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CARTA ABERTA À COMUNIDADE ACADÊMICA DE ALUNOS E

PROFESSORES DOS CURSOS DE BACHARELADO, LICENCIATURA E PÓS-


GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ -
UFC

Prezados,

Foi com grande consternação com que a comunidade acadêmica e, em especial, o


corpo de alunos de filosofia, receberam a notícia acerca da mais recente reunião do
Colegiado de Professores de Filosofia da UFC, ocorrida na última sexta-feira, dia 18 de
agosto de 2023, a qual se aventou e deliberou sobre a proposta de um projeto de criação
e “transição” de turno dos cursos de Filosofia nas modalidades Bacharelado e
Licenciatura do noturno para o diurno, além de um projeto voltado a criação de um curso
de Filosofia na modalidade EAD.

Tal deliberação já havia sido debatida em duas outras reuniões anteriores do


referido colegiado, ocorridas nos dias 23 e 30 de junho, todas contando com a presença
dos representantes do Centro Acadêmico de Filosofia Manfredo Oliveira (CAFMO), para
se ouvir melhor a proposta sugerida por uma comissão, acompanhada de alguns
apoiadores, o qual explicava – em caráter ainda introdutório – os motivos que
fundamentariam a sugestão mencionada de criação do curso EAD em Filosofia e da
mudança de turno do curso presencial para o período diurno.

Em todos os mencionados encontros do colegiado – que ocorreram abaixo do


quórum esperado para deliberações em caráter mais solene – a comissão em questão, bem
como alguns poucos professores apoiadores da proposta, afiançou diante dos demais e
dos representantes do C.A. de Filosofia a intenção transparente e de boa-fé da abertura
de uma comissão para análise mais formal e técnica da proposta, com pareceres a serem
devidamente levantados, que formalizassem a comissão e o avanço da proposta, sob o
acompanhamento de professores e alunos, dos quais estariam presentes representantes
nomeados pelo C.A. de Filosofia.

Tudo isso tinha sido pensado e acordado nas próprias reuniões citadas, tendo em
vista a intenção de um diálogo transparente que deveria haver entre os professores

1
proponentes do Colegiado de Professores e o Centro Acadêmico de Filosofia a fim de
informar gradativamente a comunidade acadêmica, que viria a ser consultada sobre a
proposta do projeto que ainda estava em rascunho por meios amplos, adequados e
transparentes de comunicação. Ademais, os professores proponentes afiançaram em
diversos momentos dos encontros citados a importância de fazer um diálogo que buscasse
sanar quaisquer dúvidas e preocupações por parte dos integrantes do corpo de alunos do
curso, trazendo assim um clima de harmonia e união a toda comunidade acadêmica.

Entretanto, ocorre que na manhã da sexta-feira do dia 18, toda a comunidade


acadêmica fora tomada por um sentimento misto de preocupação, decepção, desagrado,
angústia e indignação ao saberem do documento de sete páginas intitulado “Plano de
Transição”, rascunhado pela comissão de professores apoiadores da proposta, no intento
ansioso ser logo deliberado e aprovado – “passado para frente” – em caráter célere e
precipitado, contradizendo as garantias de boa-fé que foram declaradas nas reuniões
anteriores, passando uma clara sensação de opacidade e rigidez onde deveria haver
transparência, alteridade e equanimidade democrática.

O assim chamado “Plano de Transição” que chegou ao conhecimento dos demais


professores do colegiado e, por sua vez, de todos alunos mediante diversas mídias sociais,
apresentaria, argumentos que motivassem a proposição pela mudança do turno do curso
de Filosofia do noturno para o diurno. No entanto, diferente do discurso inicial que fora
afiançado pelos professores proponentes, o referido documento não apresentou quaisquer
dados estatísticos, justificativas e pareceres técnicos que tornassem robustas e plausíveis
as propostas aventadas, mas de maneira vaga e confusa “percepções” que não encontram
lastro com a realidade do curso nas atuais condições e, principalmente, com os principais
impactos negativos sobre a vida dos estudantes atuais da graduação, pós-graduação, bem
como os futuros ingressantes que viessem a se matricular durante os anos seguintes de
transição e efetivação da proposta.

2
DO FALÍVEL “PLANO DE TRANSIÇÃO” E PROPOSTAS MOTIVADORAS

Em síntese, o “Plano de Transição” argumenta pela mudança de turno do noturno


para o diurno com base em três premissas:

1. A “percepção” de que há grande evasão de alunos no curso em sua modalidade


noturna e que, se houvesse a mudança, se perceberia uma prevenção e redução a essa taxa
de evasão.

2. Os problemas de insegurança ante a integridade dos que frequentam os turnos


da noite pelo Instituto de Cultura e Arte (ICA) no Campus do Pici, que sedia o curso em
questão.

3. Que a proposta de mudança melhoraria a qualidade do curso, do estudo dos


alunos, trazendo assim benefícios a médio e longo prazo dentro e fora da Universidade.

A fim de demonstrar inconsistentes as motivações e suas respectivas


fundamentações, destacamos os trechos do referido documento do “Plano de Transição”
aos olhos de toda a comunidade:

Os problemas com a segurança pública nos suscitam também a percepção de que


este é um fato relevante nas taxas de evasão do Curso, bem como de admissão,
uma vez que possíveis candidatos ao Curso de Filosofia nos parecem optar por
outros cursos de licenciatura pelas dificuldades de estudo no período noturno.
Plano de transição, p. 1

No trecho acima mencionado, inexistem quaisquer dados estatísticos ou extraídos


de pesquisas, relatórios ou pareceres, que sustentem a afirmação categórica de que “os
possíveis candidatos ao curso de filosofia parecem optar por outros cursos de
licenciatura pelas dificuldades de estudo no período noturno”. É importante enfatizar
que inexiste em qualquer outra parte do texto do “Plano de Transição” qualquer dado, ou
embasamento empírico que demonstre de maneira mais concreta a necessidade de se
mudar o turno do curso para além de inferências imprecisas motivadas por impressões de
aparência que – como denota o discurso subjetivo da parte dos autores do texto em xeque
– passam a impressão de se tratar apenas de opiniões pessoais e não técnicas.

