso Marx e Engels o preferiram para designar seu
manifesto. Queriam assustar a burguesia e assim o fizeram.

À ideia de ―socialismo‖, com toda a crítica ao capitalismo e à desigualdade


que este implicava, o termo ―comunismo‖ agregava a noção de confrontação
e luta revolucionária para acabar com ele. Além disso, possuía em seu
9
mesmo nome uma conexão mais próxima com a ideia de propriedade e
usufruto comuns (não é casual que um século e meio depois de seu primeiro
emprego por Marx e Engels, na América Latina, o nome ―comunismo‖ segue
associado, por todas as facções da direita e pelos militares, aos de
―subversão‖ e ―terrorismo‖, os grandes demônios e fantasmas que
assombram os sonhos dos burgueses e milionários).

Irmandade ou luta de classes sociais?

Se o socialismo anterior a Marx pensava que ―Todos os seres humanos são


irmãos”, a partir daquele momento a ânfase do socialismo passa a depositar-
se na solidaridad de classe. Em outras palavras: contrariamente ao que
pensava Saint-Simon e seus colegas, os trabalhadores e os empresários, os
operários e seus patrões não são ―irmãos‖. O conceito saint-simoniano de
―trabalho industrial‖ era demasiado vago e indeterminado. No lugar de
explicar, encobria a realidade. Entre operários e patrões existe um conflito,
há luta. Não uma luta em termos individuais ou pessoais, mas uma luta
social de força e de poder entre as classes sociais. As relações sociais do
capitalismo (valor, dinheiro, capital, etc.) são relações sociais de produção e
ao mesmo tempo constituem relações sociais de força e de poder entre as
classes sociais.

Respondendo a esta nova ideia, um dos trechos iniciais do Manifesto


Comunista começa sustentando que: ―Toda a história da sociedade humana,
até a atualidade, é a história da luta de classes. Homens livres e escravos,
patrícios e plebeus, senhores e servos da gleba, mestres e aprendizes, em
suma, opressores e oprimidos estiveram em constante antagonismo entre si,
travando uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, outras vezes aberta‖.

Ao invés de dirigir-se ao coração do ser humano, à bondade, à piedade, aos


bons sentimentos, à compaixão, à colaboração bem intencionada, à
filantropía e à fraternidad universal de todas as classes, este texto
emblemático culmina conclamando: ―Proletários de todos os países, uni-vos!‖.
A partir de então se abre uma nova época na história do socialismo, na
história das concepções sociais do mundo e na história política da
humanidade.

Ao contrário do que sustentaram erroneamente Karl Johann Kautsky (1854-


1938) ou Louis Althusser (1918-1990), Marx e Engels não introduziram suas
ideias ―de fora‖ do movimento operário. Publicaram seus manifestos e
documentos num estreito vínculo com o setor mais radical dos operários
europeus politicamente organizados. Estes solicitaram de Marx que
escrevesse o Manifesto. Por exemplo, em carta de 24 de janeiro de 1848,
exigiam: ―O comitê central [da Liga dos Comunistas, N.K.], pela presente,
encarrega o comitê regional de Bruxelas de comunicar ao cidadão Marx que,
se o manifesto do partido comunista, do qual assumiu a redação no último
congresso, não tiver chegado a Londres em 1° de fevereiro do ano atual [1848,
N.K.], serão tomadas as medidas pertinentes contra ele. Caso o cidadão Marx
não cumpra seu trabalho, o comitê central solicitará a imediata devolução dos

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documentos colocados à disposição de Marx‖. Assinaram a carta um
sapateiro, um relojoeiro e um velho militante comunista...

Marx não desceu de uma suposta torre de marfim para brindar os


trabalhadores com seus conhecimentos. Pelo contrário, elaborou suas
reflexões e programas em diálogo e intercâmbio permanente com eles.

A grande síntese de Marx

Porém, Marx e Engels não se dedicaram, em sua obra, a dialogar


unicamente com os trabalhadores. Ao mesmo tempo, promovem uma
polêmica permanente e uma revisão crítica dos saberes universais de sua
época. Ambos entrecruzam e dialogam com três grandes constelações de
saberes:

filosofia clássica alemã (principalmente a obra de Georg Wilhelm


Friedrich Hegel [1770-1831]) e seu método dialético;

a historiografía sociológica francesa (fundamentalmente Augustin Thierry


[1795-1856], François Auguste Mignet [1796-1884], François Guizot [1787-
1874] e Thiers);

a economia política britânica (sobretudo a obra de Adam Smith [1723-


1790] e de David Ricardo [1772-1823]).

A estas ―três fontes e partes integrantes do marxismo‖ — como as


denominou V. I. Lênin — teria que se agregar outros dois afluentes, muitas
vezes esquecidos nos manuais de história do socialismo. Essa fonte adicional
de inspiração que nutre a obra de Marx está ligada à literatura:

O teatro elizabethano de William Shakespeare (1564-1616). Marx era um


admirador fanático, ao ponto de empregar muitas das metáforas de
Shakespeare para designar o comunismo como ―um fantasma‖ (como no
início do Manifesto Comunista) e a revolução como ―uma velha toupeira‖
(final de O 18 Brumário de Luís Bonaparte). Ambas as expressões — hoje
célebres — correspondem ao Hamlet de Shakespeare...

A literatura romântica alemã de Friedrich Schiller (1759-1805), sobretudo,


o Fausto de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Marx adota de
Goethe, inclusive antes de ler Hegel, a necessidade de uma concepção
totalizadora do mundo centrada na ação e na práxis. Fundamentalmente,
comoveu-se com aquela passagem do Fausto em que Goethe retraduz para o
alemão a Bíblia da seguinte maneira: ―No começo fez-se a ação‖.

A maior conquista de Marx, e sua vantagem sobre as ideologias e doutrinas


socialistas anteriores, foi ter sintetizado estes cinco afluentes conformando
uma concepção integral do mundo e da história humana até então ausente
na tradição socialista. O socialismo deixa de ser uma fantasia igualitária, um
ensaio futurista, um clamor por mais justiça ou um relato histórico dos
padecimentos humanos para se transformar numa nova concepção do
11
mundo e da vida, uma teoria crítica da história e da sociedade capitalista
através do método dialético e uma filosofia totalizadora do ser humano e de
sua práxis.

Nesta ambiciosa concepção se incorporam todos os antigos e milenares


anseios utópicos de justiça e os ensinamentos de todas as rebeliões práticas
que ao longo de 5.000 anos de história buscaram semear e colher outro tipo
de sociedade. Ambas vertentes se fundem e se sintetizam sobre um novo
terreno: a historicidade.

Nova perspectiva da história

Marx desmontou o suposto caráter ―eterno‖ que tanto os pensadores da


revolução francesa quanto os socialistas utópicos haviam atribuído a seus
pensamentos. Fez o mesmo com todas as instituições, supostamente
―perenes‖ e ―imortais‖, começando pela propriedade privada e a justiça,
continuando pelo Estado. Nada escapa ao fogo da história, que a tudo
derrete e dissolve. Mesmo o que aparentemente é mais ―sólido‖, mais
petrificado e cristalizado, como é o caso do capitalismo, entra em combustão
ao tomar contato com a história.

A chave da compreensão histórica deixa de repousar então nos bons e maus


desejos, intenções e declarações dos políticos, assim como nas ações das
―grandes personalidades‖ da história. Para comprender as mudanças entre
uma época e outra há que atentar, fundamentalmente, para o conjunto de
relações sociais que os seres humanos constroem entre si (de todas elas, as
principais são — para Marx — as relações sociais de produção, ainda que
não sejam as únicas). A essa visão de conjunto Marx e Engels denominaram
―concepção materialista da história‖. O termo ―materialista‖ não faz
referência à matéria físico-química (os átomos que conformam um metal, por
exemplo), mas à materialidade social, à materialidade das relações entre os
seres humanos.

A conclusão principal desta concepção da história é que:

A sociedade não é um somatório do (a) ―fator econômico‖ + (b) ―fator


político‖ + (c) ―fator ideológico‖;

sociedade é uma totalidade de relações sociais atravessada por


contradições internas que não são eternas, mas, pelo contrário, transitórias
e históricas.

O enigma da exploração

O socialismo marxista permite tornar plenamente observável algo que já


havia sido intuído pelos utópicos: a sociedade contemporânea é brutalmente
injusta e se baseia na exploração da classe trabalhadora. Isto, porém, não
corresponde à maldade, perversidade, corrupção ou falta de colaboração dos
patrões individuais. O que há por detrás da exploração é uma lógica do

12
sistema em seu conjunto, baseada numa instância oculta: a extração de
mais-valor.

O mais-valor não é observável a simples vista. A exploração, mesmo que


padecida, sentida, sofrida e intuída dia a dia pela classe trabalhadora,
somente pode ser compreendida racionalmente e em termos científicos a
partir da teoria crítica do capitalismo conduzida pelo socialismo marxista.
Do senso comum cotidiano não brota a compreensão acerca da fonte oculta
da exploração capitalista.

No mercado capitalista, o mais-valor assume as formas de:

lucro industrial (para o capital dedicado à indústria);

capital centrado nos bancos e nas finanças);

a da terra (para o capital baseado na exploração dos trabalhadores da


terra).

Este mais-valor se assenta num trabalho excedente — realizado pelos


operários — pelo qual nada se paga. O mais-valor é um trabalho humano
não remunerado, não retribuído, mas que permanece oculto sob a aparência
de que, com o salário, o patrão paga por todo o trabalho realizado pelos
trabalhadores, quando, na realidade, somente paga uma parte, ficando com
o excedente.

Isto significa que os operários trabalham mais do que realmente necessitam


para viver e para reproduzir sua capacidad de trabalho (que Marx denomina
―força de trabalho‖). O mais-valor é um valor que vai além de si mesmo, por
isso constitui um ―algo a mais‖. Sua fonte é um trabalho que dura além do
necessário para reproduzir a própria sobrevivência dos trabalhadores e suas
famílias. Por isso é um trabalho excedente. Dele vivem os empresários e
patrões. Estes não exploram porque sejam ―maus‖, mas pela lógica mesma
do capitalismo (na vida real se comportam de maneira pérfida e maligna;
mesmo sendo boa gente, de igual forma seriam exploradores). Os patrões
apenas pagam pelo valor da capacidade de trabalhar de seus empregados,
não o valor daquilo que operários e operárias realmente produzem. A
diferença entre o que os trabalhadores produzem e o que se lhes paga como
salário é o mais-valor.

Com esta descoberta que Marx trouxe ao socialismo, a suposta ―natureza


humana eterna e imutável‖, para a qual sempre apela o discurso dos
empresários (e das correntes teóricas que os legitimam), se esvai
imediatamente. A fonte da exploração, mesmo oculta à simples vista e para o
senso comum, adquire deste modo uma explicação racional e compreensível.
Não pertence ao ―coração do homem‖. Deixa de ser uma instituição ―natural‖
— que sempre existiu e sempre ... existirá — para transformar-se em algo
simplesmente histórico, transitório e, portanto, superável.

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A partir desta descoberta — exposta em uma obra imensa de milhares de
páginas, intitulada O Capital (cujo primeiro tomo foi publicado en 1867) — o
socialismo experimenta uma transformação radical. Termina conjugando os
velhos anseios utópicos de uma sociedade mais justa e igualitária, a que
Marx não renuncia (como muitos historiadores superficiais supõem), a uma
sólida e detalhada argumentação científica.

De onde vem a cientificidade desta proposição? Da crítica da economia


política clássica, a ciência social mais avançada nos tempos de Marx que, ao
mesmo tempo, legitimava a sociedade mercantil capitalista.

Esta ciência, no caso de Adam Smith e David Ricardo, havia vislumbrado


uma teoria do valor das mercadorias sustentado no trabalho humano
incorporado por elas, mas não pôde descobrir:

o caráter histórico da forma de ―valor‖ que assumem os produtos do


trabalho humano quando são produzidos numa sociedade mercantil
capitalista;

ral do ―mais-valor‖ (base da exploração de uma classe social por


outra), oculta a simples vista, mas subjacente às formas visíveis de lucro
industrial, juros bancários e renda da terra.

A filosofia sai de si em busca de um sujeito

No socialismo marxista, as dimensões utópica e científica se articulam com a


crítica sistemática do statu quo e com uma filosofia da ação transformadora
e revolucionária: a ―filosofia da práxis‖. Trata-se de uma concepção geral do
mundo, da vida, dos seres humanos, de suas relações sociais e de sua
história, na qual a categoria central — a práxis — refere-se à unidade de
pensamento, isto é, o sentir e o fazer; em outras palavras, à unidade de
prática e consciência. O aspecto fundamental da filosofia da práxis está na
atividade humana transformadora (que modifica tanto a realidade externa ao
ser humano — o objeto — como ao próprio ser humano — o sujeito).

Esta filosofia descola-se do terreno dos antigos relatos utópicos


(majoritariamente desenvolvidos na órbita de livros escritos por intelectuais
críticos do capitalismo) e ultrapassa o raio de alcance da filosofia
universitária, limitada às aulas e bibliotecas, para prolongar-se além de si
mesma, entre os trabalhadores e trabalhadoras. Os herdeiros da filosofia
clássica alemã — da qual Marx e Engels adotam o método dialético — não
são, então, os professores nem os acadêmicos (por mais bem intencionados
ou informados que sejam), mas a classe trabalhadora revolucionária.

É esta classe social que funda em 1864 (em vida de Marx) a Associação
Internacional de Trabalhadores–AIT, também conhecida como Primeira
Internacional. Na AIT conviviam os marxistas, junto com os republicanos
radicais, os seguidores de Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), os discípulos
de Proudhon e os anarquistas. (O anarquismo é uma ideologia libertária e
anticapitalista que manteve ao longo da história disputas, cruzamentos,
14
aproximações, polêmicas, intercâmbios e trocas de ideias com o socialismo,
principalmente com o marxista).

Se a revolução europeia de 1848 foi o batismo de fogo para as ideias políticas


de Marx, a Comuna de Paris de 1870-1871 constituiu uma prova não menos
relevante. Logo após a derrota desta última, sobrevém a crise da AIT
(dissolvida em 1872). Nas décadas posteriores, são criados na Europa
poderosos partidos socialistas de massas. O mais importante de todos é, ao
final do século XIX, o alemão. Este partido contribui com a fundação, em
1889, da Segunda Internacional ou Internacional Socialista.

Nesta época, um dos principais representantes da Internacional Socialista


era o genro de Marx — casado com sua filha Laura — Paul Lafargue (1842-
1911), nascido em Santiago de Cuba e que se tornou um dos políticos
socialistas mais importantes da França. Seu grande aporte ideológico a esta
tradição foi O direito à preguiça, uma obra erudita onde, na contramão da
corrente socialista hegemônica, que sempre promoveu o culto ao trabalho,
Lafargue defendia os legítimos direitos ao ócio do operário e ao desfrute do
tempo livre das classes subalternas. Lafargue chega a afirmar que o amor
frenético ao trabalho é ―uma aberração mental‖ e ―uma estranha loucura que
se apoderou das classes trabalhadoras‖.

Apesar de o partido alemão manter uma inspiração ideológica


predominantemente marxista, alterou a terminologia para se denominar
―socialdemocrata‖. Em fins do século XIX, o termo ―socialdemocracia‖ era
assimilado a ―socialismo‖ e ―comunismo‖.

Fora da Europa, um dos partidos políticos mais precoces a seguir a


inspiração do partido alemão e que conquistou maior quantidade de adeptos
foi o argentino. Neste caso, o partido fundado, em 1896, por Juan Bautista
Justo (1865-1928) se denominou ―socialista‖.

Se o principal dirigente político do partido socialdemocrata alemão foi


Augusto Bebel (1840-1913), seus dois grandes ideólogos foram Karl Kautsky
(1854-1938) e Eduard Bernstein (1850-1932). Entre ambos se travará uma
aguda polêmica: Kautsky representará os ―ortodoxos‖ (por manter-se
literalmente fiel aos escritos de Marx) e Bernstein, os ―revisionistas‖ (ao
propor revisar as teorias de Marx). Ainda que a filosofia e a teoria os tenham
sempre mantido separados, com o transcorrer do tempo, na política,
Kautsky tenderá a se aproximar progressivamente das posiçõees moderadas
de Bernstein.

Dois caminhos divergentes para criar e construir o socialismo

Daí então a Segunda Internacional começa a se dividir nas duas grandes


tendências mundiais que atravessarão o socialismo durante todo o século
XX:

e gradualista;

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ente radical e revolucionária.

Se a primeira vertente buscava obter mudanças lentas e de caráter


quantitativo, a segunda tratava de, por meio de uma postura ativista, lograr
mudanças qualitativas para transformar a sociedade. Estas duas tendências
reaparecem periodicamente, inclusive em nossos dias, entre aqueles que
rechaçam o capitalismo e aspiram modificar a ordem social (com a diferença
notável de que a corrente reformista de fins do século XIX e começos do
século XX, mesmo moderada, pretendia chegar ao socialismo, enquanto que
essa mesma vertente, hoje em dia, se conforma tão somente em conquistar
um ―capitalismo de rosto humano‖).

A ruptura entre ambas se produz de maneira explosiva durante a primeira


guerra mundial (1914-1918), quando entra em crise a Internacional
Socialista. Então, o setor moderado dos parlamentares socialistas
pertencente a diversos órgãos legislativos europeus, em suas respectivas
câmaras de deputados, vota, junto com a direita e os conservadores, a favor
dos créditos de guerra e dos projetos de lei de defesa. Estes projetos e
créditos permitiram aumentar o número de efetivos militares de cada país e
elevaram enormemente o orçamento militar. Deste modo, foi esquecida a
tradição socialista que historicamente se opunha a apoiar a guerra de um
setor dos empresários (por exemplo, alemão) contra outro setor empresário
(por exemplo, francês). Nessas guerras, quem sempre perde são os
trabalhadores, que morrem nas trincheiras, como bucha de canhão (sejam
eles alemães ou franceses, segundo o mesmo exemplo).

Com essa votação escandalosa e vexatória, todo um setor do socialismo


mundial se separa do outro. Os mais radicais — que rejeitam a guerra — se
afastam indignados dos mais moderados — que votaram os créditos a favor
da guerra.
Os radicais são encabeçados na Rússia por Vladimir Ilich Ulianov (conhecido
pelo pseudônimo de Lênin [1870-1924]) e na Alemanha por Rosa
Luxemburgo (1870-1919).

A vergonha “esquecida” da socialdemocracia

O assassinato de Rosa Luxemburgo provavelmente seja uma das tragédias


mais desonrosas e ―esquecidas‖ que sofreu a tradição socialista ao longo de
toda sua história (comparável apenas ao assassinato de Trotsky em 1940 por
Ramón Mercader, enviado de Stálin).

A intelectual judia polaca Rosa Luxemburgo teve uma formação científica e


teórica de alto nível, ao ponto de ter feito correções matemáticas nas
fórmulas econômicas do segundo tomo de O Capital de Marx (um dos mais
complexos de todos os seus escritos).

Na Alemanha, Luxemburgo foi a principal dirigente da Liga Spartaquista


(célula inicial do que, mais tarde, seria o Partido Comunista Alemão, que
adotou esse nome em homenagem à insurreição dos escravos da
antiguidade). Junto a Luxemburgo, na Liga Spartaquista militaram Karl
16
Liebknecht (1871-1919), Franz Mehring (1846-1919) e Clara Zetkin (1857-
1933).

O 9 de novembro de 1918 (um ano depois da revolução bolchevique na


Rússia) cteve início a revolução alemã. Depois de uma greve geral, os
trabalhadores insurretos — dirigidos por Rosa Luxemburgo — proclamaram
a República e constituíram os conselhos revolucionários de operários e
soldados. Enquanto Kautsky e outros socialistas se mostravam vacilantes, o
grupo majoritário do socialismo alemão (comandado por Friedrich Ebert
[1870-1925] e Philipp Schleidemann [1865-1939]) enfrentou com veemência
e de forma impiedosa aos revolucionários.

Tanto é que Gustav Noske (1868-1947), membro do grupo socialista


majoritário, asumiu o cargo de Ministro de Guerra. Desse posto e com ajuda
dos oficiais do antigo regime alemão, organizou a repressão aos
espartaquistas insurretos. Enquanto isso, o diário socialdemocrata Vorwarts
[Avante] publicava avisos conclamando aos Freikorps — ―corpos livres‖,
nome dos comandos terroristas de direita — que combatessem os
espartaquistas, oferecendo-lhes ―salário mínimo, teto, comida e cinco marcos
extras‖.

Em 15 de janeiro de 1919, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo foram


capturados em Berlim pela enfurecida tropa de soldados. Horas mais tarde,
foram selvagemente assassinados. Pouco depois, Leo Jogiches (1867-1919,
que também utilizava os pseudônimos de León Grozowski, Jan Teszka ou J.
Kresztalowicz), companheiro de amor e militância de Rosa Luxemburgo
durante muitos anos, foi igualmente assassinado. O corpo de Rosa, já sem
vida, foi jogado em um rio pelos covardes militares.

A responsabilidade política que o socialismo reformista e gradualista teve


com o miserável assassinato de Rosa Luxemburgo e seus companheiros já
não mais se discute. Esse ato de barbárie ficou marcado como uma
vergonha moral no interior desta tradição e dificilmente se apagará com o
tempo.

O marxismo revolucionário: ou tudo ou nada, sacodindo a história e


abalando o tempo

Outro líder do socialismo radical, que se assume como tal logo após a
dissensão formada por causa da primeira guerra mundial, é Lênin. Será ele
que, em 1917, encarregar-se-á, na Rússia, de ―tomar os céus de assalto‖ (a
expressão pertence a uma carta que Karl Marx escreveu, em 1871, a seu
amigo Kugelmann, sobre a insurreição da Comuna de Paris. Lênin sempre
festejou essa expressão de Marx, pois encontrava nela o coração do
marxismo revolucionário).

Em outubro de 1917, realizou-se a Revolução Russa, que abalou os tempos,


sacudiu a história e abriu todo um arco de possibilidades para a rebelião
mundial dos explorados e subjugados. Depois de séculos e séculos baixando

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a cabeça e obedecendo, as classes subalternas se puseram de pé, ficando
cara a cara com os exploradores, enfrentando-os e conquistando a vitória.

As consequências da Revolução Russa marcarão a ferro e fogo todo o século


XX. Ao mesmo tempo, além de retomar o impulso revolucionário de Marx,
com Lênin o socialismo deixava de ser uma doutrina exclusivamente
europeia para começar a universalizar-se realmente, superando seu
eurocentrismo inicial. A partir da análise acerca do ―problema colonial‖ e da
liderança exercida na Internacional Comunista ou Terceira Internacional
(fundada, em 1919, por Lênin, acompanhado de Trotsky), o socialismo
marxista radical se difunde rapidamente pela China, India, Indochina —
hoje Vietnam —, América do Sul e outros segmentos do globo terráqueo em
que, até então, não havia surgido um grande interesse pelo socialismo
europeu. As reivindicações e protestos dos povos oprimidos e subjugados da
Ásia, África e América Latina encontram no marxismo revolucionário de
Lênin e seus amigos o prisma através do qual se inspirarão as futuras
rebeliões.

Na China, o pensamento de Lênin será utilizado por Mao Tsé-Tung (também


chamado Mao Zedong [1893-1976]), que encabeça, em 1949, a revolução
naquele país. O mesmo sucederá no Vietnam, cujo principal líder, Ho Chi
Minh (seu verdadeiro nome era Nguyên That Thanh [1890-1969]), se declara
discípulo de Lênin. Ho Chi Minh dirigirá uma longa guerra de libertação.
Primeiro, contra o Japão, depois contra a França, e finalmente, contra os
Estados Unidos. Nessas guerras de libertação, o povo do Vietnam derrotou
as principais potências da Terra, infinitamente mais poderosas. Lênin foi a
grande inspiração.
Lênin não estava isolado na sua visão radical do socialismo. Dentro desse
mesmo horizonte de ideias esteve acompanhado, durante a primeira metade
do século XX, por León Bronstein (habitualmente conhecido pelo
pseudônimo de Trotsky [1879-1940]), a já mencionada Rosa Luxemburgo e
Antonio Gramsci (1891-1937), os representantes políticos mais notórios do
socialismo revolucionário. E será durante a segunda metade do século XX
que sua mensagem encontrará um porta-voz mundialmente reconhecido: o
argentino-cubano Ernesto ―Che‖ Guevara (1928-1967).

O socialismo marxista como ética revolucionária

Che Guevara, herdeiro do socialista peruano José Carlos Mariátegui (1894-


1930), principal marxista da América Latina, se converterá no símbolo
mundial do socialismo radical — ou comunismo revolucionário — e da
rebeldia internacional contra o sistema capitalista. Com a revolução cubana
de 1959, encabeçada por Fidel Castro (n.1926) e por Che Guevara, o
marxismo latino-americano retoma a perspectiva política revolucionária de
Lênin e Mariátegui, articulando-a com uma leitura humanista do socialismo.

Na singular interpretação marxista revolucionária de Che, esta ideologia se


entende não apenas como um programa de ação política e de transformações
econômicas, mas também — e principalmente — como uma ética vital.
Segundo suas próprias palavras: “Deixa-me dizer, sob risco de parecer
18
ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de
amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem esta
qualidade”. Seu chefe, companheiro e amigo, Fidel Castro, sintetizou o tema
da seguinte maneira: ―O verdadeiro revolucionário não pensa de que lado se
vive melhor, mas de que lado está o dever‖.

Em sintonia com esta concepção ética e humanista do socialismo, Che


Guevara sustentava que: ―a última e mais importante ambição revolucionária
é ver o homem libertado de sua alienação‖. Em outra oportunidade,
despedindo-se de seus filhos, disse que: ―Estejam certos de que a Revolução é
o que há de mais importante e que cada um de nós, sozinho, não vale nada.
Sobretudo, sejam sempre capazes de sentir, no mais fundo de si, qualquer
injustiça cometida contra qualquer um em qualquer parte do mundo. Esta é a
qualidade mais linda de um revolucionário”.

Guevara se apoiava numa detalhada leitura dos textos científicos do


marxismo: estudou durante anos, junto com Fidel Castro e outros
companheiros, O Capital e produziu vários escritos sobre este tema,
incluindo uma extensa crítica ao Manual de Economia Política da União
Soviética. Ao mesmo tempo, Che reatualizou, dentro do socialismo, o velho
anseio utópico de um igualitarismo radical (presente nos ―autênticos
niveladores‖, liderados na Inglaterra por Gerard Winstanley ou na
―conspiração dos iguais‖, dirigida na França por Graco Babeuf). Todo o
movimento estudantil de 1968 (desde Berkeley nos EUA, Trento na Italia,
Paris na França, Berlim na Alemanha, até o México) o adotou como guia. O
mesmo fizeram as revoluções do Terceiro Mundo: Vietnam, Argélia e todo o
movimento guerrilheiro latino-americano. Nos EUA, os Panteras Negras
seguiram esse mesmo caminho.

Dos anos 60 até hoje, esse componente utópico de libertação radical e


igualitarismo intransigente o transformaram em um autêntico paradigma,
aos olhos de toda a nova esquerda mundial e, principalmente, da juventude.

Naquele tempo, quando Fidel e Che encabeçaram a revolução cubana, a


União Soviética já se havia se burocratizado. Após a morte de Lênin (1924), a
burocratização terminou carcomendo por dentro a revolução e seu projeto
emancipador. Esse processo alcançou seu ápice durante o apogeu de Stálin
(1879-1953). Renunciando à perspectiva internacionalista, Stálin (seu
verdadeiro nome era José Vissarionovich Dzugashvili) promoveu a
dissolução, em 1943, da III Internacional — Trotsky fundara, numa
dissidência, a IV Internacional em 1938 — enquanto buscava consolidar seu
singular modelo de ―socialismo em um só país‖.

Bastante afastado do projeto original de Lênin, este modelo se consolidou


sobre a base de um forte autoritarismo (em virtude do que muitos
revolucionários foram assassinados) e de uma hierarquia exacerbada (que
gerou um importante descontentamento e uma apatia na classe
trabalhadora russa, ao ponto de que, quando, em 1991, se derrubou a
URSS, ninguém moveu um dedo para defendê-la ou preservá-la).

19
Após a morte de Stálin (1953), nas décadas seguintes seus continuadores à
frente da URSS não fizeram mais do que prolongar esse mesmo caminho.
Por essa época, a União Soviética e sua versão burocrática de ―socialismo
real‖ deixaram de atrair e seduzir a juventude rebelde e os trabalhadores
revolucionários do mundo.

Diante desse panorama sombrio, a mensagem radical de Guevara, inspirada


na revolução cubana que dirigiu junto com Fidel Castro, se converteu
rapidamente num paradigma e num exemplo alternativo de caráter mundial
frente aos ―socialismos reais‖ europeus, os quais foram derrubados com o
muro de Berlim (principalmente o da URSS, mas também o da Alemanha
Oriental, Tchecoslováquia, Polônia, Romênia, etc., etc,). Assim interpretam
os jovens da América Latina, da Europa e de outros continentes que hoje
clamam que ―outro mundo é possível‖. Não é casual que a imagen de Che
apareça nos idiomas mais diversos, nos países mais remotos e em todo tipo
de protesto contra o capitalismo de nossos dias.

Orfandade política e sedução acadêmica

A outra vertente do socialismo, gradualista e moderada, não conta, em suas


fileiras, com um pensador político da estatura de Lênin ou de Gramsci,
tampouco com uma figura sedutora análoga à de Che Guevara.

O principal teórico desta tradição foi, sem dúvida, Eduard Bernstein.


Rompendo amarras com o radicalismo de Marx, mas conservando a
perspectiva coletivista, Bernstein propôs, em fins do século XIX, extirpar do
socialismo toda referência à filosofia de Hegel. Segundo sua ótica, na filosofia
dialética de Hegel (que Marx encampou, conjugando-a a outras tradições e
disciplinas) se encontrava a base teórica do radicalismo político. Em seu
lugar, Bernstein propôs uma nova síntese fiosófica entre Marx e Immanuel
Kant (1724-1804). Desta forma, pensava Bernstein, estaria garantido
transformar o socialismo tão somente num ideal ético de longa duração (o
―programa máximo‖, segundo o jargão da época), evitando toda tentativa de
conduzi-lo à prática mediante ações revolucionárias.

Polemizando com Bernstein, Kautsky propôs substituir Kant por ... Charles
Robert Darwin (1809-1882). Deste modo, propunha construir, em nome de
Marx, um socialismo evolucionista que, politicamente, não diferia muito do
de Bernstein. O experimento teórico de Bernstein, qualificado em seu tempo
como ―revisionista‖ (porque visava revisar os fundamentos do socialismo
marxista) não teve continuação teórica de idêntico teor e solidez ao longo de
todo o século XX.

Do triunfo da revolução bolchevique de 1917 em diante, a corrente política


de Bernstein e Kautsky, que procurava promover uma transição gradual e
desacelerada ao socialismo, começou a autobatizar-se de ―socialista
democrática‖ (apesar de que, na Alemanha, por exemplo, foi precisamente o
autobatizado ―socialismo democrático‖ que, em nome da ―democracia‖,
assassinou Rosa Luxemburgo...). Assim marcou sua férrea oposição ao
socialismo revolucionário. Tal oposição chegou ao seu limite extremo
20
durante a revolução alemã de 1918-1919, com a brutal execução dos
espartaquistas.

Apesar da séria limitação, que implicou em não contar com herdeiros do


mesmo calibre intelectual que Bernstein ou Kautsky, esta corrente ainda
conseguiu seduzir alguns intelectuais acadêmicos. O mais famoso deles —
de renome mundial — foi Albert Einstein (1879-1955), fundador da física
relativista. Einstein encontrou no socialismo reformista um ideal ético
compatível com sua fé judia pacifista e humanista. Este pacifismo o
conduziu a se opor, junto com o filósofo liberal inglês Bertrand Arthur
William Russell (1872-1970), à corrida armamentista dos Estados Unidos.

Entre os políticos mais notórios do século XX que aderiram ao socialismo


reformista, cabe mencionar o chanceler alemão Herbert Ernst Karl Frahm
(conhecido habitualmente pelo pseudônimo de Willy Brandt [1913-1992]) e o
sueco Olof Palme (1927-1986). Este último, apesar de ser reformista,
apresentou uma perspectiva mais aberta ao Terceiro Mundo e mais
progressista do que a de Willy Brandt, mantendo, inclusive, uma atitude de
simpatia pelo Vietnam na guerra que este país enfrentou contra os Estados
Unidos.

Talvez a única figura emblemática que a vertente moderada tenha logrado


integrar em sua constelação ideológica, com um status ético em alguma
medida comparável à de Che Guevara, tenha sido o presidente chileno
Salvador Allende (1908-1973). Allende foi eleito presidente do Chile, sob a
forma constitucional e de acordo com as leis burguesas, em 1970. Três anos
mais tarde, em setembro de 1973, diante da sua negativa em ceder às
pressões do Exército e das empresas norte-americanas, foi derrubado e
assassinado pelo general Pinochet (assessorado pela CIA). Essa experiência
frustrada — e a atitude inquebrantável que nela jogou Allende em defesa da
legalidade até seu último alento — alcançaram grande repercussão na
América Latina e na Europa.

Um debate em aberto

Após anos de disputas e polêmicas, ambas as vertentes socialistas — a


gradualista e a revolucionária — voltam-se a entrecruzar (junto com a
tradição anarquista libertária, o ecologismo, o feminismo, o cristianismo de
libertação e outras correntes críticas do neoliberalismo) no atual movimento
de resistência global contra o capitalismo. Um movimento que nasceu em
1996, a partir de um chamado internacional dos zapatistas de Chiapas e que
logo se consolidou com a rebelião de Seattle (EUA, 1999).

Daquele momento até hoje [2007], cresce a rebelião dos povos. O


neoliberalismo entra em crise e voltam a se instalar os grandes debates
sobre o socialismo. Como será o socialismo do século XXI e quais formas
futuras assumirá este ―movimento mundial de movimentos‖ (que reclama
por ―outro mundo possível‖) é parte de uma história aberta cujas melhores
páginas ainda não foram escritas. O desenlace desse final em aberto não é
alheio à nossa participação.
21
Breve cronologia da história política do socialismo
1780: Insurreição indígena americana encabeçada por José Gabriel Túpac
Amaru.
1789: Revolução Francesa (a mais radical das revoluções burguesas
europeias).
1794: Insurreição dos escravos negros no Haiti (domínio colonial francês).
1804: Independência do Haiti (primeira revolução americana que conquista
a independência nacional e a emancipação social num mesmo processo
ininterrupto).
1810: Começo do ciclo das revoluções americanas centradas na
independência nacional sem emancipação social. Os principais líderes são
José de San Martín e Simón Bolívar.
1818: Nasce Karl Marx na Alemanha.
1848: Insurreição europeia (pela primeira vez os trabalhadores lutam por
seus próprios interesses e com suas próprias bandeiras, de forma
independente da burguesia).
1864: Nasce a Associação Internacional dos Trabalhadores-AIT (nela
convivem os marxistas, os anarquistas, os republicanos radicais), conhecida
como Primeira Internacional.
1871: Comuna de Paris (primeira revolução proletária triunfante da idade
contemporânea. Os trabalhadores tomam o poder, mas são finalmente
derrotados de forma sangrenta).
1889: Nasce a II Internacional ou Internacional Socialista (de tendências
predominantemente moderadas).
1895: José Martí morre lutando pela independência de Cuba.
1898: - Intervenção estadunidense em Cuba na guerra contra a Espanha
(esta intervenção marca o início da primeira guerra imperialista moderna).
- O socialista argentino Juan B. Justo traduz o primeiro tomo de O Capital
de Marx para o castelhano.
1909: Início da ocupação dos mariners norte-americanos na Nicarágua (que
se estende até 1933).
1910: Início da revolução mexicana, de inspiração camponesa. Seus líderes
mais radicais foram Francisco Villa e Emiliano Zapata. Este último, em
1918, escreve uma carta ao general Amescua defendendo a revolução
socialista bolchevique e comparando-a com a revolução mexicana.
1914-1918: Primeira guerra mundial (durante esta guerra a Internacional
Socialista divide-se entre aqueles que a apoiam — os moderados — e os que
a rejeitam — os radicais).
1915: - Início da intervenção dos EUA na República Dominicana (que se
estende até 1926).
- Início da intervenção dos EUA no Haiti (que dura até 1934).
1917: Em outubro triunfa a revolução bolchevique na Rússia (primeira
revolução vitoriosa em nível mundial, na qual os trabalhadores,
diferentemente da Comuna de Paris, conseguem consolidar seu poder,
ganhar a guerra civil e rechaçar as intervenções estrangeiras. A revolução
bolchevique nasceu com o movimento operário internacional, como primeiro
elo da revolução mundial).
1919: Nasce a III Internacional ou Internacional Comunista (em seu
nascimento, tem como objetivo fundamental promover a revolução mundial).

