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Sobre as histórias das práticas grupais


- Explorações quanto a um intrincado problema

Heliana de Barros Conde Rodrigues*

1-Introdução
O presente artigo, dirigido a uma problemática histórica, apóia-se, ele mesmo, em
certas condições históricas de existência. Dentre elas, um longo trajeto docente como
professora, em cursos de graduação em Psicologia, da disciplina intitulada Dinâmica de
Grupo e Relações Humanas (DGRH).
O título oficial esboça o problema com que nos defrontamos. Sugere a existência
de um objeto dado – “o” grupo – , que possuiria movimentos previamente identificáveis
por parte de um saber, presumidamente científico – uma “dinâmica”–, aos quais se
agregariam, na forma de uma enigmática conjunção “e”, aparentemente óbvias “relações”
ditas “humanas” – levando a pensar que o antes abstrato “grupo” e sua nobre “dinâmica”
nada mais seriam, talvez, do que nossas tão conhecidas, embora freqüentemente julgadas
assustadoras, “relações entre homens” ( e mulheres, para ser politicamente correta...).
Apressados estudiosos resolveriam facilmente esta questão mediante um simples
argumento: o título oficial identifica as práticas grupais a um modelo teórico específico –
as formulações de Kurt Lewin na década de 40, no contexto americano – , acoplado à
valorização emprestada aos grupos por formas de gestão empresarial que criticam o
“esquecimento” taylorista do “fator humano”– a “teoria das relações humanas” surgida,
ainda no contexto americano, nos anos 20. Discussão banal, portanto, a ser solucionado
com alguns rápidos esclarecimentos epistemológicos, teóricos, históricos... Caso,
preocupada, acrescentasse eu a inevitável presença, entre os alunos, nos primeiros
encontros do curso, de uma polêmica relativa à necessidade (ou não) de “vivências” para
“aprender a trabalhar com grupos” – sempre acompanhada, até entre os defensores, de
vagos temores quanto a “exposições pessoais”, “revelações da intimidade”,
“transformações em terapêutica” e “capacidade do coordenador (pressuposto como sendo
o professor) para segurar as coisas” – , nossos apressados estudiosos tampouco
identificariam aí conflitiva digna de reflexões maiores. Ora, diriam eles, “segundo a
melhor tradição lewiniana, aprende-se sobre os grupos...trabalhando com e em grupos! E,
caso não se seja um lewiniano estrito, basta desviar o curso para a teoria (e as técnicas) de
nosso agrado – as ementas das disciplinas são, em geral, bastante flexíveis e, afinal, a
conhecida DGRH costuma ser ministrada ao final do curso de Psicologia, quando os
alunos, já fazendo estágio, compreendem bem certas definições profissionais...”.
Jamais me satisfiz com estas respostas, embora não precisasse de interlocutores
concretos para sugeri-las; sempre as pude formular pinçando-as, aqui e ali, entre os
enunciados que hegemonicamente povoam nosso campo profissional, docente e teórico.
No entanto, aí está efetivamente o problema do professor de DGRH: nos enunciados –

*
Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UERJ. Coordenadora do projeto História do
grupalismo-institucionalismo no Brasil. Doutoranda do programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano da USP.
2