3
Por conseguinte, essa constatação se mantém firme à medida que se avança a
leitura do referido documento, o qual se constatam mais elementos frágeis na
fundamentação motivadora do referido “Plano de Transição”, como a que vem a seguir:

Constatam-se igualmente dificuldades na decisiva fase de estágios docentes,


quando os alunos são efetivamente preparados para exercer o magistério. Há
pouca oferta de disciplinas de Filosofia no Ensino Médio no período noturno,
o que gera graves prejuízos para a realização satisfatória dos estágios – que,
como se sabe, receberam um aumento de carga horária nos últimos anos. Isso
implica que os alunos ficam impossibilitados de cumprirem integralmente a
carga horária docente requerida e necessária.
Plano de transição, p.1

O referido documento em seu texto, ao continuar a explanar os elementos


motivadores, mencionam a “pouca oferta de disciplinas de filosofia no Ensino Médio no
período noturno”, com a afirmação de que:

Em 2008, foi promulgada a Lei 11.684, que, após mais de 40 anos de ausência,
tornava a Filosofia e a Sociologia novamente disciplinas obrigatórias na grade
curricular do Ensino Médio. Com isso, o perfil discente foi progressivamente
alterado, pois o Curso passou a ser procurado também e sobretudo por aqueles
que visavam uma carreira profissional no âmbito da Filosofia.”
Plano de transição, p.1

Argumento este que causa grande estranhamento, uma vez que justo quando a
disciplina voltou ao currículo obrigatório do ensino médio, não haja oferta da mesma,
inferir que formandos em filosofia não buscavam trabalhar na área. Se isso fosse
verdadeiro, não haveria quaisquer contratações de novos professores da área nos ensinos
médio e superior. Ademais, continua o referido texto a argumentar que:

No entanto, igualmente se constatou que, caso o Curso fosse diurno, não


somente seria possível evitar um acréscimo no tempo para a sua conclusão,
como também seria até viável que este período fosse diminuído em um
semestre, diante de alguns ajustes. Portanto, a mudança do Curso de Filosofia
/ UFC para o período diurno é um elemento crucial tanto para evitar o aumento
da evasão discente quanto para eventualmente diminuí-la. Há também a
percepção de que a mudança do turno noturno para o diurno da graduação em

4
Filosofia / UFC permitirá uma maior integração deste com o Programa de Pós-
graduação em Filosofia / UFC.
Plano de transição, p.2

A suposta constatação a que leva inferir o texto não encontra amparo


argumentativo em qualquer material de referência técnica ou acadêmica e sequer
demonstram de maneira factível a relação entre a diminuição do tempo de curso para com
a transferência do curso para o turno da manhã. Pois uma redução no tempo de formação
só seria possível com uma redução da carga horária ou o aumento da oferta de disciplinas
que hoje só são ofertadas uma vez por ano. Deste modo, caso alguém tenha ficado
impossibilitado de cursar algumas disciplinas, só poderá frequentá-las novamente dentro
de um ano, pondo por terra qualquer possibilidade de redução de semestre imaginada. Por
sua vez, o documento também não explica como a transferência do curso para a manhã
resolveria a questão da “sensação de insegurança” nem de maneira subjetiva ou objetiva.

Isto porque é questionável a atribuição da evasão escolar a uma questão de falta


de segurança pública a integridade dos alunos. Não foram apresentados quaisquer dados
e estudos que trouxessem qualquer evidência a tal relação, tampouco a se atribuir uma
causa tão difusa a único fator, pois a permanência na universidade é tema de debate
acadêmico há anos, cujas questões socioeconômicas influenciadoras pesam muito mais
do que a “sensação de insegurança”, como por exemplo a falta de políticas de incentivo
a permanência universitária com bolsas de estudos, assistência à saúde estudantil, creche
para as alunas que têm tripla jornada (mãe, trabalhadora, estudante) etc. Portanto, atribuir
uma questão complexa como a evasão a um único elemento, e não demonstrado sequer
de maneira objetiva, é reduzir absurdamente a questão.

A preocupação com a segurança – vale frisar – é um tema importante, mas que não
pode constituir como único elemento motivador sem lastro com a realidade social que vai
além da vida dos alunos que fazem parte da comunidade acadêmica. O Instituto de Cultura
e Arte é localizado com demais blocos na parte mais distante do campus, já sendo de
notório conhecimento público os casos de violência, como assaltos e agressões ocorridos
no campus. O mesmo ocorre no campus do bairro Benfica, onde estão diversos cursos de
Ciências Humanas, como Letras, Ciências Sociais, Psicologia e História, e em nenhum
desses estimados cursos se optou por uma mudança de turno para prevenir evasão
motivada por insegurança.

5
Ademais, ceder a esse tipo de receio seria inócuo ante o quadro geral de violência
que todo o país é submetido, uma vez que nos encontramos num dos países com altos
índices de violência. Em especial, na capital do estado, é de responsabilidade da gestão
da Universidade e dos institutos da casa – e não de apenas um curso – a cobrança
institucional frente aos órgãos de segurança pública e ao Poder Judiciário para que se faça
cumprir a lei e se cobre por rondas de policiamento ostensivo que não afetem a jurisdição
legal dos campus da UFC.