22
1919: Com a derrota da insurreição alemã, são assassinados Rosa
Luxemburgo e seu companheiro de luta Karl Liebknecht. A responsabilidade
política destes assassinatos corre por conta da socialdemocracia moderada.
1922: - Após a derrota dos levantes operários revolucionários em Turim, o
fascismo ascende na Itália (com Benito Mussolini à frente).
- É fundado no Brasil, em 25 de março, em Niterói, o Partido Comunista
(PCB – na época, Seção Brasileira da III Internacional).
1924: Morte de Lênin.
1926: - Antonio Gramsci, o principal dirigente do comunismo italiano, é
encarcerado por Benito Mussolini.
- O general Augusto César Sandino começa a guerra de libertação contra a
invasão norte-americana na Nicarágua (que dura até 1933, quando então se
retiram os mariners ianquis. Entre os principais ajudantes de Sandino se
encontra Farabundo Martí, líder do comunismo salvadorenho).
1927-1936: Ascensão e consolidação de Stálin à frente do Partido
Comunista da União Soviética (PCUS) e da Internacional Comunista.
1929: - No México, onde estava exilado, dois jagunços a serviço do ditador
cubano Machado assassinam Julio Antonio Mella, um dos fundadores do
marxismo latino-americano.
- Em Buenos Aires se reúne a primeira conferência comunista sulamericana,
com predomínio ideológico de Victorio Codovilla (representante latino-
americano do stalinismo e duro oponente de José Carlos Mariátegui).
1930: No Peru, morre José Carlos Mariátegui, o principal teórico do
marxismo latino-americano (antes de Che Guevara).
1932: Em El Salvador, o Partido Comunista, liderado por Agustín
Farabundo Martí, encabeça uma insurreição radical, que é derrotada. Em
apenas um mês, a burguesia e o exército salvadorenho assassinam 30.000
camponeses.
1933: Ascensão do nazismo na Alemanha (com Adolfo Hitler à frente).
1935: No Brasil, Luís Carlos Prestes, com ajuda da Internacional
Comunista, lidera uma revolta nacionalista que é derrotada. Os líderes são
torturados. Olga Benário, companheira de Prestes, judia e comunista, é
deportada para a Alemanha nazista.
1936: - Início do levante fascista do general Francisco Franco contra a
república espanhola.
- Julgamentos de Moscou, por meio dos quais os principais dirigentes da
revolução bolchevique de 1917 são executados a mando de Stálin.
1938: É fundada a IV Internacional, de inspiração trotskista.
1939-1945: Segunda guerra mundial. Os nazistas promovem um genocídio
brutal. São assassinados milhões de judeus, ciganos, homossexuais,
socialistas e comunistas.
1940: Ramón Mercader, um agente secreto enviado por Stálin, assassina
León Trotsky no México.
1943: Stálin dissolve a Internacional Comunista ou III Internacional, para
garantir a convivência pacífica com as potências capitalistas do Ocidente.
1945: Independência do Vietnam após a rendição do Japão. Proclamação da
República Democrática do Vietnam. Ho Chi Minh é proclamado presidente.
1946: Começa a guerra colonial da França contra o Vietnam, concluída em
1954, com a vitória vietnamita na batalha de Dien Bien Phu.

23
1947-1950: Apogeu, nos Estados Unidos, da política anticomunista
propagada pelo senador Joseph Raymond McCarthy, difusor da ideologia
denominada ―macartista‖. Para o macartismo, as ideias do socialismo e do
comunismo deveriam ser ferozmente perseguidas e reprimidas. Desde então,
o macartismo se instala como cultura política oficial nos EUA e é exportado
para diversos países latino-americanos que sofrem influência norte-
americana.
1949: Revolução radical na China, liderada por Mao Tsé-Tung.
1950-1953: Intervenção norte-americana na guerra contra a República
Democrática da Coreia, liderada por Kim Il Sung.
1953: Em 26 de julho, Fidel Castro e um grupo de jovens cubanos tentam
tomar de assalto o quartel militar Moncada. Com esse gesto, começa a entrar
em crise a passividade da esquerda tradicional na América Latina e o
predomínio do stalinismo.
1954: Intervenção estadunidense, através de tropas mercenárias, na
Guatemala.
1956: A URSS invade a Hungria.
1959: Triunfa a Revolução Cubana liderada por Fidel Castro e Ernesto Che
Guevara. Abre-se, em todo o continente, um período de ofensiva
revolucionária.
1961: As tropas lideradas por Fidel Castro derrotam, em Playa Girón, a
invasão mercenária treinada e enviada pelos Estados Unidos. Primeira
derrota dos EUA no hemisfério ocidental. Fidel Castro proclama
publicamente o caráter socialista da revolução cubana.
1962: - Independência da Argélia do domínio francês, após longa luta em
que os franceses torturam e assassinam à mão cheia.
- Crise entre a URSS e os EUA por causa dos mísseis soviéticos em Cuba. A
URSS os retira unilateralmente, sem consultar os cubanos.
1964: Ruptura definitiva entre o Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) e o Partido Comunista da China (PCCH).
1965: - Nova ocupação norte-americana em São Domingo (República
Dominicana).
- O governo dos EUA adota oficialmente a doutrina militar de ―Segurança
Nacional‖, também chamada de ―Guerra Contrainsurgente‖, com o objetivo
de combater, na América Latina, as ideias socialistas e comunistas. Com
esta doutrina, se generaliza a tortura de todo opositor e se multiplicam os
golpes de Estado no continente, estimulados, financiados e treinados pelos
EUA.
1966: Reúne-se, em Havana, a Conferência Tricontinental, com
representantes da Ásia, África e América Latina (discutem-se as vias para o
socialismo em nível mundial).
1967: - Reúne-se a Organização Latino-americana de Solidaridade (OLAS)
em Havana (onde Fidel Castro e seus companheiros de todo o continente
proclamam uma estratégia comum de revolução socialista em escala
continental).
- Che Guevara cai assassinado na Bolívia.
1964: Golpe de Estado liderado por militares e pela grande burguesia
monopolista no Brasil, derrubando o governo populista de João Goulart e
interrompendo a ascensão do movimento operário e de massas no país.

24
1968: - Grandes protestos juvenis e estudantis nas principais capitais do
mundo. O mais famoso explode em Paris, o mais radical, em Berlim
ocidental. Estas são as primeiras grandes revoltas de massa depois da
derrota insurreccional dos anos 1920 e das convulsões da segunda guerra
mundial. É o auge das ideias socialistas radicais no meio da juventude em
nível mundial. No México, 400 jovens estudantes (acompanhados de velhos
militantes de esquerda) são massacrados en uma mesma noite.
- Após ondas de protestos contra o assassinato do estudante Édson Luís no
Rio de Janeiro, a ditadura brasileira adota, com o Ato Institucional nº 5, o
terror como política de Estado, fechando o Congresso e mandando prender,
torturar e matar militantes socialistas, comunistas e democratas.
- A URSS invade a Tchecoslováquia.
1970: Depois de vencer as eleições, ascende ao governo o presidente
socialista chileno Salvador Allende. Tem início a primeira tentativa de
realizar uma ―transição pacífica‖ ao socialismo.
1973: Golpe de Estado impulsionado pelos EUA no Chile. O general Pinochet
derruba o governo socialista de Salvador Allende. Fracassa a ―transição
pacífica‖. Milhares de mortos e torturados. Começa o neoliberalismo em nível
mundial, movido pelo punho de aço de uma sangrenta ditadura militar. O
capitalismo começa a retomar a ofensiva contra o socialismo, a qual vinha
perdendo desde 1917.
1975: Derrota definitiva das tropas norte-americanas no Vietnam. Fim da
guerra. Unificação do Vietnam e adoção de um governo socialista para todo o
país.
1976: Golpe de Estado na Argentina. Seus principais militares foram
treinados em escolas norte-americanas. É proclamada a ―Doutrina de
Segurança Nacional‖ (de origem estadunidense) como doutrina oficial
argentina, a exemplo do que também se deu no Brasil, com o golpe de 1964.
Os socialistas e comunistas são declarados ―inimigos da pátria‖. Em pouco
tempo, são sequestradas e assassinadas 30.000 pessoas. O país inteiro é
arrasado.
1979: - Margaret Thatcher assume o poder na Inglaterra. O neoliberalismo
chega à Europa pelas mãos do conservadorismo.
- Na Nicarágua triunfa a Revolução sandinista, encabeçada pela Frente
Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), organização de inspiração
marxista que anos mais tarde se filiará à Internacional Socialista
(moderada).
1980: Ronald Reagan assume o governo dos EUA. O neoliberalismo chega
aos EUA pelas mãos do neomacartismo. Tem início a intervenção militar
estadunidense, em nível massivo e regional, em toda a América Central.
1983: Invasão estadunidense de Granada.
1986: Assassinato do líder socialista pacifista sueco Olof Palme.
1989: - Cai o Muro de Berlim e começam a ser derrubadas, sem pena nem
glória, as sociedades burocráticas do Leste Europeu. As ideias do socialismo
sofrem um descrédito em nivel mundial. Os funcionários e filósofos norte-
americanos proclamam, entusiasmados … ―o fim da História‖.
- Invasão estadunidense do Panamá.
1991: Dissolução da União Soviética (nascida en 1922, nos tempos de
Lênin).

25
1994: Levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em
Chiapas, México.
1996: Reúne-se, em Chiapas, o Primeiro Encontro Intercontinental pela
Humanidade e contra o Neoliberalismo. Nasce, sob iniciativa latino-
americana, o ―movimento mundial de movimentos‖ contra a globalização
capitalista.
1997: Reúne-se, em Barcelona, o Segundo Encontro Intercontinental pela
Humanidade e contra o Neoliberalismo.
1998: Realiza-se, em Genebra, Suiça, a Primeira Conferência Mundial de
Ação Global dos Povos. Nesse mesmo ano, Hugo Chávez ganha, por ampla
maioria, as eleções na Venezuela, iniciando a revolução bolivariana, aliada
da revolução cubana.
1999: - Realiza-se, em Zurique, um Encontro Internacional intitulado ―Outro
Davos‖, em oposição ao Fórum Econômico Mundial reunido em Davos.
- Encontro Internacional reunido en Paris sob o lema ―Outro mundo é
possível‖.
- Rebelião generalizada em Seattle, EUA. Primeira rebelião generalizada no
centro mundial do capitalismo, depois de quase trinta anos (1968).
- A crítica ao capitalismo e as ideas do socialismo voltam ao primeiro plano
da agenda mundial.
- Em uma enquete mundial da BBC de Londres, Kart Marx é eleito ―o maior
pensador do milênio‖.

2001: - Realiza-se, em Porto Alegre, o Primeiro Fórum Social Mundial, com


representantes dos cinco continentes, incluindo numerosas delegações dos
EUA e da Europa Ocidental.
- Na Argentina, uma rebelião popular de massas derruba o governo
neoliberal.
- Em uma nova enquete internacional da BBC de Londres, Marx é
novamente eleito ―o maior pensador do milênio‖.
2002: - Realiza-se, em Porto Alegre, o Segundo Fórum Social Mundial.
- Na Venezuela, a CIA dos EUA organiza, financia e impulsiona um golpe de
Estado contra Hugo Chávez, fracassado em virtude do aplastante apoio
popular ao processo bolivariano.
2003: Realiza-se, em Porto Alegre, o Terceiro Fórum Social Mundial. Várias
organizações lançam a consigna: ―Outro mundo é possível … com a revolução
socialista‖.
2005-2006: Evo Morales ganha as eleções na Bolívia e se converte no
primeiro presidente indígena desse país. Cuba e Venezuela conseguem
aglutinar um novo aliado na luta latino-americana contra a prepotência
mundial dos EUA e o neoliberalismo.

26
Dicionário básico de categorias marxistas
Néstor Kohan

NOTA INTRODUTÓRIA

Devido a que o pensamento de Karl Marx constitui uma obra aberta, o


marxismo integra diversas tradições ideológicas, filosóficas e políticas. Não
existem definições únicas e taxativas, como erroneamente afirmavam os
antigos manuais soviéticos de divulgação (ou outros similares inspirados
neles). Cada tradição marxista reinterpreta o legado de Marx e suas
categorias de diverso modo. Há muitas maneiras possíveis de
compreender este pensamento. Obviamente, não somos exceção.
Expressamos, apenas, uma aproximação possível ao marxismo. Existem
outras.

* Acumulação: Reinversão do mais-valor no processo produtivo, com


aumento da escala de produção. Caracteriza-se pela centralização dos
capitais e pela concentração do mais-valor. A acumulação é uma reprodução
ampliada do capital.

* Alienação: Processo histórico-social no qual o produto do trabalho


humano torna-se independente, se autonomiza, escapando ao controle
racional e virando-se contra seu criador. Apesar de, etimologicamente,
―alienação‖ possuir uma origem psicológica, Marx utilizou o termo também
no seu aspecto econômico, ao se referir à alienação no trabalho e suas
consequências no cotidiano das pessoas. Marx também observou a alienação
da sociedade burguesa – o fetichismo (ver adiante). Hegel define ―alienação‖
como ―o outro distinto de si mesmo‖. Em Hegel, seu conteúdo não é negativo.
Em Marx, sim. Expressa o estranhamento, a separação e a fragmentação do
ser humano. Algo está alienado quando já não mais nos pertence.

* Bonapartismo: Categoria política empregada por Marx a partir do exemplo


histórico de Luís Bonaparte, que encabeçou um golpe de Estado na França
em 1851. Faz referência a um tipo de lidenaça política que aparenta ser
―equidistante‖ na luta de classes. É uma forma de dominação política na
qual o exército, a burocracia e o Estado — durante uma crise aguda — se
tornam parcialmente independentes da burguesia. Esta se separa dos
partidos políticos tradicionais e passa a ser representada pelo exército ou
por algum líder carismático. Para Marx, o conceito possui um conteúdo
negativo.

* Burguesia: Classe social que agrupa inicialmente mercaderes e banqueiros


e, mais tarde, capitalistas industriais. Nasce na Europa Ocidental no século
XI, desde quando começa a expandir-se. Alcança seu predomínio econômico
a partir da revolução industrial na Inglaterra e sua completa dominação
política da revolução francesa de 1789 em diante.

1
* Capital: Não é uma coisa eterna, nem um ―fator econômico‖. Nem sempre
existiu, é resultado do processo histórico. É uma relação social de produção.
É valor que se valoriza (se acrescenta) explorando trabalho alheio. É dinheiro
que se autonomiza, ganha vida própria e se torna um sujeito autônomo,
exercendo seu poder de mando sobre os trabalhadores. É trabalho morto e
pretérito que volta à vida oprimindo o trabalho vivo da classe trabalhadora.
É um vampiro monstruoso que se alimenta de mais-valor.

* Capitalismo: Sistema social de exploração e dominação. Tem alcance


mundial e está em permanente expansão. Vive conquistando territórios
sociais e geográficos. Cobre uma longa fase histórica.

* Classes sociais: Grandes conjuntos de seres humanos que compartilham


um mesmo modo de vida e uma mesma condição de existência. Diferenciam-
se, enfrentam-se entre si, constroem sua própria identidadee social e se
definem tanto pela propriedade ou não dos meios de produção, como pelos
seus interesses, sua cultura política, sua experiência de luta, suas tradições
e sua consciência de classe (de si mesmos e de seus inimigos). As classes
exploradoras vivem às custas das classes exploradas, as dominan e as
oprimem, por isso vivem em luta e conflito permanente ao longo da história.

* Colonialismo: Fase histórica de expansão mundial do capital mercantil,


em que as grandes metrópoles conquistam territórios a que denominam
colônias. Na fase do imperialismo, o neocolonialismo mantém esse domínio,
aceitando apenas a independência formal das colônias.

* Comunismo: Corrente política revolucionária que luta para transformar


todo o mundo. Marx não a inventa. Na década de 1840 — quando ele passa
a conhecer e a se identificar com o comunismo — o movimento evocava a
ideia da comuna, unidade de governo autônomo. Sugeria a noção de
comunidade, propriedade comum de todas as coisas. Como então se
chamava de ―socialistas‖ as teorias dos intelectuais e de ―comunistas‖ as dos
grupos de operários revolucionários, Marx e Engels adotaram este último
termo. Enquanto movimento político, para Marx o comunismo é uma
corrente que busca defender o ponto de vista crítico radical dos
trabalhadores contra el capitalismo. Como projeto de nova sociedade, Marx
o define como uma forma social sem exploração nem dominação, onde os
produtores livremente associados — sem a violência do Estado — decidem o
que, como, quanto e para que produzir e consumir. Segundo Marx, na
sociedade comunista do futuro, cada indivíduo será complemente livre e
deverá entregar à sociedade tudo o que suas capacidades permitam. Em
troca, obterá tudo do que necessita.

* Concepções de mundo: Não existe uma, mas muitas. Constituem visões


integrais do ser humano, que pressupõem um ponto de vista totalizante
sobre a sociedade, a história e o sentido da vida. Cada uma delas forma um
conjunto articulado, sistemático, crítico e coerente de ideias, conceitos,
valores e normas de conduta prática que nos guiam em nossa vida cotidiana.

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* Concepção materialista da história: Nova concepção inaugurada por
Marx e Engels. Base da necessária e ainda pendente (re)unificação de todas
as ciências sociais. Sua ideia central é que toda a história não é mais que a
história da luta de classes. Não há evolução automática. A chave da história
está no conflito, nas rebeliões e nas revoluções. Para diferenciar uma época
de outra, há que apreender o tipo de relações sociais que predomina em
cada período. O ―materialismo‖ desta concepção remete à centralidade das
relações sociais, por contraposição ao ―Espírito universal‖ da filosofia da
história de Hegel. Para Marx, não há instituições eternas. Todas são
históricas. A sociedade constitui uma totalidade de relações de produção e
reprodução, materiais e ideológicas. Enquanto totalidade, a sociedade não é
um somatório mecânico de parcelas soltas ou fatores justapostos: o ―fator‖
econômico, o ―fator‖ político e o ―fator‖ ideológico. A teoria dos ―fatores‖ é
estranha ao marxismo.

* Consciência de classe: Identidade cultural e compreensão política,


pensada, vivida e sentida por cada grupo social sobre seus interesses
estratégicos a longo plazo. Não se adquire nem se logra por decreto, mas a
partir de experiências históricas, tradições e lutas políticas. Nunca está
dada, jamais existe previamente: vai sendo construída a partir dos conflitos.
Na maioria das vezes, é gerada a saltos. Quando a conquista, a classe
trabalhadora pode passar da necessidade econômica à vontade política. A
consciência de classe é parte integrante da luta de classes. Começar a
construí-la é começar a ganhar a luta.

* Contradição: Categoria fundamental da lógica dialética. Seu extremo


oposto é a identidade. Algo é idêntico quando não se pode distinguir uma
diferença. Se existem distinções, a identidade se transforma em diferença.
Se a diferença se aprofunda, há contrariedade e contraposição. Se a
oposição se agudiza, a contrariedade se transforma em contradição. Nesse
caso, os polos opostos já não são apenas diferentes, mas contraditórios e
antagônicos (não podem se conciliar). Exemplos: a relação social do ―capital‖
encerra a contradição antagônica entre empresários e trabalhadores. A crise
do capitalismo constitui a exposição de múltiplas contradições antagônicas.
A mudança e o movimento da história são produtos dessas contradições.

* Crise orgânica: Crise estrutural de longa duração — distinta de qualquer


crise de conjuntura. Combinação explosiva da crise econômica com a crise
política. Debilitamento de todo um regime político. Perda do exercício do
consenso e da autoridade sobre a população por parte do conjunto da classe
dominante e de suas instituições políticas.

* Determinismo: Corrente de pensamento que confere às regularidades da


sociedade um caráter inelutável, necessário e apodítico (que não admite
dúvidas). Tende a assimilar as leis históricas com as leis naturais. Interpreta
as leis estudadas por O Capital — leis tendenciais — como se fossem ―leis de
ferro‖, que se cumprem sempre, independentemente da luta de classes.

* Dialética: O pensamento dialético está presente em diversas culturas


(China, Índia, Pérsia, Mesopotâmia, Egito, Astecas, Maias, Incas, etc.), desde
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as origens da humanidade. Na Grécia, nasce com o filósofo Heráclito de
Éfeso [540-480 a.C.]. Para ele, o universo está em permanente contradição e
devir (num eterno vir-a-ser). Segundo Marx, a dialética afirma a unidade
inseparável entre a realidadee objetiva e o sujeito que pensa e atua sobre
essa realidadee. Não se pode separa a teoria da prática, o dizer do fazer, a
realidadee do pensamento, o objeto do sujeito, nem o conhecimento da ação.
A dialética de Marx é crítica e revolucionária porque considera e aborda toda
realidadee como histórica e transitória. Não se ajoelha diante de qualquer
instituição nem teme o antagonismo da contradição.

* Dinheiro: Não é uma coisa nem um objeto ―mágico‖. Constitui uma relação
social de produção. Representa o equivalente geral tomado como referência
pela totalidade das mercadorias. Como equivalente, o dinheiro se descola da
relação social de valor e se torna autônomo. Converte-se em um sujeito
dotado de vida própria. Transforma-se em um fetiche. Seu poder não é mais
que o poder social das classes proprietárias. Seguindo W.Shakespeare, Marx
o define como ―a puta universal‖, porque o dinheiro não reconhece
diferenças. Tudo é a mesma coisa.

* Dogmatismo: Culto cego à obediência. Negação de todo pensamento


crítico. Canonização de um texto como se fosse ―sagrado‖. O dogmatismo
provocou um dano enorme ao marxismo.

* Dominação: Processo de sujeição e subordinação de uma classe social por


outra, exercido coletivamente e também no terreno da subjetividadee. A
dominação pressupõe relações de poder e exploração, de imposição da
vontade do opressor sobre os povos oprimidos, as classes exploradas e as
massas subjugadas.

* Ecologismo: Corrente político-ideológica que questiona as bases de


sustentação da moderna sociedade industrial, o esgotamento de suas fontes
energéticas, a destruição sistemática do meio ambiente e a irracionalidade
da relação com a natureza concebida como puramente instrumental. Como
movimento social, é muito heterogêneo. O marxismo faz seus os reclamos
ecologistas, integrando-os a uma perspectiva crítica mais ampla. Somente
será possível lograr uma nova maneira de se vincular à natureza quando se
puser fim — mediante uma revolução mundial — à lógica do lucro, do valor,
da ganância e da acumulação capitalista.

* Economicismo: Corrente política que reduz a luta popular unicamente às


reivindicações por reformas econômicas e proposições mínimas. Nutre
enorme desprezo por todo debate teórico e ideológico. Suspeita a priori de
toda atividade intelectual. Transforma o marxismo numa teoria vulgar, que
tudo reduz ao ―fator econômico‖. O economicismo tem feito grandes estragos
na tradição marxista.

* Estado: Não existe uma única definição. Para o liberalismo burguês, é ―a


nação juridicamente organizada‖. Sem distinções de classes, nos
representaria ―a todos por igual‖. Para o marxismo, é a cristalização
institucional de determinadas relações sociais de força: por isso defende uns
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contra outros e tem um conteúdo de classe. O exercício permanente do
poder de Estado (independente de quem seja o presidente e de qual partido
esteja no governo) tem um conteúdo de classe outorgado pelo setor social
que detém o poder. Não está sujeito a eleição, não se vota. A única maneira
de alterar o conteúdo de classe de um Estado é mediante uma revolução. O
poder de Estado vem acompanhado de instituições hegemónicas.

* Eurocentrismo: Ideologia que trata a história e a cultura da Europa


ocidental como se fossem o umbigo absoluto do mundo. Qualquer
desenvolvimento social ou cultural distinto ou coexistente ao europeu
ocidental — e ao de seu filho predileto, os Estados Unidos da América — é
catalogado por esta ideologia como ―barbárie‖. O eurocentrismo também
infringiu um grande dano à tradição marxista.

* Evolucionismo/etapismo: Em seu significado marxista (distinto ao de


Charles Darwin), faz referência a uma concepção de sociedade que postula a
férrea sucessão evolutiva de rígidas etapas, sem saltar nenhuma delas.
Também se conhece como etapismo. O evolucionismo está profundamente
associado à ideia de ―progresso‖. O desenvolvimento social é concebido como
linear, movendo-se sempre do pior ao melhor e numa só direção. A
concepção histórica de Marx não é evolucionista nem etapista.

* Exploração: Dominação de uma classe social sobre outra a partir da


apropriação do trabalho não pago, do tempo de trabalho excedente e do
mais-valor. No capitalismo, mesmo que a classe trabalhadora conquiste
salários ―altos‖, segue sendo explorada.

* Feminismo: Corrente político-ideológica que questiona radicalmente a


dominação da sociedade patriarcal, o machismo, a separação entre o público
e o privado e a construção histórica da subjetividade que fixa ―papéis‖
preestabelecidos segundo os gêneros. Como movimento social, caracteriza-se
por ser bastante heterogêneo. As vertentes feministas marxistas abordam, ao
mesmo tempo, a dominação patriarcal e a opressão da classe trabalhadora,
sem confundir uma com a outra, tampouco sem separar o gênero e a classe.

* Fetichismo: Processo derivado das relações sociais mercantis capitalistas.


É gerado a partir da sociabilidade indireta do trabalho humano, quando este
se produz na lógica do mercado. Se há fetichismo, não há controle racional
da produção nem planificação. O fetichismo gera a personificação das coisas
— que voltam-se, autônomas e hostis, contra seus criadores — e a
coisificação dos seres humanos.

* Filosofia: Disciplina milenar que se caracteriza por formular perguntas


críticas e radicais acerca do sentido da vida, do ser humano, da sociedade,
da história e do papel do sujeito nela. Marx produz, no seio desta disciplina,
uma revolução, ao clamar que rompa o círculo vicioso de seu discurso, para
ir além de si mesma: rumo à transformação da sociedade e da unidade com
a classe trabalhadora. A vitalidade da filosofia que rechaça toda
cumplicidade com o sistema não está nas lousas acadêmicas, mas nas ruas
e na luta de classes.
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* Filosofia clássica alemã: Tem início com Immanuel Kant [1724-1804],
continua com Johann Gottlieb Fichte [1762-1814] e Friedrich Wilhelm
Joseph von Schelling [1775-1854] e culmina com Georg Wilhelm Friedrich
Hegel [1770-1831]. A lógica dialética de Hegel — que concebe tudo em seu
perpétuo vir-a-ser e em constante contradição — constitui a máxima
expressão teórica da revolução burguesa europeia. Seus herdeiros não são
os tristes professores de filosofia que legitimam o poder, mas os
trabalhadores revolucionários.

* Filosofia da práxis: Concepção filosófica de Marx e de seus continuadores


mais radicais, que busca superar o ponto de vista contemplativo, tanto do
idealismo como do materialismo. Sua questão central reside na atividade
humana transformadora e na unidade da reflexão teórica com a prática
política radical.

* Fordismo: O termo ―fordismo‖ foi utilizado, na década de 1930, por


Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, para pensar o capitalismo
praticado nos Estados Unidos e suas diferenças em relação ao capitalismo
europeu. Nos anos de 1980, generalizou-se como modelo de gerenciamento
da produção a partir da corrente de sociologia francesa conhecida como
―teoria da regulação‖. Trata-se de um paradigma da relação entre
empresários e operários, típico do capitalismo posterior a 1929, impondo
alto grau de disciplina do trabalho, institucionalização das reivindicações
operárias, salários altos, produção em série, linha de montagem, que
corresponde ao sistema inaugurado com a empresa automobilística liderada
por Henry Ford (autor de O judeu internacional e muito admirado por Adolf
Hitler). Habitualmente, compara-se a empresa Ford (EUA) com a empresa
Toyota (Japão), que adaptou para a realidadee japonesa, após a Segunda
Guerra Mundial, as técnicas fordistas de organização e controle do trabalho
operário, com vistas à obtenção máxima de produtividade na empresa
capitalista.

* Formação econômico-social: O modo de produção capitalista nunca se


encontra em sua forma pura na sociedade. Está combinado com diversos
tipos de relações sociais. Essa combinação se denomina ―formação
econômico-social‖, termo que permite comprender aquilo que há de
específico e irrepetível em cada sociedade e o que existe de comum e genérico
em relação às demais sociedades. Este conceito permite articular o geral e o
particular do capitalismo, a lógica e a história, o gênero e a espécie, o
comum e o irrepetível.

* Força de trabalho: É o termo com que Marx designa a capacidade


humana de trabalhar (para diferenciar do ―trabalho‖ em si). No capitalismo,
é uma mercadoria muito ―especial‖. É a única que cria valor e que, ademais,
gera mais valor do que aquilo que ela mesma vale.

* Forças produtivas: Dimensão da história conformada pelos instrumentos


tecnológicos do trabalho, pelas destrezas laborais e, principalmente, pelo
sujeito social que exerce o trabalho sobre a natureza e a sociedade. Marx
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sempre as analisa em unidade com as relações sociais de produção; por isso,
não constituem uma variável independente.

* Globalização: Nova fase do imperialismo capitalista, caracterizada pela


universalização produtiva, mercantil e financeira, pela revolução tecnológica
e expansão das comunicações, fenômeno até agora dominado pelo capital.
Os trabalhadores e a juventude de todo o mundo lutam por uma
globalização das resistências anticapitalistas.

* Grande relato: A filosofia pós-moderna emprega a expressão ―grande


relato‖ (ou ―grande narrativa‖) para referir-se às teorias e concepções do
mundo com pretensões totalizantes. Estas teorias não se limitam a abordar
um pequeno fragmento da sociedade, mas se propõem a indagar sobre as
grandes questões do ser humano, da história e da vida coletiva. O marxismo,
a psicanálise e o cristianismo são exemplos de grandes relatos. A partir dos
anos ‗80, o pós-modernismo sustenta que estes grandes relatos haviam
―entrado em crise‖. Essa tese reatualizava os argumentos estadunidenses de
Daniel Bell: O fim da ideologia [1960], texto típico da guerra fria, que
decretava ―o declínio da política‖. Coroando o programa de Bell e a filosofia
pós-moderna, o funcionário do Departamento de Estado norte-americano
Francis Fukuyama publicou ―O fim da história‖ [1989]. Todas estas
correntes decretaram (várias vezes ...) a morte dos ―grandes relatos‖, das
―ideologias‖ e da ―história‖.

* Hegemonia: Processo de direção política e cultural de um segmento social


sobre outro. Generalização dos valores culturais próprios de uma classe para
o conjunto da sociedade. Hegemonia = cultura, agregando relações de
dominação e de poder. A hegemonia burguesa combina o consenso com os
setores aliados e a violência com os inimigos. Os trabalhadores lutam por
uma contra-hegemonia de caráter socialista.

* História: Processo contingente e aberto, resultado da práxis humana.


Mesmo que seja possível verificar regularidades na história — estudadas
pela concepção materialista da história — não há um final pronto e acabado,
nem uma direção unívoca determinada de antemão. Seu futuro depende do
resultado da luta de classes. Podemos caminhar rumo ao socialismo ou
continuar na barbárie. O marxismo busca analisar a história passada não
da perspectiva dos dominadores e vencedores, mas do ponto de vista dos ―de
baixo‖, destacando sempre a rebeldia dos povos submetidos e das classes
exploradas.

* Humanismo: Concepção que põe, no centro de suas reflexões, os seres


humanos (no lugar da natureza, de Deus, do mercado, do dinheiro ou do
capital). O marxismo é herdeiro dos antigos humanismos (por exemplo, o
grego ou o renascentista, no caso, europeu). Porém, para Marx, o sujeito não
é mais o burguês individual, mas um sujeito coletivo: os trabalhadores. Marx
diferencia o humanismo abstrato, que pressupõe um indivíduo alheio à
história, do humanismo revolucionário. Este tem, por objetivo, acabar com a
alineação e liberar o ser humano de seus produtos estranhados através da
práxis.
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* Idealismo: Antiga corrente filosófica. Não tem nada a ver com ―ter ideais‖.
O idealismo afirma que o fundamento último da realidadee é a ―Ideia‖,
―Deus‖ ou o ―Espírito‖. Em última instância, implica em uma visão
contemplativa do universo.

* Ideologia: No marxismo, ―ideologia‖ tem dois significados distintos: [1]


concepção do mundo que implica numa determinada perspectiva de vida
ligada aos intereses das classes sociais, uma escala de valores, junto com
normas de conduta prática. [2] Falsa consciência, obstáculo para o
conhecimento da verdade, erro sistemático, inversão da realidadee, por
compromissos com o poder estabelecido. O marxismo é uma concepção
ideológica de mundo vinculada aos intereses dos trabalhadores (significado
[1]), que questiona toda falsa consciência ideológica da burguesia (significado
[2]).

* Imperialismo: Fase do sistema mundial capitalista. Caracteriza-se por:


fusão dos capitais bancários e industriais, predomínio do capital financeiro,
partilha do mundo em áreas de influência, armamentismo, agressividade
política das grandes potências, generalização dos monopólios e da ameaça de
guerra permanente. Abrange longa fase histórica, da segunda metade do
século XIX aos dias atuais. A atual globalização capitalista é apenas a última
fase conhecida do imperialismo.

* Imanência: Categoria filosófica oposta à trascendência. A filosofia da


imanência nega que exista, na realidade social e na história, algo
trascendente, que tenha sentido além da vida. Portanto, remete todo sentido
a si mesma, desconhecendo qualquer tipo de exterioridade, seja ela religiosa
(Deus) ou política (o Estado). A realidade e a história humana se explicam do
seu próprio interior. A crítica da filosofia marxista da práxis ao materialismo
clássico e ao idealismo, os quais pressupõem a realidade (seja ela um objeto
ou um sujeito, conforme o olhar) à margem da história, recupera o ponto de
visra da filosofia da imanência.

* Liberdade: Possui distintos significados. Para o liberalismo burguês, ser


livre é o mesmo que possuir propriedade e não encontrar obstáculos ou
interferências para seu desfrute. Ser = ter. ―A liberdade chega até onde chega
a propriedade privada‖. Para Marx, ao contrário, a liberdade não pode
depender da propriedade privada. O ser humano é autenticamente livre
quando é genuinamente autônomo, quando não está forçado a vender-se
como uma mercadoria. O capitalismo anula a autonomia das pessoas para
outorgá-la ao mercado e às coisas, transformadas en sujeito (fetichismo). A
verdadeira liberdade só pode existir fora da coisificação, da necessidade
material, do ter e do trabalho forçado, no tempo livre, no ócio criador.
Segundo Marx, o comunismo é um projeto de sociedade em que a liberdade
de todos e todas é condição da liberdade de cada um. Ninguém pode ser
genuína e autenticamente livre quando a maioria precisa vender-se no
mercado para sobreviver.

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* Liberalismo: Corrente ideológica que acompanha a ascensão e o auge
político da burguesia até quando esta chega ao poder. Em seus princícios e
durante o apogeu do século XVIII europeu, caracteriza-se por combater a
reação absolutista, difundir o pensamento livre, promover a liberdade de
comércio e as liberdades públicas. Muda radicalmente quando a burguesia
chega ao poder e entram em cena a classe operária e o socialismo. Então,
torna-se reacionário. Hoje em dia, o neoliberalismo somente contém,
daquela ideologia, a defesa do livre comércio, tendo se tornado
absolutamente conservador, partidário de governos despóticos, opositor a
todo pensamento livre e inimigo das liberdadees públicas. Por isso promove o
controle e a vigilância permanente dos indivíduos.

