Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1-Introdução
O presente artigo, dirigido a uma problemática histórica, apóia-se, ele mesmo, em
certas condições históricas de existência. Dentre elas, um longo trajeto docente como
professora, em cursos de graduação em Psicologia, da disciplina intitulada Dinâmica de
Grupo e Relações Humanas (DGRH).
O título oficial esboça o problema com que nos defrontamos. Sugere a existência
de um objeto dado – “o” grupo – , que possuiria movimentos previamente identificáveis
por parte de um saber, presumidamente científico – uma “dinâmica”–, aos quais se
agregariam, na forma de uma enigmática conjunção “e”, aparentemente óbvias “relações”
ditas “humanas” – levando a pensar que o antes abstrato “grupo” e sua nobre “dinâmica”
nada mais seriam, talvez, do que nossas tão conhecidas, embora freqüentemente julgadas
assustadoras, “relações entre homens” ( e mulheres, para ser politicamente correta...).
Apressados estudiosos resolveriam facilmente esta questão mediante um simples
argumento: o título oficial identifica as práticas grupais a um modelo teórico específico –
as formulações de Kurt Lewin na década de 40, no contexto americano – , acoplado à
valorização emprestada aos grupos por formas de gestão empresarial que criticam o
“esquecimento” taylorista do “fator humano”– a “teoria das relações humanas” surgida,
ainda no contexto americano, nos anos 20. Discussão banal, portanto, a ser solucionado
com alguns rápidos esclarecimentos epistemológicos, teóricos, históricos... Caso,
preocupada, acrescentasse eu a inevitável presença, entre os alunos, nos primeiros
encontros do curso, de uma polêmica relativa à necessidade (ou não) de “vivências” para
“aprender a trabalhar com grupos” – sempre acompanhada, até entre os defensores, de
vagos temores quanto a “exposições pessoais”, “revelações da intimidade”,
“transformações em terapêutica” e “capacidade do coordenador (pressuposto como sendo
o professor) para segurar as coisas” – , nossos apressados estudiosos tampouco
identificariam aí conflitiva digna de reflexões maiores. Ora, diriam eles, “segundo a
melhor tradição lewiniana, aprende-se sobre os grupos...trabalhando com e em grupos! E,
caso não se seja um lewiniano estrito, basta desviar o curso para a teoria (e as técnicas) de
nosso agrado – as ementas das disciplinas são, em geral, bastante flexíveis e, afinal, a
conhecida DGRH costuma ser ministrada ao final do curso de Psicologia, quando os
alunos, já fazendo estágio, compreendem bem certas definições profissionais...”.
Jamais me satisfiz com estas respostas, embora não precisasse de interlocutores
concretos para sugeri-las; sempre as pude formular pinçando-as, aqui e ali, entre os
enunciados que hegemonicamente povoam nosso campo profissional, docente e teórico.
No entanto, aí está efetivamente o problema do professor de DGRH: nos enunciados –
*
Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UERJ. Coordenadora do projeto História do
grupalismo-institucionalismo no Brasil. Doutoranda do programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano da USP.
2
1
- O que fornece um esboço de explicação para o fato de que as “vivências” grupais sejam tão mitificadas. Nas aulas
iniciais de DGRH, os alunos eventualmente falam como se desconhecessem qualquer experiência grupal,
identificando-a à ação especializada – terapêutica, de sensibilização, etc.– , e relegando ao não-experiencial os
demais espaços sócio-vitais. Grupos de amigos, políticos, familiares, profissionais, espaços de sala de aula, festas,
passeatas, etc...são, assim, remetidos a um suposto “não-vivencial” – e mesmo “não-grupal”!
2
- Mesmo entre pretensos defensores incondicionais encontramos a desqualificação dos grupos através do apelo ao
argumento da profundidade (ou seu corolário, o da minúcia). Observe-se, quanto a isto, a seqüência deste texto,
relativo à seleção de pacientes para grupos terapêuticos: “...do meu ponto de vista, a maioria das pessoas pode e deve
ir para um grupo, na medida em que a busca de um atendimento psicanalítico é, em princípio, limitada (...) Se
pudermos ajudá-la a resolver suas dificuldades dentro de um grupo, não vejo a necessidade de submetê-la a uma
investigação mais minuciosa como a da terapia individual.” (PY, 1987:19) (grifos nossos)
3
- Sobre tal distinção, que não aprofundaremos neste artigo, pode-se consultar BAREMBLITT, 1987. A
diferenciação entre ato analítico (individual) e ato político (grupal), proposta por Celio Garcia – em artigo incluído
no livro citado –, é lucidamente contestada ao longo da obra.
3
te m p o
(1 )
(2 )
D es cendências dos
a n te c e d e n te s TE L OS
OR IGE M i d e n ti fi c a d o s ou
a p a r ti r d o
FIN AL ID AD E
p r e s e n te n a tu r a l i z a d o
(3 )
P r á ti c a g r u p a l e s p e c i a l i z a d a
P r á ti c a s g r u p a i s
d o p a s s a d o , i n s ti tu c i o n a l i z a d a
es pecializ adas
e m a l g u m â m b i to p r o fi s s i o n a l
d o p r e s e n te
(m e d i c i n a , m e d i c i n a m e n ta l , p s i c o l o g i a ,
(p s i c o te r a p e u ta s ,
p e d a g o g i a , g e s tã o d e e m p r e s a s , e tc .)
c o o r d e n a d o r e s ,e tc .)
9
- Certa vez ofereci uma disciplina eletiva que intitulei “Obra social de Freud”, a fim de debater textos como Totem
e tabu, Psicologia das massas e análise do ego, Mal estar na civilização, O futuro de uma ilusão, Moisés e o
monoteísmo, etc. Alguns companheiros temeram – não sei se de forma justificada – que, em função do forte vínculo
construído entre o nome de Freud e os assuntos relativos ao “individual”, “clínico” e “privado”, os virtuais
candidatos a freqüentá-la pudessem pensar tratar-se de uma discussão acerca de alguma desconhecida obra
beneficente do mestre vienense...
6
verdadeira ou falsa. O que A faz não consiste meramente em informar a B sobre o estado do céu; ele faz algo mais do
que simplesmente falar, informar ou constatar. Acompanhando a leitura que Foucault faz de AUSTIN (1990),
LARRAURI (1994) conclui que toda proposição, inclusive as aparentemente mais constatativas, possui efeitos
performativos, ou melhor, faz ver, fazer, dizer e ser de certo modo, pondo em cena um jogo de verdade.
16
- “Base psicanalítica” é o eufemismo destinado a separar uma presumida “verdadeira psicanálise” (individual) de
suas “contrafações” (grupais). A este respeito, consultar as análises críticas empreendidas por COIMBRA (1995) e
RANGEL (1996).
17
- Para uma historicização deste processo, ver RODRIGUES (1997 e 1998).
18
- Considerações acerca deste movimento pedagógico-psicossociológico, de caráter autogestionário, no qual se
destacam R. Fonvielle e G. Lapassade, podem ser encontradas no artigo de R. Lourau incluído neste volume.