Em seguida, o texto em questão continua afirmando que:

Há também a percepção de que a mudança do turno noturno para o diurno da


graduação em Filosofia / UFC permitirá uma maior integração deste com o
Programa de Pós-graduação em Filosofia / UFC. O PPGFIL/UFC existe desde
1999, com aulas no período vespertino, nas modalidades de Mestrado e de
Doutorado. Como se encontram em turnos diferentes, as atividades de
formação da pós-graduação pouco se entrelaçam com as da graduação e vice-
versa.
Plano de transição, p.2

Não está clara a concepção e propostas dos referidos programas mencionados. A


princípio, é aceitável que os cursos de pós-graduação funcionem pela manhã ou tarde,
uma vez que alguns alunos matriculados recebem bolsas de incentivo. Por sua vez, é de
notório saber que a concessão de bolsas em programas de pós-graduação é fundamental
para a permanência justamente pelo horário e termos assinados pelos alunos que, na
prática, inviabilizam os mesmos de exercerem funções remuneradas, ou seja, trabalhar.
Nesse sentido, a realidade que se apresenta é outra e se choca diretamente com a
imaginada pelo texto. Outro ponto controverso, e que carece de maiores debates, é acerca
da articulação em grupos de estudo de graduação e pós-graduação.

A conclusão final a que se chega na leitura “Plano de Transição” é:

Diante de tal quadro, cuja solução não depende apenas dos esforços da
universidade, pois remetem a questões sociais e de políticas do poder público,
entende-se que a permanência do Curso de Filosofia / UFC no período noturno
agora traz prejuízos na formação dos alunos e afeta a excelência da formação

6
acadêmica. Sendo assim, considera-se que a mudança para o turno diurno
poderá melhorar sensivelmente o ensino de Filosofia na UFC.
Plano de transição, p.2

O trecho em questão considera que a mudança seria benéfica e, portanto,


melhoraria “sensivelmente” o ensino de filosofia, mas não demonstra como em termos
práticos, estando ausente qualquer demonstração de casos similares aos da proposição
feito por outros cursos e outras universidades em que restasse documental e
estatisticamente demonstrada essas melhorias a médio e longo prazo. Aliás, já
mencionamos acima, não é mostrado como em momento algum.

De maneira diversa da aventada pelo texto citado, chamamos atenção para a


importância do ensino universitário público noturno, demonstrando a solidez dos
argumentos que serão apresentados com as devidas referências teóricas e técnicas:

DOS ARGUMENTOS E FUNDAMENTOS EM DESFAVOR DO PREJUDICIAL


“PLANO DE TRANSIÇÃO”

Atualmente o ensino superior noturno representa – de acordo com o senso do


ensino superior de 2021 – cerca de 60% das matrículas dos cursos de ensino superior no
Brasil1. Estudos mostram que aqueles que procuram o referido horário são, de maneira
quase unânime, alunos que trabalham durante o dia e somente possuem o horário noturno
para estudar, referenciados em diversos estudos sob a categoria de “estudante-
trabalhador”. Um artigo produzido pela própria Universidade Federal do Ceará, deixa de
forma explícita e inequívoca que “Os Cursos de Graduação Noturnos são uma
alternativa para quem não pode fazer um Curso Superior nos turnos Diurno e/ou
Vespertino, geralmente por motivo de trabalho”2.

1
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Apresentação Censo da
Educação Superior 2021. Ministério da Educação, 2021. 1 arquivo PDF (54 p.). Disponível em
https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2021/apresentacao_censo_d
a_educacao_superior_2021.pdf. Acesso em: 19 ago. 2023.:
2
FERREIRA, Caroline e Silva; CALIXTO, Viviana Vitorino; SANTOS, Darlla Dalila Pontes dos; LOPES,
Fátima Maria Nobre. A IMPORTÂNCIA DAS ATIVIDADES DO PAIP NO CURSO DE PEDAGOGIA
NOTURNO DA UFC PARA A AMBIENTAÇÃO E PERMANÊNCIA DOS ALUNOS INGRESSANTES.

7
Outros autores apontam a mesma questão, os alunos que frequentam a
universidade a noite são aqueles que trabalham e não dispõem de tempo para a formação
superior. Os autores OLIVEIRA, João Ferreira de; BITTAR, Mariluce e LEMOS,
Jandernaide Resende, em artigo intitulado “Ensino Superior noturno no Brasil:
democratização do acesso, da permanência e da qualidade”, vão mais além ao declararem
que os cursos noturnos são uma forma de democratizar o ensino superior no Brasil, uma
vez que:

O sistema ensino superior no Brasil continua, pois, elitista e excludente. Uma


real democratização de acesso, permanência e qualidade certamente implicará
em reconhecer a educação superior como um bem público social e um direito
humano universal e, portanto, um dever do Estado. E, em decorrência dessa
compreensão, deverá implicar em políticas públicas que favoreçam o acesso
e a permanência de estudantes trabalhadores em cursos noturnos e diurnos de
qualidade.3

O “Plano de Transição” afirma que a educação superior precisa ser reconhecida


como um bem público e social, como um direito humano. Ou seja, é direito dos
trabalhadores e trabalhadoras frequentarem um curso de ensino superior noturno, como
uma forma de democratizar o acesso à academia, que é, e continua, sendo elitista e
excludente. O que deveria ser o real tema de debate pelo Colegiado dos Professores da
UFC, diferente do que defende o texto do “Plano de Transição”, seriam formas de
conquista em “políticas públicas que favoreçam o acesso e permanência de estudantes
trabalhadores”, e não buscar cercear essa possibilidade e direito, que é legítimo a todo
estudante desejoso de entrar na Universidade e que, em sua maior parcela, faz parte da
imensa população que é hipossuficiente econômica, se comparada com a pequena parcela
que tem condições financeiras de arcar com o ingresso e permanência no ensino superior.