* Luta de classes: Não é um enfrentamento entre indivíduos isolados (por


inimizades ou invejas pessoais). É um conflito histórico entre grandes
conjuntos de pessoas: as classes sociais. Esta confrontação divide a
sociedade em opressores e oprimidos: escravistas e escravos, patrícios e
plebeus, senhores feudais e servos da gleba, grandes proprietários e
camponeses, burgueses e trabalhadores. Esta contradição impulsiona o
desenvolvimento da história.

* Marxismo-marxiano-marxista: O marxismo é uma teoria crítica da


sociedade capitalista. Promove em todo o mundo uma prática política de
emancipação, rebeldia, resistência, libertação e revolução. Pressupõe uma
concepção de mundo e de vida, da história e do sujeito, que expressa o ponto
de vista das classes oprimidas e dos explorados. Como teoria crítica,
constitui um saber aberto. É científica, filosófica, ideológica, ética e política
ao mesmo tempo. O termo marxiano é mais ―técnico‖, referindo-se aos
textos escritos exclusivamente por Karl Marx. O termo marxista alude aos
escritos, ao pensamento e às tradições políticas não apenas de Marx, mas
também de seus seguidores e partidários posteriores, até os dias de hoje.

* Materialismo: Antiga corrente filosófica. Não tem nada a ver com o ―culto
ao dinheiro e aos bens terrenos‖. O materialismo afirma que o fundamento
último do Universo é a ―Matéria‖. Um dos primeiros filósofos materialistas
foi, na Grécia, Demócrito [460 a.C.-370 a.C.]. Ao colocar ênfase na realidade
objetiva, independente da práxis do sujeito, alheia à história e às relações
sociais, o materialismo fiosófico se torna especulativo, contemplativo e
passivo. Separa nitidamente o objeto do sujeito: fica só com o objeto, com a
matéria, com a natureza. O “materialismo” marxiano está centrado na
história, na sociedade e nos sujeitos. A Marx interesa a materialidade ... das
relações sociais. A ―matéria‖ de que fala o marxismo é uma matéria ...
estritamente social e construída historicamente: as relações sociais de
produção, não a matéria físico-química das ciências naturais! Para a filosofia
marxista da práxis, não há matéria objetiva sem sujeito, nem sujeito sem
matéria objetiva.

* Mediação: Categoria fundamental do pensamento dialético. Expresa o


nexo, o vínculo e a passagem entre dois momentos do desenvolvimento e do
movimento. Ao estudar a sociedade, o mais difícil é explicar as mediações
entre a economia e o poder, entre a ação reivindicativa e a política, entre os
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movimentos sociais e a revolução socialista. Quando o marxismo despreza as
mediações, se transforma em um vulgar mecanicismo, em que tudo se reduz
a um esquema simplista de ―causa e efeito‖.

* Mercadoria: Forma social que adquirem os produtos do trabalho humano


na sociedade mercantil capitalista. Um objeto é mercadoria, se além de ter
valor de uso (utilidade), possui valor. Só é mercadoria o que se produz para
vender, não para se consumir diretamente. Na mercadoria, estão encerradas
as potenciais contradições antagônicas do capitalismo.

* Metafísica: Toda concepção de mundo puramente especulativa,


desvinculada da história e da prática, que se postula como se estivesse à
margem do tempo e do espaço. Em toda metafísica, predomina uma
interpretação do mundo, não sua transformação. A metafísica se caracteriza
por suas (falsas) pretensões universais.

* Método: Conjunto de regras lógicas que guiam o pensamento e a prática.

* Método dialético: Para Marx, este método constitui a unidade da


investigação histórica e da exposição lógica dos resultados obtidos, seguindo
a linha: concreto-abstrato-concreto. O conhecimento parte das contradições
da sociedade real. Em seguida, a teoria abstrai, constrói categorias,
hipóteses e conceitos, e finalmente volta novamente à sociedade, para
intervir em suas contradições mediante a práxis. Segundo Marx, a lógica
dialética de conceitos e categorias está estreitamente vinculada à
historicidade da sociedade. A lógica dialética da exposição teórica — O
Capital — expressa e resume a história da sociedade — o capitalismo. A
chave do método dialético está em conceber a sociedade como uma
totalidade e o desenvolvimento histórico a partir das contradições.

* Modernidade capitalista: Época histórica atravessada pela urbanização e


industrialização aceleradas, grandes meios de comunicação, processos de
secularização religiosa, dessacralização de valores trascendentes,
desencantamento do mundo e predomínio desapiedado do valor de troca.
Segundo Marx, este processo possui um caráter contraditório. Por um lado,
gera ―progresso‖ e possibilidades de emancipação individual e coletiva; por
outro, promove barbárie, vandalismo, conquista, submissão, opressão,
genocídio e exploração. O racionalismo liberal corresponde apenas ao
primeiro aspecto. O pós-modernismo apenas ao segundo. Marx vê ambos.

* Modo de produção: Conjunto articulado de relações sociais de produção.


Os diversos modos de produção permitem periodizar a história humana.
Segundo a teoria marxista da história, cada um deles expressa as relações
sociais em sua máxima pureza e em seu conceito essencial. Nas sociedades
empíricas e concretas, as relações sociais nunca se dão de forma pura, na
verdade estão combinadas com relações de outros modos de produção
(sempre há um que predomina sobre os demais).

* Neoliberalismo: Fase globalizada do imperialismo capitalista. Ideologia


que acompanhou a ofensiva capitalista em nível mundial desde 1973 (golpe
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de Estado no Chile), passando por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, até
1994 (levante zapatista no México). Promove a livre circulação do capital, as
privatizações, o desmantelamento dos direitos sociais, a redução dos gastos
em educação e saúde, recrudescendo práticas comuns ao capitalismo, desde
seu nascedouro, tais como: a repressão sobre a classe trabalhadota, o
conservadorismo cultural, o machismo, a xenofobia, a vigilância e o controle
permanente dos indivíduos, o racismo e a militarização de todo o planeta.
Entra numa fase de crise em fins de 1990, a partir das rebeliões contra a
globalização capitalista em diversas cidades do mundo.

* Mais-valor ou mais-valia: Fração do valor produzido pela força de


trabalho que é apropriada gratuitamente pelo capitalista. Constitui a origem
da exploração. Representa um trabalho não pago. É a fonte de vida do
capital. É o excedente repartido entre diferentes capitalistas, na forma de
juros (para os banqueiros); lucros (empresários industriais) e rendas da terra
(proprietários).

* Populismo nacionalista: Existem vários tipos de populismo em nível


mundial: a) os movimentos radicais rurais do oeste e sul dos EUA em fins do
século XIX, b) o movimento narodniki russo do século XIX, inspirado nos
intelectuais Hersen e Chernishevski, c) de uma ideologia de Estado ligada,
na África, ao desenvolvimento rural em pequena escala — Tanzânia, por
exemplo, e d) das ideologias de Estado nos países latino-americanos do
século XX: aprismo peruano, cardenismo mexicano, varguismo brasileiro e
peronismo argentino. Diferentemente do populismo russo do século XIX,
para estas correntes latino-americanas, a nação periférica em seu conjunto,
incluindo a burguesia local – os sócios menores do imperialismo, se
identifica com o ―povo‖. O populismo nacionalista termina, invariavelmente,
conclamando os Trabalhadores a prestar um apoio ―nacional e patriótico‖ à
burguesia. Não é casual que, diversamente da revolução socialista cubana,
nenhuma experiência política populista conseguiu lograr de fato a
independência plena dos países da América frente à dominação imperialista.

* Práxis: Atividade humana que transforma a sociedade e a natureza


transformando, ao mesmo tempo, o sujeito que a exerce. Seja na política, na
arte, na ciência ou no trabalho produtivo. Como conceito, expressa a
unidade da teoria e da prática. É a categoria fundamental da filosofia de
Marx.

* Produção-mercado-consumo: A produção é o âmbito no qual se geram as


mercadorias. Assim se produz a exploração (―invisível‖ à consciência
imediata). O mercado é o lugar da distribuição e do intercâmbio de
mercadorias. É o mais visível no capitalismo. O consumo é o espaço onde as
mercadorias chegam aos consumidores. Segundo Marx, apesar de todos
estes momentos estarem relacionados, o que marca o ritmo do conjunto é a
relação de produção.

* Reformismo: Corrente política que busca corrigir e remendar o


capitalismo, reclamando reformas e migalhas para o trabalhador, mas sem
questionar o sistema em seu conjunto. Combate os efeitos ―não desejados‖
11
do sistema, não suas causas. Propõe mudanças graduais. Recusa a
confrontação com o poder. Limita a luta ao imediato e ao pontual, sem
apontar para a totalidade.

* Relações sociais de produção: Vínculos sociais que se estabelecem entre


os seres humanos para produzir e reproduzir sua vida material e cultural.
Os diversos tipos de relações de produção permitem diferenciar uma época
histórica de outra. Nas sociedades de classes, toda relação de produção é, ao
mesmo tempo, uma relação econômica, uma relação de poder e uma relação
de forças entre as classes. As relações de produção capitalista expressam a
contradição antagônica entre os proprietários dos meios de produção e os da
força de trabalho. Não há conciliação possível entre ambos.

* Reprodução: Manutenção e produção continuada das relações sociais.


Pode ser simples — na mesma escala — ou ampliada. Neste último caso, é
sinônimo de acumulação. No modo de produção capitalista, a reprodução
nunca é automática. Pressupõe sempre mecanismos hegemônicos e exercício
da força material (ou ameaça neste sentido).

* República parlamentarista: Forma especificamente moderna de domínio


político burguês. Conta com uma série de instituições e mecanismos flexíveis
que permitem o exercício e a reprodução de um poder político de classe: as
câmaras legislativas, a autonomia relativa da burocracia, a imprensa
organizada nos grandes centros, os partidos políticos de massas, a ―livre
negociação‖ entre sindicatos operários e corporações empresariais, as
alianças e coligações políticas, as eleições periódicas (em que quase sempre
se opta entre duas caras da mesma moeda...) etc., etc. Segundo Marx, é uma
forma de dominação política anônima e impessoal, que representa o
conjunto da burguesia. Por isso, acaba sendo mais eficaz, no exercício da
dominação sobre os trabalhadores, do que uma ditadura ou uma
monarquia.

* Revolução bolchevique: Primeira revolução socialista vitoriosa na história


da humanidade. Também é conhecida como ―revolução de outubro‖, ocorrida
em 1917. Foi dirigida principalmente por Lênin, e também por Trotsky,
exercendo grande influência mundial. Marcou a fogo todos os campos da
atividade humana no século XX: desde a política até o cinema e a pintura.
Contrapondo-se à sua influência no ocidente, Henry Ford e John Maynard
Keenes propuseram a realização de reformas no capitalismo. Com sua
revolução, Lênin conseguiu que fossem promovidas muito mais reformas em
favor dos operários do mundo do que todos os reformistas juntos.

* Revoluções burguesas: Processos históricos cujas experiências mais


destacadas são as transformações na Inglaterra (1645-1649 e 1688-1689),
nos EUA (1776) e na França (1789). Ao generalizar a ideologia do liberalismo,
a revolução francesa converte-se no paradigma clássico de revolução
burguesa. Esta promove a separação da Igreja do Estado, constrói o Estado-
nação, o mercado interno e o exército ―nacional‖ (burguês). Inaugura a
dominação política da burguesia e o reinado absoluto do dinheiro e do valor
de troca.
12
* Revolução socialista: Propõe criar uma sociedade futura de homens e
mulheres novos, liberados da exploração econômica, mas também da
dominação política da subjetividade, da alienação e do fetichismo mercantil,
da burocracia, do patriarcalismo, do racismo, do etnocentrismo e da
xenofobia. É um projeto centralmente político, mas também ético e cultural.

* Senso comum: Âmbito espontâneo de nossas opiniões cotidianas. É


caótico e contraditório. Nunca é alheio às ideologias. É um campo de batalha
entre diversas concepções de mundo e escalas de valores. O marxismo
aspira reforçar, em seu seio, as opiniões progressistas e combater as
reacionárias. A filosofia da práxis tenta superar a espontaneidade do senso
comum, para, em seu lugar, construir uma concepção de mundo crítica e
coerente.

* Sociedade civil: Tem muitos significados. Em Hegel, faz referência às


instituições do mercado e também a algumas instituições políticas, como a
policía e a administração da justiça. Em Marx, alude ao conjunto das
relações sociais de produção da sociedade capitalista. Em Gramsci, remete
às instituições políticas, que nem são estritamente econômicas (não
pertecem ao mercado), nem estatais (não são, necessariamente, parte do
Estado): escolas, universidades, meios de comunicação, partidos políticos,
sindicatos, sociedades de fomento, igrejas, etc. Estas instituições têm, por
finalidade, gerar consenso e construir a hegemonia. Gramsci também chama
a sociedade civil de ―Estado ampliado‖.

* Sociologia estrutural–funcionalista: Constitui aquelela corrente – de


origem norte-americana – que concebe a sociedade como se estivesse
conformada por uma harmonia subjacente. Deste horizonte teórico se
classificam os conflitos sociais e as contradições de classe como ―anomalias‖,
―faltas de adaptação‖ ou interrupções do desenvolvimento orgânico, evolutivo
e pacífico da sociedade. A pobreza e o atraso latino-americanos seriam
efeitos da escassez de desenvolvimento capitalista, da sobrevivência de
relações tradicionais e da falta de mais inversões de capital. Para esta
corrente, as categorias de ―imperialismo‖, ―dependência‖ e ―exploração‖ não
jogam nenhum papel relevante: todos os países do planeta são,
supostamente, equivalentes e seguem invariavelmente um mesmo padrão de
desenvolvimento, que vai do tradicional para o moderno e do campo para a
cidade.

* Stalinismo: Corrente política originada na União Soviética depois de 1924


(falecimento de Lênin), quando se congela o processo revolucionário. O
stalinismo estendeu sua influência por todo o mundo e sobreviveu inclusive
à morte de seu líder, Josef Stálin (1879–1953). O stalinismo constitui a
legitimação ideológica e política de um grupamento social burocrático que se
consolidou na direção do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Em
termos políticos, defendeu a doutrina do ―socialismo em um só país‖. Diversa
da revolução mundial preconizada por Lênin e pelos bolcheviques de 1917, a
proposta subordinava toda ação dos comunistas no mundo à defesa do
Estado soviético. Em filosofia, defendeu o sistema do ―materialismo dialético‖
13
[DIAMAT]: uma visão cosmológica, naturalista e metafísica, centrada na
categoria ―matéria‖, em oposição à ―práxis‖. O stalinismo defendeu a
doutrina do ―realismo socialista‖, em oposição às vanguardas estéticas e
também se opôs à psicanálise em todas as suas vertentes. O stalinismo se
converteu no paradigma do pensamento socialista burocratizado e
dogmático. Existiram, porém, versões ideológicas stalinistas mais sutis que a
soviética, por exemplo, na Itália e na França.

* Teleologia [em grego: teos = fim]: Doutrina filosófica que busca adequar a
fins (objetivos) e à orientação no sentido de realizá-los todos os processos
históricos ou naturais, os quais encontrariam sua razão de ser ao final de
seus processos de desenvolvimento. Os fins da teleologia estão
preassegurados de antemão; por isso, habitualmente, a teleologia vem
acompanhada do determinismo. Contrariamente ao que supõem nossos
adversários e acusam os inimigos, a filosofia marxista da práxis não é
teleológica. O futuro não está assegurado de antemão. A história não está
dirigida a fim algum previamente traçado (como o ―porvir luminoso do
comunismo‖). A história é um processo em aberto. A consigna marxista
revolucionária de Rosa Luxemburgo, ―socialismo ou barbárie‖, é uma boa
síntese, não teleológica, da filosofia da práxis.

* Teologia da libertação: Corrente filosófica e teológica que tenta fundir o


marxismo com o cristianismo revolucionário. Ainda que, originariamente,
tenha surgido com ideólogos franceses, a maior parte de seus seguidores são
latino-americanos. Retoma o humanismo de Marx (assim como também de
Che Guevara ou de Camilo Torres) e o interpreta à luz da mensagem
profética do cristianismo.

* Teoria da dependência: Nasce na América Latina durante os primeiros


anos da década de 1960, como uma resposta crítica às proposições da
Comissão Econômica para América Latina (CEPAL). Segundo esta última, as
falhas estruturais e o atraso recorrente das sociedades latino-americanas se
originavam de um suposto ―subdesenvolvimento‖ e de uma suposta ―falta de
modernização‖ das estruturas nacionais. Contra a tese do
―subdesenvolvimento‖ e da ―modernização‖ — ou de sua falta — os teóricos
da dependência insistem que o atraso da América Latina e do Terceiro
Mundo se origina da inserção dependente dentro do sistema capitalista
mundial, estruturado a partir de países metropolitanos imperialistas, com
suas colônias e semicolônias. Os teóricos mais radicais da dependência são
o brasileiro Ruy Mauro Marini, o alemão André Gunder Frank e o egípcio
Samir Amin (ainda que Amin nunca tenha aderido oficialmente a esta
corrente).

* Tempo de trabalho socialmente necessário: Dimensão quantitativa da


teoria do valor. Quantidade de trabalho abstrato. Constitui a medida social
— não individual — do valor das mercadorias.

* Toyotismo: Constitui um sistema de inovações na organização fabril,


implementado na empresa japonesa Toyota. Um de seus ideólogos foi Ohno,
engenheiro-chefe da Toyota, inventor dos novos métodos de trabalho que
14
expôs em sua obra O espírito da Toyota. O toyotismo se baseia no sistema
just in time (que produz a partir da demanda, reduzindo as perdas de
mercadorias à espera da venda), em postos de trabalho polivalentes,
trabalhadores multifuncionais e na redução imediata de postos de trabalho
quando cai a demanda. A empresa japonesa é muito diferente da grande
empresa fordista norte-americana. Descentraliza o trabalho e se baseia no
subcontratismo (terceirizações), substituindo, deste modo, as grandes
aglomerações de trabalhadores – o que disminui notavelmente o poder e a
força da classe operária e sua capacidade de luta. O toyotismo aprofunda a
exploração e aumenta o poder do capital sobre a força de trabalho.

* Trabalho: Processo de intercâmbio e mediação entre o ser humano e a


natureza, inserido nas relações sociais. Quando é livre, Marx o concebe
como uma atividade vital humana orientada a produzir bens segundo as leis
da beleza. Porém, na sociedade capitalista, não é livre, é forçado, está
alienado e estranhado. Converte-se em uma tortura e numa obrigação
imposta pela dominação capitalista. O capitalismo de nossos dias obriga
uma parte dos trabalhadores a desgastar sua vida trabalhando o dobro, e
condena o restante ao desemprego, em lugar de repartir o trabalho entre
todos, o que possibilitaria reduzir o trabalho necessário à reprodução da vida
e aumentar o tempo livre para o ócio e o prazer.

* Trabalho abstrato: Trabalho social global que, na sociedade capitalista,


gera valor. Dimensão qualitativa da teoria do valor, estreitamente ligada à
teoria do fetichismo. Característica que assume o trabalho humano quando
sua sociabilidade é indireta e está mediada pelo mercado e pelo equivalente
geral (dinheiro). Principal descoberta teórica de Marx em sua crítica da
economia política.

* Valor: Não é uma coisa, nem uma propriedade intrínseca das coisas. É
uma relação social de produção. Em ambos os polos da relação, vincula-se
aos possuidores de mercadorias. Quando os produtos do trabalho são
gerados dentro de relações de valor, são produzidos para serem vendidos no
mercado. Marx distingue historicamente diversas relações de valor, desde a
mais simples (a permuta) até a mais desenvolvida (o dinheiro).

15
Sugestões para iniciar a leitura de Marx
(Adaptado do texto de Néstor Kohan
“Aproximações ao Marxismo: uma introdução possível”)

A obra de Marx e Engels é imensa e imponente, quase inabarcável, se


também se considera a de seus seguidores. Para quem nunca leu nada de
Marx, sugerimos começar por pequenos fragmentos de textos, artigos e
cartas.

Para uma primeira aproximação política de seu pensamento,


recomendamos iniciar pelo Manifesto do Partido Comunista e pelo texto
mais sintético ―Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas‖.
Ainda que carregados de referências históricas sobre a França, O 18
brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França são
imprescindíveis. O mesmo vale para ―A assim chamada acumulação do
capital‖ (capítulo 24 do Livro Primeiro de O Capital), texto político
fundamental que pode ser lido facilmente e de forma isolada, mesmo que
não se conheça nada de marxismo, nem se tenha sequer folheado as páginas
de O Capital. Finalmente, para conhecer, na intimidade, a perspectiva
política em que se inspirou Marx, convém tentar ler a carta a Ludwig
Kugelmann, de 12/4/1871, sobre a Comuna de Paris.

Para uma primeira aproximação fiosófica de Marx, nada melhor que as


Teses sobre Feuerbach, texto de apenas três páginas que sintetiza o núcleo
principal da nova concepção de mundo e da filosofia da práxis, centradas na
atividade humana transformadora. Um pouco mais complexos, mas
igualmente imperdíveis, são: a Introdução à Crítica à Filosofia do Direito
de Hegel; ―O trabalho alienado‖ (fragmento dos célebres Manuscritos
econômico-fiosóficos de 1844) e ―O fetichismo da mercadoria‖ (último
fragmento do primeiro capítulo do Livro Primeiro de O Capital. É um texto
maduro, um dos últimos que Marx redigiu, antes de revisar O Capital para
suas novas edições). Em um primeiro encontro com Marx, necessariamente
fragmentário e introdutório, estes três textos podem ser lidos em separado,
mesmo que não se tenha lido os livros completos a que eles pertencem.
Como um complemento, pode se consultar o Prefácio de 1859 à
Contribuição à Crítica da Economia Política. Convém ler este prólogo
junto com os demais textos, para evitar o risco de associar Marx a qualquer
visão evolucionista e mecânica da sociedade.

Para uma primeira consulta à teoria da história de Marx, sugerimos


começar lendo as cartas de Marx ao periódico Anais da Pátria (em fins de
1877) e a Vera Zasúlich (em 8/3/1881), assim como a carta a P.V.Annenkov,
de 28/12/1846. Um tanto mais difícil, mas bastante ilustrativo da visão não
linear nem evolutiva da história que sempre propõe Marx, é o último capítulo
da Introdução aos Grundrisse (apontamentos da primeira versão de O
Capital), intitulado ―A arte grega e a sociedade moderna‖.

1
Para um primeiro encontro com a crítica de Marx à economia política,
recomendamos começar com a leitura de ―O método‖ (seção do capítulo do
livro Miséria da filosofia intitulado ―A metafísica da economia política‖). No
mesmo sentido, é muito proveitosa a leitura da Introdução aos Grundrisse,
principalmente ―O método da economia política‖ (subcapítulo N°3 da dita
Introdução). Acompanhando tais leituras, uma boa introdução a esta
problemática pode ser Salário, preço e lucro, conferência ditada pelo
próprio Marx, em 26/6/1865, para a Internacional. Finalmente, apesar de
conter maior grau de complexidade que os anteriores, sugerimos ler o
capítulo quarto do livro primeiro de O Capital intitulado ―Transformação do
dinheiro em capital‖, onde se expõe o núcleo da teoria da exploração
capitalista. Da mesma forma, cabe a leitura do capítulo 48 do livro terceiro
de O Capital, batizado ironicamente ―A fórmula trinitária‖, em polêmica
com a economia burguesa.

2
Cronologia das obras de Marx – incluídos apenas
alguns de seus trabalhos mais significativos
1818: Em 5 de maio, nasce Karl Marx, em Tréveris (Alemanha).

1836: Poesias para Jenne von Westphalen.

1837: Inicia em abril um estudo sobre a filosofia de Hegel. Carta ao pai.

1839: Começa a elaboração de sua tese de doutorado sobre A diferença entre


a filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro.

1842: Artigos políticos nos Anais Alemães e na Gazeta Renana. Em


novembro: primeiro encontro com Friedrich Engels.

1843: Crítica à «Filosofia do Direito» de Hegel [escrita em 1842, publicada


postumamente em 1927]. A Questão Judaica. Introdução à Crítica da
«Filosofia do Direito» de Hegel.

1844: Cadernos de Paris (Notas de leitura de 1844). Manuscritos econômico-


fiosóficos de 1844 [publicados postumamente em 1932]. Agosto: começa a
amizade e colaboração com Engels.

1845: A Sagrada Família. Teses sobre Feuerbach.

1846: A Ideologia Alemã [iniciada em setembro de 1845, publicada


postumamente em 1932]. Promove a fundação do Comitê de
Correspondência Comunista.

1847: Miséria da filosofia.

1848: O Manifesto do Partido Comunista. Dirige A Nova Gazeta Renana.

1850: As lutas de classes na França. Promove a reorganização da Liga dos


Comunistas.

1851: Começa trabalho como correspondente (até 1862) do New York Daily
Tribune.

1852: O 18 Brumário de Luís Bonaparte.

1857: Começa a elaboração dos Elementos fundamentais para a crítica da


economia política 1857-1858 [Grundrisse], primeiros apontamentos de O
Capital.

1858: Relê a Ciência da Lógica de Hegel.

1859: Contribuição à crítica da economia política.

3
1861-1863: Continua investigando acerca da crítica da economia política e
escrevendo anotações em continuidade às indagações dos Grundrisse e da
Contribuição à crítica da economia política, incluindo cadernos sobre
tecnologia [muitos dos quais ainda não publicados].

1862: Escreve o rescunho de Teorias sobre a mais-valia [Livro IV de O


Capital].

1863-1865: Escreve a primeira versão dos três Livros de O Capital.

1864: Participa da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores


(AIT).

1866: Redige a versão definitiva do Livro I de O Capital [publicado em 1867].

1867-1868: Trabalha, com interrupções, devido a enfermidades, nos Livros


II e III de O Capital.

1870: Começa a estudar a ―questão Rússia‖.

1871: A guerra civil na França.

1873: Segunda edição — revista e corrigida — do Livro I de O Capital.

1875: Crítica do Programa de Gotha.

1877: Carta à redação de Os Anais da pátria sobre a relação da Rússia com


O Capital.

1880: Notas marginais ao «Tratado de economia política» de Adolph Wagner.

1881: Carta a Vera Zasulich.

1883: Em 14 de março, morre em Londres Karl Marx.

1885: Engels publica o Livro II de O Capital.

1894: Engels publica o Livro III de O Capital.

1895: Morre Friedrich Engels.

4
Notas sobre as edições de Marx e Engels
Os escritos de Marx constituem uma obra de dimensão descomunal.
Durante sua vida chega a publicar apenas uma parte importante dela. Outro
tanto fica inédito e somente vira papel impresso depois de sua morte (1883).
Depois desse ano, o legado e os papéis de Marx passam às mãos de Engels.
Seu fiel e leal companheiro se debruça sobre o laboratório mental dos
manuscritos de Marx e pode finalmente publicar, em 1885, o Livro II de O
Capital e, em 1894, o Livro III da mesma obra. Poucos dias antes de morrer,
em 1895, Engels outorga aos dirigentes socialistas alemães Augusto Bebel e
Edward Bernstein plenos poderes para dispor de seus próprios escritos
póstumos. Ao mesmo tempo, doa sua biblioteca e os papéis que conservava
de Marx ao arquivo do Partido Social Democrata Alemão (PSD). Um de seus
principais representantes — pertencente à ala esquerda do PSD, Franz
Mehring, publica, em 1902, uma compilação em três volumes de escritos
esquecidos ou inéditos de Marx e Engels, concluídos entre 1841 e 1850.
Mais tarde, em 1906, F.A.Sorge publica as Cartas de Marx e Engels em um
só tomo. Karl Kautsky, outro líder da socialdemocracia alemã, promovendo
famosos cortes, publica, entre 1905 e 1910, a História crítica das teorias da
mais-valia de Marx. O mesmo fazem Augusto Bebel e Edward Bernstein com
a Correspondência Marx-Engels, que aparece — mutilada — em quatro
volumes, en 1913.

Depois da revolução russa de 1917, Lênin decreta a fundação do Instituto


Marx-Engels de Moscou (fundado em 1921 e dirigido, até 1931, por David
Riazanov). Este Instituto copia grande parte do arquivo do PSD alemão e
começa a editar, em 1927, as Obras Completas de Marx e Engels, conhecidas
pela sigla MEGA [em alemão: Karl Marx/Friedrich Engels, Historisch-kritische
Gesamtausgabe]. Riazanov tinha programado a edição das MEGA desde
1914-1917.

Viajando por toda Europa, Riazanov (pseudônimo de David-Zimkhe-Zelman


Berov Goldenbach [1870-1938]) saiu coletando materiais e copiando todos os
escritos de Marx e Engels que encontrava. Incursiona pelo arquivo do PSD
alemão, vai ao Museu Britânico, à New York Library dos EUA, à biblioteca do
antigo Estado da Prússia e aos arquivos históricos de Colônia. Em 1925,
Riazanov assina um acordo entre o arquivo do PSD alemão e o Instituto
Social de Frankfurt (conhecido, mais adiante, como ―Escola de Frankfurt‖),
para publicação em conjunto de documentos inéditos de Marx e Engels (por
exemplo, parte de A Ideologia Alemã e da correspondência entre Marx e Vera
Zasúlich). As MEGA iriam ter um total de 42 volumes.

Após a destituição de Riazanov, em 1931 (Stálin sentencia finalmente sua


morte em 21/1/1938) e a completa ruptura de relações políticas entre o
Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e o PSD alemão, a edição das
MEGA é interrompida na primeira metade dos anos 1930. Os volumes
publicados não chegam à dezena. Entre eles, o Instituto Marx-Engels de
Moscou edita, em 1932, os Manuscritos econômico-fiosóficos de 1844 e A
ideologia alemã. Mais tarde, entre 1939 e 1941, publica os Grundrisse. A
primeira edição dos MEGA se estendeu, então, entre 1927 e 1941.
5
Durante o nazismo, grande parte dos materiais originais de Marx e Engels é
transladada da Alemanha para Moscou e para o Instituto Internacional de
História Social de Amsterdam, onde se encontra atualmente.

Depois da morte de Stálin (1953), a União das Repúblicas Socialistas


Soviéticas (URSS) e a República Democrática Alemana (RDA) formalizam um
acordo para relançar as MEGA. Este projeto vislumbrava editar 170 volumes
(dos quais aparecem, entre 1972 e 1991, 47 volumes no total). A segunda
edição dos MEGA sobrevive, então, entre 1975 e 1991. Tudo isto vale para as
edições em alemão, o idioma de Marx e Engels.

No idioma castelhano, a primeira tradução de O Manifesto Comunista


aparece, na América Latina, em um periódico obreiro mexicano de 1870. Na
Espanha, o advogado Correa e Zafrilla começa a traduzir, no final do século
XIX, o primeiro tomo de O Capital para o castelhano, porém, não o faz do
original alemão, mas da edição francesa. Em 1886, Antonio Atienza verte
para o castelhano a síntese desse texto realizada por Gabriel Deville. Em
1898, o dirigente do Partido Socialista argentino (PS), Juan Bautista Justo,
publica a primeira tradução direta do alemão do primeiro livro de O Capital.
Em Madri, Manuel Pedroso publica, em 1931 (pelo editorial Aguilar), os três
livros de O Capital. No início da década de 1930, Wenceslao Roces funda, em
Madri, a Biblioteca Carlos Marx da editora Cenit, onde publica dez grandes
volumes com traduções. Roces realiza, em 1935, uma nova tradução do
primeiro livro de O Capital, a qual, acompanhada dos livros II e III, começa a
ser difundida a partir de 1946 pelo Fundo de Cultura Econômica. O mesmo
Roces, trabalhando em Moscou durante o ano de 1934, dedica-se a dirigir as
―Edições em língua espanhola‖ de Marx e Engels. Assim, promove-se uma
compilação amplamente difundida de seus escritos em três tomos. Antes
disso, Roces havia feito traduções para o espanhol — sem colocar seu nome
nelas — pelo editorial ―Europa-América‖.

Na Argentina, a editora Claridad (fundada em 1922 pelo peruano Antonio


Zamora) e diversos selos editoriais do comunismo argentino (criados a partir
de 1918), começam a editar as obras de Marx e Engels em pequenos folhetos
de divulgação massiva.

Após a vitória de Franco na guerra civil espanhola, muitos marxistas


espanhóis se exilam no México. Roces começa a traduzir regularmente as
Obras de Marx e Engels, conhecidas pela sigla MEW [em alemão: Marx Engels
Werke]. As MEW agrupam um total de quarenta e quatro tomos. Muitas
destas traduções de Roces são publicadas nos anos ’60, após a revolução
cubana, em dezenas de milhares de exemplares. Durante esses anos, as
edições cubanas da obra de Marx e Engels convivem com as ―edições em
línguas estrangeiras‖ — entre elas, o castelhano — publicadas por editoras
soviéticas e chinesas, igualmente massivas.

Desde as primeiras traduções de Wenceslao Roces e das publicações


soviéticas e chinesas em línguas estrangeiras, surgem diversas edições
populares (em dois e três tomos), sob o título de Obras Escolhidas de Marx e
6
Engels. Estes empreendimentos editoriais se prolongam nos anos ’70,
quando o Editorial Grijalbo, junto com o grupo editorial Crítica, começa a
editar, na Espanha, as Obras de Karl Marx e Friedrich Engels (OME), sob a
direção de Manuel Sacristán (que colabora nas traduções, nem todas por
sua conta). Sacristán realiza as introduções aos diversos tomos de O Capital.
Entre 1973 e 1980, este projeto chega a publicar mais de quarenta volumes
(é interrompido em 1981).

A partir de 1982, o Fundo de Cultura Econômica (FCE) inicia a edição, no


México, das Obras Fundamentais de Marx e Engels, com tradução de Roces.
Este projeto planeja editar 22 volumes (mas nem todos conseguem ser
publicados). Tanto a iniciativa de Sacristán como a de Roces tomam por base
a edição alemã das MEW [Marx Engels Werke]. Também no México, Grijalbo
edita uma série de escritos menores de Marx e Engels, com tradução de
Roces, numa coleção dirigida pelo filósofo espanhol exiliado no México Adolfo
Sánchez Vázquez. Este último dirige também a coleção de investigações
marxistas intitulada ―Teoria e práxis‖, que publica meia centena de volumes.

Por sua vez, o Editorial Século XXI (dirigido pelo editor espanhol exiliado no
México Arnaldo Orfila Reynal, assessorado pelo argentino, também exiliado
no México, José Aricó) publica, durante os anos ’70 e ’80, os três tomos de O
Capital (com tradução de Pedro Scarón) e os três dos Grundrisse (com
tradução de Pedro Scarón, Miguel Murmis e José Aricó). A tradução de O
Capital a cargo de Scarón é, sem dúvida, a mais recomendável de todas as
que circulam e existem em espanhol, incluindo, nessa comparação, à do
argentino Floreal Mazía (do editorial Cartago, pertencente ao comunismo
argentino), à do espanhol Vicente Romano García (do editorial AKAL), à
clássica de Wenceslao Roces (de varias edições) e à publicada na Espanha
pelo editorial EDAF. Tal publicação, da parte do Editorial Século XXI, se
conjuga com a edição de uma centena de volumes sobre marxismo
intitulados ―Cadernos do Passado e do Presente‖, dirigidos também por José
Aricó.

Apesar destas múltiplas iniciativas, uma parte importante da


correspondência de Marx permanece sem tradução para o espanhol,
excetuando uma síntese geral publicada na Argentina pelo Editorial Cartago
(que traduz uma compilação de 1934 realizada por V. Adoratsky, após a
destituição de Riazanov da direção do Instituto Marx-Engels de Moscou). A
esta antologia de cartas pessoais, haveria que se agregar outra, que versa
sobre O Capital (publicada em Barcelona, em 1968, pelas Edições de
Materiais), uma compilação de cartas a Ludwig Kugelmann (publicada em
Cuba, em 1974, por Ciências Sociais) e outra de sua correspondência com o
tradutor russo Nicolai F.Danielsón (editadas, em 1981, por Aricó, em Século
XXI).