esquemas discursivos – e diagramas – esquemas práticos ou não-discursivos –


paradigmáticos em nosso campo.
Explico-me melhor. Os modelos instituídos de formação de psicólogos têm feito
do grupalismo uma especialidade teórico-técnico-profissional.1 Nesta, o binômio domínio
teórico - domínio técnico caracteriza tanto o campo a investigar como aquilo que, um
tanto ironicamente, poderíamos chamar “boa prática dos iniciados”. O termo domínio
age, aqui, em seu duplo sentido: território demarcado de saber e monopólio de exercício
de uma dominação. De acordo com os avatares teórico-políticos do momento,
multiplicam-se enormemente ou se reduzem drasticamente os espaços sociais e
acadêmicos em que o grupalismo, geralmente sob a embalagem “técnicas grupais”, é
ofertado pelo sempre limitado número de “profissionais do grupo”. Configura-se assim
uma especialidade suficientemente reconhecida, embora variavelmente encomendada,
em diferentes âmbitos de ação (terapêutico, pedagógico, laboral, comunitário, etc.).
Simultaneamente, desenrolam-se batalhas por hegemonia, tanto no interior do próprio
grupalismo – geralmente quando se vê fortalecido, em torno da “boa teoria” ou “boa
técnica” – como, de forma generalizada, na fronteira entre este e as práticas chamadas
“individuais” (ou “duais”, para os mais preocupadas com contagens exatas...). Nestas
últimas contendas, as armas são argumentos que cobrem enormes territórios: estendem-
se, por exemplo, desde alegações idealistas sobre “profundidade dos efeitos” ( em
pensamentos “geológicos” acerca de subjetividades reificadas, que atibuem aos grupos
um mero “rés-do-chão” quanto às transformações possibilitadas ou à minúcia das análises
empreendidas2) até o debate político (que enxerga nos grupos, abstratamente focalizados,
da manipulação fascista à auto-gestão anarquista!); percorrem desde o objetivismo
assistencialista relativo à “quantidade de pessoas atendidas” até o debate epistemológico
que contrapõe ato analítico (individual) e ato político (grupal)3, etc. Dentro de tal quadro
– onde os argumentos jamais apenas denotam ou constatam, pois fazem ver, dizer ou
fazer – , os saberes e práticas grupalistas acabam por ser apreendidos, por estudantes e
profissionais, em duas direções principais: seja como domínio desejado, a que se teria
acesso via compartimentos teórico-técnicos de formação (a disciplina DGRH, os cursos
de extensão sobre grupos de tal ou qual tipo, as formações especializadas neste ou
naquele modelo grupalista, etc.), seja como menoridade teórico-técnico-profissional que
(ativamente) se desconhece e se deve continuar a desconhecer (do mesmo modo), pois se
destinaria aos epistemologicamente menos afortunados, aos politicamente menos
conscientes, aos menos preocupados com “a” Ética (palavra mágica, jamais analisada...)
ou, quem sabe, aos mais ativistas e militantes...

1
- O que fornece um esboço de explicação para o fato de que as “vivências” grupais sejam tão mitificadas. Nas aulas
iniciais de DGRH, os alunos eventualmente falam como se desconhecessem qualquer experiência grupal,
identificando-a à ação especializada – terapêutica, de sensibilização, etc.– , e relegando ao não-experiencial os
demais espaços sócio-vitais. Grupos de amigos, políticos, familiares, profissionais, espaços de sala de aula, festas,
passeatas, etc...são, assim, remetidos a um suposto “não-vivencial” – e mesmo “não-grupal”!
2
- Mesmo entre pretensos defensores incondicionais encontramos a desqualificação dos grupos através do apelo ao
argumento da profundidade (ou seu corolário, o da minúcia). Observe-se, quanto a isto, a seqüência deste texto,
relativo à seleção de pacientes para grupos terapêuticos: “...do meu ponto de vista, a maioria das pessoas pode e deve
ir para um grupo, na medida em que a busca de um atendimento psicanalítico é, em princípio, limitada (...) Se
pudermos ajudá-la a resolver suas dificuldades dentro de um grupo, não vejo a necessidade de submetê-la a uma
investigação mais minuciosa como a da terapia individual.” (PY, 1987:19) (grifos nossos)
3
- Sobre tal distinção, que não aprofundaremos neste artigo, pode-se consultar BAREMBLITT, 1987. A
diferenciação entre ato analítico (individual) e ato político (grupal), proposta por Celio Garcia – em artigo incluído
no livro citado –, é lucidamente contestada ao longo da obra.
3