Para melhor compreender o ensino superior noturno é necessário fazer uma breve
história de sua trajetória e entender quem são os sujeitos optam por esse horário. Como
se sabe, durante todo o período colonial brasileiro, praticamente, não houve iniciativas de

Revista de Encontros Universitários da UFC, v. 3, n. 1, 2018. Disponível em:


http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/38082. Acesso em: 18/08/2023
3
OLIVEIRA, João Ferreira de; BITTAR, Mariluce; LEMOS, Jandernaide Resende. Ensino Superior
noturno no Brasil: democratização do acesso, da permanência e da qualidade. R. Educ. Públ., Cuiabá, v.
19, n. 40, p. 247-267, maio/ago. 2010

8
estabelecer um sistema de ensino superior. E é somente no final do período imperial e,
sobretudo, no início da república, que os as universidades começaram a surgir.

Segundo (TERRIBILI e NERY 2009)4, nos anos 1950 do século passado só


existiam no Brasil cerca de 5 universidades, todas das quais nenhuma oferecia ensino
noturno. Segundo os autores, somente na década de 60 é que começaram a serem criadas
faculdades com ensino noturno para suprir a demanda que não era atendida pelos cursos
diurnos. A Lei nº 9.394 de 1996 (LDB), que “estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional”5, reconhece a importância dos cursos noturnos e estabelece a oferta obrigatória
por partes das universidades públicas. Nesse sentido, sobre a importância do ensino
noturno para a democratização do acesso e adequação a demanda existe, os autores
argumentam que:

O predomínio do período noturno no ensino superior (61,7% do total de


matrículas) é reflexo da situação econômica vivenciada pelo país das últimas
décadas, pois permite mais facilmente que o estudante exerça uma atividade
profissional remunerada (não necessariamente associada à sua área de
interesse) durante os anos de curso de graduação, de forma a obter recursos
financeiros para a realização do curso, ou mesmo para apoiar economicamente
sua família. O estudante que é trabalhador, do sexo masculino ou feminino,
busca sobretudo, no curso de graduação, sua formação profissional. A
agregação de conhecimentos obtidos durante o curso superior, o diploma, a
riqueza da vivência pessoal e os relacionamentos estabeleci dos com colegas
e professores, podem propiciar ao estudante maior facilidade para participar
do mercado de trabalho após a conclusão do curso.6

Como pode se ver no trecho acima, os estudantes que buscam o ensino noturno o
fazem devido as condições financeiras, além do que a própria formação superior poderá
fornecer aos mesmos, por meio do diploma, ascensão social. Todavia, é importante
ressaltar que o turno noturno é procurado por esses estudantes por ser um horário que
possibilita tanto trabalhar para sustentar a si e ou sua família, mantendo assim vivo o

4
TERRIBILI FILHO, Armando; NERY, Ana Clara Bortoleto. Ensino superior noturno no Brasil: história,
atores e políticas. RBPAE – Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 25, n. 1, p. 61-
81, jan./abr. 2009.p. 61
5
BRASIL, LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Acesso em
20.08.2023:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>
6
TERRIBILI FILHO, Armando; NERY, Ana Clara Bortoleto. Ensino superior noturno no Brasil: história,
atores e políticas. RBPAE – Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 25, n. 1, p. 61-
81, jan./abr. 2009.p. 61

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sonho de cada estudante em obter sua diplomação, na perspectiva de melhora de vida e
ascensão social por meio da educação.

Esse direito, por sua vez é um direito reconhecido pela Constituição Federal, que
afirma ser:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação
para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
(...)
§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e
tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996) Art. 208.
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de
(...)
V - Acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
(...)
Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração
plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus
diversos níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à:
(...)
III - melhoria da qualidade do ensino;
IV - Formação para o trabalho;
V - Promoção humanística, científica e tecnológica do País7

Bem como pela Declaração do Direitos Humanos, que em seus respectivos


dispositivos legais, afirma também que:

Artigo 26
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo
menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será

7
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesso em
20.08.2023:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>

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obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como
a instrução superior, está baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser
humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais
ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da
manutenção da paz.8

Sendo assim, na prática, a extinção do curso noturno de filosofia da UFC em


detrimento de um diurno, é uma flagrante violação aos princípios legais salvaguardados
pela Constituição de 1988, bem como um desrespeito ao direito de estudar dos estudantes
trabalhadores, que não possuem outra hora se não à noite para ter acesso ao ensino
superior. Portanto, o acesso gratuito aos cursos do período noturno são, em seu papel
social, um imprescindível serviço que o Estado presta aos estudantes que trabalham,
possibilitando aos mesmos a uma ascensão social por meio da educação, como já alertou
certa vez Paulo Freire, patrono da educação nacional, de que a educação muda pessoas e
estas, o mundo. Portanto, suprimir a oferta noturna é tirar o direito, nosso direito, de
estudar.

Outros autores possuem essa mesma perspectiva, por exemplo (PEREIRA, 1992),
ao abordar ainda na distante década de 90 do século passado, já alertavam para a demanda
de estudantes que recorriam ao ensino noturno na Universidade Federal do Paraná
(UFPR) associada principalmente pelos fatores econômicos, pois

Esta categoria revela que a oferta dos cursos noturnos não está vinculada à
opção dos alunos, mas sim, às suas possibilidades econômicas. Ou seja, o
curso que eles frequentam não é o curso que eles desejavam, mas é o que lhes
foi possível dentro das suas condições econômicas e de trabalho. Em outras
palavras, a escolha se deu pela gratuidade e pela falta de opção.9

Ainda que em nossos dias o argumento de escolha por motivos exclusivamente


econômicos deva ser flexibilizado, ele era, e permanece sendo, um importante fator nas

8
ORGANIZAÇÃO. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Art. 26. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos . Acesso em: 19/08/2023
9
PEREIRA, Salézio Antônio. Os Cursos Noturnos da Universidade Federal do Paraná. 1992. Dissertação
Mestrado em Educação - Programa de Pós-Graduação em Educação – Universidade Federal do Paraná,
Paraná.