Atualmente, passada a euforia capitalista que acompanhou a queda do Muro


de Berlim e com as reações ao neoliberalismo, renovou-se o interesse pelo
pensamento de Marx e pelas distintas correntes marxistas. Para isso muito
tem contribuído a emergência do movimento de resistência global contra o
capitalismo. Por exemplo, o projeto atual de uma nova edição crítica (MEGA)
7
com sede em Amsterdam — a terceira, se contabilizarmos a que existiu em
1927-1941 e a de 1975-1991 —, pretende editar as obras de Marx e Engels
en 114 volumes. O diretor deste gigantesco e ambicioso projeto editorial, que
aglutina um elenco internacional de investigadores, é o acadêmico Jürgen
Rojahn. Essa renovação do pensamento crítico e da investigação marxista
em nível mundial explica a proliferação de novas edições eruditas e
populares de sua obra.

8
Marx e Engels na Internet
Na INTERNET, pode se começar a leitura de textos marxistas navegando em
alguma das seguintes direções [além desta pequena lista, há muito mais]:

http://www.ucm.es/info/bas/es/biblioteca.htm (―Biblioteca de Autores


Socialistas‖ – nesse sítio da Universidade Complutense de Madri podem ser
consultadas as Obras Escolhidas de Marx e Engels e também O Capital em
diversas traduções para o espanhol: a de Wenceslao Roces [Fundo de
Cultura Econômica] e a de Pedro Scarón [Século XXI, a melhor de todas]).

http://www.marxists.org (aqui podem ser encontrados diversos textos


clássicos do marxismo, tanto de Marx e Engels como de seus seguidores.
Muitos estão no inglês, mas podem ser feitas conexões em numerosos
idiomas, incluindo o espanhol e o português).

http://www.rebelion.org (aqui podem ser consultados textos e análises da


atualidade elaborados por importantes ensaístas políticos de esquerda,
alguns marxistas e outros de inspiração mais moderada, principalmente no
espanhol e, em alguns casos, no inglês).

http://www.lahaine.org (Aqui podem ser encontrados textos e análises da


atualidade da parte de alguns autores de inspiração marxista radical, junto
com outros de inspiração anarquista libertária, independentistas bascos e
autônomos).

http://www.filosofia.cu/ (neste portal de filosofia e de pensamento cubano,


podem se encontrar textos de Marx e também de ensaístas marxistas latino-
americanos).

http://www.hkwm.de/hkwm/ (na página do Instituto Berlinense de Teoria


Crítica, encontram-se textos marxistas em alemão, mas há também seções
traduzidas para o inglês, o francês e o espanhol).

9
A difusão das ideias marxistas e as publicações
de Marx e Engels no Brasil1
Sem sombra de dúvida, foi o próprio PCB quem mais contribuiu para a
difusão do pensamento marxista no Brasil, pelo menos até o golpe de 1964.
A partir daí, em função da pesada repressão que se abateu sobre os
comunistas e da verdadeira diáspora de militantes e intelectuais ocorrida por
ocasião das divergências políticas e ideológicas ao longo dos anos ’60 a ’80,
descentralizou-se extraordinariamente esta difusão, sendo que as
publicações das obras fundamentais do marxismo e sobre o marxismo
ficaram a cargo das universidades, organizações políticas e sociais e de
grandes editoras.

Até a década de ’60, teve papel determinante na divulgação do marxismo no


Brasil o significativo aparato político-cultural construído pelo PCB: editoras,
jornais e revistas.

Conforme destacado por Denílson Novais Azevedo, em sua monografia “A


História da publicação das obras de Marx e Engels no Brasil de 1930 a
1964” (Universidade Tuiti do Paraná), chama a atenção o grande número de
publicações de caráter simplificador e divulgativo das obras dos fundadores
do materialismo histórico, em particular a grande quantidade dos resumos
de O Capital, elaborados por diferentes autores europeus, os quais, no
Brasil, foram publicados pelas seguintes editoras: Unitas, em 1932; Moderna
Paulistânea em 1934; Calvino, em 1944; uma edição em 1944 sem o nome
da editora; ECL, em 1945; Brasil, em 1945; Cultura, em 1946; Brasil, em
1952; Progresso, em 1956; novamente Brasil, em 1957, 1958, 1960 e 1962;
Melson, em 1962 e Brasil, em 1962.

Até 1964, as obras de Marx e Engels, em sua imensa maioria, foram


traduzidas fundamentalmente do francês e, em segundo plano, do espanhol.
Mesmo os resumos eram traduzidos do francês, dos quais o nome de maior
destaque foi o de Gabriel Deville, que contabilizou, pelo menos, seis resumos
traduzidos a partir de suas edições. Em segundo lugar, há o caso não menos
significativo do italiano Carlo Cafiero. Nascido em Barletta, na Itália, no ano
de 1846, Cafiero foi um dos principais intelectuais da esquerda italiana a se
empenhar na tarefa de resumir e simplificar O Capital. Cafiero era integrante
do movimento operário internacional, estabeleceu contato com o próprio
Marx em Londres e tornou-se correspondente da Internacional.

Dentre as obras mais publicadas de Marx, há várias edições (por diversas


editoras) de Salário, preço e lucro, Miséria da Filosofia, As lutas de classe na
França, Dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. Destaque-se a publicação de
A Contribuição à Crítica da Economia Política, com tradução e introdução de
Florestan Fernandes. De Marx e Engels, foram publicadas inúmeras edições
de O Manifesto Comunista e três edições das Obras Escolhidas, em três
volumes. Quanto às obras de Engels, há sete edições de Do Socialismo
Utópico ao Socialismo Científico (por diferentes editoras); A Origem da família,
1
Texto de Ricardo Costa (Rico), Secretário Nacional de Fromação Política do PCB (agosto de 2011).
1
da propriedade privada e do Estado (cinco edições); A Dialética da Natureza
(três edições); Princípios do Comunismo (idem). O Anti-Dühring, uma das
principais obras explicativas do pensamento marxista, assim como o
Socialismo Científico e o Ludwig Feuerbach, foram publicadas apenas duas
vezes.

Nos primeiros anos de sua existência, o Partido Comunista teve como seus
principais dirigentes os intelectuais Astrojildo Pereira e Octávio Brandão,
autores de obras difusoras do pensamento marxista e das opiniões dos
comunistas acerca da conjuntura nacional e internacional, além de
inúmeros artigos publicados nas revistas e jornais mantidos pelo partido ou
abertos à colaboração de seus militantes. Foi Otávio Brandão quem traduziu
e publicou a primeira obra de Marx e Engels no Brasil: O Manifesto de
Partido Comunista, em 1923-24. O texto havia sido publicado primeiramente
em um jornal de Porto Alegre, contendo na capa uma foto de Marx, além de
um comentário sobre o pensador: “Chamamos a atenção do proletariado do
Brasil para a obra imortal de Karl Marx e Friedrich Engels, geniais
precursores de Trotsky e Lenine”. Brandão traduziu o “Manifesto” da edição
francesa de Laura Lafargue e não diretamente da língua original, o alemão.

No período posterior à chamada Revolução de 1930, apesar da forte onda


repressiva do Estado contra os movimentos organizados dos trabalhadores, o
PCB, além de conseguir publicar o jornal A Classe Operária, estendia sua
influência a parcelas significativas das camadas médias, como estudantes,
militares e intelectuais. Os modernistas Oswald de Andrade e Patrícia Galvão
(Pagu) entraram para o partido, e publicações editadas entre 1931 e 1934,
tais como a revista mensal Boletim de Ariel (destinada à divulgação e
discussão de livros, na qual se travaram debates sobre o socialismo soviético
e a literatura proletária) e a revista de literatura, arte, economia e ciência
Espírito Novo contavam com a colaboração de nomes vinculados ou próximos
ao partido, como Jorge Amado, Alberto Passos Guimarães, Aderbal Jurema,
Cândido Portinari, Aníbal Machado, Raquel de Queiroz, Caio Prado Júnior,
Carlos Lacerda, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e o já citado Oswald de
Andrade, dentre outros.
Em 1935, momento em que, graças à sua atuação no interior da Aliança
Nacional Libertadora, o Partido conseguiu acesso a publicações para
militares, inúmeros jornais e boletins sindicais e estudantis. Além disso, teve
participação em várias revistas culturais e manteve três jornais diários (A
Manhã, no Rio; A Platéia, em São Paulo e Folha do Povo, em Recife), nos
quais colaboravam o humorista Aparício Torelli (o Barão de Itararé), o
pedagogo Anísio Teixeira, o professor Hermes Lima, o sociólogo Arthur
Ramos, o poeta Jorge de Lima, Rubem Braga, Raquel de Queiroz, José Lins
do Rêgo, Oswald de Andrade, Paulo Werneck e Portinari, entre muitos
outros.
A repressão desencadeada sobre o movimento de 1935 desbaratou a
imprensa identificada com os comunistas, mas, em 1937, mesmo sob a
ditadura do Estado Novo, era editada a revista Problemas, de orientação
nacionalista e antifascista, tratando de temas relativos a economia, política,
literatura, história e reunindo diversos intelectuais de esquerda, comunistas
2
ou não: Moacir Werneck de Castro, Flávio de Carvalho, Edison Carneiro,
João Mangabeira, Procópio Ferreira, Arruda Câmara, Joel Silveira, Rubem
Braga, Oswald de Andrade, etc. Outras publicações estiveram subordinadas
à orientação mais direta do partido, ainda durante o Estado Novo: a revista
Cultura, contando com a presença de Sérgio Milliet, Graciliano Ramos,
Monteiro Lobato, além dos nomes já elencados acima; a Revista Proletária,
órgão teórico de orientação marxista-leninista-stalinista e de combate
ideológico ao trotskismo e ao fascismo; Diretrizes; Dom Casmurro e a baiana
Seiva. No plano mais cultural, destacavam-se as revistas Leitura, Esfera
(com a participação de Dias da Costa, Jorge Amado, Graciliano e outros) e
Continental, a mais efetivamente ligada ao PCB, de caráter informativo e
voltada a analisar o contexto internacional, além de pregar a linha partidária
de defesa da união nacional. Era comandada pelo dirigente Armênio Guedes
e tinha, como colaboradores, os também comunistas Mário Alves, Maurício
Grabois, Rui Facó, Álvaro Moreyra, etc.
Mas foi a partir de 1945 que o aparato cultural dos comunistas cresceu de
forma considerável, por meio de uma ampla cadeia de informação que
contava com diversos semanários e oito jornais diários distribuídos
propositalmente pelas principais cidades do país (Tribuna Popular, depois
Imprensa Popular, no Rio; Hoje, em São Paulo; O Momento, Salvador; Tribuna
Gaúcha, Porto Alegre; Folha do Povo, Recife; Jornal do Povo, João Pessoa;
Folha Popular, Natal, entre muitos outros.), tendo se constituído numa das
maiores redes de comunicação da época, talvez apenas suplantada pelos
Diários Associados, do empresário Assis Chateaubriand. A tiragem do
Tribuna Popular, por exemplo, chegou a atingir entre 30 e 50 mil exemplares
nos anos de 1945 e 1946, quando a maior gazeta do Rio alcançava
exatamente o número de 50 mil jornais impressos. Era republicada, como
órgão central do partido, A Classe Operária, depois transformada em Voz
Operária. O PCB crescia a olhos vistos, reunindo mais de trezentos mil
filiados e consolidando-se no meio cultural, fazendo com que inúmeros
intelectuais passassem a fazer parte de seus quadros ou, no mínimo, se
tornassem simpatizantes: Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato,
Oscar Niemeyer, Villanova Artigas, Aníbel Machado, Dorival Caymmi, Nélson
Pereira dos Santos, Procópio Ferreira, Carlos Scliar, Dalcídio Jurandir,
Jacob Gorender, etc.
Diversas outras publicações sofreram, na época, a influência dos
comunistas, tais como os jornais Momento Feminino, Terra Livre,
Emancipação (de viés nacionalista) e as revistas Psyke, Joaquim, Divulgação
Marxista, Revista do Povo (de conteúdo político, cultural e de variedades) e
Literatura, esta última editada por iniciativa de Astrojildo Pereira, com seu
conselho de redação composto por Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Arthur
Ramos, Graciliano, Manuel Bandeira e Orígenes Lessa. Para manter todo
este aparato, além da venda dos jornais, os militantes organizavam
diferentes atividades de finanças, traduzidas em campanhas nacionais de
arrecadação de fundos para a chamada imprensa popular: festivais, bailes,
exposições artísticas, leilões, etc.
Com a cassação do PCB em 1947, a repressão desferida pelo governo Dutra
sobre os comunistas foi responsável pela prisão de jornalistas, o
empastelamento de diversos jornais partidários e a apreensão de muitas das
3
suas tiragens, forçando o partido a trocar os nomes de várias das suas
publicações para driblar a perseguição. O expediente não seria suficiente
para evitar a crise vivida pelos comunistas no campo cultural, exacerbada
ainda pela linha política sectária então adotada, como resposta à repressão,
à ilegalidade e ao clima hostil da Guerra Fria. Numa política de alinhamento
incondicional ao Kominform (Agência de Informação dos Partidos
Comunistas), criado por Stálin em 1947, o PCB radicalizava seu discurso
ideológico de ataque ao imperialismo e ao governo Dutra, perseguindo o
controle e a instrumentalização política de entidades culturais como a ABDE
(Associação Brasileira de Escritores), através das quais os intelectuais
vinculados ao partido deveriam atuar em movimentos dirigidos pelo PCB,
como o dos Partidários da Paz, e nas diversas publicações de caráter teórico-
cultural.
Entre 1948 e 1954, período de auge do stalinismo, pontificavam na imprensa
partidária as diretrizes do realismo socialista formuladas pelo dirigente
soviético Zdhanov, como na revista Problemas, órgão teórico controlado pelo
Comitê Central, sob a direção inicial de Carlos Marighella e, depois, de
Diógenes Arruda. Com tiragem média de oito mil exemplares, a publicação
mensal, que circulou de 1947 a 1956, tinha como objetivo maior a
divulgação do pensamento marxista-leninista-stalinista, tendo provocado, no
último ano de sua existência, a reação crítica de Astrojildo Pereira, segundo
o qual a revista dedicara-se apenas a publicar traduções, quase sempre de
autores soviéticos, sem jamais ter-se caracterizado como um veículo de
discussão teórica dos problemas brasileiros. Outras publicações foram
igualmente conduzidas a reproduzir a linha do realismo socialista no
período, como Para Todos, no Rio; Seiva, que reaparecia em Salvador;
Horizonte, em Porto Alegre e Orientação, em Recife. Dentro da mesma linha
editorial, circulou em São Paulo, entre 1948 e 1955, a revista Fundamentos,
sob responsabilidade de Armênio Guedes, Villanova Artigas, Monteiro
Lobato, Caio Prado Júnior, entre outros, com a pretensão inicial de ser uma
“revista de cultura moderna”, mas tendo sido guindada, a partir de 1951, a
produzir de fato um discurso panfletário de combate ideológico à “decadente
cultura burguesa”2.
Antes mesmo que o processo de “desestalinização” (após a divulgação do
relatório de Kruschev contra Stálin no XX Congresso do PCUS) tomasse
corpo no interior do PCB, surgiram duas novas publicações coordenadas por
comunistas, sem que a direção nacional do partido tomasse muita
participação na definição das suas linhas editoriais. A revista Brasiliense,
articulada por Caio Prado Júnior e Elias Chaves Neto, apresentava-se como
uma publicação político-cultural de inspiração marxista e nacionalista, mas
independente e crítica em relação às teses do Partido. Também com
autonomia frente ao aparato partidário, ressurgia Para Todos, material
publicado, entre 1956 e 1958, sob a forma de um jornal quinzenal dedicado
aos temas culturais e aberto à intelectualidade. No seu primeiro ano de
existência, cerca de setecentos nomes já haviam escrito para o veículo criado
por iniciativa de Oscar Niemeyer, Jorge Amado, Alberto Passos Guimarães,
2
Conferir o artigo de Antônio Albino Canelas Rubim, “Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil”, em
MORAES, João Quartim de (org.) – História do Marxismo no Brasil – Volume III. Teorias. Interpretações,
Campinas, Editora da Unicamp, 1998
4
Moacir Werneck de Castro e James Amado.
Por sua vez, a revista Estudos Sociais foi criada pela direção nacional do PCB
em maio-junho de 1958, como uma das deliberações tomadas com o intuito
de redimensionar o papel da imprensa partidária, em meio às mudanças
consolidadas com a Declaração de março daquele ano. Com tiragem média
de dois a três mil exemplares até o seu fechamento em 1964, foi, no período
histórico indicado, a principal publicação mantida pelo Comitê Central do
partido voltada a estimular o debate teórico acerca dos problemas brasileiros
e a incrementar a educação política da militância comunista. Teve como
diretores responsáveis Astrojildo Pereira, Armênio Guedes e o sociólogo Jorge
Miglioli, que formaram o conselho de redação do veículo junto com os
jornalistas Fausto Cupertino, Jacob Gorender, Mário Alves, Rui Facó, o
filósofo Leandro Konder e, nas últimas edições, o historiador Nélson Werneck
Sodré.
No ano seguinte, surgia, como órgão oficial do partido e com um caráter
mais informativo e propagandístico, o semanário Novos Rumos, encarregado
de difundir a interpretação da realidade brasileira conforme as formulações
teóricas dominantes entre os comunistas, com vistas a embasar as
estratégias de luta pelo poder numa sociedade de capitalismo periférico
como a brasileira. Comandado por Mário Alves (diretor), Orlando Bonfim Jr.
(redator-chefe), Fragmon Carlos Borges (secretário) e contando com Almir
Matos, Rui Facó, Josué Almeida, Paulo Mota Lima e Maria da Graça Dutra
como redatores, o jornal trazia o dístico “Nacionalismo, democracia e
socialismo” e propunha-se a integrar a frente nacionalista e democrática,
defendendo os interesses do proletariado e baseando-se no “marxismo-
leninismo”. Também em 1959, passava a circular a revista Problemas da Paz
e do Socialismo, praticamente a edição nacional de uma publicação
internacional dos partidos comunistas subordinados às orientações do PC
da União Soviética.
Em seus quase seis anos de vida, a revista Estudos Sociais acolheu a
contribuição de cerca de setenta intelectuais, brasileiros ou não, das mais
diversas áreas do conhecimento, totalizando perto de duzentos textos
publicados, dentre ensaios, capítulos de livros inéditos, resenhas, críticas de
livros e revistas e documentos históricos. Além dos membros da direção
partidária e dos intelectuais comunistas mais influentes, escreveram para a
revista importantes figuras do pensamento nacional como: o autor de
Geografia da Fome, Josué de Castro, cientista brasileiro que presidiu a FAO
(Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e foi
deputado eleito pelo PTB; o historiador e geógrafo pernambucano Manuel
Correia de Andrade (autor de A Terra e o Homem do Nordeste, A Guerra dos
Cabanos, Abolição e Reforma Agrária, dentre outras obras); Orlando
Valverde, geógrafo, autor de Geografia Agrária do Brasil; o historiador
gaúcho Sérgio da Costa Franco; Hermínio Linhares, pesquisador do
movimento operário (autor de Contribuição à História das Lutas Operárias no
Brasil); o antropólogo baiano Edison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o
negro no Brasil; o cientista social Maurício Vinhas de Queiroz (autor de
Messianismo e Conflito Social); o estudioso da história e da sociedade das
Minas Gerais, Miguel Costa Filho, que dirigiu a revista Movimento, do Clube
de Cultura Moderna, entidade próxima à Aliança Nacional Libertadora
5
(1935) e integrou a direção da União dos Trabalhadores Intelectuais,
associação criada em 1945, sob hegemonia do PCB.
Nas áreas econômica e política, colaboraram com artigos os economistas
Moacyr Paz e Gilberto Paim; o dirigente comunista baiano Moisés Vinhas;
Hugo Régis dos Reis, engenheiro civil e eletricista e professor da Escola
Nacional de Engenharia, no Rio de Janeiro; os deputados integrantes da
Frente Parlamentar Nacionalista Milton Reis, Clélio Lemos, Salvador
Losacco, o católico socialista Domingos Velasco e o então vice-presidente da
Comissão de Economia da Câmara Federal, Jacob Frantz, do PTB da
Paraíba. A Assessoria Técnica Parlamentar, sobre a qual se falará adiante,
também contribuiu com textos nestas áreas, e, sob orientação de Astrojildo
Pereira, foram reproduzidos documentos históricos do movimento operário
brasileiro, da fase de organização da COB (início do século XX).
No campo da cultura, da ciência e da filosofia, pontificaram ensaios dos
então membros do Comitê Cultural do PCB e ativistas do CPC da UNE,
Carlos Nélson Coutinho e Ferreira Gullar; do romancista marajoara Dalcídio
Jurandir, que participou da Associação Brasileira de Escritores (ABDE),
entidade de intelectuais dirigida pelo PCB entre 1945 e 1958; do crítico
literário e professor universitário mineiro Fábio Lucas; do físico e crítico de
arte Mário Schenberg; do poeta mineiro Ary de Andrade e dos escritores e
jornalistas Moacir Werneck de Castro e Geir Campos, este fundador do
Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de
Tradutores. Com textos sobre educação, contribuíram os professores Mariza-
Henrique Coutinho e Paschoal Lemme (autor de Memórias de um Professor),
que participou do projeto de educação de adultos criado por Anísio Teixeira
em 1933 e produziu inúmeras obras sobra a história da educação brasileira
no século XX.
No âmbito da educação partidária, visando informar a posição dos
comunistas perante diferentes concepções teóricas vigentes no período,
foram apresentados artigos de pensadores situados no campo do marxismo,
tais como os economistas russos Paul Baran e P. Kopnin, o húngaro Eugen
Varga, Regino Boti, Ministro das Finanças de Cuba e integrante do quadro
de economistas da CEPAL, o poeta, escritor e filósofo austríaco Ernst
Fischer, o romancista soviético Ilya Ehrenburg, o teatrólogo Bertold Brecht,
os filósofos Adam Schaff e Gyorgy Lukács, o historiador francês Jean Bruhat
e o escritor, seu conterrâneo, Louis Aragon. A título de curiosidade,
destaque-se a publicação de um texto criticando as concepções filosóficas e
políticas de Lukács, de autoria do então Ministro da Cultura da Hungria,
Joszef Szigeti e, para contrabalançar, a reprodução na mesma edição do
prefácio do livro A Destruição da Razão, do próprio Lukács, numa atitude
que chegou a ser saudada por Leandro Konder como a indicar a intenção
dos diretores da revista em contribuir para a “democratização da vida
interna do movimento comunista brasileiro”3.
Após o golpe de 1964, com a forte repressão desferida sobre o PCB, a
responsabilidade pela publicação de obras dos autores marxistas e pela
difusão do materialismo histórico no Brasil coube a editoras, universidades e
diversas organizações políticas e sociais. Com o fechamento da editora
3
Leandro Konder, A Democracia e os Comunistas no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1980, p. 111.
6
Vitória, pertencente ao PCB e a proibição das publicações legais, muitos dos
militantes comunistas que trabalhavam na imprensa e no mercado editorial
tentaram transformar seus locais de trabalho em espaços de luta
democrática.

Há que destacar, neste período de domínio da ditadura empresarial-militar,


o papel desempenhado pela Editora Civilização Brasileira, sob a direção do
comunista Ênio Silveira, que, apesar de toda censura, seguiu publicando
títulos clássicos dos fundadores do materialismo histórico e de outros
autores marxistas, como Antonio Gramsci, Lênin, John Reed, além dos
brasileiros Leandro Konder e Nélson Werneck Sodré. O mesmo grupo
publicou a Revista da Civilização Brasileira, que se transformou numa
verdadeira trincheira de resistência à ditadura, reunindo inúmeros
intelectuais, tendo se mantido entre 1964 e 1968, quando foi decretado o AI-
5. Atualmente, a editora mantém em seu catálogo a edição lançada entre os
anos de 2003 e 2008, com tradução de Reginaldo Sant’Anna diretamente do
original em alemão, de O Capital (em seis volumes: o Livro 1 – “O processo de
produção do capital” – com dois volumes, contém os capítulos de I a XXV; o
Livro II – “O processo de circulação do capital” – contém o volume 3; o Livro
3 – “O processo global de produção capitalista” – possui três volumes).

Outras editoras cumpriram igual papel de difusão das ideias marxistas no


Brasil durante o período da ditadura, tais como a Brasiliense, fundada por
Caio Prado Jr.; Paz e Terra (criada por Ênio Silveira, em 1967, juntamente
com o poeta Moacir Félix, para divulgar ideias ecumênicas progressistas,
contribuindo por lançar no Brasil o ideário da Teologia da Libertação); Zahar
(fundada em 1956, voltada à publicação de livros de ciências humanas e
sociais principalmente para o público acadêmico), etc.

Hoje, além das editoras ligadas às universidades públicas e outras, com


catálogos dirigidos, principalmente, ao crescente público universitário,
destacam-se, na publicação de obras clássicas do marxismo e de diversos
pensadores marxistas, as editoras Boitempo e Expressão Popular (esta
última, ligada ao MST, busca tornar mais acessível o acesso a livros
fundamentais de autores marxistas). Segue abaixo uma listagem das
principais obras clássicas dos principais teóricos do materialismo histórico,
de ontem e de hoje, publicadas no Brasil:

KARL MARX:
A guerra civil na França (Prefácio: Friedrich Engels. Tradutor: Rubens
Enderle) São Paulo: Boitempo, 2011.
Crítica da filosofia do direito de Hegel (Prefácio: Rubens Enderle.
Tradutores: Rubens Enderle e Leonardo de Deus). São Paulo: Boitempo,
2005.
Crítica do Programa de Gotha (Textos anexos: Cartas de Marx e Engels
sobre o Programa de Gotha e texto de Lênin sobre a Crítica do Programa de
Gotha. Tradução de Neuza Campos). Rio de Janeiro: Editora Livraria Ciência
e Paz, 1984.

7
Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Martins Fontes,
2003.
Formações Econômicas Pré-Capitalistas (Introdução de Eric Hobsbawm.
Tradução de João Maia). São Paulo: Paz e Terra, 1991 (6ª edição).
Grundrisse. Subtítulo: Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da
crítica da economia política. (Prefácio: Jorge Grespan e Francisco de Oliveira.
Tradutores: Mario Duayer, Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger
Hoffman). São Paulo: Boitempo, 2011.
Manuscritos econômico-filosóficos (Prefácio e tradução: Jesus Ranieri).
São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
Miséria da Filosofia. Subtítulo: Resposta à Filosofia da Miséria do Sr.
Proudhon (Tradução de Paulo Ferreira Leite). São Paulo: Centauro, 2001.
O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Prefácio: Friedrich Engels. Tradutor:
Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2011.
O Capital. Subtítulo: Crítica da Economia Política (Livros I a III. 6 volumes.
Tradução de Reginaldo Sant’Anna). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003-2008.
Capítulo VI (Inédito) de O Capital – Resultados do Processo de Produção
Imediata (Tradução de Klaus Von Puchen). São Paulo, Centauro, 2004.
Salário, Preço e Lucro (Introdução de Edmílson Costa – “Elementos para a
Teoria da Mais Valia”. Tradução de Eduardo Saló). São Paulo: Edições
Profissionais, 2004.
Sobre a Questão Judaica (Prefácio: Daniel Bensaïd. Tradutores: Nélio
Schneider / Wanda Caldeira Brant). São Paulo: Boitempo, 2010.
Sobre o suicídio (Prefácio: Michael Löwy. Tradutores: Rubens Enderle e
Francisco Fontanella). São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
Trabalho assalariado e capital & Salário, Preço e Lucro. São Paulo:
Expressão Popular, 2006.

FRIEDRICH ENGELS:
Anti-Dühring. São Paulo: Paz e terra, 1990 (3ª edicação).
A Dialética da Natureza (Prólogo de J. B. S. Haldane). Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1985.
A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Prefácio: José Paulo
Netto. Tradutor: B. A. Schumann). São Paulo: Boitempo, 2008.
A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo:
Centauro, 2002.
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Centauro,
2005.

MARX & ENGELS:


A sagrada família. Subtítulo: A crítica da Crítica crítica: contra Bruno Bauer
8
e consortes (Tradutor: Marcelo Backes). São Paulo: Boitempo, 2003.
A ideologia alemã. Subtítulo: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas (Prefácio: Emir Sader. Tradutores: Rubens Enderle,
Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano). São Paulo: Boitempo, 2007.
A ideologia alemã (Prefácio e tradução de Marcelo Backes, incluindo as
"Teses sobre Feuerbach" e uma série de anexos e esboços dos autores sobre
os ideólogos alemães). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Cultura, Arte e Literatura – textos escolhidos (com “Introdução aos
escritos estéticos de Marx e Engels”, de György Lukács. Tradução e revisão:
José Paulo Netto e Makoto Cavalcanti Yoshida). São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
Lutas de Classes na Alemanha (Prefácio: Michael Löwy. Tradutor: Nélio
Schneider). São Paulo: Boitempo, 2010.
Manifesto Comunista (Prefácio: Osvaldo Coggiola. Tradutor: Álvaro Pina).
São Paulo: Boitempo, 1998.
Manifesto do Partido Comunista (Prefácio de José Paulo Netto). São Paulo:
Cortez Editora, 2001.
Obras Escolhidas (3 volumes, com tradução feita a partir da edição do
Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao CC do PCUS). São Paulo, Alfa-
Ômega, 1982.

V. I. LÊNIN:
As três fontes. São Paulo: Expressão Popular, 2003.
Imperialismo, fase superior do capitalismo (Tradução de Olinto
Beckerman). São Paulo: Global Editora, 1987 (4ª edição).
Obras Escolhidas (3 volumes, com tradução feita a partir da edição do
Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao CC do PCUS). São Paulo, Alfa-
Ômega, 1982.
O Estado e a Revolução. Subtítulo: O que ensina o marxismo sobre o
Estado e o papel do proletariado na revolução (Apresentação de Florestan
Fernandes. Tradução de Aristides Lobo). São Paulo: Expressão Popular,
2010.
O Programa Agrário da Social-Democracia na primeira revolução russa
de 1905-1907. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
Que Fazer? Subtítulo: A organização como sujeito político (Estudo
Introdutório de Atílio Boron. Tradução de Rubia Prates Goldoni). São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

ANTONIO GRAMSCI:
Cadernos do Cárcere (edição de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio
Nogueira e Luiz Sérgio Henriques). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 6

9
volumes, 1999-2003.
Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce.
Volume 2: Os Intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo.
Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política.
Volume 4: Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e fordismo.
Volume 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália.
Volume 6: Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices: variantes e índices.
Cartas do Cárcere 1926-1937 (edição de Luiz Sérgio Henriques). Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2 volumes, 2005.
Escritos Políticos 1910-1926 (edição de Carlos Nelson Coutinho). Rio de
Janeiro, Civilizalção Brasileira, 2 volumes, 2004.

GYÖRGY LUKÁCS:
Arte e Sociedade. Subtítulo: Escritos estéticos 1932-1967 (Organização,
introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto). Rio de
Janeiro, Editora da UFRJ, 2009.
História e Consciência de Classe. Subtítulo: Estudos sobre a dialética
marxista. São Paulo: Editora Martins Fontes.
Marxismo e Teoria da Literatura (Seleção, apresentação e tradução de
Carlos Nelson Coutinho). São Paulo: Expressão popular, 2010.
O Jovem Marx e outros escritos de filosofia (Organização, introdução e
tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto). Rio de Janeiro,
Editora da UFRJ, 2009.
Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social. Subtítulo: Questões de
princípio para uma ontologia hoje tornada possível (Apresentação de Ester
Vaisman e Ronaldo Vielmi Fortes. Tradução de Lya Luft e Rodnei
Nascimento). São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
Socialismo e Democratização – Escritos Políticos 1956-1971
(Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo
Netto). Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2008.

ISTVÁN MÉSZÁROS:
A crise estrutural do capital (Prefácio: Ricardo Antunes. Tradutores:
Francisco Raul Cornejo e outros). São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
A educação para além do capital (Prefácio: Emir Sader. Tradutora: Isa
Tavares). São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
A teoria da alienação em Marx (Prefácio: Maria Orlanda Pinassi. Tradutora:
Isa Tavares). São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
Atualidade histórica da ofensiva socialista. Subtítulo: Uma alternativa
radical ao sistema parlamentar (Tradutores: Paulo Cesar Castanheira e
Maria Orlanda Pinassi). São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
10
Estrutura social e formas de consciência. Subtítulo: a determinação social
do método (Tradutores: Luciana Pudenzi, Francisco Raul Cornejo e Paulo
Cezar Castanheira). São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
Estrutura social e formas de consciência II. Subtítulo: A dialética da
estrutura e da história (Tradutores: Rogério Bettoni e Caio Antunes). São
Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
Filosofia, ideologia e ciência social. Subtítulo: ensaios de negação e
afirmação (Tradutora: Ester Vaisman). São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
O desafio e o fardo do tempo histórico. Subtítulo: o socialismo no século
XXI (Prefácio: John Bellamy Foster. Tradutores: Ana Cotrim e Vera Cotrim).
São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
O poder da ideologia (Tradutor: Paulo Cezar Castanheira). São Paulo:
Boitempo Editorial, 2004.
O século XXI. Subtítulo: socialismo ou barbárie? (Tradutor: Paulo Cezar
Castanheira). São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
Para além do capital. Subtítulo: rumo a uma teoria da transição (Prefácio:
Ricardo Antunes. Tradutores: Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

11
1
XIV CONGRESSO DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB)

O CAPITALISMO ONTEM E HOJE

I – Introdução: das origens agrárias ao capitalismo industrial

1. Ao contrário do que sempre pregaram os economistas e filósofos liberais, o


capitalismo não se caracteriza como um conjunto de práticas e hábitos resultantes de
uma determinada “natureza humana”, de uma “inclinação natural” dos homens a
comerciar, permutar e trocar. Segundo o modelo liberal e mercantil de explicação do
surgimento do capitalismo, este teria nascido e se criado na cidade: qualquer cidade,
com suas práticas de intercâmbio e comércio, era, por natureza, capitalista em
potencial. Nas sociedades anteriores ao pleno desenvolvimento do capitalismo,
obstáculos externos à lógica de funcionamento da economia teriam impedido que
qualquer civilização urbana desse origem ao capitalismo. A religião errada, o tipo
errado de Estado, grilhões ideológicos, políticos ou culturais teriam servido como
obstáculos à afirmação plena da “natureza humana” ao comércio e à troca.

2. Marx rompeu com a tese liberal do surgimento do capitalismo, ao insistir na


especificidade do capitalismo e de suas leis de movimento, considerando que os
imperativos específicos do capitalismo – sua fúria competitiva de acumulação por meio
do aumento da produtividade do trabalho – eram muito diferentes da lógica ancestral
da busca do lucro comercial, e não era possível identificar manifestações do
capitalismo ao longo de toda a história humana.

3. A diferença básica entre as sociedades pré-capitalistas e capitalistas tem a ver com


as relações particulares de propriedade entre produtores e apropriadores, seja na
agricultura ou na indústria: nas sociedades anteriores ao capitalismo, os produtores
diretos (camponeses) permaneciam de posse dos meios de produção, particularmente
a terra, e o trabalho excedente era expropriado através da coerção direta (meios extra-
econômicos), exercida por grandes proprietários ou pelos Estados, que empregavam
sua força superior – o poder militar, jurídico e político.

4. Somente no capitalismo o modo de apropriação passa a se basear na


desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é
apropriado por meios puramente econômicos: desprovidos de propriedade, os
produtores diretos são obrigados a vender a força de trabalho para sobreviver, e os
capitalistas podem apropriar-se do trabalho excedente dos trabalhadores sem uma
coação direta.

5. Capital e trabalho são profundamente dependentes do mercado para obter as


condições mais elementares de sua reprodução: os trabalhadores precisam dele para
vender a força de trabalho e adquirir os meios de sua subsistência; os capitalistas,
para comprar a força de trabalho e os meios de produção, bem como para realizar
seus lucros. O mercado passa a ser determinante e regulador principal da reprodução
social, penetrando inclusive na produção da necessidade mais básica da vida: o
alimento. Criam-se os imperativos da competição, da acumulação e da maximização
do lucro.

6. Na verdade, o capitalismo não nasceu na cidade, mas no campo, num lugar


específico e numa época definida. As forças competitivas foram fatores fundamentais
2
na expropriação violenta dos produtores diretos (camponeses), conforme descreveu
Marx, com riqueza de detalhes, em “A Assim chamada acumulação primitiva” (Livro I,
volume 2 de O Capital). Os cercamentos das terras comunais e dos campos abertos
ingleses representaram, de fato, a extinção, com ou sem a demarcação física das
terras, dos costumes em comum e dos direitos consuetudinários dos trabalhadores e
pequenos proprietários, visando a criação extensiva de ovelhas ou o cultivo de terras
aráveis com maior produtividade. Assim também nascia uma nova concepção de
propriedade privada: a propriedade, no capitalismo agrário nascente, passava a ser,
além de privada, absoluta e exclusiva, ao excluir grandes contingentes de indivíduos e
comunidades do acesso à terra e aos meios de produção.