As considerações até aqui apresentadas, de cunho crítico – tendentes a compor


uma reflexão sobre limites –, construídas ao longo de uma prática profissional e docente,
passaram a orientar meus modos de ver, fazer e dizer como professora de DGRH.
Especificar os limites, contudo, jamais independe das práticas de conservação ou ruptura
dos mesmos4. Arrastada pela segunda destas vias, apostei na historicização, recurso, em
princípio, de pouca originalidade: quase todos(as) os(as) programas, ementas, manuais e
coletâneas sobre o grupalismo incorporam ítens, artigos ou capítulos que se afirmam
históricos. Não obstante, se alguma singularidade marca minha tentativa, é a de
complexificar esta abordagem, analisando criticamente algumas histórias das práticas
grupais disponíveis, a fim de apreender, inclusive nelas, os limites – teoricistas,
tecnicistas-tecnocráticos, profissionalistas, reificadores, idealistas, legitimadores de
dominações instituídas – apontados no parágrafo anterior como típicos quanto à situação
do grupalismo na formação de psicólogos.
Se, como afirma Foucault (1980:75), “ficciona-se uma história partindo de uma
realidade política que a torna verdadeira”, é a experiência de determinado percurso
enquanto grupalista e docente – aquele voltado à ruptura de limites quanto a nosso
duradouro encargo social de “empresários morais”5 – o que me permite a análise crítica
das histórias das práticas grupais que nos são geralmente apresentadas. Porém a
afirmação de Foucault prossegue: “ficciona-se uma política que ainda não existe partindo
de uma verdade histórica”. Este artigo, portanto, pretende contribuir para a atualização de
uma política que ainda não existe: uma formação de psicólogos, no que se refere às
práticas grupais, apta a instaurar uma suspeita refletida quanto à aparente simplicidade
das histórias que nos contam. Pode parecer pouca coisa, em princípio. Mas talvez seja
decisivo se pretendemos abandonar nossos mortíferos especialismos e começar a
construir saberes e práticas muito especiais: aqueles que possam instaurar modos de
saber, fazer e ser....em favor da diferença e da vida.

2-Analisando paisagens intrincadas


Caso nos aproximemos distraidamente das histórias das práticas grupais6
oferecidas pela bibliografia básica dedicada ao tema7, defrontar-nos-emos com uma
4
- FOUCAULT (1984 e 1984a) contrapões duas tradições na filosofia moderna e contemporânea, ambas entendendo
a crítica como uma reflexão sobre limites. A primeira identifica os limites ou condições de possibilidade de nosso
saber e se apresenta, em decorrência do respeito aos mesmos, da renúncia à transgressão, como filosofia analítica da
verdade em geral, tornando-nos autores de uma segura caminhada racional. A segunda, na qual Foucault se inclui (
e em que nos incluímos), radicaliza a dimensão crítica: indaga acerca do lugar ocupado, naquilo que nos é dado como
obrigatório, necessário e universal, pelo arbitrário, contingente e singular (portanto, historicamente construído). Faz-
nos, deste modo, elementos de um presente – historicamente instituído – e atores do mesmo – virtualmente
instituintes da transgressão de tais constrangimentos, embora sem garantias transcendentais (originárias ou
teleológicas) quanto à apreensão da verdade. Esta última tradição é denominada “ontologia histórica do presente” ou
“ontologia histórica de nós mesmos”.
5
- A expressão se deve ao sociólogo Howard BECKER (1966). Existem outras também deliciosamente terríveis:
“gurdiães da ordem” (COIMBRA, 1995); “moderno poder pastoral” (FOUCAULT, 1983); “fabricantes de interiores”
(BAPTISTA, 1987 ); “psico-tiras” ( movimento da contracultura), etc. Não as citamos por retórica, mas por
reconhecer a radicalidade das análises que a elas conduzem, as quais, lamentavelmente, parecem ainda tímidas em
seus efeitos transformadores sobre a formação (e ação) dos psi. Talvez porque se defrontem com estratégias de
conservação, senão tão rigorosas, certamente muito mais poderosas no cotidiano.
6
- O leitor perceberá que parte da bibliografia a ser analisada não se auto-define como histórica, característica que
poderia invalidar algumas de nossas análises. Todavia, a alternativa ao oferecimento de um histórico costuma ser a
apresentação de um panorama do grupalismo, mais descritivo ou mais analítico. Na medida em que sempre excedem
o aqui-e-agora imediato, incorporando razoáveis espessuras temporais, julgamos justificado atribuir-lhes dimensões
historicizadoras subjacentes e incluí-los como objetos de reflexão.
4