8
psiquiatras ingleses durante a vigência do conflito19. Por mais que se venha a tornar o
crítico mais radical das idéias adaptativas da psicanálise à moda anglo-saxã, Lacan não
pode ignorar, naquele momento, as diferenças entre as psiquiatrias francesa e britânica.
Enquanto em seu próprio país, excetuando-se as ações de Saint-Alban, os pacientes, em
sua maioria abandonados à própria sorte, morriam aos milhares nos hospitais, na
Inglaterra, considerados úteis e organizados em sub-grupos autônomos coordenados por
terapeutas, não só sobreviviam como se integravam ao cotidiano do país. Neste sentido,
por mais que Lacan acentue a necessidade de pôr em evidência as demandas sociais a que
o campo psicanalítico é então instado a responder – recuperação de combatentes e ex-
combatentes –, não esconde sua admiração pelos psicanalistas (de grupo) ingleses...20
Já o livro de Costa, em parte inspirado em Pontalis, esquece de dirigir às suas
próprias naturalizações as armas desnaturalizadoras apontadas na direção de diversas
teorizações grupais. Concordamos, em princípio, com seu argumento: não há grupo em
si, antecedente à prática que o institui; só existem grupos, e estes não são entidades, mas
modos sócio-históricos de funcionamento. Contudo, se para recusar o grupo operativo ou
o aparelho psíquico grupal for necessário, em troca, reificar o indivíduo – cada um dos
integrantes do grupo considerados, sem crítica, como previamente existentes –, parece-
nos que o a-historicismo expulso pela porta da frente... reingressa no texto pelos
fundos!21 Em que pesem suas diferenças filosóficas e políticas, os escritos de M.
Foucault, F. Guattari, J. Donzelot, P. Ariès, R. Castel, G. Deleuze, J-F. Lyotard, L.
Dumont, G. Simmel, R. Sennett e, entre nós, de S. Rolnik, R. Machado, J. Birman, S.
Figueira, J. Russo, L.F. Duarte, B. Bezerra Jr., R.B. Barros, A.P.J. Melo, além daqueles
dos companheiros que integram este volume – sem falar em outros textos do próprio J.F.
Costa! – há muito nos têm forçado a pensar que, contra todas as “evidências”
permanentemente produzidas, nem o indivíduo nem o sujeito (psicanalítico) são
entidades naturais. Neste sentido consideramos, como Baremblitt (1994:16), que “é
preciso fazer constar que não é a mesma coisa propiciar a invenção de dispositivos
grupais que associar sujeitos edipianos para que se consolidem como tais... em grupo”.
Finalmente, ainda que conscientes de que o tema percorre todo este artigo,
atentemos uma vez mais para o ensino em migalhas, lamentavelmente hegemônico, no
que tange à grupalidade, no campo da formação psi. Se ele nos torna, no melhor dos
casos, míopes a qualquer contextualização, que dizer de seu efeito sobre nossa virtual
acuidade para fazer, do contexto, texto! Se os grupos de sensibilização lewinianos
emergem durante a guerra sob encomenda do governo americano; se a inseparabilidade
entre pesquisa e intervenção grupal está, para este judeu emigrado por força da ascensão
do nazismo na Alemanha, ligado ao sonho de mudar-se para o Estado de Israel e lá
modificar a tradicional educação judaica; se as práticas teatrais de Moreno começam, nos
anos 20, nas praças e ruas de Viena, com crianças, e também com prostitutas; se este cria
a sociometria nos EUA em resposta a uma encomenda governamental de intervenção em
19
- Ver, a este respeito, LACAN (1947) e FERNÁNDEZ (1992).
20
- Além de Bion, dentre os cerca de 250 psiquiatras ingleses envolvidos neste trabalho podem-se destacar os
nomes de Rickman e Foulkes.
21
- Costa desqualifica, por exemplo, as interpretações que se dirigem ao grupo (“o grupo isto”, “o grupo aquilo”...)
porque, a seu ver, consistem em afirmações irrefutáveis, às quais ninguém pode opor objeções (já que seu
destinatário – o grupo – não existe!). Aqui, o teoricismo levado às últimas conseqüências parece comprometer,
inclusive, qualquer mínimo bom-senso. Acreditará o autor que os grupos concretos obedeçam a tal ponto às
teorizações, certamente essencialistas, dos grupalistas? Acreditará ele, paralelamente, que quando um terapeuta se
dirige a seu paciente “individual” não esteja operando qualquer essencialização? Ou que este sempre abertamente se
defenda das violências institucionais que podem ser produzidas no confronto “terapêutico”?
9
22
- Por qualidade entendemos, evidentemente, alguma ruptura com o especialismo acrítico e o teoricismo
hipertrofiado. E para que não nos julguem estar assumindo a posição de “juízes acima de qualquer suspeita”,
reconhecemos alguma presença destas tendências em nossos trabalhos anteriores ( como SAIDÓN et allii, 1983)
23
- Para Guattari ( 1981: 59) , “conspirar” significa “respirar juntos” , ou melhor, criar um pouco de possível em
meio a uma atmosfera sufocante.
24
- Voltamos a frisar que não sendo independentes as características analisadas – a separação tem objetivos
pedagógicos e polêmicos –, é raríssimo que a exceção a uma delas não seja acompanhada de exceção à outra.
10
25
- Utilizando-se dos conceitos de demanda e oferta, Bauleo politiza o tema da formação de psicólogos sociais ( e
grupalistas) , relacionando-o ao espaço da leitura: à demanda de formação responde-se dominantemente com uma
oferta bibliográfica circunscrita que a institucionaliza, excluindo outras virtualidades e transformando a demanda em
encomenda oficial e do oficial.
26
- Recordemos o esquema com o qual ilustramos o especialismo acrítico de alguns historiadores das práticas
grupais: ali, se chamarmos “x” a grupalidade colocada como origem, poderemos dizer que “algo acontece a x, mas o
próprio x não acontece”. Logo, x está colocado fora da história.
11
a ela. Textos de psis como Baremblitt, Bauleo e Barros convidam-nos a ler Marx, os
anarquistas e libertários, antropólogos e historiadores diversos ( nossos ou de outras
plagas), Nietzsche, Deleuze, os analistas institucionais, Guattari, Castoriadis e pensadores
políticos, na qualidade de ferramentas fundamentais para nossa formação (ou trans-
formação), caso estejamos empenhados em ser algo distinto de meros consumidores em
um mercado de bens (“grupais”, que sejam...) de salvação. Talvez Ewald (1991: 90) o
tenha formulado com a precisão que desejaríamos: “Você quer fazer psicologia? (...)
aprenda história (...), espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do economista,
empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo...”. Àqueles que
contestem alegando supostas “dificuldades” implicadas nestas leituras – campos alheios à
especialidade, conceitos desconhecidos, linguagem incomum, enfoques surpreendentes
ou perturbadores – sugerimos uma reflexão já utilizada neste artigo: estranhar presenças e
ausências ( de experiências do “fácil” ou “difícil”).