7. O capitalismo industrial desenvolve-se, nos séculos XVIII e XIX (através da


chamada Revolução Industrial), como consequência das modificações introduzidas
pelo capitalismo agrário. O processo de acumulação primitiva do capital, no qual é
fator determinante a formação do trabalhador assalariado, totalmente expropriado e
apartado dos meios de produção, criara, entre os séculos XVI e XVIII na Inglaterra, um
mercado unificado nacional, cada vez mais único, integrado e competitivo, ao
desenvolver um crescente mercado consumidor formado por não proprietários,
dependentes da compra do alimento e da vestimenta (mercado de massa). A
necessidade de aumentar a produção de bens de consumo correntes e não de bens
suntuários para mercado restrito convertia em capital industrial a riqueza acumulada
durante a acumulação primitiva.

8. O capitalismo consolidou-se, ao longo do século XIX, como modo de produção


dominante em escala mundial. A consolidação do capitalismo ocorre quando se dá a
generalização da lei do valor para todos os produtos do trabalho humano, num
processo de mercantilização do trabalho objetivado, estendido aos próprios agentes
produtivos, também transformados em mercadorias. Nesse momento, o trabalhador
passa por um processo de expropriação do seu saber-fazer e cristalização desse
conhecimento em um processo mecânico e objetivo. Com a associação do trabalhador
a uma máquina simples, o capital separa braços e mentes, tornando o conhecimento
aplicado no processo de trabalho em algo externo aos próprios agentes produtivos. Foi
preciso, então, criar um segmento de trabalhadores técnico-científicos, separado da
classe trabalhadora tradicional, vinculado a um trabalho unicamente intelectual (sem
nenhuma relação direta com algum trabalho manual específico), responsável
unicamente pela gestão e organização do trabalho.

9. A divisão entre concepção e execução abriu a possibilidade de o trabalho intelectual


tornar-se produtivo e de a ciência interferir diretamente no processo de produção,
pois, com a consolidação do processo de formação do trabalhador coletivo, não é
produtivo apenas o trabalho manual, mas qualquer tipo de trabalho que, de algum
modo, participe do processo de valorização do capital. Mas a subsunção real do
trabalhador ao capital nunca se dá de forma absoluta e tampouco se dá de forma
passiva (a relação é sempre contraditória, conflituosa), bem como o trabalho manual,
mesmo o mais mecânico possível, jamais é completamente desprovido de
subjetividade.

10. Com o uso da maquinaria, o trabalho torna-se objetivamente abstrato. Isto porque
somente por meio da troca de mercadorias o trabalho individual que as produziu se
torna social: as mercadorias só têm um caráter objetivo como valores na medida em
que são todas expressões de uma substância social idêntica: o trabalho humano. O
caráter objetivo da mercadoria (o valor) é, portanto, puramente social. O trabalho
3
abstrato é, então, a propriedade adquirida pelo trabalho humano quando dirigido
para a produção de mercadorias.

11. O capital não é uma coisa, mas uma relação social de exploração. No capitalismo
desenvolvido, a tecnologia apresenta-se como um método de extração de mais valia
relativa, pois a introdução das máquinas e o uso da ciência para o desenvolvimento de
novas tecnologias e sistemas de organização da produção propiciam o aumento
progressivo e vertiginoso da produtividade sem a necessidade de obtenção de maior
produção por meios meramente coercitivos ou com a extensão da jornada de trabalho
(mais valia absoluta).

12. A maquinaria e as técnicas de gerenciamento a serviço do capital, ao provocarem a


desvalorização da força de trabalho, têm como finalidade primordial a diminuição da
quantidade de trabalho necessário para a produção de mercadorias, principalmente
da mercadoria mais importante do capitalismo: a força de trabalho. Até porque o
desenvolvimento das forças produtivas, nesses moldes, embute a aplicação de novas
formas de dominação dos agentes produtivos, na intenção de capturar a subjetividade
operária para o processo hegemônico do capital. Marx já afirmava na Miséria da
Filosofia: “a partir de 1825, quase todas as invenções foram o resultado de conflitos
entre operários e patrões, que tratavam, a todo custo, de depreciar a especialidade dos
operários. Depois de cada greve, ainda que fosse de pouca importância, surgia uma
nova máquina”.

II – Capitalismo monopolista e imperialismo

13. O período compreendido entre meados da década de 1840 e 1873 (ano que
assinalou o início da Grande Depressão na Europa) ficou conhecido como a era de
ouro do capitalismo de livre concorrência. Foram anos que se caracterizaram pela
rápida expansão econômica em toda a Europa. Mas justamente quando o capitalismo
de livre concorrência parecia atravessar a sua fase de maior esplendor, as forças que
levariam à concentração de capital, como previra Marx, começaram a produzir os seus
efeitos. Os aperfeiçoamentos tecnológicos foram de tal monta que somente as fábricas
de grande porte puderam tirar proveito dos novos e mais eficientes métodos de
produção.

14. A concorrência tornou-se tão agressiva e destrutiva que, em pouco tempo, as


empresas menores foram eliminadas. Os concorrentes mais poderosos, em vias de se
destruírem uns aos outros, frequentemente optavam por se associar, formando
cartéis, trustes ou fundindo-se para assegurar a sua sobrevivência. A sociedade
anônima por ações ou corporação converteu-se num recurso eficaz que possibilitava a
uma única organização financeira assumir controle sobre vultosas quantidades de
capital. Desenvolveu-se, na Europa e nos Estados Unidos, um vasto e bem organizado
mercado de capitais, que centralizava, para as grandes corporações, as pequenas
poupanças em capital de milhares de indivíduos e de pequenos empresários.

15. Em fins do século XIX, no mundo dominado pelas gigantescas corporações que
produziam em massa artigos destinados aos mercados nacionais ou mundiais, a
concorrência de preços teve consequências tão devastadoras que as próprias
corporações acabaram renunciando a ela. Configurou-se uma tendência inexorável à
formação de um poder monopolista exercido por algumas poucas corporações. Várias
grandes empresas se associaram voluntariamente, formando cartéis ou pools, por
exemplo, preservando, ao mesmo tempo, uma relativa autonomia de ação. Outras
formas de associação utilizavam uma empresa financeira – um truste ou uma
4
companhia (holding) para controlar as ações com direito a voto das corporações
participantes. Havia ainda a alternativa da fusão ou amálgama de várias empresas,
formando uma única corporação unificada.

16. Tal processo de concentração de capitais ocorreu tanto nas empresas industriais
quanto nos bancos, provocando a substituição da grande quantidade de pequenas
casas bancárias por um pequeno número de grandes bancos, forçando, ainda, que o
capital industrial buscasse a associação com o capital bancário, pela necessidade de
créditos e visando a formação das sociedades anônimas por ações. Forjou-se, assim, o
capital financeiro, que passava a influir diretamente na vida das empresas,
comprando e vendendo ações, promovendo fusões e associações entre os grupos
empresariais e influenciando, junto aos Estados, nas diretrizes das políticas
econômicas adotadas.

17. A revolução tecnológica, promovendo grandes mudanças na velocidade e no


ordenamento da produção, foi responsável por permitir, com a utilização de novas
técnicas e novas fontes de energia, o desenvolvimento da indústria pesada e de bens
de consumo duráveis. Tais mudanças vieram acompanhadas de uma tentativa
sistemática de se racionalizar a produção e, consequentemente, aumentar a
produtividade, para o que as empresas passavam a adotar métodos científicos na
organização do trabalho dentro da fábrica, como o taylorismo e o fordismo.

18. Estes métodos visavam, acima de tudo, o maior controle dos patrões sobre a mão
de obra operária, tendo se constituído em novas formas de dominação burguesa sobre
o operariado dentro da fábrica, ao interferir diretamente no tempo de trabalho e na
forma de organização da produção. Buscava-se, assim, quebrar a resistência dos
trabalhadores à exploração do capital, minando a solidariedade entre eles, através da
imposição de um ritmo feérico de trabalho e da competitividade como norma entre os
próprios operários. As mudanças introduzidas por Taylor e Ford, simbolizadas,
respectivamente, no cronômetro e na esteira rolante, não foram meras inovações
tecnológicas, mas verdadeiras revoluções de ordem administrativa e gerencial, pois
colocaram a ciência da administração a serviço não apenas do aumento da produção e
da produtividade, mas, fundamentalmente, do poder dos capitalistas, constituindo o
despotismo de fábrica.

19. Outra característica fundamental deste processo histórico foi a maior participação
dos Estados, hegemonizados por grupos empresariais, grandes proprietários de terras
e banqueiros, na vida econômica das nações capitalistas desenvolvidas, abandonando-
se, gradativamente, a tradicional política de laissez-faire predominante na fase
concorrencial do capitalismo. Em sua nova fase de desenvolvimento, o capitalismo
exigia que os Estados adotassem medidas para facilitar sua expansão, através de
políticas protecionistas e de investimento na indústria pesada e bélica, com vistas a
favorecer a exportação de produtos e capitais, além de garantir a presença dos
grandes conglomerados em várias áreas do globo, em meio à acirrada disputa
imperialista que se estabeleceu entre as potências industriais.

20. Todo este conjunto de novas situações, em que se destacam a forte concentração
de capitais, a crescente capacidade produtiva das empresas, devido às inovações
tecnológicas, o acirramento da luta de classes, com o fortalecimento do movimento
operário na segunda metade de século XIX, provocou a necessidade imperiosa de
conquista de territórios que representassem novos mercados consumidores dos
produtos industrializados, ao mesmo tempo em que se caracterizavam como
fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata ou semiescrava.
5
21. Para Lênin, configurava-se um novo patamar histórico, uma mudança qualitativa
no capitalismo até então existente. O imperialismo não envolvia apenas a partilha do
mundo, mas uma nova articulação entre ciência e processo produtivo, o aumento das
exportações de capitais, uma nova correlação de forças entre a classe trabalhadora
dos países imperialistas e as respectivas burguesias, novas relações entre capital
financeiro e Estado. A concentração ampliada de capitais alterava qualitativamente as
relações sociais, impondo novas e mais perversas formas econômicas, sociais, políticas
e ideológicas – de caráter mundial. A tendência à monopolização expressava que, para
manter-se como forma de acumulação ampliada, o capital precisava efetuar
significativas e efetivas transformações no conjunto da vida social, implicando em
novos desafios para a luta de classes.

22. O processo de aprofundamento e alargamento das relações capitalistas no mundo


veio acompanhado de outro, igualmente drástico, para as populações: o das
sucessivas crises de superprodução, que passavam, a contar da década de 1870, a
fazer parte da realidade econômica dos países capitalistas desenvolvidos, cujas
consequências atuariam no sentido de contribuir, sensivelmente, para a promoção de
alterações profundas na estrutura das sociedades burguesas. A partir da consolidação
do capitalismo na sua fase imperialista, percebem-se as crises econômicas como
muito mais prolongadas, ao contrário do que se podia sentir nas crises anteriores à
transição para o capitalismo monopolista, as quais teriam se caracterizado por serem
explosivas e menos duradouras, causadas, principalmente, por más colheitas e
ausência de produtos no mercado, provocando fome, miséria e revoltas sociais de
vulto, a canalizar o descontentamento imediato das massas.

23. A possibilidade de crise no capitalismo nasce da produção desordenada e do fato


pelo qual a extensão do consumo, pressuposição necessária da acumulação
capitalista, entra em contradição com outra condição, a da realização do lucro, já que
a ampliação do consumo de massas exigiria aumento de salários, o que provocaria
redução da taxa de mais valia. Tal contradição insanável faz com que o capital busque
compensá-la através da expansão do campo externo da produção, isto é, da ampliação
constante do mercado. Quanto mais a força produtiva se desenvolve, tanto mais entra
em antagonismo com a estreita base da qual dependem as relações de consumo.
Portanto, a crise periódica é inerente ao capitalismo, pois somente pode ser resultante
das condições específicas criadas pelo próprio sistema.

24. Segundo a teoria exposta originalmente por Marx no Livro III de O Capital, quanto
mais se desenvolve o capitalismo, mais decresce a taxa média de lucro do capital. Esta
ideia fundamenta-se no fato de que o processo de acumulação capitalista leva,
necessariamente, ao aumento da composição orgânica do capital, a qual é apontada
como sendo a relação existente entre o capital constante (o valor da quantidade de
trabalho social utilizado na produção dos meios de produção, matérias-primas e
ferramentas de trabalho, ou seja, o “trabalho morto” representado, basicamente, pelas
máquinas e pelos insumos necessários à produção) e o capital variável (valor invertido
na reprodução da força de trabalho, o “trabalho vivo” dos operários). O processo de
acumulação resulta na tendência à substituição do “trabalho vivo”, a única fonte de
valor, por “trabalho morto”, que não incorpora às mercadorias nova quantidade de
valor, mas apenas transmite às mesmas a quantidade de valor já incorporada nos
meios de produção.

25. Tal situação é decorrente da própria concorrência inerente ao sistema capitalista,


a qual obriga os capitalistas a buscar superar seus rivais através do investimento em
meios de produção tecnologicamente mais avançados, para reduzir os custos da
6
produção, além de tentar economizar ao máximo na parcela relativa ao capital
variável, em função do acirramento dos conflitos provocados pela luta de classes e
pelo fortalecimento do movimento operário. A queda da taxa de lucro, portanto, é
resultado, em última instância, da tendência à substituição do “trabalho vivo” por
“trabalho morto”, fazendo reduzir a fonte de mais valia, o que acaba por originar uma
superacumulação de capital e de mercadorias, ao mesmo tempo em que promove uma
restrição na capacidade de consumo da sociedade, por causa do desemprego que
desencadeia.

26. Com o desenvolvimento pleno do capitalismo, cresce a interdependência


internacional dos processos econômicos nacionais, situação que se reflete no caráter
das crises, fazendo da crise capitalista um fenômeno mundial. Na fase imperialista, o
poder industrial separa-se da fábrica e centraliza-se num truste, num monopólio, num
banco, ou na burocracia de Estado, sendo ultrapassada a fase liberal na qual o
proprietário era, ao mesmo tempo, empreendedor, gerenciando uma propriedade
individual ou familiar. A concorrência clássica da época da “mão invisível do mercado”
foi substituída pela concorrência entre oligopólios, empresas múltiplas comandadas
por gerências que trocaram a gestão empirista e intuitiva do capitalismo liberal pelo
planejamento estratégico. Ao contrário do que parte da esquerda imaginou à época, a
planificação gerencial das empresas não significou um passo na direção do socialismo,
pois a competição não deixou de existir, apenas tendo se transferido para novos
patamares, assim como o planejamento oligopolista não alterou a estrutura da
sociedade, mas contribuiu para o processo de renovação e ampliação da hegemonia
burguesa.

III – O capitalismo contemporâneo

27. As tendências verificadas na passagem para o imperialismo aprofundaram-se


durante a primeira metade do século XX, sendo responsáveis pela eclosão de duas
guerras mundiais, entremeadas pela grande crise econômica de 1929 e a ascensão do
nazifascismo. Uma nova ordem econômica mundial foi erigida, no mundo capitalista,
após a Segunda Grande Guerra, muito em função do surgimento de um poderoso
bloco socialista capitaneado pela União Soviética. A Conferência de Bretton Woods,
realizada nos EUA em 1944, estabelecia as bases da economia capitalista
contemporânea, com a definição das regras do sistema monetário e financeiro
internacional capitalista ao fim do conflito, visando impedir o excesso de moeda
circulante e a inflação (conforme a ortodoxia liberal, o excesso de dinheiro circulando
no mercado e altos salários dos trabalhadores eram apontados como principais
causadores da inflação e das crises econômicas).

28. A conjuntura do pós-guerra apontava para o poderio inquestionável dos Estados


Unidos, que saíam da guerra como a grande potência econômica, financeira, política e
militar, liderando o bloco capitalista e iniciando a Guerra Fria contra a União Soviética
e o bloco socialista. O dólar foi definido como moeda padrão internacional, e o Plano
Marshall, encabeçando a ajuda estadunidense aos países capitalistas destruídos pela
guerra, politizava as relações entre as nações: à medida que crescia a participação dos
EUA na defesa do chamado “mundo livre” (capitalista), os gastos militares desse país
passaram a representar o maior movimento de capitais para o exterior. A criação do
BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, o Banco Mundial),
do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do GATT (atual Organização Mundial do
Comércio) cumpria o objetivo de administrar um sistema no qual o desenvolvimento
econômico mundial passava a depender em larga medida da aceitação das condições
impostas pelos Estados Unidos.
7
29. A nova conjuntura internacional enterrava definitivamente a antiga ordem
imperial baseada na colonização direta. O “novo imperialismo” implicou que cada vez
mais regiões do globo se tornassem dependentes do mercado, fato que permitiria à
nova potência imperial capitalista (EUA) penetrar muito além do alcance da conquista
militar e do domínio político direto. O capitalismo, que sempre foi capaz de gerar
novas e crescentes necessidades de expansão permanente, demonstrava também ser
capaz de produzir outra forma de dominação, diferente de qualquer uma que tenha
existido no passado: a dominação não mais exclusivamente dependente do controle
político e militar direto, mas realizada através de imperativos econômicos e da
subordinação ao mercado, manipulado em benefício do capital imperialista.

30. Novos métodos de sujeição foram desenvolvidos, permitindo às principais


potências capitalistas e aos Estados Unidos, em particular, direcionarem os Estados a
agirem em benefício do grande capital, sem a necessidade de, a todo momento, exercer
o domínio militar direto. Ilustração significativa desta mudança foi a emergência da
Alemanha e do Japão após a guerra, com a ajuda de seus antigos adversários, como
os maiores competidores econômicos dos EUA, numa relação contraditória de
concorrência e cooperação.

31. Nos anos seguintes à guerra, os Estados Unidos e as principais economias


capitalistas viveram um longo boom econômico. Em tais condições, havia interesse
real no desenvolvimento das economias nacionais, tendo em vista que isso significava
a expansão dos mercados consumidores. Tal situação favoreceu a emergência do
Welfare State (Estado de Bem Estar Social), caracterizado pela aplicação, pelos
Estados europeus, de um conjunto de medidas e leis de proteção aos trabalhadores a
partir de 1945. Em países como Inglaterra, França, Suécia, Alemanha e outros, o
Estado passou a ser responsável pela previdência social, pela assistência médica
universal, estabelecendo, ainda, seguros sociais que garantiam o amparo à velhice, à
invalidez, à maternidade e aos desempregados. Além disso, o Estado passava a
controlar os setores estratégicos da economia (energia, comunicações, transportes,
serviços públicos, etc).

32. A emergência do Welfare State foi consequência de uma série de fatores


conjugados, para além da conjuntura de crescimento econômico após a Segunda
Grande Guerra: a conquista de direitos sociais e trabalhistas pelo movimento operário
europeu, após mais de um século de embates; o receio de novas crises econômicas
após o crack da Bolsa de Nova York, em 1929; a experiência keynesiana anterior nos
Estados Unidos, com o New Deal, durante o governo Roosevelt; a ascensão ao poder
de partidos socialdemocratas, trabalhistas ou socialistas; o fortalecimento dos
partidos comunistas após a guerra, graças à participação destacada na resistência ao
nazifascismo em seus países e ao prestígio conquistado pela União Soviética em
função de sua decisiva atuação para a derrota da Alemanha nazista e para a
libertação dos territórios sob domínio alemão; a pressão político-ideológica exercida
pelo bloco socialista.

33. Os primeiros sintomas de uma nova crise capitalista de grandes proporções,


porém, foram sentidos na década de 1960, quando o passivo externo, isto é, o dólar
circulante fora dos Estados Unidos, era exatamente igual às reservas norte-
americanas em ouro. Se todo mundo chegasse com dólar e exigisse do governo dos
EUA a troca por ouro, as reservas cairiam a zero. Daí para a frente, o distanciamento
entre o passivo externo e o ouro nos EUA só tendeu a aumentar. A conjuntura
internacional era marcada pela crescente recuperação das economias europeias e do
Japão, resultando na maior concorrência das empresas destes países com as norte-
8
americanas, acompanhada de um processo acirrado de lutas de libertação nacionais
na África e na Ásia (1958/1963) e da expansão da Guerra Fria. A participação direta
dos EUA em conflitos regionais, como as Guerras da Coreia e do Vietnam, aprofundou
os gastos militares e a corrida armamentista. Daí que a crise do petróleo, em 1973,
tenha sido apenas a gota d’água de um processo de crise econômica já há tempos
anunciado.

34. O boom econômico terminava nos anos 1970, em grande parte porque a
competição entre as grandes potências capitalistas produzia uma crise de
superprodução e queda de lucros. Começava um novo movimento descendente na
economia capitalista globalizada. Paralelamente, a crise política vivenciada nos anos
1980 pelos países socialistas do Leste Europeu e, com maior dramaticidade, pela
União Soviética da era Gorbatchev, possibilitou a ofensiva do grande capital na fase
neoliberal, marcada também pela ascensão ao poder de grupos de direita, por meio
das eleições, em diversos países ocidentais (Margaret Thatcher, 1979, Inglaterra;
Ronald Reagan, 1980, EUA; Helmut Khol, 1982, Alemanha; Schluter, 1983,
Dinamarca).

35. As metas supremas dos governos neoliberais passavam a ser a estabilidade


monetária; a contenção dos gastos com o bem estar social; a restauração da taxa
“natural” de desemprego, ou seja, o aumento do exército de reserva de mão de obra,
para reduzir salários e quebrar o poder de pressão dos sindicatos; as reformas fiscais
para incentivar agentes econômicos; a redução dos impostos cobrados aos mais ricos e
às grandes fortunas (setor dinâmico da sociedade capitalista). Segundo este
receituário, uma nova e “saudável desigualdade” deveria ser estimulada para voltar a
dinamizar as economias avançadas.

36. Dentre as principais políticas adotadas pelos governos neoliberais estavam os


programas de privatizações de empresas estatais nos setores estratégicos e de serviços
públicos, favorecendo o avanço dos processos de oligopolização e monopolização do
capital. O desmonte do Estado de Bem Estar se deu através do corte nos gastos
sociais e da mercantilização dos direitos sociais duramente conquistados pelos
trabalhadores, os quais foram convertidos em bens ou serviços adquiríveis no mercado
(saúde, educação, seguridade social transformam-se em mercadorias). A ideologia
dominante promove a exaltação do mercado: competir é a regra; cidadania vira
sinônimo de possibilidade de acesso ao consumo dos bens no mercado.

37. Desenvolvem-se novas formas de dominação dos trabalhadores, associadas à


crescente deterioração e precarização dos direitos trabalhistas, com a necessária
depreciação do valor de uso da mais importante das mercadorias no sistema
capitalista: a força de trabalho. O aumento do desemprego industrial nos países de
capitalismo desenvolvido, a adoção de novas técnicas de gerenciamento da produção e
de controle da força de trabalho, sob a égide do toyotismo, os processos de
terceirização e fragmentação das unidades produtivas (a chamada reestruturação
produtiva), a expropriação do contrato de trabalho e dos direitos sociais, como forma
de tornar o emprego descartável e a mão de obra plenamente disponível para o capital,
tudo isso contribui para a perda do sentido de classe e da capacidade de organização e
de resistência à exploração por parte dos trabalhadores.

38. O toyotismo é um modo de organização da produção capitalista que, surgido no


Japão do pós-guerra, adquiriu projeção global a partir da crise capitalista da década
de 1970. Em função do mercado consumidor restrito, da escassez de capital e matéria
prima, além da grande disponibilidade de mão de obra não especializada, no Japão
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não era possível adotar a solução fordista de produção em massa. O aumento da
produtividade da indústria japonesa foi então conquistada através da fabricação de
menores quantidades de variados modelos de produtos voltados para o mercado
externo, utilizando o sistema just in time, visando minimizar a elevação de estoques,
ao buscar produzir um bem no exato momento em que é demandado.

39. O toyotismo passa a adotar um processo de multifuncionalização da mão de obra


operária, implantando sistemas de controle de qualidade total dos produtos, através
do qual todos os trabalhadores são obrigados a exercer o controle de qualidade em
todos os pontos do processo produtivo. Com isso, sob o argumento da eliminação de
“desperdícios”, promove-se a intensificação da exploração da força de trabalho, pois
cada operário opera várias máquinas ao mesmo tempo e ocupa-se por mais tempo de
suas funções, às quais são agregadas tarefas de controle de qualidade, manutenção
dos equipamentos e limpeza do local de trabalho.

40. Uma das principais teses propagadas pelas correntes neoliberais é a de que a
chamada globalização contemporânea, além de caracterizar uma nova época histórica
marcada pelo triunfo final do capitalismo, o que teria fechado as portas para outras
alternativas políticas e sociais, promoveria uma crescente unidade e integração do
capital internacional. A transnacionalização do capital significaria não a intensificação
da concorrência, mas, ao contrário, o declínio da competição entre os grandes
capitalistas e a interpenetração dos capitais de origens nacionais, por meio de uma
crescente colaboração entre as empresas. Haveria, assim, uma relação inversa entre
globalização e competição. Quanto mais globalmente integrado ficasse o capitalismo,
menos concorrência haveria.

41. Na verdade, a globalização moderna significa justamente o contrário. Não podemos


esquecer jamais que a competição é e sempre será o coração do sistema capitalista e
que será sempre uma lei da concorrência que o capital busque caminhos para vencer
ou evitar a competição. Sendo assim, uma das consequências da competição
capitalista é o fato de que os perdedores poderão ser absorvidos pelos vencedores.
Portanto, a tendência à concentração e à centralização do capital é uma das
expressões da concorrência, não sua antítese. A competição envolvendo grandes
corporações transnacionais intensifica-se à medida que novos e cada vez mais
agressivos competidores participam da guerra pelos mercados.

42. A revolução das comunicações e a introdução da automação, que em um primeiro


momento reduziu a capacidade de negociação da classe operária, possibilitaram a
concentração da produção em unidades produtivas especializadas e capazes de
abastecer o mercado mundial. A criação de mercados comuns e a queda de barreiras
tarifárias facilitaram o fluxo de mercadorias. Teóricos anunciaram a sociedade pós-
industrial e a era dos serviços. Em parte da esquerda, virou moda dizer que o tempo
do trabalho se foi e seria a vez dos excluídos. Mas o proletariado não diminuiu, ao
contrário, cresceu em termos mundiais.

43. O capitalismo incorporou regiões e populações inteiras à produção de


mercadorias. Desorganiza a economia camponesa em diversos pontos do planeta,
separando os trabalhadores dos seus meios de produção. Cerca de um bilhão e meio
de trabalhadores foram incorporados à produção capitalista de mercadorias. Com
novos trabalhadores e novos consumidores, o capitalismo garantiu mais um ciclo de
expansão. Cento e cinquenta anos de conquistas sociais dos trabalhadores da Europa
e dos EUA, o Estado de Bem Estar Social e a concorrência do bloco socialista
encareceram o preço da força de trabalho. A produção manufatureira, em grande
10
parte, migrou da Europa, dos EUA e do Japão para outras regiões – norte do México,
Malásia e Indonésia, sul da China e Índia. Esse processo persiste, na busca de
menores custos de reprodução da força de trabalho. Pela primeira vez, a maioria da
população mundial está submetida ao processo de produção de mais valia, vivendo no
assalariamento, vendendo sua força de trabalho aos detentores de meios de produção.
Mais do que nunca, a contradição capital-trabalho é a principal em nosso tempo, não
apenas como figura de retórica.

44. Para exercer o seu alcance global, o capitalismo precisa dos Estados nacionais
para manter as condições vitais ao sucesso de suas operações, ou seja, todo um
aparato legal, político, administrativo e coercitivo capaz de prover a ordem necessária
à manutenção do sistema de propriedade numa situação de cada vez mais violenta
desigualdade. Além disso, o capital global se beneficia do desenvolvimento desigual e
da diferenciação existente nas diversas economias do mundo, que proporcionam
fontes baratas de trabalho e de recursos, ao mesmo tempo em que controlam a
mobilidade da mão de obra. A forma política do capitalismo global, portanto, não é um
Estado global, mas um sistema global de múltiplos Estados locais.

45. No mercado globalizado, o capital necessita do Estado para manter as condições


de acumulação e competitividade de várias formas, preservando a disciplina do
trabalho e a ordem social em face das crescentes políticas de expropriação (de direitos,
contratos, postos de trabalho, conquistas sociais, etc). Toda corporação transnacional
se erige sobre uma base nacional que depende de um Estado local para manter sua
viabilidade, assim como necessita que outros Estados lhe proporcionem o acesso a
novos mercados e a novos contingentes de trabalhadores. Processos históricos
nacionais de conquista da hegemonia na sociedade e no Estado por parte das frações
burguesas locais associadas aos capitais transnacionais garantiram a efetiva
expansão da ordem capitalista plenamente desenvolvida em diversos países.

46. A globalização como uma forma de imperialismo necessita da desigualdade entre


as economias nacionais e regionais, pois o capital se fortalece na diferenciação da
economia mundial, tendo liberdade para se deslocar com o propósito de explorar
regimes de mão de obra mais barata. Ao mesmo tempo, a relação entre poder
econômico e poder político, entre capital e Estado, não sendo uma relação mecânica,
mas complexa e contraditória, pode ser fonte de instabilidades para o domínio do
capital globalizado. As realidades locais, onde efetivamente acontecem os processos de
luta de classes, a todo momento sofrem mudanças em função das contradições
históricas e dos conflitos sociais, como pode ser verificado na conjuntura de amplos
movimentos de massas e ascensão de governos de corte popular nos últimos anos na
América Latina, assim como em explosivas revoltas sociais ocorridas em países
europeus.

47. Diante deste quadro de instabilidade política e social permanente, o imperialismo,


com seu centro hegemônico nos Estados Unidos, buscou aplicar a doutrina da “guerra
permanente”, elegendo o “terrorismo” como inimigo central a ser abatido, com o real
objetivo de sustentar a hegemonia do capital global estadunidense numa economia
mundial administrada por muitos e diferenciados Estados locais. A política
francamente belicista foi adotada em função da necessidade de manutenção e
ampliação do complexo industrial militar, único setor que não é exportado nem
terceirizado nos EUA. É verdade que o complexo não está imune à crise da indústria
americana, porém, consegue polpudos lucros, com a invenção de guerras e
pagamentos à vista e com altos sobrepreços.
11
48. Para a ação global imperialista, o funcionamento deste complexo industrial
militar, por meio da demonstração de um poder militar maciço, tem
fundamentalmente a pretensão de exercer um efeito intimidatório em todo o planeta,
com os EUA assumindo o papel de “polícia do mundo” em favor do capital. Como o
poder militar estadunidense não consegue estar em todo lugar o tempo todo, nem
impor um sistema de Estados plenamente subservientes, a ação imperialista dos EUA
se utiliza do efeito demonstração, atacando alvos fragilizados e previamente
escolhidos, justamente por não oferecerem ameaça real imediata, como ocorre no
Iraque e no Afeganistão.

IV – Capitalismo e luta de classes hoje

49. Nos últimos anos, o capitalismo tem vivido ciclos de crise e expansão cada vez
mais curtos e constantes. Desde o crash da bolsa americana, em 1987, o capitalismo
assistiu aos seguintes choques: crise imobiliária no Japão, no início dos anos 1990,
seguida pela estagnação dessa economia por mais de uma década; crise asiática, em
1997, com a quebra do mercado de capitais e de câmbio e perda de dinamismo da
Coreia e demais tigres asiáticos; a crise dos fundos, em 1998; crise cambial na Rússia,
em 1999; crise cambial no Brasil, México e Argentina, em 2001; estouro da bolha da
internet, em 2002; crise do mercado imobiliário estadunidense e crise de liquidez
bancária na Europa e nos EUA. O aspecto financeiro dessas crises é reflexo da perda
de dinamismo das economias da União Europeia, EUA e Japão. A crise do subprime
em 2007 foi resultado direto da diminuição da renda do trabalhador americano e do
desemprego.

50. Na esteira da crise de 1987, os mecanismos de controle dos bancos centrais se


sofisticaram, bem como a coordenação entre esses bancos. Existe uma rede
internacional da liquidez, da qual participam o Federal Reserve, dos EUA, o Banco
Central Europeu, o Banco da Inglaterra e o Banco Central Japonês. Ao mesmo tempo,
a busca por ganhos maiores trouxe um desenvolvimento constante da tecnologia
financeira, com o surgimento de novos fundos, securitização, diversificação de
portfólios e derivativos. A garantia da liquidez fez os detentores de riqueza assumir
riscos maiores, criando um risco moral, em função do papel garantidor de última
instância dos bancos centrais. Mecanismos de governança bancária e de disciplina da
liquidez viraram letra morta, com a autonomia dos gestores de fundos, autonomia esta
estimulada pelos grandes bancos, em busca de ganhos extras e diluição de riscos.

51. A velocidade das comunicações, casada com a desregulamentação geral dos


mercados de dinheiro e ativos, favoreceu ainda mais a atuação dos detentores de
riqueza por todo o planeta, intensificando a concorrência por capitais. Empresas e
governos ofereceram aos aplicadores remunerações acima das taxas de inflação e de
crescimento real da economia, aumentando os volumes de recursos nas mãos dos
detentores de riqueza. Isso gerou uma superabundância de liquidez (dinheiro
disponível para investimentos reais e financeiros), que, em consequência, levou a uma
inflação de ativos. A globalização das finanças é decorrente da universalização do
capital. Essa universalização nada mais é do que a universalização da extração da
mais valia, da exploração da força de trabalho.

52. Importador universal, os EUA geram um imenso déficit externo, casado com um
déficit fiscal de similar magnitude. Para fazer frente a estes déficits, o capitalismo
estadunidense depende do endividamento do governo, das empresas e das famílias.
Para sustentar esse endividamento, os EUA se tornaram os maiores importadores de
capital. Vendem títulos de governo, ações, obrigações privadas, títulos de todo o tipo,
12
empresas, tudo para sustentar o serviço das dívidas pública e privadas. A economia
dos EUA é vítima do próprio expansionismo: as grandes empresas procuram outros
pousos, onde o custo da reprodução da força de trabalho é mais baixo. A revolução
tecnológica elevou a composição orgânica do capital, aumentando as taxas de mais
valia e reduzindo as taxas de lucro. Isso forçou a uma concentração de capital em
proporções nunca vistas, com fusões e aquisições que se espalham pela produção
capitalista no mundo todo. A oligopolização da economia, inclusive do comércio
varejista, destruiu a pequena e média indústria dos EUA.

53. A estagnação da economia estadunidense é um fenômeno claro desde a década de


1970. Mesmo entremeado de períodos de grande crescimento, como na segunda
metade dos anos 1980 e de meados dos anos 1990, a tendência para o baixo
crescimento é constante. Os EUA assistiram a migração de várias de suas indústrias –
para México, China, Leste Asiático – e a desnacionalização de muitas de suas
empresas. A indústria automobilística, carro chefe da economia nos EUA, enfrenta
uma crise sem precedentes, com fortes prejuízos das três maiores montadoras. A
infraestrutura sofre com o abandono e a falta de investimentos. O peso dos EUA no
PIB global diminui ano a ano.

54. Em função da crescente expropriação dos trabalhadores e da redução de sua


capacidade de compra em nível mundial, as empresas produzem mais do que os
mercados em retração podem absorver. Assim, a onda sucessiva de compra e venda de
papéis acaba por criar um castelo de cartas, que facilmente desmorona por não ter
vínculos com a economia real, da produção. Ocorre, assim, a superacumulação de
capitais e a impossibilidade de valorizá-los na esfera da produção. A crise econômica
atual rapidamente se alastrou por todo o sistema capitalista e todos os países do
mundo. Pelos volumes de recursos que envolve, é uma crise maior que a de 1929 e,
como o capitalismo está globalizado, seja no comércio de bens e serviços, nas cadeias
produtivas, no caráter mundial das grandes empresas ou na movimentação financeira,
ela atinge, simultaneamente, o centro do sistema, ou seja, Estados Unidos, Europa e
Japão, e impacta os chamados mercados emergentes, como China, Rússia, Índia e
Brasil.