paisagem intrincada: imensas listagens de contribuições, com diferentes seleções de


autores em cada compilação; múltiplos âmbitos de intervenção considerados relevantes;
inumeráveis teorias apontadas como válidas; seqüências híbridas de criadores e
reprodutores; geografias e geopolíticas descuidadamente mescladas, etc. No entanto, caso
nos dediquemos a deslindar esta confusão aparentemente inevitável, saltam aos olhos
dois aspectos na maioria dos trabalhos. Chamá-los-emos, respectivamente, especialismo
acrítico e teoricismo hipertrofiado.
Caracterizamos como especialismo acrítico a circunstância de que quase todos os
históricos sejam construções marcadas por certo tipo de recorrência temporal, presente
em sua elaboração, embora nunca explicitada: parte-se da prática dominante atual do
“grupalista”, “coordenador de grupo” ou “psicossociólogo” – naturalizado como se fora
alguma espécie de “destino natural” da historicização em pauta – e retorna-se no tempo
em busca de suas origens ( e descendências seqüenciais), tentando, mediante tal
procedimento, preencher todas as lacunas, encaixar todos os elos de ligação, em suma,
fechar um caminho histórico que se veria, deste modo, compreendido ( no duplo sentido
de “entendido” e “limitado”).
A fim de tornar mais palpável este raciocínio, observemos o esquema a seguir.

te m p o
(1 )
(2 )

D es cendências dos
a n te c e d e n te s TE L OS
OR IGE M i d e n ti fi c a d o s ou
a p a r ti r d o
FIN AL ID AD E
p r e s e n te n a tu r a l i z a d o
(3 )

P r á ti c a g r u p a l e s p e c i a l i z a d a
P r á ti c a s g r u p a i s
d o p a s s a d o , i n s ti tu c i o n a l i z a d a
es pecializ adas
e m a l g u m â m b i to p r o fi s s i o n a l
d o p r e s e n te
(m e d i c i n a , m e d i c i n a m e n ta l , p s i c o l o g i a ,
(p s i c o te r a p e u ta s ,
p e d a g o g i a , g e s tã o d e e m p r e s a s , e tc .)
c o o r d e n a d o r e s ,e tc .)

Os trabalhos que dizemos caracterizados pelo especialismo acrítico – porque não


explicitado ou analisado enquanto pressuposto – são espécies de hagiografias8: ali, as
práticas grupais possuem origens a-históricas ou assépticas (porque profissionais e
científicas) e evoluem (noção biológica!) ou progridem (noção moral!), naturalmente, em
direção a nosso radioso presente (igualmente a-histórico, asséptico e abordado como
destino inevitável). Com tal procedimento excluem-se, também “naturalmente”, todos os
7
- Podemos citar, a princípio, os seguintes trabalhos: SAIDÓN,O. et allii - Práticas grupais; ANZIEU,D. e
MARTIN,J.-Y. - La dinámica de los grupos pequeños; AMADO,G. e GUITTET,A. - A dinâmica da comunicação
nos grupos; PY,L.A. et allii - Grupo sobre grupo; LUCHINS,A.S. - Psicoterapia de grupo; OSÓRIO,L.C.(org). -
Grupoterapia hoje. Estão desigualmente marcados pelos aspectos a serem destacados no texto; eventuais diferenças
serão assinaladas.
8
- Hagiografia: biografia de santos; escritos acerca dos santos.
5