11
análises, das mais antigas as mais recentes, sendo assim determinantes para a maioria dos
autores ante a constatação de que os estudantes destes turnos, em sua grande maioria, são
condicionados diretamente por questões econômicas, onde o que está em jogo é a sua
sobrevivência e, por conseguinte, da manutenção do sustento de sua família, além do
vislumbre de ascensão social por meio do diploma. Portanto, enfatizamos novamente que
a supressão de um curso noturno em detrimento de um diurno é cercear o direito dos
estudantes trabalhadores, que são maioria no ensino superior público conforme já
apontado (TERRIBILI e NERY 2009).

O que deve ser posto como prioridade ao real debate que se deveria ter diz respeito
a busca por soluções que facilitem os estudos desse imenso grupo de estudantes, bem
como forma de permanência universitária, avaliações, metodologias, como o currículo
poderia se adequar a vida dos mesmos, bem como aos seus inúmeros desafios. Se fosse
possível uma comparação com a nobre prática da medicina, deveríamos estar discutindo
as maneiras de curar um paciente, tratando as reais causas que tornam a doença possível
de correr, e não deixar o paciente à mercê da miséria ante a mera dificuldade com os
sintomas mais imediatos.

Muito foi dito que, o motivo da mudança de turno do curso, se deriva dos números
de evasão estudantil. Como já apontamos acima, os motivos são difusos e não pode ser
levianamente tratado de maneira superficial, afirmando, prematuramente, que a mudança
ocasionaria uma diminuição dos números, se provando de maneira objetiva e eficaz que
os argumentos apresentados pelo “Plano de Transição” não encontram qualquer coerência
lógica com a realidade social diante dos dados que serão a seguir apresentados.

DOS DADOS TÉCNICO-ESTATÍSTICOS QUE DEMONSTRAM A


PREJUDICIALIDADE DO “PLANO DE TRANSIÇÃO” PROPOSTO

Um dos principais pontos que tem sido levantados para justificar a mudança de
horário para o período diurno é o da evasão. É legítima a preocupação com essa questão,
pois isso afeta a devida formação de qualidade dos discentes, entretanto, ela deve ser
analisada de forma cuidadosa, sempre considerando os múltiplos fatores dessas taxas e
os próprios dados e indicadores que a Universidade Federal do Ceará (UFC)

12
disponibiliza. Diante disso, é preciso pontuar algumas considerações que vão de encontro
a essa justificativa.

De acordo com os dados de retenção e evasão obtidos pela Pró-Reitoria de


Graduação (PROGRAD)10, podemos perceber que a evasão e retenção de alunos não é
um problema exclusivo de cursos noturnos. Esses problemas também são enfrentados por
cursos diurnos, como, por exemplo, o curso de Ciências Sociais. Fazendo a comparação
com esse curso, na modalidade licenciatura e em seu período integral, podemos analisar
assim que a taxa de evasão é bem similar, e por muitas vezes superior, ao curso de
Filosofia, em seu turno noturno e na modalidade licenciatura, como se percebe na tabela
de comparação abaixo:

10
Dados sobre evasão, retenção, oferta de disciplinas, tamanho de turmas e avaliações externas das
graduações levantados pela Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da Universidade Federal do Ceará
(UFC), que pode ser acessado em https://bit.ly/painelprograd

13
Observa-se no gráfico alguns pontos que merecem ser destacados. No período de
2022.1, temos uma taxa de evasão de 9.3% em Filosofia, enquanto em Ciências Sociais
houve uma taxa de 12.8% de evasão. Em 2021.2, taxa de evasão de 13.4% em Filosofia
e 15.1% em Ciências Sociais. Em 2021.1, taxa de evasão de 7.1% em Filosofia e 7.4%
em Ciências Sociais. Em 2020.2, taxa de evasão de 6.9% em Filosofia e 7.8% em Ciências
Sociais. Em 2020.1, taxa de evasão de 10.1% em Filosofia e 13.8% em Ciências Sociais.
Em 2019.1, taxa de evasão de 5.9% em Filosofia e 12.7% em Ciências Sociais. Em
2018.2, taxa de evasão de 5.7% em Filosofia e 6.3% em Ciências Sociais. Em 2017.2,
taxa de evasão de 4.5% em Filosofia e 16.7% em Ciências Sociais. Em 2017.1, taxa de
evasão de 6.0% em Filosofia e 8.7% em Ciências Sociais. Em 2016.2, taxa de evasão de
10.3% em Filosofia e 10.5% em Ciências Sociais e assim por diante.

Vemos que, por diversas vezes, o curso de licenciatura de Ciências Sociais, no


período integral, possui uma taxa superior de evasão comparado com Filosofia. Mesmo
se considerarmos outros fatores favoráveis de localização para evitar a evasão, pois o
curso de Ciências Sociais se situa no Centro da cidade, notamos que isso não afeta essa
taxa. Igualmente, a taxa de retenção, tanto por prazo padrão quanto por prazo máximo,
também é muito similar entre esses dois cursos:

14
Outros tantos exemplos similares podem ser dados, como o curso de licenciatura
em Letras-Alemão, em seu período integral, que possui também taxas parecidas com o
curso de licenciatura em Filosofia, como podemos perceber:

Novamente, podemos perceber o mesmo fenômeno, ao comparar a licenciatura em


Filosofia, que funciona no turno noturno, com a licenciatura em Letras – Português e
Alemão, que funciona no período integral. Em 2022.1, taxa de evasão de 9.3% em
Filosofia e 13.2% em Letras – Português e Alemão. 2021.2, taxa de evasão de 13.4% em
Filosofia e 13.2% em Letras – Português e Alemão. 2021.1, taxa de evasão de 7.3% em
Filosofia e 7.7% em Letras – Português e Alemão. Em 2020.2, taxa de evasão de 6.9%
em Filosofia e 8.0% em Letras – Português e Alemão e assim por diante.