Para concluir esta seção, exploraremos exceções ao instituído quanto ao
teoricismo hipertrofiado. Para tanto, vale a pena citar Castel (1987) e Coimbra (1995).
No primeiro destes trabalhos, o sociólogo francês volta-se para as “novas
terapias”, agrupadas sob o rótulo “potencial humano”33 – bio-energia, gestalt-terapia,
análise transacional, grito primal, etc. –, invariavelmente grupalistas, com enorme
penetração no panorama francês dos anos 70 (e no nosso, na década seguinte34).
Escapando à tentação teoricista de Pontalis que, a partir da psicanálise, analisa práticas
análogas e as recusa em função de uma “menoridade epistemológica” – curandeirismo,
psicologismo, microssociologismo, familiarismo, artificialismo, biologismo,
funcionalismo, empirismo ingênuo, adaptacionismo, organicismo, etc. –, Castel as
apreende por um viés em que o contexto se faz texto, permitindo-lhe, inclusive, alcunhá-
las de “pós-psicanalíticas”: “... essas abordagens retomam, exploram e instrumentalizam
prosaicamente um aspecto fundamental da descoberta freudiana: a possibilidade de
trabalhar o próprio conceito de normalidade” (CASTEL, 1987: 143).
A pós-psicanálise não é, por conseguinte, nem o fim da psicanálise nem sua
“recuperação” por parte de setores epistemologicamente pouco nobres, mas “o fim do
controle pela psicanálise do processo de difusão da cultura psicológica na sociedade”
(ibidem: 133). A expressão “terapia para os normais” evidencia a inserção deste
movimento como uma das forças de constituição de uma sociedade que trabalha seu
capital humano: “[o indivíduo] pode ser o objeto-pessoa de um trabalho para desenvolver
seu potencial e intensificar suas capacidades relacionais (...). As “novas terapias” fazem
explodir – como a psicanálise, mas de uma maneira muito mais extensiva – de uma só
vez o conceito de patologia e o de saúde, mas conservando a exigência de intervenção por
intermédio de técnicas especializadas” (ibidem: 145). Logo, se para Pontalis, instalado
em uma espécie de “extraterritorialidade” epistemológica, o exame de DNA das práticas
grupais – simulacros de terapêuticas – não as confirma como proles psicanalíticas,
para Castel, pouco afetado de hipertrofia teoricista, elas são bastardas, porém sócio-
historicamente filhas. Caso nos aliemos à sua análise, nossa tarefa não será a de legitimar,
via corte epistemológico, a eventual boa teoria para qualquer terapêutica, mas a de nos
33
- Para uma exploração do Movimento do Potencial Humano no contexto norte-americano, ver CASTEL, CASTEL
e LOVELL (1980). Para uma exposição detalhada das diversas vertentes nele incluídas, ver SCHÜTZENBERGER e
SAURET (1986 ).
34
- O boom das terapias corporais – parte deste “complexo alternativo” – no Brasil é analisado por RUSSO (1991).
13
35
- Recorde-se o lema “Brasil: ame-o ou deixe-o!”
36
- A este respeito, ver RANGEL (1996) e BARROS (1995 ).
37
- Para um detalhamento do nexo entre a difusão do movimento psicanalítico e as ações da categoria de psicólogos
no Rio de Janeiro, consultar FIGUEIREDO (1984 ).
38
- As aspas se devem à particular concepção de instituições manejada pela primeira geração: sinônimo de
organizações ou estabelecimentos. A segunda geração trabalha com um conceito distinto, influenciada que está pela
Análise Institucional na vertente francesa.
39
- Plataforma: nome do grupo de psicanalistas argentinos que, em 1971, rompe com a A.P.A. ( Associação
Psicanalítica Argentina), filial da I.P.A. ( International Psychoanalytical Association) , por motivos políticos. Além
desta referência histórica precisa, usamos o adjetivo “plataformista” para denotar a multiplicidade de referenciais
teórico-políticos, muitos deles epistemologicamente incompatíveis, característica da segunda geração de argentinos.
Aqui, uma vez mais, qualquer teoricismo hipertrofiado conduziria a uma apreensão restrita do movimento. Sobre
Plataforma, consultar BAULEO e LANGER (1973 e 1977)
40
- Em 1976, um golpe militar lança a Argentina em um duradouro processo ditatorial caracterizado por incríveis
violência, intolerância, repressão e tortura.
41
- É em parte porque a trajetória desta segunda geração se cruza com a da autora deste artigo, que nele tanto se
insiste na história, nas instituições, no transdisciplinar, na crítica e na ruptura.
14
42
- Aperfeiçoamento da observação empírica e da codificação lógico-matemática, no caso dos positivismos
continuístas; recorrência temporal a partir de cânones construídos por cada ciência, mediante os quais se examinam
os saberes para assinalar rupturas, no da epistemologia descontinuísta.
43
- Embora a categoria “corte” ou “ruptura epistemológica” seja própria à epistemologia descontinuísta, ao usar tal
expressão tomamos liberdades de sentido. Em função do internalismo normativo, todo enfoque epistemológico, por
mais histórico que ele próprio se afirme, porta uma espécie de arma de corte desenraizante.
44
- Por esta expressão aponta-se a regularidades próprias dos dizeres e fazeres de determinado momento que,
conquanto não instaladas em qualquer plenitude da Razão – sendo, ao contrário, casuais e bélicas –, instauram,
contingentemente, jurisdições e normatividades.
45
- Foucault (1979 : 172 ) aborda este problema de forma extremamente direta: "As questões a colocar são: que tipo
de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem "é uma ciência"? (...) Qual vanguarda
teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas circulantes e descontínuas formas de
saber?"
15
4- Da tipologia às cartografias
Dedicar-nos-emos, a partir de agora, à tarefa de estabelecer uma tipologia dos
panoramas e históricos mais difundidos. Adotando este procedimento, incorporamos uma
estratégia sugerida por Feyerabend (1977: 44): proceder como um “agente secreto” que
participa do jogo da Razão para solapar-lhe o jogo. Melhor dizendo, em nossa proposta
de classificação estará em cena menos uma necessidade representativa fundada em
ordem e medida do que um esforço de elucidação das conseqüências implicadas no ato de
partilhar cada um dos caminhos. Na impossibilidade – assumida, e inclusive desejada –
de realizar uma aproximação meramente descritiva, o leitor se verá permanentemente
instado a distinguir entre o que é próprio a cada enfoque abordado e o que advém da
análise do mesmo.
Tomando por objeto de investigação as linhagens argumentativas utilizadas,
podem-se discernir quatro tipos principais de históricos e/ou panoramas: (1) cronológicos
ou geográfico-cronológicos; (2) teórico-reconstrutivos; (3) modelístico-reconstrutivos;
(4) sócio-institucionais.
4.1- Cronológicos ou geográfico-cronológicos
Estamos, neste caso, diante da “história oficial” da psicossociologia: aquela que
nos brinda com nomes e datas encadeados, em uma espécie de jornalismo onisciente, a
noticiar “fatos” grupalistas de variada dimensão – de manchetes de primeira página a
46
- A comparação do processo histórico com os movimentos de um caleidoscópio se deve a VEYNE (1982 ).