saberes e práticas grupais não-especificistas, ou seja, tanto aqueles produzidos no seio de


movimentos histórico-sociais contestatários como os formulados em campos de ação não
facilmente incorporáveis às práticas psi instituídas – certas filosofias, pensamentos
políticos, artísticos, etc.
É simples extrair da bibliografia disponível algumas frases características do
aspecto até aqui destacado. Não as reproduziremos literalmente, a fim de evitar sugerir a
presença exagerada da idiossincrasia autoral. Preferimos exemplificá-las à maneira de
esquemas gerais ou enunciados, deixando a cargo do leitor uma eventual pesquisa de
variações proposicionais nas obras sugeridas. Nelas se diria, por exemplo: “As práticas
psicossociológicas têm origem nos trabalhos de J.H. Pratt em uma enfermaria de
pacientes tuberculosos em Boston...”; “prosseguem com os pioneiros até que J.Moreno,
nos anos 30, cria a expressão psicoterapia de grupo...”; “um pouco mais tarde, Kurt
Lewin, gestaltista alemão emigrado para os Estados Unidos, começa a interessar-se pelo
comportamento dos grupos humanos...”; “aproximadamente na mesma época,
psicanalistas ingleses e americanos estendem as concepções freudianas ao atendimento
grupal de pacientes...”; “na França, por sua vez, o interesse pelas práticas grupais data do
pós-guerra...”; “no Brasil, foi grande a influência dos argentinos na configuração de uma
psicoterapia psicanalítica de grupo...”; etc.etc....
A todas estas afirmações, dirigiríamos a sábia admoestação de Canguilhem ( apud
ERIBON, 1996: 25 ), voltada à crítica epistemológico-política da noção de precursor:
alguém que se sabe, depois, que veio antes. Poderíamos dirigir-lhes, igualmente, algumas
perguntas provocativas: que condições institucionais determinaram que um obscuro
tisiologista fosse guindado à categoria de precursor absoluto da psicossociologia?; o que
levou Moreno aos Estados Unidos e quais foram suas atividades anteriores, na terra
natal?; teria sua formação médica européia algo a acrescentar a seu teatro, a princípio
drama “espontâneo” para todos os interessados, depois drama “terapêutico” para poucos e
sob o domínio de muito poucos?; por que Lewin, antes um experimentalista tradicional
como seus companheiros da Escola de Berlim, depois de emigrado para os Estados
Unidos passa a dedicar-se a temas como “hábitos alimentares das donas de casa”,
“liderança”, “convivência inter-racial”, “resistência à mudança”, etc., saindo do espaço
clássico do laboratório universitário? ; por que motivo as concepções psicanalíticas
tardaram tanto a ser aplicadas aos grupos e em que contextos político-institucionais isto
ocorreu? ; como se constituíram “os dois Freuds” – o da análise individual ( precursor da
clínica privada) e o da “obra social”9 ( precursor da análise coletiva, dos grupos?...) ?;
o que sucede no pós-guerra francês a ponto de despertar o interesse pelas práticas
grupais? ; terá sido apenas a proximidade geográfica o determinante da influência dos
argentinos sobre o panorama psicanalítico brasileiro?
A maior parte da bibliografia não parece ter a menor preocupação em formulá-las,
que dirá em respondê-las! Isso nos conduz ao segundo aspecto a analisar: à circunstância
de que embora as práticas grupais emerjam no seio de movimentos sociais os mais
diversificados, compondo o quadro de forças políticas de uma época; apesar de estarem
sempre minimamente associadas a instâncias institucionais como a medicina, a medicina