Sendo assim, podemos concluir a partir dessas comparações exemplificativas que


não há causalidade entre horário diurno e diminuição de evasão. Na verdade, podemos

15
correlacionar o oposto, que há um aumento de evasão no período integral em comparação
com o período noturno. Entretanto, correlação não implica em causalidade e, com isso,
não podemos nos atentar em apenas um único fator para a evasão, devendo considerar
outros tantos num estudo empírico, quantitativo e qualitativo. Os fenômenos sociais,
como o da evasão, não são monocausalistas ao ponto de serem analisados apenas pelo
critério de turno, devendo haver um levantamento de outras possíveis e concomitantes
causas.

Nesse sentido, devemos observar que há inúmeros fatores que podem levar a
evasão universitária. Em um artigo denominado “Dropout from Higher Education: A
Theoretical Synthesis of Recent Research” de Vincent Tinto (1975), é analisado o
processo de decisão de evasão do ensino superior. De acordo com o autor, existem
diversas características desse fenômeno que devem ser levadas em conta, como a
integração acadêmica e social do estudante, assim como suas características individuais
e familiares, até chegar ao ato da evasão em si, que foram esquematizadas da seguinte
maneira:

Tabela referente a fatores que influenciam na decisão pela evasão de Tinto (1975)

16
Essa esquematização é amplamente utilizada na literatura acadêmica brasileira
sobre evasão, como base de análise dos múltiplos fatores envolvidos nesse fenômeno.
Como mencionado anteriormente e analisando a tabela, é perceptível a influência de
múltiplos fatores que podem ocasionar esse fato. Nesse sentido, em estudo similar
realizado por Andriola, Ribeiro e Moura (2005), especificamente na Universidade Federal
do Ceará (UFC), com o intuito de analisar a evasão dos cursos de graduação (assim como
se valendo de critérios parecidos com o modelo de Tinto), os diferentes fatores foram
esquematizados da seguinte maneira:

Tabela referente a fatores que influenciam na decisão pela evasão de Andriola, Ribeiro e Moura (2005, p.
184)

Podemos perceber assim que critérios tanto referentes a características e


integração do curso, onde se situam também os horários dos cursos, bem como fatores
externos, intenções/objetivos, compromissos e vida pré-universitária, podem levar a
decisão de evasão ou persistência no curso. Sendo assim, é importante destacar um fator
que pesa consideravelmente na evasão dos cursos de graduação da UFC analisados na
pesquisa: a incompatibilidade de horários entre trabalho e estudo. De acordo com
pesquisa realizada por Andriola, Ribeiro e Moura (2005, p. 190) na UFC, os estudantes
apontam como motivo principal a incompatibilidade de horários entre trabalho e estudo:

“Indagados sobre os motivos responsáveis pela deserção ou


abandono dos cursos ou carreiras universitárias, os evadidos
apresentaram os seguintes fatores:

17
Incompatibilidade entre horários de trabalho e de estudo (destacado
por 39,4% ou 34 evadidos);
Aspectos familiares (p. ex.: necessidade de dedicar-se aos filhos
menores) e desmotivação com os estudos (justificado por 20% ou 17 dos
evadidos);
Precariedade das condições físicas do curso ou inadequação curricular
(mencionado por 10% ou 9 evadidos)”

Ademais, em outra pesquisa realizada Andriola, Andriola e Moura (2006), foi


abordada a evasão discente em cursos da Universidade Federal do Ceará (UFC) na
perspectiva dos docentes e coordenadores dos cursos, um dos principais motivos de
evasão levantados pelos discentes foi a incompatibilidade dos horários entre estudos e
trabalho. É notório que com o acesso as classes mais pobres e vulneráveis ao ensino
superior, aumenta-se assim a necessidade dos discentes em obter um emprego formal com
o objetivo de permanecer na universidade. Nesse sentido, como meio de resolução desse
problema, os coordenadores dos cursos deram algumas sugestões:

“A necessidade de trabalhar e a incompatibilidade de horários para


estudar foram os dois motivos mais citados pelos evadidos para
abandonarem os cursos. Para a resolução desses dois problemas os
coordenadores apontaram como saídas:

a) aumento da oferta de bolsas (pesquisa, extensão, assistência e


monitoria) e estágios (citado por 28% dos coordenadores);

b) necessidade de ministrar todas as disciplinas em um só turno, visto


que em muitos cursos da UFC são ministradas nos três turnos
dificultando a vida dos estudantes que precisam trabalhar ou realizar
atividades não acadêmicas (mencionado por 24% dos entrevistados);

c) aumento da oferta de cursos noturnos (destacado por 12% dos


coordenadores).

De acordo com os dados disponibilizados pela PROGRAD11, o perfil


socioeconômico majoritário do estudante da UFC é daquele que estudou somente em

11
Pesquisa realizada em 2018 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino
Superior (ANDIFES) e o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assistência Estudantil (Fonaprace). Acesso
em 20.08.2023:<

18
escola pública, de 18 a 24 anos e que possui como renda mensal per capita até meio
salário-mínimo. Através disso, não é difícil entender que como principal razão dos
trancamentos dos discentes está o por motivo de trabalho, como podemos ver a seguir:

Com relação a evasão universitária em outras universidades, temos uma farta


literatura que demonstra que o turno noturno fornece uma melhor compatibilidade entre

https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiODIwYjU3YzAtMzA5OS00YmMwLThhMGQtYzMxM2U3ZjAy
NDMxIiwidCI6IjRhOTBhNTk2LTViYTEtNDQ5Ny05OTNhLTg4NGFjM2Y4NWE2MSJ9>

19
trabalho e estudo. Nesse sentido, em estudo técnico denominado “Evasão em Instituições
Federais de Ensino Superior no Brasil: Expansão da Rede, Sisu e Desafios” realizado pela
Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, é pontuado que uma das soluções para
a evasão universitária está na mudança do período vespertino para o noturno, onde
possibilita o discente a procurar trabalho no período do dia com o intuito de complementar
a renda familiar:

“Soluções como a mudança de período do vespertino para o noturno,


liberando os beneficiados para poder complementar a renda familiar
em atividades laborais durante o dia, permitiram um maior grau de
retenção do corpo discente. De modo mais amplo, na medida em que
esse cenário não é infrequente em outros cursos e IES públicas
brasileiras, a atenção a essas situações específicas consistiria em política
interna de cada instituição com maior possibilidade de sucesso.”
(GILIOLI, 2016, p. 35-36).