16
47
- Quanto à relação entre os textos sobre a psicologia das multidões publicados na França ao final do século XIX e a
situação política da época (Comuna de Paris, em especial), ver COCHARD (1990). Para uma comparação entre as
abordagens de Le Bon, Tarde e Freud do fenômeno das massas, consultar MOSCOVICI (1993)
48
- Tomamos o termo em sua polissemia: aventura conota simultaneamente “o que advém” e “o que se inventa”.
49
- Confessamos desconhecer o motivo pelo qual a maior parte da bibliografia elege Pratt como “autor originário”.
Influência dos livros americanos? Prestígio médico? Situação epidemiológica da tuberculose no início do século? De
preciso, sabemos apenas que Pratt publicou imediatamente seus resultados, em artigos datados de 1906 ( John
Hopkins Hospital Bulletin) e 1907 (Journal of the American Medical Association).
50
- Aqui os números oscilam bastante, exibindo o caráter necessariamente ficcional dos históricos do grupalismo.
GRINBERG, LANGER e RODRIGUÉ (1976) – referencial que utilizamos – falam em mais de 50 pacientes;
LUCHINS (1970) reporta de 14 a 40; FERNÁNDEZ (1992) indica oscilações entre 30 e 100, segundo o autor
consultado. O único acordo é que se trata de grupos amplos, cujos participantes podem variar de um encontro para
outro.
17
e E.W. Lazell. Enquanto Pratt atuava com pacientes orgânicos, Marsch, no Kings Park
State Hospital de Nova York, tinha a seu cargo sujeitos rotulados como doentes mentais.
Seus procedimentos, datados do fim dos anos 20, compunham-se de aulas (sobre
psicopatologia, ajustamento à vida hospitalar, crescimento, problemas de religião e
filosofia, assuntos de interesse geral, etc.), canto conjunto, recitação, orações, discussão
em grupo, dança, etc...procurando envolver os pacientes tanto verticalmente (com o
terapeuta, a disciplina hospitalar, o Senhor...) como horizontalmente (com os demais
pacientes e outros membros da comunidade). Uma de suas frases, reproduzida por
Camara (1987: 23), sintetiza concepção e método: “Pelo grupo-multidão eles foram
adoecidos; pelo grupo-multidão devem ser curados”. Já Lazell, no St. Elizabeth’s
Hospital, proferia palestras semanais para pacientes diagnosticados como
esquizofrênicos. A princípio, durante os anos 20, versavam sobre psicopatologia e
desenvolvimento psicossexual segundo a perspectiva freudiana, sendo complementadas
por leituras de obras escolhidas. Mais tarde, ao início da década de 30, o ponto de vista
junguiano tomou o lugar de Freud nas preleções, que passaram a ter por acompanhantes
metodológicos, em adição às leituras, terapia ocupacional, vocacional e exercícios
físicos.
Na história oficial, são esses os desbravadores, conquistadores do Novo Mundo,
da Terra Prometida....Pouca coisa além de tal heroísmo costuma ser posta em destaque.
No entanto, talvez valesse a pena ressaltar certos aspectos singulares presentes em Pratt,
Marsch e Lazell: a disponibilidade para intervir em grupos amplos e de composição
mutante (circunstância que se verá imensamente problematizada após o acirramento do
processo de institucionalização); a produção e/ou reforçamento institucional da
idealização da figura do terapeuta (médico ou psiquiatra), que assume nítidos contornos
religiosos e/ou pedagógicos51; a presença de alguma liberalização nas relações com os
enfermos mentais, tanto em termos de ambiente terapêutico (inclusão de ex-pacientes,
familiares, membros da comunidade) como de recursos (palestras, aulas, dança, canto,
música, leitura, ginástica, etc.)52. Ao deixar de lado estas nuances, os históricos
cronológicos exibem seu caráter paradoxal: ao mesmo tempo em que legitimam o mais
moderno como desdobramento do mais antigo, obscurecem, quanto a este, tudo aquilo
que nos poderia levar a estranhar o moderno...
O “elo perdido” entre os pioneiros e os continuadores, neste curioso continuísmo,
é geralmente localizado na trajetória de J.L.Moreno. Esta controvertida figura, ainda
jovem, em Viena, envolvera-se com variados trabalhos sociais e comunitários: entre 1908
e 1913, reunindo em grupo as crianças nos jardins Augarten, fundara o “reino das
crianças”; de 1915 a 1917, ocupara-se de um campo de refugiados de guerra tiroleses;
aproximadamente na mesma época, ajudara as prostitutas do bairro de Spittelberg a
fundar um clube autogestionário para assistência mútua. Após a formatura em medicina,
51
- Pastor antes de se tornar psiquiatra, Marsch dizia: “O doente mental não deve ser considerado como um paciente,
mas sim como um estudante que fracassou no grande objetivo da civilização” (apud CAMARA, 1987: 23). Observe-
se a semelhança com o paradigma do tratamento moral dos primeiros alienistas, com ênfase análoga nos “males da
civilização”.
52
- As Ligas de Higiene Mental se desenvolveram nos EUA desde a primeira década deste século, denunciando o
papel iatrogênico do meio asilar e inspirando projetos de reorganização da assistência. Clifford Beers – um ex-
paciente psiquiátrico – e Adolf Meyer – diretor do Pathological Institute de Nova York – constituem, em 1909, o
Comitê Nacional de Higiene Mental, com a finalidade de promover a saúde mental com o auxílio dos modernos
saberes psi. Por conseguinte, por volta dos anos 20 já estão assentadas as bases para uma clínica psiquiátrico-
psicanalítica preocupada com uma abordagem dinâmica dos conflitos e questionadora do abismo absoluto entre
normal e patológico (embora sem jamais colocar a instituição psiquiatria em questão)
18
ocorrida em 1917, Moreno criou o teatro de improviso53, praticado sem texto prévio e
com a participação ativa dos espectadores. Conta a história (ou a lenda) que o acaso fez
deste teatro espontâneo um teatro terapêutico (ou Psicodrama): uma das atrizes,
chamada Barbara, “desempenhava com muita naturalidade o papel de ingênua, enquanto
na vida particular era uma megera. Moreno, que ouvira as confidências do noivo de
Barbara, perguntou à moça se não gostaria de substituir, em cena, seu papel habitual por
um oposto, totalmente vulgar e cínico; ela interpretou as situações num estilo
completamente novo com uma agressividade manifesta. E seu comportamento particular
mudou; as cenas que fazia com o noivo perderam a intensidade, seja porque as
interrompia, seja porque se punha a rir no momento em que ia dar início a elas: não sentia
mais estímulo para isso. Inversamente, a vida agia sobre o teatro (...) Barbara
desempenhava seu próprio eu; o noivo entrou no jogo e os dois começaram a dar ao
público o espetáculo de suas vidas, (...), operando assim uma curiosa troca entre o real e o
imaginário.” (PONTALIS, 1972:179).