9
- Certa vez ofereci uma disciplina eletiva que intitulei “Obra social de Freud”, a fim de debater textos como Totem
e tabu, Psicologia das massas e análise do ego, Mal estar na civilização, O futuro de uma ilusão, Moisés e o
monoteísmo, etc. Alguns companheiros temeram – não sei se de forma justificada – que, em função do forte vínculo
construído entre o nome de Freud e os assuntos relativos ao “individual”, “clínico” e “privado”, os virtuais
candidatos a freqüentá-la pudessem pensar tratar-se de uma discussão acerca de alguma desconhecida obra
beneficente do mestre vienense...
6

mental, a pedagogia, a gestão da produção material, etc... históricos e panoramas dos


mais difundidos costumam omitir tais questões ( ou reduzi-las a um mínimo), o que os
conduz a um teoricismo hipertrofiado , isto é, a perspectivas de análise quase que
exclusivamente epistemológicas10. Para usar uma expressão cara à Análise Institucional
Socioanalítica11, costumam efetivar um corte ou separação entre a gênese teórica dos
conceitos do grupalismo e sua gênese social, desconsiderando as condições histórico-
institucionais de existência de cada tipo de prática grupal ( e, obviamente, de seus
“especialistas reconhecidos”)12.
Em uma exemplificação mais precisa do que as perguntas (ausentes!) antes
hipotetizadas, exploremos algumas nuances desta característica. Bem se sabe da
importância do trabalho do psicanalista inglês W.Bion para o desenvolvimento de uma
das teorizações mais prestigiosas acerca dos grupos. No entanto, por mais que
praticamente toda a bibliografia disponível exponha com certo detalhe a Teoria dos
Supostos Básicos13 ( Dependência, Ataque e fuga e Acasalamento), raríssimos são os
textos preocupados em focalizar o contexto institucional de sua elaboração: recuperação
de soldados durante a Segunda Guerra Mundial e de ex-combatentes no imediato pós-
guerra.
Seria, pois, o caso de observar, como faz Fernández (1992: 109), em uma valiosa
exceção ao instituído, que “dependência, ataque-fuga, messianismo14 são sem dúvida
componentes habituais, tanto na prática subjetiva militar como em suas categorias
emblemáticas e, portanto, (...) muito disponíveis para organizar as figurações próprias
dos grupos coordenados por Bion”. Pondo em análise as condições sócio-históricas de
existência dos grupos bionianos, a autora abre caminho ao virtual: “...o pouco tempo que
Bion trabalhou com grupos civis provavelmente o privou da possibilidade de ratificar ou
retificar a presença de figurações deste tipo nas significações imaginárias de coletivos
menos particularizados do que os que desdobrou no âmbito militar”(ibidem, ibidem).
Caso acrescentemos a censura de que Bion foi alvo, por parte da Associação Psicanalítica
Britânica, em função de seu trabalho com grupos, levando-o a abandonar em poucos
meses este tipo de prática, começaremos, talvez, a entender os efeitos performativos15 das
10
- Se preferíssemos adotar a terminologia de Canguilhem e Foucault, diríamos, com maior precisão, que a
perspectiva destes trabalhos, quanto à história dos saberes, é quase que exclusivamente internalista, desconsiderando
as relações entre produção de conhecimentos e práticas sociais. A este respeito, pode-se consultar CANGUILHEM (
1972 ) e FOUCAULT (1996 )
11
- Movimento iniciado na França, nos anos 60, originalmente nos campos pedagógico, sociológico e
psicossociológico, mas logo estendido à análise de todas as instituições em jogo nos processos sociais, incluindo-se
aí a epistemologia, os modos de comunicação científica, a escritura científico-acadêmica, etc. Da primeira geração da
Análise Institucional Socioanalítica fazem parte G.Lapassade e R.Lourau, cujo artigo A educação libertária consta
deste volume.
12
- Bem se vê por esta observação que as duas características analisadas em separado – especialismo acrítico e
teoricismo hipertrofiado – mantêm forte interdependência. Cada uma delas chega a funcionar enquanto condição
para a existência da outra. Sua combinação, praticamente inevitável, redunda em tecnicismo ( ou tecnocratismo!)
triunfante...
13
- Supostos básicos: estados afetivos inconscientes e arcaicos que emergem, por combinação instantânea e
involuntária, quando indivíduos são reunidos em um grupo.
14
- Em síntese, são os seguintes os argumentos (inconscientes) subjacentes à ação dos supostos básicos.
Dependência: o grupo está reunido para que alguém, de quem se depende de forma absoluta, forneça a satisfação de
necessidades e desejos. Ataque e fuga: há um inimigo contra o qual as únicas defesas posíveis são a destruição
(ataque) ou a evitação (fuga). Acasalamento ou messianismo: um fato futuro, ou um ser ainda não nascido, resolverá
os problemas grupais, insolúveis no presente.
15
- Trata-se aqui do estatuto de verdade de qualquer proposição assertiva, mesmo que tão simples quanto "o céu é
azul". Se A dirige a B tal afirmação, a questão a ser colocada não é simplesmente a de perguntar se a proposição é
7