55. As primeiras respostas oferecidas pelos governos dos países centrais combinaram
elementos de ajuda e de estatização de bancos e socorro a empresas de grande porte,
além de baixas nas taxas de juros. A evolução da crise depende, portanto, da
combinação de medidas a serem tomadas e o peso dado a cada uma delas. No
momento, os sinais claros são de recessão, que poderá prolongar-se, tornando-se uma
depressão, ou convergir para um período de alguns anos sem crescimento, ou seja, de
estagnação, trazendo consigo o desemprego e grandes tensões sociais no centro e na
periferia do capitalismo. Neste quadro, aprofunda-se a ofensiva contra os salários,
direitos e garantias dos trabalhadores, assim como ganham maior expressão posturas
direitistas e fascistizantes, em favor de modelos francamente autoritários de exercício
de poder.

56. As alternativas à crise adotadas pelos governos burgueses puseram em cheque o


discurso neoliberal, pois a ajuda dada aos bancos e às empresas pelos Estados
representou uma contradição em relação às principais teses do projeto que, com o real
propósito de oferecer toda a liberdade aos capitais e aumentar a taxa de exploração da
força de trabalho, pregava a saída do Estado das esferas da produção – com a
privatização de empresas públicas – e do planejamento, a desregulamentação das
economias, o fim dos sistemas de proteção à produção interna, a retirada dos direitos
dos trabalhadores, o desmonte dos sistemas de bem estar públicos e outras medidas.
13
57. Até o momento, as medidas tomadas pelos Estados para salvar o grande capital
da crise significaram um recuo e, em grande medida, uma desmoralização da
propaganda ideológica usada para transformar em senso comum os mitos criados pelo
neoliberalismo, como o mito do mercado autorregulador das relações econômicas, o
mito da retirada do Estado da economia e das privatizações, o mito da
desregulamentação, além do mito da credibilidade das agências de risco e do fim da
história. A crise tende a ampliar o desgaste político do império estadunidense, reforça
os conflitos interimperialistas e a tendência à multipolaridade, abrindo novos espaços
para a propaganda do socialismo, mesmo que os trabalhadores continuem submetidos
a processos de fragmentação e precarização, que dificultam sobremaneira a sua
organização.

58. O desenrolar da crise depende, fundamentalmente, da correlação de forças


verificada nos embates sociais que virão. As dimensões da crise e as dificuldades de
sua superação sinalizam para o acirramento da luta de classes e para a retomada do
movimento de massas em caráter mundial, abrindo novas possibilidades de
enfrentamento no sentido da transformação e da derrocada do sistema capitalista.
Assim, cabe às forças revolucionárias lutar para que as classes trabalhadoras
assumam, organizadamente, a condução e o protagonismo do processo, garantindo
soluções que, ao mesmo tempo em que combatem os efeitos imediatos da crise, criem
as condições para que se acumule, na contestação da ordem burguesa, na defesa de
seus direitos e na obtenção de novas conquistas, na organização e na consciência dos
trabalhadores, a força necessária para assumir a direção política da sociedade no
caminho da superação revolucionária do capitalismo. Mais do que nunca, está na
ordem do dia a questão do socialismo.

59. Os processos atuais que conduzem grandes contingentes populacionais, em escala


mundial, a serem colocados na condição de força de trabalho plenamente disponível e
livre para o capital evidenciam a criação de formas renovadas de expropriação capazes
de destruir laços sociais e ordenamentos jurídicos que, ao longo da história de lutas
dos trabalhadores contra os imperativos do capitalismo, funcionaram como freios à
ação do capital frente à força de trabalho. Para que seja possível a produção constante
de valor, a expropriação precisa ser incessante e ampliada. Ao lado de persistir a
expropriação original, ou seja, aquela exercida sobre o campesinato, tendo em vista
ainda subsistirem grandes massas de trabalhadores rurais a se tornarem assalariadas
(na China, Índia e América Latina, por exemplo), outras expropriações seguem
reconduzindo grande número de trabalhadores à plena disponibilidade para o
mercado de força de trabalho, através da destruição dos vários anteparos legais que,
resultado histórico da luta de classes, funcionam como garantia social para impedir a
venda da força de trabalho de forma ilimitada.

60. A introdução de novas tecnologias capazes de manter a cooperação dos


trabalhadores no processo produtivo à revelia da fragmentação física do ambiente de
trabalho, possibilitando que esta cooperação, essencial à produção de mais valia,
ocorra com os trabalhadores dispersos (cuja associação real torna-se invisível),
promove a expropriação da resistência que, antes, os operários ofereciam por sua
proximidade no local de trabalho. Outra forma é a expropriação do contrato de
trabalho, realizada através da destruição paulatina de direitos e de leis de proteção à
força de trabalho, conquistados como forma de limitar a ação ofensiva do capital sobre
o trabalho.

61. As expropriações contemporâneas também incidem sobre tradições e costumes


culturais das massas populares, afetando diferentes formas de solidariedade de classe
14
e de resistência à exploração; sobre conquistas sociais tais como a saúde e a
educação públicas, hoje cada vez mais mercantilizadas; sobre os movimentos sociais,
que sofrem renovados processos de criminalização, com o uso ainda maior da
violência física aberta (estatal e paraestatal) e a supressão de direitos civis, políticos e
sociais; sobre os direitos de cidadania, reduzindo as conquistas democráticas a um
mero jogo eleitoral onde impera o mercado de votos e o marketing político, ficando de
fora os grandes temas ideológicos, econômicos e sociais; sobre o meio ambiente, cujos
elementos naturais, como a água, as sementes, os genes humanos, etc, viram
produtos para o mercado.

62. Tais expropriações são realizadas sob a propaganda ideológica da “liberdade” de


movimentos do trabalhador. Propala-se a conquista da iniciativa individual, associada
à ideia, difundida pelo “empreendedorismo”, de que cada um pode ser “patrão de si
mesmo”. Tudo isso é difundido como se fosse absolutamente novo, como se não fosse
da natureza mesma das relações sociais de produção impostas pelo capitalismo, desde
seus primórdios, promover a separação entre trabalhadores e condições sociais de
trabalho, com vistas à permanente criação de grandes contingentes de “pobres
laboriosos” livres, “essa obra de arte da história moderna”, como dizia Marx. A
expropriação, forma de propiciar permanente disponibilidade de força de trabalho para
o capital, parece não mais existir sob a noção de “liberdade”.

63. A chamada reestruturação produtiva deve ser entendida, ao mesmo tempo, como
aprofundamento da disponibilidade sem reservas do trabalho para o capital e como
forma de introduzir novos métodos de disciplinamento da força de trabalho nas novas
condições de exploração, os quais se impõem tanto pela violência quanto pelo
convencimento. A dimensão do novo convencimento só é compreensível nesse contexto
em que os imperativos do mercado obrigam às mais abjetas sujeições em troca da
subsistência do trabalhador, a começar pela ameaça permanente do desemprego: a
requalificação dos trabalhadores, que devem interiorizar a necessidade de uma
autoempregabilidade; a instauração de formas de “parceria” ocultando relações de
exploração, por meio de cooperativas, contratos temporários, formas de “voluntariado”;
o trabalho doméstico e familiar em condições de dependência absoluta frente ao
patronato, que não mais se apresenta de forma direta, mas indireta, através de
subpatrões, em condições de concorrência extrema, etc.

64. Essas massas de trabalhadores desprovidos de direitos, não mais contidos pela
disciplina despótica no interior das fábricas, seguem, entretanto, sendo educados,
adestrados e disciplinados pelo capital, através dos inúmeros programas de
requalificação para a “empregabilidade”, adotados por entidades e empresas sob o
manto da “responsabilidade social”, em grande parte com recursos públicos. Sequer
deverão perceber-se como trabalhadores, como mão de obra disponível para o capital:
devem ver-se como empresários de si mesmos, livres “empreendedores” formados em
cursos de empreendedorismo social, vendedores de sua “capacidade” de trabalho sob
quaisquer condições, “voluntários” da sua própria necessidade. Na verdade, todas
essas formas de exploração do trabalho estão, de alguma maneira, interligadas ao
processo de produção de mais valia, garantindo a cooperação necessária às atividades
produtivas em prol do capital.

65. Longe do suposto “fim do trabalho”, tais expropriações demonstram a importância


da força de trabalho no mundo capitalista de hoje. À expropriação capitalista
corresponde, no extremo oposto da mesma relação, a gigantesca concentração de
recursos em mãos dos capitalistas, recursos que precisam ser constantemente
valorizados e aplicados na própria exploração dos trabalhadores. A profunda
15
transformação da base tecnológica foi extremamente útil não apenas para transferir
capitais de um lado a outro, posto que, isolado, o acúmulo de dinheiro não produz
mais valia, mas para, simultaneamente, fragmentar o conjunto da classe
trabalhadora. A reestruturação produtiva do capitalismo contemporâneo, portanto, é
parte integrante do processo imperialista, resultante da ação hoje hegemônica do
capital monetário.

66. A reflexão de Marx sobre o “capital portador de juros” (Capítulo XXI do Livro III de
O Capital) muito contribui para a compreensão do capital monetário como forma
dominante no plano internacional, nos dias atuais. Trata-se de um capital que assume
uma forma crescentemente social, como associação permanentemente competitiva de
grandes proprietários, apesar de ter-se amplamente disseminado o mito, no
capitalismo contemporâneo, da existência de atividades puramente monetárias e
especulativas, sem envolvimento algum com a produção, como se fosse possível a
multiplicação autônoma do capital.

67. Segundo esta visão, o trabalho vivo não mais teria qualquer função na vida social.
Isto porque interessa aos proprietários e gestores do capital monetário que este se
apresente como totalmente distante dos processos de produção direta e das formas
brutais de exploração da força de trabalho. No máximo, é desejável que seja
identificado às formas mais científicas, às atividades de pesquisa e à produção de
conhecimento, como se estas estivessem descoladas da extensa rede de divisão
internacional do trabalho. Na verdade, o capital monetário está completamente
envolvido com os processos de extração de mais valia e somente pode continuar
existindo caso impulsione sem cessar essa extração. No entanto, é apresentado como
puro cálculo, como dinheiro “limpo” (capaz inclusive de lavar os recursos procedentes
dos tráficos e das máfias, estes também impulsionados pelo capital monetário e
ligados ao processo de concentração de capitais, ao qual se agregam as mais variadas
formas de extorsão, saque ou extração de sobretrabalho), negando a existência do
trabalho e dos trabalhadores concretos.

68. Na perspectiva de Marx, o capital portador de juros ou capital monetário resulta


do processo histórico de concentração capitalista, através do qual os bancos passaram
a cumprir uma nova função, deixando de ser meros guardadores ou emprestadores de
dinheiro, para se converter em fomentadores de créditos voltados a impulsionar o
processo produtivo. Constituiu-se, assim, um sistema bancário propriamente
capitalista, um dos pilares da acumulação, sem que fossem eliminadas as práticas
usurárias, mas subordinando-as ao papel central de fomento às atividades voltadas à
extração de mais valia e à sua realização através do comércio.

69. Os bancos converteram-se, pois, em coadjuvantes da exploração capitalista. São


depositários ou intermediários dos lucros dos grandes proprietários capitalistas, ao
mesmo tempo em que também se tornaram proprietários de capital voltado ao
investimento na produção, precisando fazer expandir frequentemente as relações
sociais capitalistas. Daí que dependem inequivocamente de parte da mais valia
extraída do trabalho. O excedente na sociedade capitalista é produzido com trabalho
humano, trabalho vivo que alimenta os imensos volumes de capital monetário,
trabalho morto. Os juros são uma parte do lucro produzido, portanto, correspondem a
uma parcela da mais valia extraída pelos capitalistas diretamente envolvidos com os
processos de produção de mercadorias. Os juros, por sua vez, remuneram o capital
que se converte em mercadoria. Por conta disso, o proprietário de capital monetário
exige crescente eficácia na extração da mais valia, em ritmos cada vez mais
acelerados, de maneira a que sejam remunerados, no mais breve espaço de tempo,
16
tanto o capital voltado à produção de mercadorias, quanto o próprio capital
monetário.

70. Os detentores dessas volumosas massas de dinheiro parecem encarnar, de


maneira abstrata, a própria figura do capital, pois a propriedade dos recursos sociais
necessários à produção de valor afasta-se do processo imediato de produção de
mercadorias. Aprofunda-se a separação entre a propriedade e a gestão dos
empreendimentos. Enquanto ao capitalista diretamente ligado à produção de
mercadorias cabe o papel social de extração da mais valia, ao proprietário do capital
monetário cabe lidar com o capital-mercadoria, o qual, por meio dos empréstimos e
dos financiamentos, converte-se em capital para a produção. Esta separação implica
na existência de tensões e conflitos entre as frações proprietárias, a fazer parte da luta
de hegemonia pela condução do processo social de manutenção e reprodução do
capitalismo, mas não obscurece o fato de que tais frações da classe burguesa operam
a partir da mesma base social, isto é, dependem da exploração do trabalho humano
para obterem seus lucros.

71. A crescente concentração do capital monetário favorece o intenso movimento


especulativo, que passa a integrar a dinâmica da expansão do capital, gerando um
capital fictício através da multiplicação de papéis e títulos sem correspondência real
com os capitais aos quais supostamente remetem, aqueles respaldados efetivamente
no processo de produção. O descompasso entre o capital fictício e o capital lastreado
na produção de valor vem fomentando as recorrentes crises capitalistas da atualidade,
o que só faz ratificar a necessidade imperiosa da extração de mais valia e da
socialização do trabalho para a existência e reprodução ampliada do capital. O
crescimento mesmo das atividades especulativas decorrentes do predomínio do capital
monetário na fase atual do capitalismo indica, de fato, que a base social da
acumulação capitalista permanece fundamental, pois a concentração desses capitais
só fez aprofundar a exigência de valorização de tais massas de recursos sob todas as
formas de exploração da força de trabalho, incentivando a generalização das
expropriações, com vistas à disponibilidade sem reservas de trabalhadores para o
capital.

72. O predomínio atual do capital monetário (ou capital financeiro, nos termos de
Lênin) não significa, portanto, a redução da extração de mais valia. Ao contrário, a
existência de massas concentradas de capital monetário impulsiona e exige a
intensificação da concorrência, sobretudo entre os trabalhadores, mas também entre
os capitalistas que, ligados diretamente à produção, controlam parcelas desiguais de
capitais. Todo o processo recente de reestruturação produtiva só faz confirmar, com os
inúmeros exemplos de fragmentação da classe trabalhadora e pulverização das
unidades empresariais, que a concentração de propriedade estimula e impõe a
concorrência entre gestores do capital e entre os trabalhadores como necessidade
imperiosa para a reprodução do capitalismo.

73. A exacerbada concorrência entre capitalistas não elimina o fato de haver profunda
unidade entre eles no que se refere aos mecanismos de expropriação da classe
trabalhadora. No capitalismo globalizado, a burguesia demonstra estar integrada
mundialmente, com o capital cada vez mais concentrado em grandes conglomerados
internacionais ramificados em todas as regiões do planeta, para o que cumpre papel
preponderante o capital monetário, como proprietário de imensas massas de recursos
destinadas a financiar atividades dispersas, sob as mais variadas espécies de
“empreendedorismos“. Mas não existe nada parecido com uma economia mundial
unificada e regida por uma organização global da ordem sintonizada conforme os
17
desejos do capital. Vive-se em um mundo de desenvolvimento desigual, com
enormes disparidades de preços, salários e condições de trabalho.

74. Isso nos leva a algumas reflexões, fundamentais para quem deseja avançar na luta
contra o capitalismo, a partir da identificação mais precisa das condições sociais
objetivas nas quais se dá a luta de classes na conjuntura histórica do momento. Em
primeiro lugar, reafirma-se categoricamente a contradição entre capital e trabalho
como a contradição fundamental a exigir, como tarefa central dos comunistas, a
organização da classe trabalhadora na luta contra o sistema capitalista. A luta central,
pois, é entre classes, não entre países. Desaparece, dessa forma, a possibilidade de
eclosão de revoluções de caráter “nacional libertador”, ou seja, de alianças entre a
classe trabalhadora e a burguesia nacional, em países periféricos, para o
enfrentamento aos países centrais imperialistas. Sem mais tergiversação, coloca-se na
ordem do dia a estratégia revolucionária de luta pelo socialismo.

75. Em segundo lugar, se as mutações sofridas pela classe trabalhadora no quadro do


redimensionamento global do capitalismo contemporâneo acarretaram alterações
muito expressivas no conjunto do proletariado, fazendo com que, nos dias atuais, ela
difira bastante do proletariado industrial identificado como sujeito revolucionário do
Manifesto Comunista, é ainda esse contingente humano de trabalhadores capaz de
prosseguir, no processo de luta de classes, o protagonismo que o texto de 1848
reconhecia ser próprio do proletariado, buscando alcançar a construção de uma
sociedade radicalmente democrática e socialista.

V - Capitalismo no Brasil

76. O Brasil realizou seu processo de industrialização num período muito rápido,
muito embora bastante atrasado em relação aos países centrais. Após algumas
experiências incompletas anteriores, o primeiro grande ciclo da industrialização
brasileira começou na década de 1930, amadureceu na década de 1950 e se esgotou
em 1980.

77. Somente com a revolução de 1930, o país passou a se estruturar no sentido da


construção do capitalismo industrial. A ascensão política de Vargas, representando a
facção de grandes proprietários voltados a produzir para o mercado interno, associada
à emergente burguesia industrial, foi responsável, centralmente, pelo fim do
monopólio de poder exercido pelo latifúndio agroexportador, mas promoveu a
conciliação entre a velha ordem e a nova ordem industrial. Tanto que não realizou a
reforma agrária, deixando intocadas as terras dos latifundiários, fato que até hoje faz o
país pagar um enorme tributo em termos de desigualdade social, violência e miséria
no campo e nas grandes cidades. Além disso, a industrialização brasileira constituiu-
se muito tardiamente, cerca de dois séculos após a revolução burguesa na Inglaterra e
um século após a revolução industrial. Ao constituir-se, internalizou a estrutura da
segunda revolução industrial, queimando assim algumas etapas do capitalismo
clássico. Ou seja, emergiu no período do capitalismo monopolista, reproduzindo
internamente as características dessa etapa do capitalismo.

78. A industrialização brasileira foi realizada mediante o tripé capital privado nacional,
capital privado internacional e capital estatal, ressaltando-se que, até o final da
década de 1980, o Estado brasileiro teve participação decisiva no processo de
industrialização, sendo responsável pela construção da infraestrutura (estradas,
portos, hidroelétricas, telecomunicações, siderurgia, entre outros) e por um conjunto
18
de empresas públicas, inclusive no setor financeiro, que representavam quase a
metade do Produto Interno Bruto.

79. Em função de que a passagem para o capitalismo no Brasil ocorreu por meio de
transformações que não promoveram a ruptura com o poder do latifúndio, mantendo-
se, sem alterações profundas, inúmeras das estruturas econômicas, sociais e políticas
da velha ordem, o capitalismo tardio não viabilizou a formação no país de uma
burguesia com um projeto autônomo de nação. Na verdade, a burguesia não teve
interesse em se estabelecer enquanto classe nacional, nem mesmo com o auxílio de
seus antagonistas históricos, que advogavam uma revolução nacional democrática. Os
setores burgueses estruturaram-se de maneira subordinada aos centros
internacionais do capital, orbitaram em torno de sua lógica e cumpriram internamente
a tarefa de linha auxiliar do capital internacionalizado.

80. Sob Vargas, no início da década de 1950, o processo de industrialização avançou


com um caráter marcadamente nacionalista, mas numa situação internacional
adversa, em que os Estados Unidos já tinham se transformado em nação hegemônica.
Estimuladas e fortalecidas internamente, as classes dominantes ligadas ao
imperialismo estadunidense conseguiram realizar um cerco ao governo, levando o
presidente ao suicídio. A comoção popular decorrente deste ato dramático foi um dos
elementos que contribuíram para o recuo desses setores, abrindo espaço para a
construção do Plano de Metas no governo de Juscelino Kubistchek, um projeto com
forte participação do capital estrangeiro e que transformou o Brasil em nação
industrial.

81. Estas transformações modificaram profundamente a estrutura socioeconômica do


país: o Brasil passou da condição de nação agrária para nação industrial e
transformou-se num país marcadamente urbano, bastando dizer que, em 1930, mais
de 70% da população viviam no campo, enquanto, no final do ciclo, em 1980, invertia-
se essa variável, registrando-se uma taxa de mais de 70% da população residindo nas
cidades, o que significou uma mobilidade demográfica extraordinária realizada em tão
pouco tempo. Em outras palavras, o Brasil cumpriu em meio século tarefas que outras
nações levaram séculos para implementar.

82. Cresceram a indústria de capital nacional privado, em especial nos ramos metal-
mecânicos, e a indústria de bens de produção, mantida pelo Estado, também
responsável pelos investimentos em infraestrutura, o que acabaria por beneficiar o
conjunto da estrutura industrial, estimulando o pleno desenvolvimento do
capitalismo. Tal equilíbrio de interesses, controlado pelo Estado a fim de evitar ao
máximo a irrupção de tensões no interior da classe dominante, perdurou enquanto
não afloraram, de forma mais nítida, os conflitos resultantes do processo de
oligopolização da economia, inevitável no modelo de modernização adotado, em que a
superioridade tecnológica e de capitais das empresas multinacionais, incitada pelo
Estado, criou um descompasso no ritmo de crescimento verificado entre os setores
industriais e vedou a possibilidade de expansão das empresas de menor porte.

83. Nos anos 1950, a burguesia industrial associada ao capital externo foi projetada a
uma posição de destaque dentre as demais frações da classe dominante que
compunham o Estado no chamado “pacto populista”, até então mantido com base no
equilíbrio entre elas. Os empresários da indústria passaram a atuar de forma mais
autônoma frente à estrutura corporativa estatal, afastando-se também de projetos
nacionalistas que, de um lado, rejeitassem ou limitassem a presença do capital
19
estrangeiro no país e, de outro, favorecessem ou não impedissem a mobilização das
massas proletárias.

84. A partir do final do Plano de Metas, estruturaram-se dois projetos distintos para a
sociedade brasileira: as reformas de base e o projeto dos setores ligados ao capital
internacional. Ao longo dos primeiros quatro anos da década de 1960, o Brasil viveu o
seu momento de maior polarização da sociedade, com enorme politização dos setores
populares. O projeto das reformas de base, com apoio de parte significativa da classe
trabalhadora, especialmente aquela organizada em sindicatos e associações, foi
derrotado pelo golpe civil-militar de 1964, patrocinado pelas classes dominantes, por
setores conservadores da Igreja e pelos altos comandos das Forças Armadas, com o
apoio estratégico do governo dos Estados Unidos e com a sustentação ideológica de
expressivas parcelas das camadas médias urbanas.

85. O golpe de 1964 representou não apenas a maior derrota dos setores populares
em toda a história do Brasil, como contribuiu para o aprofundamento da dependência
em relação ao capital internacional e bloqueou definitivamente qualquer tentativa de
construção de um capitalismo autossustentado sob a direção de uma burguesia
nacional, com algum tipo de projeto autônomo de nação. Mesmo levando em conta o
peso do Estado e das empresas públicas fortalecidas e consolidadas no período
militar, o golpe de 1964 representou o fim das ilusões nacionaldesenvolvimentistas
nos marcos do capitalismo.

86. O governo militar construiu um modelo econômico antipopular, estruturou o


arrocho salarial como norma para a remuneração dos trabalhadores e suprimiu as
liberdades democráticas. Nos momentos mais duros do regime, houve um
recrudescimento da repressão e desenvolveu-se uma política de terrorismo de Estado,
com prisões de milhares de lutadores, tortura e morte de centenas de ativistas e
revolucionários. O modelo econômico excludente, apesar de ter resultado em altas
taxas de crescimento econômico e na consolidação das empresas públicas, construiu
uma economia de baixos salários, produzindo uma das distribuições de renda mais
desiguais do planeta. O último governo militar (1979-1985) realizou uma política sob a
orientação do FMI, cujo resultado foi a desorganização da economia e sua
reestruturação voltada exclusivamente para o pagamento dos serviços da dívida
externa.

87. Ao final dos anos 1980, o neoliberalismo tornara-se hegemônico entre os


principais países capitalistas. No Brasil, entretanto, as políticas neoliberais não
puderam ser implantadas da mesma forma como o foram em outros países. Isto
porque, em primeiro lugar, a primeira metade da década de 1980 foi marcada pela
desagregação política e econômica da ditadura. Portanto, os militares, mesmo
impondo uma política monetarista, não tinham força suficiente para implantar o
neoliberalismo ao estilo clássico. Segundo, os anos de 1985-89 foram marcados pelo
processo de redemocratização e da Constituinte. Nesse período também não existiam
condições políticas para a implementação de medidas no estilo neoliberal. Essas duas
circunstâncias impediram que o neoliberalismo fosse implantado no país na década de
1980. Somente com a derrota de Lula (PT), em 1989, e a posse de Collor, o grande
capital reuniu as condições para realizar a grande ofensiva neoliberal no país.

88. A crise dos anos 1990, apesar de inserida no ciclo de estagnação da economia
brasileira do início da década de 1980, marca uma mudança de qualidade no processo
de acumulação de capital e uma nova forma de relacionamento entre o grande capital
internacional, a grande burguesia associada e o Estado. Nos anos 1990, consolidou-
20
se, no plano internacional, o poder dos blocos de forças sociais mais ligados ao
capital financeiro, principais impulsionadores da globalização financeira e da
especulação mundial. A exemplo do que ocorreu nos países centrais, no Brasil
também houve uma recomposição das alianças entre frações das classes dominantes,
cuja expressão política foi o governo Fernando Henrique Cardoso, com continuidade
no governo Lula. Trata-se de um bloco de forças sociais que, após vários anos de crise,
conseguiu articular um projeto capaz de unificar a burguesia já integrada ou com
grandes potencialidades de integração ao capital internacional e disciplinar eventuais
setores do capital industrial prejudicados com a nova ordem.

89. Com a eleição de Lula em 2002, a novidade de seu governo, em relação ao de FHC,
foi a promoção de uma articulação política que possibilitou a ascensão da grande
burguesia industrial e agrária voltada para o comércio de exportação, sem que fosse
quebrada a hegemonia do setor financeiro. Isto porque a política mais agressiva de
exportação centrada na agroindústria, na extração mineral e nas mercadorias
industriais de baixa tecnologia estimula a produção nos limites determinados pelos
interesses do grande capital financeiro, cujo objetivo maior é a “caça aos dólares” e às
demais moedas fortes, algo que obviamente não seria obtido através de um
planejamento voltado a desenvolver o consumo popular e o mercado interno.

90. A política de aumento do superávit primário e de juros internos elevados fortalece


o perfil usurário do capital financeiro, impedindo o investimento amplo na produção e
limitando o plano de crescimento econômico a um modesto e instável desenvolvimento
voltado para a exportação. O governo Lula é extremamente generoso para com o
capital financeiro, o agronegócio e as grandes empresas industriais exportadoras, com
destaque para siderúrgicas e produtoras de papel e celulose, os setores que mais
lucraram nos últimos anos, favorecidos pelo baixo valor dos salários, a manutenção do
salário mínimo em nível irrisório e a liberdade concedida para os ataques do capital
aos direitos dos trabalhadores, permitindo o alto grau de exploração e desvalorização
da força de trabalho.

91. Os anos 1990 assistiram a mudanças significativas na organização do mundo do


trabalho e no perfil da classe operária no Brasil. A chamada reestruturação produtiva
permitiu ao capital extrair mais valia relativa em novos patamares. Especialidades
profissionais foram extintas, as novas máquinas permitiram uma redução dos
contingentes envolvidos diretamente na produção, a automação provocou uma escala
inédita de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto.

92. A introdução de novas máquinas e novos processos, tanto na produção direta


industrial quanto nos serviços, veio em resposta a um longo período de estagnação
econômica no Brasil. Diversos setores controlados pela burguesia brasileira
desapareceram ou ficaram sob controle multinacional, na esteira dos novos requisitos
de investimento. A necessidade de inserção no mercado internacional, de parte da
burguesia brasileira, expôs o mundo do trabalho ao processo de universalização do
capital, conhecida como globalização. Ocorre, a partir deste período, uma aceleração
do processo de concentração de capital, alterando as condições da competição
capitalista e de mobilização da força de trabalho. Essa mesma concentração de capital
é acompanhada de uma desconcentração industrial, onde mais regiões elevaram o seu
peso relativo na produção. As privatizações das empresas estatais se inserem neste
movimento.

93. A desestruturação de determinados setores econômicos e a ascensão de outros


deixaram marcas profundas no mundo do trabalho. Houve, nas regiões de
21
concentração, redução imediata do emprego industrial e de certos serviços. A
terceirização se difundiu, contribuindo para a fragmentação da classe operária e de
sua organização. A crise do taylorismo-fordismo, substituído como método de
organização de trabalho pela produção flexível, foi um fenômeno que não se limitou à
indústria de transformação. A hiperespecialização do trabalhador, característica da
manufatura fordista, deu lugar ao trabalhador multitarefa.

94. A automação da produção gera um fenômeno contraditório, de desqualificação do


trabalho, ao mesmo tempo em que eleva a exigência de qualificações formais. Se, no
taylorismo, existia a separação de gerência e operação, planejamento e execução de
tarefas, na nova organização do trabalho, os trabalhadores têm como tarefa a
obtenção de qualidade, a conservação dos equipamentos e o controle coletivo das
tarefas da produção. Os círculos de qualidade, o kanban e a construção de redes de
informação abriram uma nova fase de cooptação e pressão ideológica no conjunto da
classe operária. Como resultado desse processo, surge uma classe operária com novo
perfil, mais escolarizada e com uma maior visão do conjunto da produção. Esta classe
operária, dentro da nova lógica da produção, se vê como responsável pela
produtividade e, portanto, mais afeita à cooptação por parte do capital.

95. As transformações dos equipamentos e dos métodos na indústria também ocorrem


no setor de serviços. A meta da qualidade, uma qualidade muitas vezes falsa, se torna
universal, inclusive no setor público, que passa a emular a iniciativa privada. Nos
bancos, por exemplo, os empregados passam a “gerentes”, que não gerenciam nada,
apenas introjetam as necessidades do capital. No campo da educação, surge um
verdadeiro fetiche da informatização, vendida como a solução de todos os problemas
do aprendizado.

96. Em sua primeira fase, a revolução tecnológica do capitalismo provocou demissões


em massa, precarização de relações de trabalho, aumento do contingente do exército
industrial de reserva. Alguns teóricos, na Europa e também no Brasil, anunciaram o
fim da classe operária, ou a diminuição de seu peso histórico. Em muitos momentos,
esses teóricos confundiram o ser da classe operária com a sua forma fordista e
reduziram a produção de valor à indústria de transformação. Essa visão serviu de
senha para que grande parte do movimento sindical abandonasse as reivindicações
econômicas imediatas, relegando a um segundo plano a luta reivindicativa. Expressão
disso é o “sindicalismo cidadão” da CUT.

97. Na verdade, o número de assalariados não apenas se manteve, como foi ampliado.
O emprego industrial tornou-se mais difuso geograficamente e superou, largamente, a
organização por categoria do sindicalismo brasileiro. A terceirização ajuda a distorcer
as estatísticas do emprego industrial, situando nos serviços trabalhadores que são da
indústria de transformação. Empresas terceiras assumem atividades-meio, como
vigilância, limpeza e alimentação. O assalariamento se difundiu, e os assalariados são
a maioria na população economicamente ativa do país, montando a cerca de 60% do
total.

98. A produção de valor independe da materialidade da mercadoria, existindo


inúmeros setores classificados como serviços produzindo mais valia. Nos setores de
transporte, comunicações, educação e saúde, por exemplo, o processo de trabalho é a
própria mercadoria. A acumulação capitalista, em seu desenvolvimento, separa
constantemente a força de trabalho dos meios de produção. A concentração de capital
destrói e submete as frações do pequeno capital. O profissional liberal, o lojista, o
pequeno proprietário dá lugar ao assalariado, ao franqueado, ao prestador de serviços.
22
Profissões, outrora orgulhosas de usa independência do assalariamento, como
advogados e médicos, vão, agora, engordar as fileiras do proletariado. O serviço
público vai sendo submetido a métodos e condições análogas à grande indústria.
Introdução de conceitos da qualidade total, remuneração variável e gestão de pessoas
se difundem por todo setor público.

99. No campo, o grande capital expande seus domínios, submetendo a agricultura


familiar às necessidades de acumulação. A reestruturação produtiva no campo segue
seu curso, com a mecanização e introdução de novas tecnologias, métodos e recursos.
A estrutura agrária brasileira vivenciou uma profunda centralização e concentração
dos meios de produção, principalmente a terra, subordinando a produção agrária ao
mercado capitalista e aos interesses dos grandes monopólios, seja na atividade agrária
propriamente dita, seja utilizando a terra como reserva de valor. A clássica forma de
exploração da renda da terra, pouco a pouco, cede lugar à típica exploração
capitalista, ou seja, a extração de mais valia baseada no trabalho assalariado.

100. A forma particular pela qual a reestruturação capitalista chegou ao campo se


expressa na nova política de sementes, com a implantação e a aprovação dos
transgênicos, pelo crescente investimento de capital estrangeiro; pela política da
bioenergia, notadamente do etanol ligado à cana de açúcar, mas também a outras
culturas como a mamona; a monocultura do eucalipto e outras manifestações que
implicam na mudança da matriz produtiva agrária que transita das formas
tradicionais para aquilo que se convencionou chamar agronegócio, termo elegante que
esconde a substância do fenômeno que é a determinação do grande capital
monopolista na agricultura.

101. Disto resultou uma estrutura agrária complexa, subordinada ao monopólio


capitalista da terra, e que comporta uma extensa camada de trabalhadores rurais
assalariados, pequenos camponeses que subsistem da agricultura familiar, famílias
camponesas subordinadas ao monopólio industrial (como no caso do fumo e do
frango, por exemplo), trabalhadores rurais sem terra que formam um caótico exército
industrial de reserva a serviço seja do latifúndio tradicional seja de empresas
capitalistas.

102. Portanto, a chamada reestruturação produtiva não destruiu o trabalho e o


assalariamento, mas implicou em mudança da organização da classe, tanto no
processo de trabalho como no plano sindical e associativo. Houve um deslocamento
geográfico e funcional dos trabalhadores. Contrariamente ao que afirmavam aqueles
que defendiam a tese segundo a qual as mudanças ocorridas levariam a um tipo de
sociedade pós-industrial ou pós-capitalista, a chamada reestruturação produtiva
aprofundou e tornou mais evidente a contradição capital x trabalho.

103. Depreende-se, pois, que as dificuldades encontradas pelo movimento operário e


sindical não podem se resumir a uma crise de direção, sendo, de fato, resultado do
desmonte de uma forma particular de organização da classe trabalhadora. Afinal, é o
capital que organiza materialmente a classe trabalhadora, ao mobilizar o trabalho
abstrato e realizar o encontro da força de trabalho com os meios de produção. A crise
do sindicalismo da empresa fordista reflete a crise do fordismo como forma de
organização do trabalho. O modelo de parcelamento das tarefas e a concentração de
grande número de trabalhadores nas unidades produtivas permitiram a organização e
a mobilização em torno das reivindicações imediatas, às vezes com um alto grau de
radicalização.
23
104. Todo esse processo traz, para o movimento sindical e a organização dos
trabalhadores, novos e imensos desafios. A retomada do movimento operário,
necessariamente, deverá refletir o novo perfil da classe que surge com a revolução
tecnológica e com a universalização da produção capitalista. As novas formas de luta
surgirão como reflexo da própria forma de organização da classe no mundo do
trabalho.

105. Organizar os trabalhadores hoje dispersos em função das diferentes formas de


expropriação realizadas pelo capital é o grande desafio a ser enfrentado pelos
comunistas. O trabalho político de organização da classe deve ser encarado como um
campo de ação permanente, dando origem a organizações permanentes, estruturadas
a partir do terreno permanente e orgânico da vida econômica, mas deve ser capaz de
superar o momento meramente corporativo, para atingir o instante da consciência em
que o grupo social busca assumir papel hegemônico na sociedade. A luta pela
derrocada do sistema capitalista deve ser entendida também como processo resultante
de intensa luta política na qual se busca produzir, por meio dos embates sociais e da
ampla discussão em torno do projeto contra-hegemônico, uma nova visão de mundo a
ser abraçada pela classe trabalhadora.