A partir de 1925, Moreno instala-se nos EUA. Após algum trabalho com o teatro
de improviso no Carnegie Hall, inicia a passagem do pioneirismo à institucionalização:
no Congresso da Associação Americana de Psiquiatria (1932), formula o conceito de
psicoterapia de grupo; no mesmo ano, leva a termo uma investigação no Instituto
Hudson, estabelecimento destinado a jovens delinqüentes. Havendo observado, ainda em
Viena, que a adaptação de pessoas exiladas tornava-se mais fácil quando lhes era
facultado agrupar-se segundo as próprias escolhas, sistematiza-as através do teste
sociométrico, que permite construir o Sociograma – espécie de foto sociológica de um
grupo num momento determinado. Apoiado neste procedimento, Moreno reorganiza os
pavilhões do Instituto, buscando facilitar a inserção dos internos. Em 1936 constrói o
primeiro teatro terapêutico em Beacon: alguns atores ali se vêm tratar ou lhe pedem
formação especializada. No ano seguinte, já é professor das Universidades de Columbia e
de Nova York e, em 1941, o Hospital Geral St. Elizabeth está convertido em centro de
formação em psicodrama, técnica onipresente no tratamento dos pacientes. Em 1942
fundam-se o Sociometric and Psychodhramatic Institute e a American Society of Group
Therapy and Psychodhrama (primeira sociedade oficial de grupoterapia). Desde o pós-
guerra, as idéias morenianas passam a ter enorme penetração na Europa e América
Latina: congressos internacionais de psicodramas são realizados em diversos países,
criando-se, paralelamente, sociedades e institutos de formação.
O princípio básico da teorização de Moreno – a espontaneidade –, a ser
desenvolvido no mundo “como cena” em contraposição à conserva cultural , aparece
com clareza em suas confissões de Psicoterapia de grupo e psicodrama: “Aqui se
encontra um homem que apresenta todos os sinais da paranóia e da megalomania, do
exibicionismo e da inadaptação social e que, contudo, pode ser muito bem controlado e
normal, e inclusive mais claramente capaz de criação, exteriorizando completamente seus
sintomas em vez de esforçar-se para restringi-los e resolvê-los.” (apud
SCHÜTZENBERGER e SAURET, 1986: 48)
Em que pese tal percurso, que deveria sugerir a necessidade de ser cuidadoso com
as naturalizações do especialismo e os distanciamentos quanto às práticas sociais –
53
- A eventual relação entre o curso de medicina e o teatro de improviso – acontecimentos narrados em seqüência na
bibliografia historiográfica – permanece totalmente obscura. Tratar-se-á simplesmente de uma tentativa de dar
credibilidade universitária às práticas de Moreno? Ou, o que nos parece uma hipótese plausível, embora brincalhona,
se estará propondo uma continuidade entre os rituais – tão teatrais! – do ensino médico e seu percurso?
19
Moreno começa nas ruas e praças, com habitantes da cidade, praticando o teatro da
espontaneidade –, raros são os autores que, ao apreciar seus trabalhos, estão atentos às
utopias sociais ativas que os animam. As histórias oficiais estão sobretudo preocupadas
em mostrar o papel de Moreno na institucionalização, quer dizer, na apropriação de um
tipo de objeto – a dramatização, em grupo, de relações e conflitos –, sobre o qual se
começa a poder reivindicar um monopólio de legitimidade54 – o dos “psicodramatistas”.
A partir de Moreno, as histórias são obrigadas a se fazerem igualmente geografias,
distinguindo minimamente os percursos estadunidense, europeu e latino-americano. No
contexto norte-americano costuma-se fazer referência aos nomes de P. Schilder, L.
Wender e S. P. Slavson, em acréscimo a uma nova figura-símbolo, Kurt Lewin.
Nos dois primeiros é possível apreciar a expansão das aplicações da psicanálise
aos grupos. Diferentemente da prática dos “pioneiros”, busca-se um enquadre mais
estrito, separarando coordenação e liderança. Conquanto tal distinção nem sempre seja
tranqüilamente afirmável, põe em cena o problema da interpretação e de seu destinatário,
ausente nas estratégias assumidamente sugestivas de Marsch e Lazell, por exemplo.
Slavson, enquanto grande institucionalizador – organiza, em 1943, a American Group
Psychotherapy –, tentou dar resposta a esta questão focalizando o ambiente em que se
realiza a intervenção grupal. Inicia assim a verdadeira “cruzada amostral-numerológica”
que cerca a psicoterapia psicanalítica dos grupos. Ao ver de Slavson, um “verdadeiro
grupo” não deve exceder 8 pacientes que, além do mais, devem possuir características
similares quanto a grau e/ou tipo de patologia, sexo, idade, nível sócio-econômico, etc., a
fim de que qualquer interpretação valha, por semelhança, para todos e cada um. Nesta
linha, o antigo recurso da palestra prévia é inclusive retomado, agora sob a roupagem de
tema disparador do encontro grupal, com vistas a garantir, na forma de uma espécie de
”variável independente”, a preparação homogeneizadora do ambiente.
A figura-símbolo do grupalismo americano no período de institucionalização, no
entanto, é indubitavelmente Kurt Lewin, psicólogo alemão emigrado para os Estados
Unidos quando da ascensão do hitlerismo. Ali, rapidamente transpôs as pesquisas que
desenvolvia em laboratórios universitários para situações do cotidiano. A expressão
dinâmica de grupo está associada a esta transposição: “a teoria e a prática estão
metodologicamente ligadas de uma maneira que (....) pode fornecer a resposta a
problemas teóricos e fortalecer, ao mesmo tempo, esta aproximação racional de nossos
problemas sociais práticos, que é uma das exigências fundamentais de sua solução"
(apud LAPASSADE, 1977:52). Exemplar neste sentido é o conhecido experimento
sobre os efeitos diferenciais de climas sociais - autocrático, laissez-faire e democrático -
sobre o comportamento dos grupos, onde o último obtém resultados privilegiados55. Esta
investigação, no entanto, ainda poderia sustentar a idéia errônea de que Lewin se tenha
mantido um cientista experimental de laboratório, atuando exclusivamente sob situações
de estrito controle. Por este motivo, deve-se dar destaque ao último período de sua
carreira , prematuramente interrompido pela morte, em 1947.
54
- Esta definição se inspira em GHILHON DE ALBUQUERQUE (1978) e nos ajuda a entender uma conceituação
em que se diferenciam estabelecimentos e instituições. Apelando à mesma se podem, por exemplo, definir como
instituições a medicina (monopólio das relações com o corpo), a escola (monopólio das relações educativas) e a
própria psicossociologia (monopólio das relações... grupais !).
55
Relembrando o contexto político em que tal experimento é realizado, não há que perder de vista sua relevância no
combate – discursivo e bélico – ao nazismo !
20
56
-Trata-se de um seminário desenvolvido em New Britain (1946), com o objetivo de reforçar a ação local em favor
da legislação que promulgava a igualdade racial quanto ao emprego.
57
- Também chamado grupo de base, de evolução, de sensibilização e grupo centrado sobre o grupo.