abordagens que desconsideram (ativamente) o vínculo entre gênese teórica e gênese


social dos conceitos....
Exemplos de tais efeitos povoam corações e mentes de estudantes e profissionais
psi: com Pontalis (1972) aprendemos, mediante uma crítica epistemológica rigorosa, que
os recursos teóricos acerca dos grupos são rudimentares, em que pese a multiplicação
dos trabalhos com coletivos de diversos tipos a partir do imediato pós-guerra francês;
com lacanianos de variadas estirpes, que o mestre Lacan teria sempre desprezado os
grupos; com Costa (1985) que, ao contrário do indivíduo, “o grupo” não existe, apesar
de praticamente todas as formulações disponíveis – destacando-se, como objeto de
reprovação, a teoria dos grupos operativos (Pichon Rivière) e a do aparelho psíquico
grupal (D. Anzieu e R. Kaës) – o produzirem, equivocadamente, qual espécie de
identidade substancializada subjacente; com o ensino em migalhas acerca das práticas
grupais, que existem variadas técnicas – grupos de sensibilização, grupos operativos,
psicodrama grupal, psicodrama psicanalítico grupal, sociodrama, psicoterapia de grupo
de base psicanalítica16 , análise institucional, etc... – e que, conquanto as teorias
destinadas a fundamentá-las não sejam lá essas coisas, mantêm-se úteis para “atender
muita gente”, “baratear o custo”, “reunir pessoas de baixa renda a seus pares”, etc...
Na enumeração acima, misturamos intencionalmente rigorosos trabalhos de
análise a considerações-clichê do universo psi. Com tal procedimento não aspiramos a
apagar diferenças – uma leitura atenta dos textos sugeridos pode evidenciá-las –, mas a
tornar visível um traço específico: aquilo que a hipertrofia do teórico-epistemológico tem
por efeito lançar na sombra.
No caso de Pontalis, por exemplo, obscurece-se o fato de que o grupalismo
francês no pós-guerra não se deveu a carências simbólico-conceituais dos praticantes,
mas a dois movimentos17 que, apesar de politicamente bem diferenciáveis em princípio,
mesclaram-se de modo singular: por um lado, como parte do Plano Marshall (cooperação
americana para a reorganização econômica da Europa), o envio de missões de
intelectuais aos EUA a fim de que se familiarizassem com os movimentos da moderna
gestão empresarial e da formação permanente (“dinâmica de grupo” e “relações
humanas”); por outro, as ações renovadoras introduzidas, ainda durante o segundo
conflito mundial, por F. Tosquelles e seu grupo de psiquiatras-resistentes no hospital de
Saint-Alban – experiência que virá a ser conhecida como Psicoterapia Institucional –,
seguidas, nos anos 60, de renovações análogas no plano pedagógico, mediante a ação
conjunta de educadores progressistas e psicossociólogos críticos18.
No que se refere às objeções lacanianas às formas grupais de intervenção,
declaradamente apoiadas no “discurso do mestre”, relegam-se ao desconhecimento os
elogios dirigidos por Lacan, no imediato pós-guerra, às práticas desenvolvidas pelos