No mesmo sentido, foi realizado um estudo na Universidade Federal de Minas Gerais


(UFMG) tendo como intuito a análise da evasão universitária sob diferentes fatores. Um
desses fatores é o turno realizado nos cursos de graduação. A pesquisa concluiu que:

“Ou seja, na prática, a criação dos cursos noturnos nas áreas


escolhidas, representou um passo na direção da democratização do
acesso ao ensino superior, o que se reflete também na sua demanda, já
que, para um mesmo curso, a procura por vagas no turno noturno
geralmente tende a ser maior do que no diurno (…) Ao que tudo indica,
as taxas de evasão dos cursos noturnos tendem a ser similares
àquelas verificadas nos diurnos correspondentes, a despeito do menor
tempo que, em tese, o aluno da noite poderia dedicar a seus estudos (…)
A criação do turno noturno parece ter contribuído para reduzir as
taxas de evasão dos cursos antes oferecidos apenas no diurno”.

Igualmente, vale ressaltar que em 2007 foi instituído o Plano de Reestruturação das
Universidades Federais (REUNI), com o objetivo de aumentar a permanência, a
qualidade e flexibilidade da educação superior federal. Uma de suas principais propostas
para isso, é o aumento de vagas de ingresso, especialmente no período noturno. Ficou
assim positivado, por meio do Decreto n° 6.096/07, in verbis:

20
Art. 1° Fica instituído o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais - REUNI, com o objetivo de
criar condições para a ampliação do acesso e permanência na
educação superior, no nível de graduação, pelo melhor
aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos
existentes nas universidades federais.

§1° O Programa tem como meta global a elevação gradual da taxa


de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para
noventa por cento e da relação de alunos de graduação em cursos
presenciais por professor para dezoito, ao final de cinco anos, a contar
do início de cada plano.

(…)

Art. 2° O Programa terá as seguintes diretrizes:


I - Redução das taxas de evasão, ocupação de vagas ociosas e
aumento de vagas de ingresso, especialmente no período noturno;

Através dessas referências, percebemos que a literatura acadêmica, assim como


as políticas públicas de âmbito federal, identifica como causas de evasões o exato oposto
do que está sendo sugerido na justificação da mudança de horário para o turno diurno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E PEDIDO DE TRANSPARÊNCIA,


DIÁLOGO E DELIBERAÇÃO DEMOCRÁTICA DO COLEGIADO DE
PROFESSORES DA UFC PARA COM O RESTANTE DA COMUNIDADE
ACADÊMICA

Podemos concluir assim, em breve síntese, os principais pontos de preocupação


com relação a essa tentativa de processo de mudança, feita de maneira precipitada e pouco
republicana por parte dos proponentes do Colegiado de Professores da UFC:

1. Falta de transparência no processo de mudança de horário e diálogo com os


discentes. A comunicação aberta é um dos elementos fundamentais para a tomada de
decisão em qualquer âmbito e, principalmente, em um ato público e administrativo que

21
ocasionará grandes mudanças para o curso de Filosofia na UFC. É essencial assim que
haja diálogo e participação do maior número possível de estudantes nos processos
referentes a mudanças internas e significativas do curso. Porém, o que estamos
percebendo é uma falta de transparência e discricionariedade nesse processo decisório,
onde há repentinas discussões sobre o tema, sem o prévio aviso e diálogo com os
estudantes a respeito dos assuntos tratados. Os discentes, assim como os docentes, são os
principais interessados sobre esse tema e merecem ter democraticamente suas vozes
ouvidas e consideradas.

2. Falta de fundamentação e referências na justificativa de mudança de horário. É


compreensível que no decorrer do tempo mudanças sejam propostas e avaliadas.
Entretanto, devem ser devidamente fundamentadas, pois é um requisito essencial de
qualquer ato decisório público a clareza nas suas justificações, para que haja possíveis
correções. Somente com percepções não será possível analisar os impactos de
determinadas decisões, devendo haver dados mais robustos para isso. Observamos assim
uma certa fragilidade nos argumentos expostos na justificativa de mudança, podendo ser
listados em rol exemplificativo:

1) Não há referências de estudos acadêmicos que embasem a referida mudança.

2) Não há análises comparativas com outras instituições para estabelecer quais são
as melhores práticas nessa situação.

3) Não há pesquisa ou referências sobre o perfil socioeconômico dos discentes e


ingressantes do curso de Filosofia, onde seria possível uma análise dos impactos que
essa mudança poderá ocasionar.

4) Não há pesquisas sobre a opinião dos discentes do curso a respeito dessa mudança.
Na verdade, analisando os dados sobre evasão, se chega a conclusão oposta: que o
turno noturno diminui essas taxas. Vale ressaltar também que, juridicamente, é
requisito essencial de um ato administrativo sua devida fundamentação, sob pena de
nulidade.

A universidade pública tem importante responsabilidade social em promover o


ingresso dos estudantes trabalhadores e das classes baixas. O curso noturno,
especialmente para os primeiros, é uma importante oportunidade de estudo para esse

22
grupo de dupla e tripla jornadas. Nos últimos anos temos assistido com entusiasmo a
expansão do ensino superior público e o ingresso de estudantes originários das classes
mais pobres. E é bem verdade que no terrível governo Bolsonaro houve um imenso
retrocesso e desmantelo proposital nesse sentido, de modo que as expansões cessaram ou
foram paralisadas, bem como os investimentos diminuíram.