21
Sendo assim, Bion propõe como objetivo forçar a coletividade de “inadaptados à guerra”
que afluem aos hospitais britânicos nos anos 40 a tomar consciência das próprias
dificuldades, constituindo um grupo propriamente dito e tornando-se capaz de auto-
organização. Para tanto, impõe um regulamento: os homens se reunirão diariamente pela
manhã, coordenados por terapeutas em atitude psicanalítica de “benevolente isenção”
(sem ordens ou sanções), para uma atividade diferente. Ou seja, ... agrupar-se! Após
vacilações e desconfianças iniciais – não seriam, estes médicos modernos, “generais de
branco”? –, os ensaios se multiplicam, formando-se, em etapas sucessivas, um “espírito
de corpo” – protestos contra as irresponsabilidades, elevação da auto-estima e rápida
recuperação – que se impõe, inclusive, aos récem-chegados e os incorpora ao mesmo
processo.
São estas as condições de produção da teoria dos supostos básicos, segundo a
qual, quando indivíduos são reunidos em grupo, coexistem dois modos de
funcionamento: o grupo de supostos básicos – ciculação fantasmática entre os
integrantes, caracterizada pela predominância de processos psíquicos primários – e o
grupo de trabalho – coooperação consciente e racional em torno de uma tarefa que o
grupo se atribui. Os supostos básicos, ao mesmo tempo em que são imprescindíveis para
a existência da ação co-operativa, podem, igualmente, paralisá-la ou dificultá-la.
Terminada a Guerra, Bion foi convidado a trabalhar na Clínica Tavistok,
formando grupos terapêuticos sob a égide de suas teorização e técnica. Embora a tradição
o tenha considerado o primeiro psicanalista a mais que meramente aplicar a teoria aos
grupos, descobrindo – melhor dizendo, inventando – organizadores grupais
fantasmáticos específicos à grupalidade, Bion não parecia tão confiante, conforme relata
em sua obra acerca da experiência de Tavistok: “Era desconcertante que o Comitê [da
Clínica] parecesse crer que os pacientes pudessem ser curados em tais grupos (...) sua
idéia acerca do que havia sucedido naqueles grupos [durante a Guerra] (...) era muito
diferente da minha.” (BION, 1963 :35). Limitando suas experiências anteriores à prática
de “persuadir grupos de pacientes de que a tarefa do grupo fosse o estudo de suas
tensões”59 (ibidem:ibidem), Bion relativiza os supostos da descendência grupalista,
tantas vezes tentada a fazer de dependência, ataque e fuga, e acasalamento, conteúdos
pré-estabelecidos para uso de cooordenadores oraculares que “sabem” o que se passa em
grupos artificializados-substancializados-totalizados.
Da Inglaterra à França se viaja, freqüentemente, em túneis continuístas que forjam
“escolas”. Por mais que os psicanalistas franceses interesssados em grupos se auto-
afirmem, qual Bion, investigadores, buscam-se – e quem procura, acha... – progressos
sancionáveis por estranhas epistemologias. Após o entusiamo dos anos 50 por Moreno e
Lewin, as críticas de Pontalis, originalmente formuladas em 1963, revelam que o
estruturalismo então triunfante não se contenta com utopias sociais de baixa extração
teórica. Grupos-como-totalidade, resistências à mudança, sociometrias, espontaneidades,
etc... se lhe afiguram soluções pouco convincentes para fundamentar a indispensável
expansão psicanalítica em direção aos grupos. Bion, ainda que pouco conhecido, é um
mal menor. Por mais que suas noções de cultura e mentalidade grupal assemelhem-se
perigosamente às figurações anteriores, o analista inglês porta uma prudência básica: a
seu ver, o grupo nada mais é do que um agregado de indivíduos onde cada um,
59
Parece que Bion, ao contrário do comitê de Tavistok, não crê que pratique estritamente psicanálise com seus
grupos. Valeria a pena investigar melhor os determinantes institucionais de sua postura, em especial as reprimendas
que lhe foram, à época, dirigidas por Melanie Klein – influência básica quanto aos supostos básicos, por sinal...
23
60
- Afirmar o caráter grupal do fantasma evita transformar a priori o grupo em sujeito coletivo, comunidade ou
entidade com fantasias prtóprias. Contudo, como bem assinala Fernández (1992: 122), “a utilização da palavra
‘individual’ junto a ‘fantasma’ parece esvaziar-se de sentido. Se o indivíduo é o sujeito indiviso da consciência, o
termo ‘individual’ deixa de ser pertinente ao campo psicanalítico e, conseqüentemente, às abordagens psicanalíticas
do campo grupal”.
24
61
- A respeito da diferença entre campo de intervenção e campo de análise e da crítica ao especialismo por ela
facultada, ver RODRIGUES e SOUZA (1992)
62
- Lourau atribui a um “salto mortal” de Lapassade a criação da Análise Institucional. O psiquiatra Jean Oury chama
Guattari de “passeur”, termo francês que significa barqueiro ou contrabandista, por seu desafio permanente à ordem
dos campos disciplinares (teóricos e de intervenção).
63
- Em uma crítica em ato à demanda por definições de “linhas” de trabalho, cujos determinantes parecem ser
preocupações mais financeiras que epistemológicas ou políticas, alguns companheiros optam, às vezes, por responder
mencionando entidades da Umbanda ( linha de Xangô, Oxossi, etc.) ou marcas de material de costura (linha
“Corrente”, “Círculo”, etc.)
64
- O primeiro Congresso Internacional de Psicoterapia de Grupo ocorreu em 1954, na cidade de Toronto. Emílio
Rodrigué, que estudara em Londres com Bion, retornava na época a B.Aires. Em 1955 funda, com outros membros
da A.P.A., a Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo. O livro de 1957 é o primeiro texto
argentino relativo ao boom inicial do grupalismo portenho.
25
65
- Sobre as relações Brasil-Argentina no que se refere à formação de grupalistas, ver MARTINS (1986), RANGEL
(1996) e BALÁN (1991)
66
- A respeito do modo de penetração, no campo educativo brasileiro, dos grupos operativos e da psicologia
institucional, ver COIMBRA (1980).
67
- Ver, a respeito da inquietação desencadeada por pensamentos que instauram a ausência desta possibilidade –
exemplificados por um conto de Borges –, FOUCAULT (1992: prefácio).
26
4.3- Modelístico-reconstrutivos
Ainda na tentativa de dar sentido ao agitado caleidoscópio da história das práticas
grupais, certos autores procuram modelos, paradigmas ou formas gerais que,
subjacentes a variadas teorias, possam reconhecer misturas sem renunciar à
representação. Encontram-se aqui, provavelmente, algumas das mais frutíferas tentativas
de análise das práticas grupais. Os frutos, contudo, podem ser doces ou amargos...Por
este motivo, dedicar-nos-emos a uma exposição razoavelmente minuciosa de três delas
– Grinberg, Langer e Rodrigué (1976), Pagès (1974) e Baremblitt (1987a) –, bem como
de algumas de suas conseqüências.