106. Este processo abrange a necessária passagem da consciência primária,


econômico-corporativa, para a consciência política revolucionária, capaz de atuar
sobre a classe dispersa e pulverizada, construindo e organizando a sua vontade
coletiva. Este é o momento da hegemonia, conceito que expressa a capacidade de um
grupo social unificar em torno de seu projeto político um bloco mais amplo não
homogêneo, marcado por contradições de classe. O grupo ou classe que lidera este
bloco revolucionário é hegemônico porque consegue ir além de seus interesses
econômicos imediatos, para manter articuladas forças heterogêneas, numa ação
essencialmente política, que impeça a irrupção dos contrastes secundários existentes
entre elas. Logo, a hegemonia é algo que se constrói, essencialmente, por meio da
direção política e do consenso.

107. Não se trata, evidentemente, de uma mera batalha no campo das ideias. Na luta
hegemônica, o partido revolucionário é o organismo social responsável pela
organização da ampla luta social pretendida, devendo se configurar como a célula na
qual se aglomeram germes da vontade coletiva que tende a se tornar universal e total,
no sentido da transformação social a ser empreendida. O papel do partido
revolucionário é contribuir para a elevação da consciência de classe, superando os
marcos impostos pela ideologia dominante e forjando a vontade coletiva capaz de
hegemonizar o projeto político de construção da sociedade socialista.

108. Por fim, se a destrutiva lógica do capitalismo torna-se mais e mais universal, as
lutas sociais existentes nos âmbitos locais, nacionais e regionais podem se
transformar na base de um novo internacionalismo. Um internacionalismo que não
seja calcado em alguma noção irreal e abstrata de sociedade civil ou cidadania global,
mas na estruturação de uma efetiva solidariedade entre os vários movimentos de
classes locais e nacionais nas lutas concretas contra a exploração promovida pelas
empresas e Estados capitalistas. Se a atual crise global do capitalismo não leva ao
arrefecimento das imensas contradições sociais geradas por ele, muito pelo contrário,
isso permite concluir estarem dadas as condições nas quais o trabalho revolucionário
de organização e construção da hegemonia proletária permitirá a derrocada final do
regime que nos oprime e a construção da sociedade socialista.
1

XIV CONGRESSO DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB)

Socialismo: Balanço e Perspectivas


Introdução

1 Passadas quase duas décadas após a queda da União Soviética, a questão do


Socialismo volta a ocupar uma posição de destaque nos debates em diversos
segmentos da classe trabalhadora e nas agendas de luta dos partidos comunistas,
socialistas e outros grupamentos que compreendem que o capitalismo não
resolverá os problemas da maioria da população do planeta e já ameaça a
continuidade da própria vida.

2 A elaboração de uma proposta para a construção do Socialismo no século XXI, com


a superação revolucionária do capitalismo, coerente com as condições históricas
dos dias de hoje, e a formulação da estratégia para a sua conquista devem levar em
conta uma avaliação crítica das experiências concretas da construção do
Socialismo no século XX, na União Soviética e em outros países – algumas das
quais ainda em curso –, e do acúmulo de experiências do movimento dos
trabalhadores e dos partidos e grupamentos operários, comunistas e socialistas
que atuam nos países capitalistas.

3 Devem ser considerados, ainda, os aportes de todos os que lutam por justiça social
e que têm na luta pela superação das desigualdades e na denúncia do capitalismo
as principais referências para a construção de uma nova sociedade lastreada na
igualdade e no bem estar.

O Contexto em que se dá o debate

4 Esta discussão se dá, hoje, em um contexto bastante distinto daquele vigente nos
primeiros anos do século XX – período em que eclodiu a Revolução Bolchevique –
ou na década de 1950, quando muitas das experiências socialistas daquele século
se iniciaram. O capitalismo segue com mais rapidez a tendência de mundialização
dos mercados e da produção, com a alta concentração e centralização do capital
forjando grandes conglomerados e empresas trans e multinacionais que operam
mundialmente. Cada vez mais são introduzidas novas tecnologias na produção,
processo este que só fez reforçar, nas últimas décadas, a tendência à queda nas
taxas de lucros e o movimento de financeirização da riqueza.

5 O contexto atual de crise econômica, uma crise de acumulação, de superprodução,


estrutural e sistêmica, cujo efeito mais evidente e imediato foi o estouro, há muito
previsto e anunciado, da bolha especulativa do capital financeiro mundial,
deflagrada com a quebra do setor imobiliário norte-americano, demonstra o
aprofundamento das contradições irresolúveis do capital, comprovando os limites
históricos do capitalismo. Mesmo que os impactos da crise, assim como sua
extensão e duração não estejam, ainda, claramente determinados, a resposta dos
1
2

governos dos países desenvolvidos, com enormes inversões de capital no sistema


bancário e em grandes empresas em geral, com nacionalizações de bancos e
empresas industriais e com grandes programas de investimentos públicos, atesta
que o ideário neoliberal, vigente de forma hegemônica na maioria dos países, nos
anos 1990, está enfraquecido – ainda que uma gigantesca herança de formas
diferenciadas de expropriação econômica, social e política dos trabalhadores esteja
presente e que a burguesia siga buscando novas formas de garantir a sobrevivência
do capitalismo, na mudança do papel do Estado, na implementação de ações para
o aumento da exploração do trabalho e outras ações.

6 A queda da União Soviética fez ruir a ordem mundial anteriormente estabelecida,


em que a bipolaridade política, econômica e militar entre a URSS e os EUA
estimulava a formação de sistemas de Bem Estar Social nos países europeus e
outros países, sob uma hegemonia socialdemocrata fundada na busca do equilíbrio
entre capital e trabalho (equilíbrio este possibilitado, em certa medida, por algum
tempo, pela própria existência da URSS, pelo fortalecimento dos comunistas, das
esquerdas e dos trabalhadores organizados em geral, no pós-guerra, e por outras
razões). A queda da URSS deu lugar a uma nova ordem unipolar – no campo da
disputa entre Estados e blocos político-econômicos – na qual o capital passou a
predominar e o ideário neoliberal se estabeleceu hegemonicamente, fortalecendo-
se, no plano mundial, com o recrudescimento da financeirização e da globalização
dos mercados e da produção, o que, por sua vez, levou a um acirramento das
contradições do capitalismo.

7 Estas contradições favoreceram a atual tendência à multipolaridade política,


econômica e cultural, que se dá sob a hegemonia de um pólo principal, ainda que
declinante: o imperialismo estadunidense. O início do processo de restauração do
capitalismo na Rússia e nos países do Leste Europeu foi outro elemento presente a
partir de então.

8 O processo de restauração do capitalismo no Leste Europeu se fez da forma mais


selvagem que se poderia imaginar: sem instituições e leis para regular o
capitalismo, como tribunais e bolsas de valores, sem a cultura capitalista das
relações de mercado e construído a partir de uma acumulação primitiva baseada
no roubo e na corrupção – surgida no início do ocaso da era socialista, em
ambientes político-institucionais caóticos, dada a desarticulação dos aparelhos de
Estado e dos Partidos (em geral imbricados diretamente entre si).

9 A restauração capitalista trouxe para a maioria daquelas populações uma drástica


redução da qualidade de vida: a produção industrial de hoje, na Rússia, representa
apenas cerca de 45% do nível em que se encontrava em 1991; o PIB dos países do
Leste caiu 10% (com exceção da Eslovênia e da Polônia). No mesmo período, a
pobreza atingiu elevados percentuais da população (chega a mais de 50% em
algumas das antigas Repúblicas da URSS). Esta situação se reflete, entre outros
elementos, nos muitos milhares de desempregados e de crianças de rua, no
aumento dos níveis de criminalidade e na proliferação de doenças que já haviam
sido praticamente eliminadas, assim como no retorno do analfabetismo, no
desmonte das estruturas de Bem Estar e seguridade social e na desarticulação dos
sindicatos e demais organizações sociais. Paralelamente, surgem meia dúzia de
bilionários e cerca de 200.000 milionários, que compõem a maior parte da nova
2
3

burguesia.

10 Os governos eleitos nos países do Leste europeu, na era pós-socialismo, vêm


mantendo, em geral, um corte autoritário e uma postura totalmente comprometida
com os interesses das grandes corporações, do capital financeiro e mesmo dos
grupos mafiosos, em alguns casos, tendo sido implantada uma estrutura política
que restringe fortemente a participação popular e a organização dos trabalhadores,
além de limitar a propaganda política e a ação dos partidos. A economia da Rússia
se lastreia, hoje, nas exportações de petróleo e gás, a indústria encolheu e não se
modernizou, o capital estrangeiro entrou majoritariamente no setor de serviços, a
produção agrícola se desmantelou. Na esfera internacional, a Rússia oscila entre
um padrão de independência e de reafirmação como potência e um alinhamento
com as potências capitalistas.

11 O processo atual de acirramento das contradições do capitalismo tem origem nos


anos 80, quando o esgotamento do ciclo de expansão mundial do capital iniciado
no pós-guerra e razões de ordem política e ideológica localizadas, principalmente
na Inglaterra e nos EUA, que culminariam na chegada ao poder de forças
conservadores capitaneadas por Thatcher e Reagan, contribuíram para a formação
da grande onda hegemônica do pensamento neoliberal. Esta onda, reforçada em
muito pelo desaparecimento da URSS, levou ao enfraquecimento dos movimentos e
da organização dos trabalhadores em todo o mundo.

12 O desmonte, em graus diferenciados, dos sistemas de Bem Estar Social presentes


em diversos países, visando à diminuição dos gastos públicos, o ataque aos direitos
dos trabalhadores, o processo de privatização de empresas estatais e de
desregulamentação da atividade econômica, para abrir espaços de investimento e
exploração capitalista sobre o patrimônio acumulado pelos Estados e "destravar a
economia", facilitando a reprodução do capital, foram as principais ações
empreendidas.

13 Simultaneamente, operou-se a abertura das economias nacionais, acirrando-se o


processo de globalização e, acompanhando todo o processo, foi deflagrada uma
violenta ofensiva ideológica e política, no plano mundial, para reforçar os valores
conservadores, o individualismo e as proposições básicas que compõem o ideário
capitalista, que se mantiveram hegemônicos por mais de uma década e ainda se
mantêm fortes.

14 A vigência, por quase duas décadas, destas políticas, nos países europeus, na
Rússia, nos países do antigo bloco socialista, do Leste Europeu e na maioria dos
demais países do mundo, como no Brasil e nos demais países da América Latina,
gerou um quadro de desesperança e de crise de valores que mostra, cada vez mais
claramente, a sua verdadeira face de alienação e as mazelas estruturais do
capitalismo: o desemprego, a miséria, a exclusão, do produto social, da maioria dos
trabalhadores, a ameaça direta à sustentação ambiental do planeta e à própria
vida, a desorganização social e a desmobilização dos trabalhadores.

15 No entanto, vitórias eleitorais como na Bielorrússia e em Chipre e o crescimento


das votações dos Partidos Comunistas em países como Nepal, Grécia, Rússia e
Moldávia, a chegada ao poder de formações antiimperialistas e, em certa medida,
3
4

anticapitalistas por processos diversos, que incluem e combinam mobilizações e


lutas populares, em diferentes graus de organização e diferentes composições
sociais, e processos eleitorais em países como Bolívia, Venezuela, Equador, a
vitória eleitoral de formações políticas com posicionamentos críticos ao
neoliberalismo em outros países, como na Argentina, no Paraguai, na Nicarágua e
no Uruguai, reforçam o entendimento de que o neoliberalismo já vinha
acumulando desgaste há tempo e de que é possível aprofundar a luta pela
superação do capitalismo.

O debate

16 O debate sobre o que foi, sobre qual é a herança e qual é o balanço crítico que se
deve fazer acerca da experiência de construção do socialismo na URSS e nos países
do Leste Europeu já conta, hoje, com o distanciamento crítico necessário, naquelas
formações sociais e em todo o mundo, em relação àquelas experiências.

17 Soma-se a este elemento a retomada dos movimentos de massa em diversos países


europeus, a série de vitórias eleitorais e de manifestações de massa antineoliberais,
anticapitalistas e de esquerda, em diversos países. Há um também crescente nível
de mobilização dos trabalhadores para a luta em defesa de conquistas e direitos
diversos ameaçados ou retirados pelos governos conservadores.

18 Em diversos segmentos das classes trabalhadoras, em todo o mundo, verifica-se


um lento, mas significativo processo de retomada da consciência da necessidade de
travar-se a luta por uma outra sociedade, não capitalista. Na Rússia e nos demais
países do Leste, é crescente a avaliação da "era comunista" como positiva: segundo
pesquisa recente, 76% dos alemães do lado oriental concordam com o Socialismo e
dizem que ele foi "mal aplicado" naquele período; 64% dos romenos avaliam que as
condições de vida eram melhores no governo comunista. Este sentimento é
encontrado, em escala crescente, em toda a região.

19 Vale lembrar ainda que os atuais países socialistas, que, mesmo enfrentando
dificuldades sérias, como Cuba, ou com políticas adaptativas ou mistas, de
integração mundial e convívio interno com estruturas de mercado e propriedade
privada, como China e Vietnã, apresentam elevado padrão de desenvolvimento e de
qualidade de vida para os trabalhadores. A existência destas formações faz o papel,
em certa medida, de contraponto aos países capitalistas desenvolvidos, além de
apresentarem, em suas experiências, elementos a serem considerados,
criticamente, em novas bases, no processo de reconstrução do Socialismo.

20 Há diferentes olhares e referenciais quanto à forma e aos elementos a considerar


na caracterização, na análise e no diagnóstico do que representou a experiência da
URSS e dos países do Leste Europeu, e o mesmo acontece no que diz respeito aos
atuais países socialistas.

21 Muitos segmentos da vertente socialdemocrata se manifestam pela negação da


caracterização daquelas experiências como socialistas, fazendo, muitas vezes, a
crítica ao "Modelo de Socialismo idealizado por Marx e Lênin". Mesmo admitindo a
importância histórica da Revolução Russa e o papel fundamental da URSS em
diversos momentos do século XX, como na Segunda Guerra Mundial, e
4
5

reconhecendo algumas das conquistas da classe trabalhadora daquele país, estes


segmentos se recusam a aceitar aquelas formações como experiências históricas de
superação do capitalismo e de construção do Socialismo. A comparação com
modelos idealizados de participação e democracia direta, as críticas ao
planejamento econômico centralizado, a denúncia a-histórica e acrítica da
"burocracia", a “falta de democracia” – simbolizada pela alusão ao modelo de
Partido único (que não foi a forma vigente em diversos países, como a Hungria, a
Polônia e a RDA, ainda que o Partido Comunista fosse o partido responsável pela
condução do poder) – e o "mandonismo" no exercício do poder são os principais
eixos balizadores desta visão, que é utilizada, em alguns casos, para justificar
posturas anticomunistas.

22 A caracterização do sistema econômico da URSS e dos países do Leste como


"Capitalismo de Estado" é outra crítica frequentemente presente. Esta crítica é
igualmente inconsistente, dado o caráter predominantemente coletivo da
propriedade que vigorou naqueles países, ao longo da maior parte do período
socialista, e do papel do Estado, que distribuía o produto social para o bem estar
dos trabalhadores e não para empresas privadas e seus donos, como ocorre no
capitalismo de Estado. Por outro lado, persistem, em diversos grupamentos
comunistas, as referências apologéticas, acríticas e a-históricas ao
desenvolvimento socialista da União Soviética – principalmente no período dos
anos 1930 e do pós-guerra – visto e defendido também como o modelo único,
acabado e definitivo de Socialismo. Esta visão foi incorporada por grande parte das
formações partidárias comunistas, desde a criação até o desaparecimento da
URSS.

23 Igualmente acrítica é a adoção e a defesa da codificação do pensamento marxista


ali desenvolvida e consolidada, muitas vezes, de forma manualística e
excessivamente simplificadora – promovendo uma leitura empobrecida e deturpada
do marxismo-leninismo. Considerada única e definitiva, esta codificação, iniciada
ainda nos anos 1930 e aprofundada a partir dos anos 1950, predominou entre os
partidos comunistas de todo o mundo e influiu nas gerações subsequentes dos
quadros comunistas, algo que ainda é reivindicado, atualmente, por certos grupos
e partidos comunistas.

24 Os grupamentos de linha trotskista, por sua vez, vêm produzindo uma série de
críticas em relação às experiências socialistas, centradas, principalmente, e muitas
vezes de forma reducionista, na sua burocratização, englobando os partidos no
poder e os Estados. Os Partidos Comunistas de todo o mundo, de um modo geral,
vêm elaborando análises críticas diversas sobre a gestão política e econômica
daquelas experiências, respeitando e reafirmando, no entanto, seu caráter
socialista e buscando alternativas de ação para a conquista do Socialismo em seus
países.

25 A questão do caráter e grau da representação de poder dos parlamentos, da


necessidade e presença de instâncias de participação direta dos trabalhadores na
gestão do Estado, do pluralismo político e partidário, da importância do trabalho
ideológico e cultural e da necessidade de se gerarem formas híbridas de gestão do
Estado e da economia estão entre os principais elementos contidos nestas análises,
como crítica às experiências passadas e aportes para a elaboração das bases
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teóricas para a próxima experiência socialista.

26 A crítica ao processo de industrialização e coletivização do campo ocorrido na


URSS, nos anos 1930, é também um elemento comum em diversas análises, que,
em geral, têm por base o entendimento de que uma transição gradualista, como se
desenhou no início dos anos 1920, na vigência da Nova Política Econômica –
consagrada pela sigla em inglês NEP, seria o ideal para um processo de transição.
Há também, em meio a estes olhares, uma visão crítica do próprio processo de
industrialização em si, independentemente de seu caráter socialista ou não.

27 Cabe, ainda, mencionar as contribuições críticas de outros movimentos de


esquerda socialistas que centram suas análises das experiências socialistas na
identificação de problemas em áreas como o respeito às minorias sociais e à
liberdade de expressão, entre outros pontos.

Análise e balanço das experiências socialistas do século XX

28 Muitas e numerosas questões sobre aquelas experiências mantêm-se abertas. A


primeira delas refere-se à sua denominação: é usada, com frequência, no ambiente
dos Partidos Comunistas, a expressão “Socialismo Real”. Muitos autores, no
entanto, preferem utilizar “países em transição socialista”, alegando que
“Socialismo Real” é uma expressão imprecisa conceitualmente, que traz uma
percepção de que o socialismo é uma teoria utópica e de que aquelas formas de
Socialismo seriam as formas definitivas. Mas o uso da expressão “Socialismo Real”
se fundamenta no reconhecimento de que, naquelas experiências, a partir de um
certo momento da história, houve transformações de tal ordem, nos terrenos da
estrutura de propriedade, das conquistas sociais e na estrutura de poder político,
qualitativa e quantitativamente, que as caracterizam efetivamente como socialistas.

29 Como síntese, para deixar mais clara a distinção entre um período de transição
caracterizado pela passagem da tomada do poder político pelas forças
revolucionárias para a consolidação das estruturas socialistas, que exigiu e exigirá
nas próximas experiências a convivência entre estruturas capitalistas e socialistas,
por um certo tempo, e um segundo processo – o da evolução da sociedade
socialista para a construção do Comunismo – referiremo-nos àquelas formações
como “experiências socialistas histórico-concretas do século XX”, ou,
simplesmente, “experiências socialistas”.

30 Esta diferenciação dos dois momentos da transição exige que seja analisado em
que medida e com que estratégia se deu o esforço empreendido pelos partidos no
poder e pelas lideranças políticas daqueles países, para a construção do
socialismo, assim como será necessária uma avaliação acerca das possibilidades
históricas de seu sucesso. Os elementos que devem ser analisados são a busca da
superação da exploração econômica e da dominação política sobre os
trabalhadores, mediante a constituição de mecanismos efetivos de controle
operário sobre a produção como um todo e o Estado, do antagonismo entre
trabalho manual e intelectual, a superação do trabalho como meio de sobrevivência
– para que volte a ser a primeira necessidade da existência, o desenvolvimento de
um Novo Homem (um Novo Ser Social em todos os sentidos), o provimento de uma
fartura capaz de levar à condição na qual cada um oferece à sociedade o esforço
6
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correspondente à sua capacidade e recebe da sociedade em função da sua


necessidade, e a eliminação de todas as formas de opressão, dada a não existência
das classes sociais, levando à eliminação do Estado e a uma sociedade
autogovernada.

31 A questão essencial nesta análise é buscar compreender por que razões não se
formou, no período histórico correspondente, uma hegemonia política e cultural
socialista (e comunista) sólida naqueles países, capaz de desenvolver e aprofundar
o ideário socialista e comunista e de sustentar a continuidade da construção
socialista no momento da crise que levou o sistema à queda, na URSS e no Leste.
Nenhuma interpretação que se pretenda marxista pode atribuir a crise daquelas
experiências socialistas à ação de um homem ou de um grupo de homens. É
preciso buscar na formação social as contradições que possibilitaram a crise e a
reorganização das forças de direita, responsáveis pela retomada do capitalismo no
antigo bloco socialista. Outras questões que devem ser analisadas são listadas a
seguir.

32 Ainda que o primeiro ciclo de experiências socialistas não tenha conseguido


superar o capitalismo, vencer o imperialismo e conformar um sistema mundial
pós-capitalista, é fundamental avaliarmos as questões a seguir. Que elementos
daquelas experiências – de condução da economia, de gestão política do Estado e
da Sociedade, de organização dos trabalhadores, de políticas sociais
implementadas, de tomada e exercício do poder político e de geração e
desenvolvimento de pensamento revolucionário socialista e comunista – podem ser
utilizados como base teórica e prática para as próximas tentativas de superação
revolucionária do capitalismo? Até que ponto as condições de origem, a trajetória
histórica – com destaque para a Segunda Guerra Mundial – e o cerco ideológico,
econômico e militar dos países capitalistas desenvolvidos – em especial no período
da "Guerra Fria", de confrontação direta com os EUA e seus aliados – contribuíram
para a derrota política daquelas experiências socialistas? Como se pode analisar a
experiência presente de países como Cuba, China e Vietnã, enquanto contribuições
para a construção de novas experiências socialistas?

33 Como dito acima, o primeiro elemento desta análise deve ser a própria
caracterização daquelas experiências como formações socialistas. Nosso objeto de
análise é o conjunto de experiências histórico-concretas vivenciadas na Europa
(URSS, Iugoslávia, Albânia, Bulgária, Romênia, Tchecoeslováquia, Hungria, Polônia
e RDA), na Ásia (Mongólia, Laos, China, Vietnã e Coreia do Norte) e na América, por
Cuba, pela presença dos seguintes elementos:
- Predominância da propriedade estatal ou coletiva dos meios de produção;
- Proibição da compra e venda da força de trabalho como produto privado;
- Conquista do poder realizada por meio de revoluções, como na URSS, China e
Cuba, e por grandes mobilizações populares, como em quase todas as demais,
tendo passado algumas delas, inclusive, por processos eleitorais abertos e
definidores do caminho socialista – criando a fase das democracias populares –
como na Hungria e na Tchecoeslováquia;
- Predominância de estruturas de planejamento econômico centralizadas (em
diferentes graus, em cada país);
- Presença de políticas sociais distributivistas fortes, gerando, em todos os casos,
conquistas materiais inegáveis para sua população.
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34 Alguns destes elementos estiveram presentes, em graus diferenciados, em um


conjunto de outros países, como Etiópia, Angola, Guiné Bissau, Moçambique e
outros que, principalmente a partir dos anos 1950, ao libertarem-se do jugo
colonial – em muitos casos, com a ajuda decisiva da União Soviética, no processo
de libertação nacional e no desenvolvimento posterior –, passaram a trilhar um
caminho de desenvolvimento não-capitalista (ainda que sem se autodefinirem como
socialistas), empreendendo ações de política externa, planejamento, políticas
sociais, com estruturas de poder popular e outras características, sem que se
possa, entretanto, caracterizá-los como socialistas.

35 São relevantes também as experiências de governos dirigidos por comunistas – em


muitos casos contando com alianças com partidos socialistas e partidos do campo
progressista – de âmbito local, em países capitalistas como França, Portugal e
Itália. Nestas experiências, foram empreendidas iniciativas de construção de
instâncias de poder popular, de universalização do acesso à saúde, à educação, ao
abrigo (inclusive para os imigrantes) e à alimentação. Além da forte ênfase dada à
política cultural e a políticas sociais diversas (como o provimento de creches, a
garantia do emprego e a gestão participativa), foram algumas de suas principais
características a criação de empresas de propriedade coletiva e a mobilização
popular na luta por verbas federais e outras demandas.

36 As origens históricas e a herança do período anterior à Revolução Russa e aos


processos de transição socialista nos países do Leste Europeu, em seus mais
variados aspectos, são também, por sua vez, elementos de grande importância para
o entendimento das limitações e dos obstáculos presentes no caminho de
construção daquelas formações socialistas. A Rússia, ainda que contando com
alguns setores industriais muito desenvolvidos a partir das últimas décadas do
século XIX, era, à época da Revolução, um país agrário, semifeudal, com
numerosos contingentes populacionais vivendo miseravelmente. Séculos de
tzarismo e uma estrutura de poder de caráter religioso e extremamente
centralizado estavam presentes no dia a dia e no imaginário do povo russo.

37 O novo poder, o poder soviético, conquistado pela Revolução de 1917, teria que
enfrentar, já no ano seguinte, além da fome predominante em extensas regiões do
território, a agressão armada de inimigos externos e internos, uma guerra que
gerou a necessidade de adoção de ações de corte autoritário no exercício do poder –
o “comunismo de guerra”, que adotaria medidas duras, mas, ao que tudo indica,
necessárias, como o trabalho obrigatório e o confisco de gêneros alimentícios para
o sustento do Exército Vermelho, entre outras. Esta guerra, impulsionada pelas
nações imperialistas, deixaria parte significativa da capacidade produtiva destruída
e atrasaria a construção da sociedade socialista por quase dois anos.

38 Igualmente precárias e miseráveis eram as condições iniciais da criação das


democracias populares do Leste Europeu, implantadas no imediato pós-guerra com
a inestimável ajuda da presença do Exército Vermelho, que os havia libertado do
domínio nazista. Posteriormente transformados em nações socialistas, estes países
tinham boa parte dos seus territórios arrasados ou fortemente afetados pela
guerra. Além disso, com exceção de parte da Tchecoslováquia e da região oriental
da Alemanha, regiões de tradição industrial, o Leste europeu era, basicamente,
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voltado à produção agrícola.

39 Este argumento, no entanto, ainda que importante, pode levar a uma armadilha,
pois traz um conteúdo implícito de uma “concorrência” material necessária entre o
socialismo e o capitalismo e não leva em conta que, como será visto adiante, a
partir de um certo momento da história, estas condições, em sua maioria, foram
amplamente superadas, em todos aqueles países. Ou seja, o fato de que a
estratégia imperialista de cerco, destruição, obstáculos e ameaças contínuas aos
países socialistas tenha dificultado enormemente a aplicação e o avanço das
práticas socialistas e comunistas não anula a necessidade de focar a atenção nas
condições internas daqueles países, nas relações econômicas e políticas,
destacando o papel decisivo do fator subjetivo no desenvolvimento das novas
relações sociais.

40 O processo de desenvolvimento da URSS, com ênfase na industrialização “forçada”,


erigida a partir da indústria de bens intermediários, bens de produção e de armas,
é outro elemento a levar-se em conta. Esta orientação passaria a ser o eixo
condutor do processo de industrialização a partir do final dos anos 1920, com a
vitória da corrente “industrialista” no Congresso do PCUS, pondo fim a cerca de
uma década de experimentos de economia mista.

41 A introdução da Nova Política Econômica, a NEP, iniciada em 1923, havia sido uma
forma de facilitar a retomada da produção industrial, de reorganização da
economia destroçada pela guerra, contando com quadros profissionais. Neste
arranjo, empresas privadas, mistas e cooperativas industriais e agrícolas conviviam
com empresas estatais – na indústria e no campo – e com a estrutura de
planejamento central que se fortaleceria ao longo daquela década. No momento
seguinte à NEP, inicia-se o processo de estatização e de industrialização acelerada,
processo pelo qual a economia russa foi lançada a um novo patamar.

42 A abertura para o comércio exterior seria outro elemento presente nos anos 1920,
período durante o qual discussões e debates extremamente ricos permeariam todo
o processo de definição e consolidação das estruturas do poder soviético,
acompanhando passo a passo a reconstrução do país, a reorganização da economia
e trazendo à tona, principalmente, as questões de fundo quanto aos rumos e
características da construção do Socialismo, com propostas que poderiam, grosso
modo, ser concentradas em dois campos. De um lado, havia a defesa do
gradualismo, em termos da passagem de estruturas mistas de propriedade
produtiva agrária e industrial para o modelo estatal / coletivo; de outro, a defesa
da industrialização acelerada, acompanhada da respectiva adequação dos
mecanismos de planejamento e de exercício do poder.

43 Como pano de fundo para a análise do caminho de industrialização da URSS,


situa-se o debate sobre a possibilidade de construção do socialismo em um só país,
mesmo mantida a perspectiva de expansão mundial da revolução socialista. O V
Congresso do PCUS, realizado em 1927/28, decidiria por esta vertente. O descenso
do processo revolucionário, nos países da Europa e no resto do mundo, as
inumeráveis possibilidades de desenvolvimento socialista da URSS e mesmo a
necessidade de defesa contra a ameaça nazifascista, como a história viria
confirmar alguns anos mais tarde, mostram que a decisão de levar adiante aquela
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construção estava correta.

44 Do final da guerra civil até 1927-28, foi intenso também o debate político, travado
nos organismos do Partido, nos sindicatos, organizações de massa e nos Sovietes
sobre o processo de construção política e econômica do socialismo, propiciando ao
conjunto dos trabalhadores uma dinâmica extremamente participativa nas
decisões políticas para a condução da luta de classes.

45 O processo de industrialização teve por base a transferência de renda da


agricultura para a indústria e foi acompanhado pela coletivização forçada do
campo, dirigida diretamente pelo poder central soviético, a partir dos primeiros
anos da década de 1930. As razões para esta decisão incluem, além da filosofia de
desenvolvimento industrial, então hegemônica no bojo do PCUS, a ameaça do
fascismo, em ascensão na Europa naquele momento, fato que induziria à
priorização da indústria de bens de produção para o fortalecimento da defesa do
país.

46 Muitos historiadores afirmam que a opção pela industrialização acelerada a partir


da indústria de base e pela coletivização forçada do campo foi adotada pelo governo
soviético a partir da necessidade de armar o país, em função da ameaça
nazifascista na Europa. Esta opção gerou elevados custos sociais e políticos, mas
erigiu a base material que viabilizaria a vitória da URSS na Segunda Guerra
Mundial e assentaria o caminho para o desenvolvimento pleno do país nas décadas
seguintes. É preciso atestar as conquistas do período: a produção planejada
atingiu ritmos impressionantes, desenvolvendo as capacidades produtivas em
todos os ramos industriais. As cooperativas de produção (kolkhozes) e as fazendas
estatais (sovkhozes) estabeleceram os alicerces da produção socialista no campo. O
feito mais importante, sem dúvida, foi a abolição da propriedade privada dos meios
de produção e das relações de produção capitalistas.

47 Há que reconhecer-se, entretanto, que a “marcha forçada” para a industrialização


deixou marcas profundas, tendo em vista a “queima” de passos importantes na
superação das diferenças entre cidade e campo, além da extrema violência
empregada nas ações, em muitos casos necessária por causa do enfrentamento aos
kulaks (a classe burguesa das aldeias), estratos sociais que se aproveitaram da
NEP para enriquecimento privado e reagiram ao processo socializante através de
sabotagens na indústria e no campo. O problema foi, em vários momentos, o uso
exacerbado desta violência, desferida também contra camponeses.

48 A Segunda Guerra deixaria pesadas cargas para o poder soviético, com destaque
para a devastação do território da URSS e para os 20 milhões de soviéticos mortos,
incluindo-se, neste número, praticamente, toda a juventude e grande parte dos
melhores quadros do Partido Comunista, além do fechamento dos Sovietes e dos
expurgos. Com o fim da guerra, no entanto, vieram a afirmação do Socialismo, um
grande prestígio internacional para a URSS e os comunistas e uma expansão do
campo socialista, com a fundação das repúblicas populares do Leste.

49 Condições de contorno semelhantes àquelas da URSS estariam presentes no início


da vida daquelas novas repúblicas, que, com exceção da Alemanha Oriental e parte
da Tchecoslováquia, eram áreas extremamente pobres, de economia agrícola,
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herdeiras de territórios muitas vezes divididos e de governos autoritários e


fascistas. Ao Bloco Socialista se juntaria a China, após a Revolução de 1949. As
condições da Revolução Chinesa passaram por uma longa e intensa luta armada
contra o invasor japonês e, logo após a vitória sobre o inimigo externo, por outra
guerra, desta feita uma guerra civil revolucionária travada entre os comunistas,
liderados então por Mao Tsé-Tung, e o movimento nacionalista (Kuomitang) de
Chiang Kai Shek – dois grupamentos antes aliados na luta contra o inimigo externo
– que culminaria com a vitória dos primeiros.

50 A China apresentava, naquele momento, além da intensa penúria geral do povo,


uma estrutura de produção basicamente agrária, uma imensa população,
condições de desenvolvimento desigual entre o litoral e o interior, contando com
poucos quadros técnicos. Pesava sobremaneira, no país, a carga de sua longa
dominação por potências colonialistas. Um processo de cooperação com a URSS
logo se iniciaria, entretanto, no bojo da constituição do campo socialista e seu
mecanismo de cooperação econômica. Cuba (1959) e Vietnã (1975) seriam as
vitórias seguintes do Socialismo (além da Coreia, em 1956). Sua construção,
naqueles países, seria iniciada a partir, também, de condições de pobreza. No
entanto, o apoio político da URSS e dos demais países socialistas – já então com
um alto grau de desenvolvimento econômico e social – se traduziu em
possibilidades reais de ajuda material e logística de monta.

51 O desenvolvimento da União Soviética e dos países do Leste Europeu se daria, nas


décadas imediatamente posteriores ao término da Segunda Guerra, de forma
constante e intensa. Já em meados dos anos 1950, após um vigoroso esforço
econômico, a URSS e os demais países socialistas europeus estariam
reconstruídos, com os problemas mais candentes de suas populações – como a
fome, o desabrigo e o desemprego – resolvidos. Ao longo das décadas seguintes, o
Bloco Socialista europeu atingiria patamares de desenvolvimento elevados, mesmo
tendo partido de condições iniciais precárias, com níveis de educação e saúde – de
acesso universal e gratuitas – comparáveis ou mesmo superiores aos países
capitalistas mais desenvolvidos, com sistemas de seguridade social extremamente
avançados, provendo pensões, aposentadorias, seguros e garantias diversas para o
conjunto da população. Havia ainda um padrão de consumo médio superior aos
níveis encontrados nos países capitalistas em desenvolvimento, com o pleno
emprego, intensa vida cultural (era extensa a rede de museus, cinemas, teatros e
casas de cultura) e esportiva, incluindo significativos avanços nas ciências.

52 Alguns números podem deixar mais evidente o caráter universalizante e


distributivo, além do nível das garantias sociais: o desemprego foi eliminado, a
diferença entre o maior e o menor salário era de no máximo 5 vezes, em geral; o
número de aparelhos de rádios e tvs, geladeiras, fogões e outros bens de consumo
duráveis equivalia, já nos anos 1960, ao número de domicílios; a todos era
garantido o direito à compra ou aluguel da casa própria, em condições dignas de
habitação, utilizando no máximo até dez por cento do salário; alimentos e
transportes públicos a baixo preço; 9 anos de escolaridade mínima para todos;
acesso universal ao esporte, à cultura, ao lazer. Universidades e instituições de
ensino superior se multiplicaram, oferecendo formação de alta qualidade e
numerosos cursos de aperfeiçoamento e enriquecimento cultural; livrarias e
editoras seguiriam o mesmo caminho, disponibilizando livros e materiais diversos a
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baixo preço para toda a população. Segundo o censo soviético de 1970, mais de ¾
da população das cidades e 50% dos trabalhadores nas áreas rurais tinham
completado educação de nível médio ou superior.