Contudo, agora, com o novo governo eleito, a retomada do crescimento


universitário tem sido retomada, o respeito a universidade pública, em sua dimensão de
independência, por sinal, como amostra de novos tempos, o prof. Dr. Custodio Almeida,
merecidamente, foi empossado após vencer duas vezes seguidas as eleições para reitor.

Os tempos de obscurantismo e retrocessos precisam ficar no passado, pois a


mudança do turno do curso restringe o acesso dos estudantes trabalhadores e é um
flagrante retrocesso, só condizentes com os tempos obscuros que, felizmente, vencemos
a um custo muito alto, de modo que precisamos manter constante luta e vigilância para
manter e fazer valer cada espaço conquistado.

Portanto, as medidas adotadas pelo projeto proposto no Colegiado dos Professores,


bem como o respectivo “Plano de Transição” vão na contramão dos novos tempos que
se avizinham, a saber, a continuidade da expansão universitária, democrática e viva.
Não é possível ir na contramão da história. É preciso democratizar o acesso, buscar
meios e discutir formas para que cada vez mais estudantes trabalhadores
adentrarem a universidade pública, nossa por direito. Não podemos retroceder, e
mudar o turno da noite para a manhã, sobretudo de maneira tão apressada, precipitada,
sem planejamento, sem justificativas coerentes e sem se investigar e prevenir quaisquer
impactos negativos sobre os estudantes que estão no curso e, sobretudo as próximas
gerações de estudantes que ainda virão, que também é preocupação de toda a comunidade
acadêmica.

Sendo assim, garantir a classe trabalhadora ao acesso e permanência à


Universidade e ao ensino superior constitui uma responsabilidade social para com todos
os estudantes, dever este da comunidade acadêmica, seus alunos e seus professores, e
principalmente dos que estão em cargos de gestão e liderança administrativa e política. É
o que assevera o pensamento do eminente o sociólogo Boaventura de Sousa Santos ao
afirmar que,

23
A responsabilidade social da universidade tem de ser assumida pela
universidade, aceitando ser permeável às demandas sociais, sobretudo àquelas
oriundas de grupos sociais que não têm poder para as impor. A autonomia
universitária e a liberdade académica – que, no passado, foram esgrimidas
para desresponsabilizar socialmente a universidade – assumem agora uma
nova premência, uma vez que só elas podem garantir uma resposta empenhada
e criativa aos desafios da responsabilidade social. Porque a sociedade não é
uma abstracção, esses desafios são contextuais em função da região, ou do
local e, portanto, não podem ser enfrentados com medidas gerais e rígidas.12

Portanto, como esperamos ter deixado claro, a mudança de turno do curso


prejudicará fortemente a ponto de inviabilizar o ingresso dos estudantes
trabalhadores no curso de Filosofia da UFC. Como demonstrado, a mudança não
resolverá nenhum dos problemas mencionados pelo “Plano de Transição”. Pelo contrário,
poderá vir a restringir o ingresso dos próximos estudantes trabalhadores, limitando assim
o público das aulas e, consequentemente, o perfil dos futuros filósofos e professores de
filosofia.

Assim, com todo respeito aos estimados profissionais do corpo docente,


solicitamos ao Colegiado dos Professores que desconsidere a proposta apresentada
no “Plano de Transição” e abra debates mais longínquos para a elaboração de
propostas concretas junto à comunidade discente para soluções sobre a evasão,
segurança, permanência e adequação do currículo a nossa necessidade, bem como
medidas que elevem a qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia
na UFC a um patamar elevado que contribua para com a melhora da sociedade deste
momento presente e para as próximas gerações.

Atenciosamente,

Alunos do curso de Filosofia Licenciatura/Bacharelado e pós-graduação da Universidade


Federal do Ceará – UFC.

Subscrito pelo Centro Acadêmico de Filosofia Manfredo Oliveira - CAFMO

Fortaleza - Ce, agosto de 2023.

12
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Universidade no Século XXI: Para uma Reforma Democrática e
Emancipatória da Universidade. Educação, Sociedade & Culturas, nº 23, p. 137-202, 2005.

24
REFERÊNCIAS:

ANDRIOLA, Wagner Bandeira; RIBEIRO, Euclemia Sá; MOURA, Cristiane Pascoal.


Evasão discente nos cursos de graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC):
busca das suas causas. In: ANDRIOLA, Wagner Bandeira (org). Avaliação: múltiplos
olhares em torno da educação. Fortaleza: Editora UFC, 2005. p. 181-201.

ANDRIOLA, Wagner Bandeira; ANDRIOLA, Cristiany Gomes; MOURA, Cristiane


Pascoal. Opiniões de docentes e de coordenadores acerca do fenômeno da evasão
discente dos cursos de graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ensaio:
Avaliação e Políticas Públicas em Educação, v. 14, p. 365-382, 2006.

BRAGA, Mauro Mendes; PEIXOTO, Maria do Carmo L.; DINIZ, Lisangela Fonseca e
BOGUTCHI, Tânia Fernandes. A evasão no ensino superior noturno: o caso do curso
de química da UFMG. Avaliação (Campinas) [online]. 2002, vol.07, n.01, pp.49-72.
ISSN 1414-4077.

GILIOLI, R. S. P. Evasão em instituições federais de ensino superior no Brasil:


expansão da rede, SISU e desafios. Brasília: Câmara dos Deputados, 2016. (Estudo
Técnico). Disponível em:
http://nupe.blumenau.ufsc.br/files/2017/05/evasao_institui%C3% A7%C3%B5es.pdf
Acesso em: 20 ago. 2023.

TINTO, Vincent. Dropout from higher education: a theoreticaI synthesis of recent


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25
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Entorno Educacional no Cotidiano do Estudante. Tese de Doutorado (Doutorado em
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26
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