A mais antiga deve-se ao famoso livro Psicoterapia de Grupo, original argentino
de 1957. Neste, Grinberg, Langer e Rodrigué dividem o grupalismo terapêutico em três
períodos que se relacionam, por sua vez, a três modelos: psicoterapia pelo grupo, no
grupo e de grupo. O primeiro consiste em estimular e utilizar-se deliberadamente das
emoções coletivas, sem se preocupar em fazer com que sejam compreendidas e/ou
analisadas pelos participantes. Corresponde às ações de Pratt, assim como à de certos
grupos de auto-ajuda (Alcoólatras Anônimos73, por exemplo). As terapias no grupo, por
sua parte, introduzem a interpretação em situações coletivas, aplicando técnicas de
orientação psicanalítica que procuram compreender e modificar dinamismos e estrutura.
O destinatário da interpretação, todavia, permanece o indivíduo, sendo os eventuais
efeitos grupais decorrentes de uma homogeneização prévia dos participantes (cf.
Slavson, por exemplo). Já as terapias de grupo, priorizadas por Grinberg, Langer e
Rodrigué, consideram o grupo como fenômeno central e ponto de partida para a
70
- Para uma atraente versão destas misturas, no trabalho grupal com psicóticos, consultar Lancetti (1994).
71
- Fernández (1992: 132-133) denuncia os reducionismos implicados na epistemologia das ciências positivas em
que ainda hoje, predominantemente, se fundamentam as ciências humanas. Esta epistemologia supõe um objeto
autônomo, reprodutível, não contraditório e unívoco, denominado, pela autora objeto discreto. Pensamos que o
adjetivo pode comportar, em acréscimo, o sentido de reservado, prudente, recatado, modesto... Nos grupalistas que
ora abordamos, os grupos são objetos nada discretos também neste segundo sentido. Fazem muito barulho, são
pouco obedientes, questionam os poderosos segredos implicados na separação público/privado e nem sempre são
indubitavelmente terapêuticos – o que poderia constituir sua glória, ao invés de sua perdição...
72
- Percia (1989: 66-68) diferencia duas correntes no grupalismo argentino: a de aplicação e a de ruptura ou
desvio. A primeira exerce o trabalho grupal na forma de psicanálise aplicada, em dois sentidos: saber psicanalítico
dirigido (aplicado) a outra coisa – os grupos – e saber psicanalítico bem comportado, boa psicanálise (“aplicada”,
como se diz de um aluno atento às reivindicações das autoridades).
73
- No caso dos A.A. e grupos homólogos, a idealização do terapeuta, característica dos trabalhos de Pratt, é
substituída por uma estimulação da fraternidade, minimizando-se a liderança ( terapias pelo grupo com estrutura
fraternal).
28
74
- Como antídoto contra esta confusão entre produção grupal de subjetividade e coleção definida por semelhança,
consultar o posfácio de Deleuze a TOURNIER (1985)
29
Sociopsicanálise
Extremismo
Extremismo político-econômico-cultural
biopsicológico Movimentos
Antipsiquiatria
californianos Esquizoanálise
Pedagogia institucional
Análise institucional
4.4 - Sócio-institucionais
Primaríamos pela redundância se voltássemos a expor nesta seção aqueles
autores que têm estado presentes desde a primeira linha deste artigo, na qualidade de
ferramentas críticas. Os escritos de Bauleo, Baremblitt, Barros, Castel, Coimbra e
Fernández, para recordar apenas os referidos com maior freqüência, constituem valiosas
pistas para a elaboração de históricos que, trazendo à luz as condições institucionais de
existência das diferentes práticas grupais, iluminam os modos de pensar/agir/ser que
cada uma delas favorece, admite, tolera, repudia e/ou interdita. Dizemos modestamente
pistas porque os históricos sócio-institucionais são tarefas-descaminho a atualizar
permanentemente, ao invés de memória-tradição a conservar e respeitar. Consistem em
tentativas de elucidação do que pensamos/fazemos/somos enquanto presente,
facultando-nos pensar/fazer/ser diferentemente.
32
Se esta seção terminasse aqui, contudo, cometeríamos uma injustiça com o autor,
talvez, do primeiro histórico sócio-institucional com efeitos perceptíveis sobre os
grupalistas brasileiros. Refiro-me ao trabalho de Lapassade (1977), cuja publicação
francesa original data de 1966. O texto situa a emergência do “capitalismo de
organização” – trazendo, em seu bojo, os grupos e a psicossociologia – no conjunto do
movimento histórico. Adotando periodização sugerida por Touraine, configura três
etapas da sociedade capitalista: (1) a fase A, na qual, apesar do desenvolvimento do
trabalho parcelado, as organizações operárias ainda se fundam nos antigos ofícios e
predomina a ideologia anarco-sindicalista, com suas reivindicações de gestão direta,
coincide com a sociedade industrial do século XIX ; (2) a fase B, quando se
burocratizam75 tanto as empresas (trabalho mecanizado e aparecimento das teorias da
organização de Taylor e Fayol) como os sindicatos (aos quais se delega poder de
representação), equivale ao surgimento das grandes empresas industriais, a partir do
início do nosso século; (3) a fase C, na qual se modernizam as tecnologias (automação,
eletrônica, petroquímica, etc.) e as formas de gestão (perda da rigidez burocrática e
busca da participação operária, embora sempre controlada), inicia-se com os anos 50/60.
Na fase A, Lapassade enfatiza a emergência das primeiras grandes doutrinas
sociológicas e políticas da nova sociedade, examinando proposições de Fourier,
Proudhon, Saint-Simon, Comte e Marx. Considera o primeiro o “verdadeiro precursor
da psicossociologia (...) e mesmo das técnicas de grupo”, acentuando que o socialista
utópico, em consonância com seu tempo, formula um projeto de experiência sócio-
política – o falanstério76 – no nível em que ela se mostrava, então, possível – o dos
pequenos grupos e micro-organizações sociais. Na sociedade harmônica idealizada por
Fourier, em que pese sempre haver lugar para a satisfação das necessidades, nada é
deixado a cargo da improvisação: “Os grupos de base (...) são rigorosamente integrados
num sistema institucional que assegura sua coordenação e suas trocas (...). Já é a
ambição “sociocrática” (...) a Human engeneering, o psicossociólogo-rei.”
(LAPASSADE, 1977:42).
Passando brevemente por Proudhon, que coloca o problema da prioridade do
todo (corpo político) ou da parte (grupos de base), Lapassade chega às correntes
assumidamente tecnocráticas, representadas por Saint-Simon e, principalmente, August
Comte. Nelas identifica as fontes das modernas teorias das organizações, usando como
exemplo proposições do fundador do positivismo: os “sociocratas”, informados pela
sociologia nascente, deveriam educar o proletariado em seus pequenos grupos
espontâneos, de maneira a conduzi-los à participação hierarquizada, cooperação e
reorganização espiritual; com isso se destruiriam, simultaneamente, as perigosas utopias
sociais que “preferem recorrer aos meios políticos quando devem prevalecer os meios
morais” (apud LAPASSADE, 1977:45).