53 Na União Soviética, em 1975, estava garantido por lei que o número de horas de
trabalho não podia exceder as 41 horas por semana, na época uma das menores
jornadas do mundo. A todos os trabalhadores eram garantidos dias para descanso
e férias anuais pagas. O tempo livre foi alargado e o seu conteúdo mudou,
deixando de ser tempo para a reprodução da mercadoria força de trabalho, para se
transformar em oportunidade de os trabalhadores elevarem o seu nível cultural e
educacional.

54 A Seguridade Social para os trabalhadores tinha alta prioridade para o Estado: foi
criado um sistema integral de benefícios com baixos limites de idade para a
aposentadoria (55 anos para as mulheres, 60 para os homens). Condições
similares existiam nos restantes Estados socialistas europeus. O poder socialista
lançou os fundamentos para a abolição da desigualdade que sofriam as mulheres,
assegurando, na prática, o caráter social da maternidade e os cuidados
socializados à criança. Eram garantidos, em média, dois anos de licença
maternidade e foram instituídos direitos iguais para mulheres e homens no campo
econômico, político e cultural.

55 O Bloco Socialista apresentava diferenciações entre seus países membros. Quanto


à propriedade, Polônia, Hungria e Iugoslávia tinham setores privados e
cooperativos em proporção significativa, tanto no campo quanto na pequena
indústria. Estes mesmos países, acompanhados pela República Democrática
Alemã, mantiveram estruturas de representação política pluripartidárias. Nos
demais países, a base de representação do poder era o Partido Comunista, o
partido único; Iugoslávia e Hungria experimentaram sistemas de planejamento
indicativo, com estruturas de mercado convivendo com a condução centralizada
dos grandes eixos de desenvolvimento e de provimento de infraestrutura. O sistema
de autogestão das empresas esteve presente, em maior grau, na Iugoslávia.

56 Em todos os países do bloco predominou o tipo estatal e coletivo de propriedade.


Na URSS e na grande maioria dos países do grupo, consolidou-se o sistema de
planejamento centralizado, iniciado com o Plano Estatal de Eletrificação da Rússia,
nos anos 1920 (conhecido pela sigla em russo - GOELRO), tendo sido enriquecido
com modelos matemáticos e, mais tarde, por um poderoso aparato computacional.
Ao longo do tempo, este sistema se desenvolveria significativamente do ponto de
vista técnico, mostrando ser uma ferramenta fundamental para o provimento da
infraestrutura produtiva – a energia, as estradas de ferro e de rodagem, os portos,
as comunicações, para a implantação da indústria de base e de bens de capital,
para o abastecimento básico, para o provimento da habitação, das cidades e seus
aparelhos urbanos, para a expansão e consolidação dos serviços dos sistemas de
garantias sociais.

57 A participação dos trabalhadores era estendida aos sindicatos e organizações de


massa, que discutiam e opinavam sobre os grandes temas a serem deliberados
pelos Parlamentos a partir de documentos e informações distribuídos pelo Partido.

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As eleições, em geral, se realizavam no sistema distrital, podendo ser apresentados


candidatos lançados pelos sindicatos e organizações de massa.

58 O Bloco Socialista daria um grande passo na direção da sua consolidação com a


construção de um sistema econômico internacional intrabloco, o Conselho de
Ajuda Mútua Econômica – CAME, mais conhecido como COMECOM, sua sigla em
inglês. Este mecanismo possibilitaria a troca vantajosa de bens e serviços entre os
países membros, contribuindo para a obtenção de ganhos de escala e de
especialização, além de maior disponibilidade de produtos em todos os países. No
terreno militar, a aliança de defesa, conhecida como Pacto de Varsóvia, seria
também um passo importante para a afirmação do bloco.

59 Muitos problemas e limitações surgiriam, no entanto, em todo o sistema. É


conhecido o problema da pouca variedade, baixas disponibilidade e qualidade dos
bens de consumo duráveis e mesmo dos não duráveis à venda, da baixa qualidade
de diversos setores de serviços, como restaurantes, lojas de varejo, serviços e
outros. Também são reconhecidos os erros na aplicação do planejamento
centralizado, em geral, como a tendência ao desperdício por parte das empresas,
aos desequilíbrios entre oferta e demanda, à morosidade na introdução de novos
produtos e processos na produção, à prática de realização de níveis elevados de
investimento na produção em detrimento do consumo e a ausência de uma política
voltada ao desenvolvimento de ações para a preservação do meio ambiente.

60 O contexto da Guerra Fria, de confronto com o bloco capitalista liderado pelos


EUA, imporia à URSS e aos países socialistas elevados gastos militares para a
construção, desenvolvimento e manutenção dos arsenais militares, para o
treinamento e custeio das tropas. Este contexto geraria pressões externas, exigiria
o fechamento de fronteiras e o rigor na segurança interna, provocando
descontentamentos e desgastes internos para os governos comunistas.

61 A URSS foi então impelida a enfatizar a luta pela distensão e pela paz mundial,
entre outras razões, pela necessidade de consolidar o sistema socialista e evitar um
novo confronto mundial, ao mesmo tempo em que apoiava diretamente os
movimentos de libertação nacional e contra as ditaduras e as ações dos
comunistas nos diversos países, sem aventureirismos, sem a ilusão de que a
revolução pudesse ser exportada e feita de modo exclusivamente militar. Este
movimento incluiu o reconhecimento e a participação intensa da URSS nos
organismos multilaterais, como a ONU e suas organizações, tais como a UNESCO,
a FAO, a UNCTAD e outros, o apoio a movimentos pacifistas e desenvolvimentistas
que faziam frente à hegemonia estadunidense, como o movimento dos não
alinhados.

62 Esta necessidade, no entanto, gerou erros de avaliação e exageros que levaram à


conciliação com alguns processos locais, obrigando a URSS a “apagar incêndios”
em vários países. A ilusão com o Estado de Israel, por exemplo, levou a URSS a
aceitar a postergação da criação de um Estado Palestino, deixando aberto o espaço
para a atuação de grupos armados israelenses, como o Haganá, que passaram a
expulsar palestinos de suas casas para facilitar a expansão de Israel. Este fato tem
implicações até hoje, na dificuldade de implementação do Estado Palestino.

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63 Gastar com armas significava não gastar com o consumo social, não investir na
modernização da indústria de bens de consumo da classe trabalhadora. Por outro
lado, o poder militar da URSS e dos demais países do Bloco Socialista, aliado à sua
grande dimensão econômica e à sua forte influência política, garantia para todo o
mundo uma ordem econômica e política mais justa, mantinha protegidos diversos
países que, assim, puderam desenvolver-se soberanamente. China, Cuba, Vietnã,
Angola, Moçambique e muitos outros países foram beneficiários diretos deste
poder; Índia, Egito, Síria e outros o foram de maneira menos direta; todo o Terceiro
Mundo tinha muito a ganhar pela presença da URSS no cenário mundial, com
reflexos nos organismos multilaterais. Mesmo nos países capitalistas
desenvolvidos, os trabalhadores podiam melhor se organizar para exigir do
patronato capitalista melhores pagamentos e condições de vida e trabalho, para
conquistarem mais direitos e mais participação na vida política de seus países.

64 Com o tempo, o efeito do próprio desenvolvimento e a burocratização do exercício


do poder passaram a ser elementos cada vez mais fortes na vida política dos países
do bloco. Além da morte de numerosos quadros comunistas jovens na guerra, a
perda do dinamismo e a queda na participação política dos trabalhadores naqueles
países podem ser atribuídas à rigidez das estruturas de poder – uma herança do
esforço de guerra – e ao próprio processo de desenvolvimento que, ao superar
debilidades e carências sociais, tende a arrefecer, por si mesmo, o ímpeto de
participação na vida política. O planejamento centralizado demonstrou ser uma
ferramenta poderosa para promover o crescimento econômico no curto prazo, mas
esbarrou no burocratismo, na falta de criatividade, na corrupção, no descompasso
com as necessidades da população e na ausência de mecanismos efetivos de
democracia proletária.

65 No entanto, outras causas, mais profundas, podem ser apontadas para esta queda.
Entre as principais razões está, seguramente, a visão e a teorização da dinâmica da
luta de classes, do desenvolvimento do capitalismo e da construção do socialismo
surgidas ainda nos anos 1930, após a ascensão de Stálin ao poder, que se
consolidariam nas décadas seguintes, através da codificação do marxismo
produzida pelo PCUS no período, acompanhada de uma simplificação da teoria,
materializada em manuais de marxismo-leninismo difundidos a todos os Partidos
Comunistas do mundo que seguiam a linha soviética.

66 Este pensamento surgiu em condições específicas e marcadas no processo


histórico de construção do Socialismo na URSS. Foi construído a partir de um
contexto, nos anos 1930, em que a coletivização dos campos e a industrialização
forçada eram vistos como imperativos, como ações que exigiam comando unificado
e firme; foi consolidado após a guerra, um período em que se operou, na União
Soviética, uma verdadeira união nacional – cobrindo todas as vertentes políticas,
todas as religiões, todas as nacionalidades da URSS – centrada na necessidade de
defesa do país e das conquistas da Revolução, uma união que teve como símbolo a
liderança carismática e decidida de Stálin. Finda a Segunda Guerra, à euforia da
vitória sobre o nazifascismo, acompanhada da expansão territorial do socialismo e
da influência da URSS na Europa, somaram-se, nos anos seguintes, o crescimento
do prestígio internacional da União Soviética e o sucesso do processo de
reconstrução e desenvolvimento do país. Eram tempos de ufanismo, de crença na
viabilidade inexorável do socialismo e no acerto do caminho trilhado pela URSS.
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67 Claro está que todo este contexto se refletiria no trabalho de elaboração teórica do
PCUS, cuja estrutura ainda se ressentia da perda de muitos quadros – com
destaque para os quadros jovens – durante a guerra e por causa dos expurgos. No
capítulo IV da História do PCUS, um trabalho realizado coletivamente e coordenado
por Stálin, estão muitos dos elementos que delineariam esta codificação do
pensamento marxista, construída principalmente a partir de citações reordenadas
de elementos dos trabalhos de Marx e Lênin: a definição da necessidade de
recrutamento de quadros com base no critério de confiança e da fé depositada no
Partido e no Socialismo; a definição do Partido como o único centro condutor do
processo de transformação social e a imbricação direta e necessária entre o Partido
e o Estado; a atribuição do papel de "correias de transmissão" do Partido aos
sindicatos e organizações de massa.

68 Estes elementos seriam a base da burocratização e do afastamento entre o Partido


e a massa trabalhadora, com a perda progressiva do papel do Partido como sujeito
político e sua transformação em máquina administrativa. Criaram-se também
então as bases para as enormes distorções no aparelho de Estado e para o
aniquilamento da função combativa, reivindicatória dos sindicatos, com a perda de
sua autonomia, e para o estancamento do processo de fortalecimento do Poder
Popular. A cultura burguesa, ainda presente em parte da população e apoiada pelo
capitalismo internacional, não foi dominada nem vencida plenamente, por não
terem sido profundos o debate e o confronto democráticos no seio da classe
trabalhadora, impedindo que cada trabalhador se sentisse sujeito responsável pela
construção da sociedade socialista como um todo.

69 A teoria tornou-se dogmática a partir dos anos 1930, incapaz de analisar


profundamente os fenômenos novos, internos e internacionais, incapaz de lidar
com contradições emergentes. Ao apresentar e explicar, de forma codificada e
simplificada, o significado e o papel do Materialismo Histórico e Dialético, absurdos
teóricos foram cometidos, a exemplo da referência positivista à precisão e à
previsibilidade dos processos sociais, como se estes fossem comparáveis à biologia
e às ciências exatas. E havia ainda a recomendação para a elaboração, pelo PCUS,
de manuais de marxismo-leninismo simplificados, de fácil entendimento, para os
Partidos Comunistas dos países do Terceiro Mundo. Por meio desses manuais,
havia uma forte tendência a subordinar a atividade teórica à prática política,
invertendo-se o papel da teoria: em vez de ser um guia para a ação, ela
transformou-se, em vários momentos, numa tentativa de justificar a posteriori a
própria ação. Deste modo, o conteúdo da teoria ficava delimitado por sua
instrumentalização, transformando em práticas acessórias os processos de busca
do conhecimento, tais como a investigação, a pesquisa, a construção e a crítica das
hipóteses, a formulação de conceitos, etc. A teoria, assim, corria o risco de perder o
seu caráter de cientificidade, quando passava a ser um pressuposto a ausência de
críticas às premissas utilizadas. Esta codificação teria forte influência sobre os
demais países do Bloco Socialista.

70 A concepção de manuais teóricos simplificados para os demais PCs retratava


claramente, além do mecanicismo, a relação existente, então, entre o PCUS e os
demais Partidos Comunistas: com poucas exceções, esta relação era de puro
seguidismo, de dependência teórica (e muitas vezes material) e de atrelamento,
15
16

onde o PCUS, de forma inquestionável, ditava os rumos da revolução para os


demais PCs. O seguidismo contribuiu bastante para o empobrecimento da
formulação teórica dos partidos comunistas, como um todo – inclusive no PCUS.
Por conseguinte, pela repetição acrítica e atemporal de fórmulas prontas para o
que fazer, inúmeros foram os erros cometidos pelos comunistas em diversas partes
do mundo.

71 Neste período, no entanto, não devemos desconsiderar totalmente a contribuição


teórica do PCUS e de outras instituições da URSS, como a Academia de Ciências,
dos Partidos e das demais instituições dos países do Leste Europeu para o
desenvolvimento da teoria e da prática do marxismo-leninismo, em suas diferentes
dimensões. Houve muitas contribuições para o entendimento das grandes questões
da humanidade, para o entendimento da evolução do capitalismo e da economia
política do capitalismo na segunda metade do século XX, para o aprofundamento
da teoria do planejamento econômico e da economia política do Socialismo. Muito
se formulou e se praticou para a elaboração das estratégias e táticas dos
movimentos revolucionários e de libertação nacional em diversas partes do mundo,
aos quais a URSS apoiava intensa e diretamente, entre outros exemplos. Todo este
acervo era amplamente divulgado, na forma de manuais, livros seriados e avulsos e
documentos específicos para todo o movimento comunista internacional.
Entretanto, é impossível desconhecer ou negar que houve rejeição a teóricos
soviéticos e de diversos outros países, sempre que estes parecessem heterodoxos
aos dirigentes da URSS. O não reconhecimento ou mesmo boicote às obras de
Lukács e Gramsci, assim como às obras iniciais de Adam Schaff e muitos outros,
empobreceu bastante a teoria marxista no período, na medida em que tais
pensadores propunham novas e importantes questões, a partir de perspectivas
diferentes e em campos diversificados do conhecimento, sem, no entanto, se
afastarem do marxismo e do leninismo – pelo contrário, aprofundando-os e
enriquecendo-os.

72 A opção pela industrialização extensiva, em grandes empresas, foi uma decisão


historicamente correta. No entanto, a filosofia de gestão da produção, administrada
com elementos do pensamento taylorista-fordista na versão local – com base na
divisão do trabalho, na separação entre planejamento e execução das tarefas, em
supervisores que detinham o poder de comando, na defesa do operário padrão
(stakhanovismo) – pode estar também ligada ao conjunto de causas mais
profundas da deterioração do sistema. A ausência de participação direta no
processo decisório nas empresas, aliada ao próprio estilo tecnicista do
planejamento soviético, que, em geral, não envolvia as representações regionais ou
setoriais dos trabalhadores de forma efetiva, geraram, com certeza, condições de
alheamento e distanciamento da classe trabalhadora do processo de construção
socialista. A democracia, baseada não apenas na satisfação das necessidades
materiais e culturais dos homens, mas também no respeito às liberdades públicas,
não foi fator estratégico. A ausência de formação ideológica e de mecanismos
efetivos de participação democrática levou, ao final, ao desinteresse das grandes
massas pela coisa pública e à estagnação econômica.

73 Houve ainda problemas no tocante à adoção de posicionamentos teóricos


equivocados. No XXII Congresso do PCUS (1961), por exemplo, foram adotadas
avaliações pouco objetivas a respeito do “socialismo desenvolvido” e do “fim da luta
16
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de classes”. Em nome de “contradições não antagônicas” entre classes e grupos


sociais, foi adotada a posição de que a URSS era um “Estado de todos os povos”
(consolidada na revisão constitucional de 1977) e o PCUS, um “Partido de todos os
povos”. Este desenvolvimento contribuiu para alterar as características de um
Estado revolucionário dos trabalhadores e para a crescente degenerescência da
composição de classe do Partido e dos seus quadros. Através da perestroika e da
reforma do sistema político de 1988, o sistema soviético degenerou em órgão
burguês.

74 A experiência prática revela o afastamento gradual das massas da participação no


sistema soviético, que, nos anos 1980, tinha caráter puramente formal. À medida
que a liderança do PCUS adotava políticas que enfraqueciam o caráter social da
propriedade e reforçavam os estreitos interesses individuais e de grupo, criava-se
um sentimento de alienação relativamente à propriedade social, e a consciência
comunista sofria erosão. Estava aberta a via para a passividade, a indiferença e o
individualismo. Conforme a realidade ficava cada vez mais distante das declarações
oficiais, caíam os níveis da produção industrial e agrícola, caindo também a
capacidade de satisfazer as crescentes necessidades sociais. No início dos anos
1990, a abordagem socialdemocrata da “economia planejada de mercado” (a
plataforma do CC no XXVIII Congresso) foi rapidamente abandonada em favor da
posição da “economia de mercado regulada” e esta foi ainda substituída pela
“economia de mercado livre”.

75 A direção dominante no período final da experiência socialista na URSS pode ser


julgada hoje não só teoricamente, mas também pelos resultados. Após duas
décadas de aplicação das reformas, os problemas tinham se agudizado claramente.
A estagnação imperava e o atraso tecnológico continuou a ser uma realidade para a
maioria das indústrias. Houve a escassez de muitos produtos de consumo, assim
como problemas adicionais no mercado, porque havia empresas que estavam
provocando uma alta artificial de preços, acumulando mercadorias em armazéns
ou fornecendo-as em quantidades controladas. O crescente envolvimento de
elementos de mercado diretamente na produção social do socialismo fortaleceu os
interesses individuais e de grupo no curto prazo (com significativas diferenças de
rendimento entre os trabalhadores em cada empresa, entre os trabalhadores e o
mecanismo de gestão, entre diferentes empresas), contra os interesses globais da
sociedade. Com o tempo, criaram-se as condições sociais para que a
contrarrevolução vencesse, usando a perestroika como veículo. Estas reformas
acabaram por incentivar práticas de acúmulo de riqueza por meios ilegais, como o
contrabando e o investimento no mercado paralelo.

76 Para responder às questões levantadas e elaborar um balanço da experiência do


Socialismo, partimos da constatação de que, pelo processo de tomada e exercício
do poder, pela predominância da propriedade coletiva e estatal e de estruturas de
planejamento centralizadas e de políticas sociais fortes e abrangentes, em todo o
bloco, aquelas experiências foram de fato experiências de superação do capitalismo
e de transição ao socialismo. O número, a abrangência e a profundidade das
conquistas alcançadas pelos trabalhadores, naqueles países, o peso das referências
sociais do Bloco Socialista como elemento de apoio aos movimentos de
trabalhadores por todo o mundo capitalista, a ação direta de suporte aos
movimentos revolucionários e de libertação nacional em diversos países, o prestígio
17
18

obtido e a influência exercida nos organismos multilaterais são evidências claras


de que aquelas experiências foram positivas, obtendo vitórias concretas e
significativas.

77 Ainda neste terreno, a crítica ao "Modelo de Socialismo idealizado por Marx e


Lênin" configura-se como uma crítica vazia, dado que a construção socialista, no
caso da URSS, se deu de forma empírica, em meio à luta política e ideológica, tendo
sido a teoria construída passo a passo, no ritmo dos acontecimentos. Além do
mais, é uma crítica historicamente equivocada dado que, antes da Revolução de
1917, havia poucas referências teóricas sobre o Socialismo, à exceção das
formulações dos “socialistas utópicos”, de uma parte do Manifesto Comunista, da
Crítica ao Programa de Ghota e a análise, por Marx, da experiência da Comuna de
Paris.

78 Dos muitos elementos presentes na construção socialista daqueles países, a


predominância da propriedade coletiva dos meios de produção provou sua
correção, seu acerto, claramente como uma necessidade, ao constituir a base
material para a construção do socialismo, a ser mantida nas próximas experiências
de superação do capitalismo. O Estado foi elemento chave para a organização
daquelas sociedades, e toda a ênfase do esforço econômico voltou-se para o
provimento das garantias sociais e da defesa. Estes elementos – o papel do Estado
e a ênfase nas políticas sociais universalizantes e distributivas – foram
consagrados, devem ser mantidos, devem fazer parte dos programas para a
transição ao Socialismo.

79 O planejamento econômico centralizado mostrou todo o seu potencial de constituir-


se em elemento-chave para a aceleração do desenvolvimento, com destaque para os
setores de infraestrutura (transportes, energia e outros), de indústria de base, da
ciência, para a habitação, a cultura, os esportes, o abastecimento, a saúde e outras
áreas de relevância social. Houve problemas, principalmente no modelo soviético
vigente a partir do pós-guerra, com a produção e a distribuição de bens de
consumo, além de problemas relacionados com desperdícios na produção e uma
concentração de investimentos na indústria pesada.

80 As contribuições ao pensamento marxista que se desenvolveram em todas as


experiências socialistas, com diversos elementos de gestão da economia, de
entendimento da dinâmica e da evolução da sociedade socialista, da constituição
de instâncias de participação e decisão política e outros devem ser considerados,
criticamente, numa próxima experiência.

81 É fato que o cerco político e econômico externo, a ação de difamação e


contrapropaganda ideológica, as traições e mesmo as sabotagens ocorridas ao
longo dos anos ajudaram a minar as bases do sistema, assim como as perdas da
guerra e o baixo desenvolvimento das forças produtivas no período pré-
revolucionário.

82 A questão que fecha este rol de reflexões, no entanto, é a mais importante: por que
não se formou, no período histórico correspondente, uma hegemonia política e
cultural socialista sólida, naqueles países, capaz de manter e até desenvolver e
aprofundar o ideário socialista e comunista?
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19

83 As respostas são múltiplas, e vale reafirmar que houve vitórias e conquistas, que o
Socialismo funcionou e "deu certo" para o que se propôs, por um dado período de
tempo. Pode ser citado o tipo de gestão do planejamento – no caso da URSS e dos
demais países do Leste – de natureza "técnica", com pouca influência das
estruturas de participação e poder de exercício direto. A própria visão da
industrialização em si, voltada, após o período da reconstrução e construção da
indústria de base e de bens de capital, de voltar-se para a busca do atendimento a
necessidades de consumo à moda "ocidental" pode ser citada como uma causa
importante da derrota política sofrida.

84 Um elemento, no entanto, se destaca: o pensamento dogmático, através da


codificação do marxismo que se desenhou, principalmente no pós-guerra, com uma
base mecanicista e idealizada, criaria entraves e armadilhas para o
desenvolvimento do Socialismo naquelas formações e para a própria teoria
marxista. A visão dogmática conduziria a práticas que podem ser apontadas como
não marxistas, por serem de caráter antidialético ou positivista: a atribuição às
ciências sociais da precisão e previsibilidade das ciências exatas; a redução da
teoria a manuais oficiais, que engessariam a criação e o debate de ideias e
proposições.

85 Além disso, o recrutamento de quadros para o Partido com base no critério da


confiança, a fé como elemento definidor da adesão à causa comunista, a amarração
e travamento dos sindicatos e entidades de massa pela atribuição a eles dada de
meras "correias de transmissão" do Partido ceifaram-lhes a capacidade de tomar
iniciativas, de lutar por melhorias nas condições de vida e trabalho, de serem
atores políticos ativos na construção socialista.

86 Por último, mas nem por isso em condição inferior aos demais elementos, a
imbricação direta entre o Partido e o Estado descaracterizaria a ambos, abriria as
portas para o empobrecimento teórico, a acomodação da militância e a
burocratização do Partido, para a sua despolitização e desideologização e,
posteriormente, para a corrupção e mesmo a rendição ideológica de muitos
quadros. Sem intensa participação política, sem iniciativas do Partido, ficou
empobrecido o desenvolvimento da teoria e da prática revolucionárias, e a disputa
pela hegemonia política e ideológica perderia terreno para a pressão pelo consumo,
para a alienação.

87 Estes elementos podem ser atribuídos a diversos fatores, tais como a perda de
muitos quadros do Partido, principalmente os jovens, durante a Segunda Guerra, a
euforia da vitória e da relativa consolidação do Socialismo, nos anos 1950, a
estrutura hierarquicamente rígida do PCUS constituída nos anos 1930 e durante a
guerra, a influência da herança de poder centralizado (desde os tempos do
tzarismo) na Rússia, a visão e o estilo carismático e personalista de direção de
Stálin (fortalecido com a vitória na Guerra) e outros.

88 Houve momentos em que esta tendência poderia ter sido revertida. Destaquem-se o
XXVIII Congresso, em 1958, que poderia ter sido a base para uma reforma política
ampla e profunda, voltada para o fomento à maior participação direta dos
trabalhadores nas decisões políticas, uma reforma contida, provavelmente, entre
19
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outras razões, pela influência da visão palaciana de Krushov e pela herança de


poder do Exército Vermelho; o episódio da “Primavera de Praga”, que poderia ter
tido outro desfecho, voltado para a construção do socialismo nas condições da
Tchecoslováquia; o contexto do fim da guerra do Vietnã, em 1975, quando a URSS
sairia com enorme prestígio, podendo ter empreendido uma grande virada na
estruturação da política interna. Houve oportunidades na Polônia, com Gomulka,
consenso nacional nos início dos anos 1950, com Gierek, que teve a oportunidade
de modernizar o país, nos anos 1970, e em outros países.

89 Nas experiências de construção do Socialismo em Cuba, na China, no Vietnã e na


Coreia do Norte há elementos novos que devem ser considerados. No caso do
Vietnã, a construção socialista se dá com políticas que incorporam estruturas
privadas na produção, em grau bastante inferior ao da China, e dinâmicas de
participação política fortes. No caso da Coreia do Norte, ainda que prevaleçam as
formas coletivas de produção, trilhou-se um caminho de isolamento internacional,
a condução política se faz de forma autocrática, sendo adotada uma versão do
Marxismo (a chamada ideologia Juche) que tem elementos de construção religiosa.

90 No caso de Cuba, em que pese a discussão sobre a decisão de postergar-se a


industrialização e a autonomia econômica em prol do alinhamento com a URSS, há
que destacar-se a prioridade das políticas de bem estar universalizantes, a
estrutura dinâmica e participativa do Partido Comunista Cubano e das
organizações de massa, o forte trabalho ideológico, a habilidade na gestão do
planejamento econômico – por exemplo, com o uso simultâneo de estruturas
distributivas para bens de consumo duráveis e não duráveis centralizadas, em
regime de quotas, e sistemas de venda a preço livre (acima da quota mínima por
pessoa) – e no convívio atual com as pressões de mercado. A capacidade da
Revolução Cubana de resistir ao perverso bloqueio que há décadas lhe impõe o
imperialismo e, inclusive, ao fim da União Soviética mostra que o processo
revolucionário é obra da grande maioria do povo cubano.

91 No caso da China, que da vitória dos comunistas na guerra civil até 1978 trilhou
um caminho ziguezagueante – alternando-se, no poder, a vertente “vermelha” ou
ideológica e a vertente “pragmática” ou técnica – são elementos da construção do
"Socialismo com características chinesas" que devem ser levadas em conta: a
experiência das comunas, das conferências consultivas, organismos que reúnem
todos os partidos e organizações políticas nacionais para debater as grandes
propostas políticas a serem enviadas ao parlamento; o controle político direto sobre
as unidades produtivas, pelas comunas ainda hoje existentes; a participação das
regiões com mais destaque no sistema de planejamento (de caráter participativo,
em geral); o planejamento em linha (vertical) por ramos de produção, com controle
centralizado de variáveis-chave nacionais; a existência de microempresas e
empresas individuais (como as chamadas empresas de rua) sob controle político
direto, pelas comunas; as relações diretas entre empresas públicas produtoras e
fornecedoras (nas chamadas conferências de harmonização) e mesmo a grande
mobilização popular à época da Revolução Cultural.

92 As reformas de Deng Xiao Ping, iniciadas em 1978, introduziram elementos de


capitalismo, como as Zonas Econômicas Especiais. São medidas que vêm sendo
adotadas em escala crescente: a atração de empresas privadas estrangeiras, a
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21

permissão para o estabelecimento de empresas particulares, a passagem do


sistema de planejamento centralizado para o sistema de controle macroeconômico,
o convívio entre diferentes formas de propriedade e a adoção de estruturas de
mercado. Seus resultados são o crescimento econômico acelerado, com taxas de
mais de 10% ao ano, desde 1987, e os muitos problemas existentes hoje, como a
polarização (a diferença entre ricos e pobres), a corrupção e o avanço da ideologia
burguesa, que acentuam os riscos da restauração capitalista.

93 Mesmo assim, o Partido Comunista Chinês segue na liderança do processo, e


anuncia, para 2015, a retomada da construção de estruturas coletivas e públicas
no rumo socialista. Esta experiência deve ser analisada com atenção, assim como a
trajetória do Vietnã, cautelosa, de modernização e abertura com a manutenção da
base socialista, e mesmo da Coreia do Norte, que, com problemas diversos, com
destaque para o seu isolamento internacional e uma estrutura rígida de poder,
atingiu um elevado padrão de igualdade social, mantendo-se no campo socialista e
fazendo um importante contraponto à política imperialista dos Estados Unidos e
seus aliados.

94 A experiência histórica da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-


1872), da II Internacional (1889-1914) e da Internacional Comunista (1919-1943)
foi extremamente rica, tendo buscado responder às questões de cada momento,
sempre à luz da revolução socialista e com o objetivo de levá-la a cabo em todos os
países. Hoje, passados mais de 16 anos da queda da URSS, o Movimento
Comunista Internacional vem se reorganizando, no plano mundial, para fazer
frente aos desafios dos tempos atuais. O PCB apóia a recriação de uma organização
internacional dos comunistas, com novo formato e novas formas de atuação, para
que se evite a repetição dos erros do passado.

95 No mesmo sentido, foram e são de fundamental importância as entidades mundiais


orientadas pelo Movimento Comunista Internacional, como a Federação Sindical
Mundial – FSM, a Federação Democrática Internacional de Mulheres – FEDIM, a
Federação Mundial da Juventude Democrática – FMJD e o Conselho Mundial da
Paz. A FSM, em particular, poderá vir a ter um papel decisivo no enfrentamento da
crise econômica internacional e na construção da alternativa socialista.

96 No mesmo sentido, os comunistas temos que jogar o melhor de nossos esforços no


exercício das mais diversas formas de ação e expressão do internacionalismo
proletário e da solidariedade entre todos os trabalhadores e todos os povos em luta
contra o capitalismo.

A construção do Socialismo no século XXI

97 As condições sob as quais se desenvolvem e se desenvolverão no futuro próximo os


processos de transição ao socialismo e ao comunismo têm por base o novo modo de
acumulação em que o capitalismo se apresenta, que caracterizamos nas
Resoluções deste XIV Congresso, no capítulo O Capitalismo Hoje. No contexto desta
nossa análise, consideramos como formas de desvio da luta central contra o
capitalismo e de enfraquecimento das posições proletárias a chamada etapa
socialdemocrata, a aliança de classes entre burguesia e proletariado, com base no
equilíbrio entre capital e trabalho, assim como a proposição da revolução ou etapa
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22

nacional-libertadora, uma aliança entre as burguesias nacionais e os respectivos


proletariados para enfrentar o imperialismo.

98 No período de transição para o Socialismo, após a conquista do poder, a luta


política e ideológica a ser travada compreenderá os seguintes eixos:

1) A construção da democracia direta, em que o poder popular se


expandirá e se fortalecerá, substituindo o sistema partidário-
eleitoral burguês e instituindo novas formas de representação
direta dos trabalhadores. Estas formas de representação buscarão
a pluralidade, com a participação de movimentos organizados e
partidos políticos. A velocidade da implantação do novo sistema
dependerá da evolução da correlação de forças e poderá haver um
período de convívio entre o sistema político atual – desde que
renovado, unicameral, com ampla liberdade de organização dos
partidos representativos dos trabalhadores e dos grupos populares,
propaganda gratuita e fortes restrições ao uso do poder econômico.

2) A destruição do Estado burguês e a construção de um Estado de


novo tipo são necessidades históricas e elementos cruciais da luta
pelo Socialismo. Na transição, o Estado burguês deverá sofrer uma
transformação profunda, com a criação de novas instituições, sob
controle dos trabalhadores, acompanhada de um novo texto
constitucional onde constarão como primordiais os direitos à vida,
ao trabalho, à informação, à participação no processo decisório
político, à educação plena e outros direitos sociais, assim como o
direito à coletivização das propriedades produtivas.

3) A substituição da propriedade industrial, comercial e agrária


privadas pela propriedade estatal ou pública (cooperativada sem
direito à venda). O caminho para este quadro será o controle
progressivo de todas as grandes empresas pelo Estado,
acompanhado do controle das demais empresas pelo Poder Popular
local ou regional.

4) A reordenação da produção deverá fazer parte da luta ainda no


capitalismo, acompanhada da reversão dos padrões de consumo.
Serão privilegiados os setores produtores de alimentos para
consumo interno, de bens de consumo essenciais, concebidos e
fabricados com ciclo de vida longo, em regime de ciclo industrial
fechado e com materiais e processos produtivos ambientalmente
amigáveis, até que todas as famílias os possuam. Materiais de
construção, medicamentos, livros e todos os produtos essenciais
para a vida serão produzidos em larga escala e distribuídos a preço
de custo ou subsidiados, ao passo que todos os produtos
considerados supérfluos terão sua produção redirecionada.
Simultaneamente, as áreas científica, educacional e cultural, em
geral, deverão ser fortemente dinamizadas.

5) A implantação do sistema de planejamento centralizado, com uma


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estrutura participativa abrangente, com a redução progressiva dos


espaços de mercado e a implementação de instâncias decisórias
nas empresas e locais de trabalho com a participação direta dos
trabalhadores. Para tal, será necessária a formulação de um projeto
para a reordenação espacial do desenvolvimento econômico e
social, com a criação de pólos no interior e planos diretores para as
cidades visando à harmonização e equalização do processo.

6) A questão ambiental deverá ter tratamento prioritário, tendo como


eixos a recuperação de áreas degradadas, o reflorestamento, a
reordenação da produção para a redução dos gastos com recursos
naturais e de energia, com a retirada de todos os bens ambientais
da categoria de bens econômicos.

7) A luta pela hegemonia das idéias socialistas e comunistas deverá


acompanhar todo o processo revolucionário e prosseguir, forte, ao
longo da construção do Socialismo, no rumo do Comunismo. Esta
luta será travada em todas as esferas, tendo como principais eixos
a participação de todos no processo decisório, a ação direta e
constante dos partidos comunistas e das organizações políticas e
sociais aliadas, ampla divulgação de informações, a livre circulação
das ideias, políticas culturais e educacionais intensas, voltadas
para a construção de um novo Homem, um novo Ser Social. Todo o
processo deverá ser acompanhado pelo trabalho de formação
política, com a discussão dos textos clássicos e contemporâneos e
pelo esforço constante de formulação teórica com base na herança
do marxismo.

99 O período imediatamente posterior à tomada do poder político deverá ser


marcado por medidas incisivas, para dar início imediato à transição, na direção
da socialização dos meios de produção e do reordenamento da produção para o
atendimento às necessidades prementes dos trabalhadores e do povo em geral,
com o estabelecimento de medidas que garantam o controle popular sobre as
políticas públicas, na perspectiva da democracia proletária, da construção da
hegemonia cultural dos trabalhadores e de uma ofensiva político-ideológica em
favor dos valores socialistas e comunistas.

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