Concluindo a análise da fase A, o texto volta-se para Marx, dentro de cujo
projeto – derrubada da sociedade capitalista – os grupos ocupam lugar ambíguo: por um
lado, valoriza-se a discussão, a palavra pública, a formação da consciência social, a
crítica das ideologias; por outro, não há lugar para uma teoria positiva dos grupos e
75
- Por burocracia entende-se a propriedade privada dos meios de gestão e organização.
76
- Falanstério: lugar de vida e trabalho (geralmente agrícola) de comunidades compostas por 1620 pessoas, que se
associam livremente por similitudes e complementariedades de gostos, inscrevendo-se em séries de trabalhadores. O
número de integrantes decorre da teoria das paixões de Fourier: Combinadas de diferentes maneiras em cada homem
segundo suas intensidades, elas resultam em 810 espécies de pessoas matematicamente possíveis. O falanstério
deveria comportar um homem e uma mulher de cada uma dessas espécies.
33
78
- Para conhecer uma intervenção psicossociológica em que esta circunstância se coloca como elemento de análise,
ver RODRIGUES et allii, 1992.
79
- Ao contrário dos marxistas do PCF, as revistas de esquerda Arguments e Socialismo ou Barbárie estavam
atentas aos trabalhos da psicossociologia e sociologia americanas. Em uma análise talvez excessivamente simplista,
dizia igualmente Sartre (1980:141) na primeira parte de Crítica da razão dialética: “Se [a microssociologia] é uma
arma eficaz (...) e se ela está “nas mãos dos capitalistas”, mais uma razão para deles arrancá-la e voltá-la contra eles.”
35
compreensão empática reclamadas por Rogers põem em jogo bem mais as relações de
poder do que qualquer espécie de bondade natural associada à natureza humana.
Conforme pontua, "a não-diretividade é uma política antes de ser uma psicologia
genética, um método terapêutico ou uma nova concepção da pedagogia" (ibidem: 59).
Rogers, ao contrário, assim como a maioria de seus seguidores, refugia-se em
certo psicologismo, atitude avaliada por Lapassade como forma de “desengajamento”
do homem de ciência, portadora de uma opção política não declarada. Neste último
caso, a não-diretividade individual ou social exime-se de pôr em questão a diretividade
constituinte das sociedades burocráticas. Sendo assim, a autoformação não-diretiva
jamais admite a autogestão da própria formação, contradição somente solucionável com
a reunião do que fora separado: a educação e a política80.
Sem eliminar em princípio a presença do psicossociólogo ou coordenador,
Lapassade adverte que o realmente não diretivo provavelmente seja “aquele que dá a
possibilidade ao grupo de autoformação – e não mais do “grupo de formação”– de
estruturar ele próprio as condições da pedagogia” (ibidem: 61). A partir deste momento,
somos convidados a penetrar nas reflexões relativas à autogestão educativa, exigindo
que se revelem, nos grupos, as instituições – política reprimida por todas as ideologias
psicossociológicas das “relações humanas”. E mais ainda, pois sendo possível, na
perspectiva lapassadeana, a autogestão do conjunto social, “é o desaparecimento do
Estado e sua substituição por uma auto-regulação não burocrática das relações entre os
grupos que constituem uma sociedade” (ibidem: 62).
Muito tempo se passou depois da publicação deste histórico sócio-institucional.
Vieram as reivindicações autogestionárias de maio de 68, a profusão de revoluções
moleculares dos 70, os “anos de inverno” – os 80, na expressão de Guattari – e, ao final
dos mesmos, a queda do muro de Berlim e dos chamados “socialismos reais” – que o
mesmo Guattari há muito incorporara à definição de Capitalismo Mundial Integrado.
Nosso presente, anos 90, faz pensar em pós-fordismo, pós-welfare state, neo-liberalismo
hegemônico. Exigem-se, por conseguinte, sempre novas construções históricas que
situem as condições em que se produzem, hoje, os grupos e a psicossociologia.
Quanto a isso, o trabalho analítico-crítico com a noção de desafiliação, conforme
formulada por Castel, parece-nos uma ferramenta imprescindível, pois “tudo se passa
como se redescobríssemos com angústia uma realidade que, habituados ao crescimento
econômico, ao quase-pleno-emprego, aos progressos da integração e à generalização das
proteções sociais, acreditávamos conjuradas: a existência (...) de “inúteis para o
mundo”, de sujeitos e grupos tornados supra-numerários face ao aggiornamento das
competências econômicas e sociais em curso” (CASTEL,1995: 20).
Este mesmo – porque histórico – e novo problema – porque ligado a condições
institucionais singulares –, porém, já é matéria para escritos futuros81.
5 -Conclusões
80
- A influência de Rousseau sobre Lapassade o faz ressaltar como fundamental a última etapa da formação de
Emílio: a experiência política.
81
- Para uma exploração pioneira deste problema, trabalhando com as noções de poliverso psi e ecletismo superior,
ver BAREMBLITT, 1997.
36
Referências bibliográficas:
ALTHUSSER, L. - O futuro dura muito tempo, SP, Cia das Letras, 1992.
AMADO, G. e GUITTET, A. - A dinâmica da comunicação nos grupos, RJ, Zahar,
1978.
ANZIEU, D. e MARTIN, J.-Y. - La dinámica de los grupos pequeños, B.A., Kapelutz,
1971.
AUSTIN, J.P. - Quando dizer é fazer, P.A., Artes Médicas, 1990.
BALÁN, J. - Cuéntame tu vida: una biografía colectiva del psicoanálisis argentino,
B.A., Planeta, 1991.
BAPTISTA, L.A.S. - Algumas histórias sobre a fábrica de interiores, tese de
Doutorado, USP, 1987.
BAREMBLITT, G. - Notas estratégicas a respeito da orientação da dinâmica de
grupos na América Latina, in Grupos: teoria e técnica, RJ, Graal, 1982.
BAREMBLITT, G. - Ato psicanalítico e ato político, B.H., Segrac, 1987.
BAREMBLITT, G. - Revisión sintética y comentarios acerca de los modelos grupales,
in Lo Grupal 5, B.A., Búsqueda, 1987a..
BAREMBLITT, G. - Apresentação, in SaúdeLoucura 4, SP, Hucitec, 1994.
BAREMBLITT, G. - Por una nueva clínica para el poliverso psi, in SaúdeLoucura 5,
SP, Hucitec, 1997.
BARROS, R.D.B. - Grupo: a afirmação de um simulacro, tese de doutorado, PUC/SP,
1994.
BARROS, R.D.B. - Grupos e produção, in SaúdeLoucura 4, SP, Hucitec, 1994a.
BARROS, R.D.B. - Clínica grupal, in Revista do Departamento de Psicologia da UFF,
v.7, n.1, 1995.
BAULEO, A. - Psicología social y grupo, in Contrainstitución y grupos, B.A.,
Fundamentos, 1977.
BAULEO, A. e LANGER, M. - Questionamos 1, Petrópolis, Vozes, 1973.
BAULEO, A. e LANGER, M. - Questionamos 2, B.H., Interlivros, 1977.
BECKER, H. - Outsiders: studies in sociology of deviance, NY, The Free Press, 1966.
38