verdadeira ou falsa. O que A faz não consiste meramente em informar a B sobre o estado do céu; ele faz algo mais do
que simplesmente falar, informar ou constatar. Acompanhando a leitura que Foucault faz de AUSTIN (1990),
LARRAURI (1994) conclui que toda proposição, inclusive as aparentemente mais constatativas, possui efeitos
performativos, ou melhor, faz ver, fazer, dizer e ser de certo modo, pondo em cena um jogo de verdade.
16
- “Base psicanalítica” é o eufemismo destinado a separar uma presumida “verdadeira psicanálise” (individual) de
suas “contrafações” (grupais). A este respeito, consultar as análises críticas empreendidas por COIMBRA (1995) e
RANGEL (1996).
17
- Para uma historicização deste processo, ver RODRIGUES (1997 e 1998).
18
- Considerações acerca deste movimento pedagógico-psicossociológico, de caráter autogestionário, no qual se
destacam R. Fonvielle e G. Lapassade, podem ser encontradas no artigo de R. Lourau incluído neste volume.
8

psiquiatras ingleses durante a vigência do conflito19. Por mais que se venha a tornar o
crítico mais radical das idéias adaptativas da psicanálise à moda anglo-saxã, Lacan não
pode ignorar, naquele momento, as diferenças entre as psiquiatrias francesa e britânica.
Enquanto em seu próprio país, excetuando-se as ações de Saint-Alban, os pacientes, em
sua maioria abandonados à própria sorte, morriam aos milhares nos hospitais, na
Inglaterra, considerados úteis e organizados em sub-grupos autônomos coordenados por
terapeutas, não só sobreviviam como se integravam ao cotidiano do país. Neste sentido,
por mais que Lacan acentue a necessidade de pôr em evidência as demandas sociais a que
o campo psicanalítico é então instado a responder – recuperação de combatentes e ex-
combatentes –, não esconde sua admiração pelos psicanalistas (de grupo) ingleses...20
Já o livro de Costa, em parte inspirado em Pontalis, esquece de dirigir às suas
próprias naturalizações as armas desnaturalizadoras apontadas na direção de diversas
teorizações grupais. Concordamos, em princípio, com seu argumento: não há grupo em
si, antecedente à prática que o institui; só existem grupos, e estes não são entidades, mas
modos sócio-históricos de funcionamento. Contudo, se para recusar o grupo operativo ou
o aparelho psíquico grupal for necessário, em troca, reificar o indivíduo – cada um dos
integrantes do grupo considerados, sem crítica, como previamente existentes –, parece-
nos que o a-historicismo expulso pela porta da frente... reingressa no texto pelos
fundos!21 Em que pesem suas diferenças filosóficas e políticas, os escritos de M.
Foucault, F. Guattari, J. Donzelot, P. Ariès, R. Castel, G. Deleuze, J-F. Lyotard, L.
Dumont, G. Simmel, R. Sennett e, entre nós, de S. Rolnik, R. Machado, J. Birman, S.
Figueira, J. Russo, L.F. Duarte, B. Bezerra Jr., R.B. Barros, A.P.J. Melo, além daqueles
dos companheiros que integram este volume – sem falar em outros textos do próprio J.F.
Costa! – há muito nos têm forçado a pensar que, contra todas as “evidências”
permanentemente produzidas, nem o indivíduo nem o sujeito (psicanalítico) são
entidades naturais. Neste sentido consideramos, como Baremblitt (1994:16), que “é
preciso fazer constar que não é a mesma coisa propiciar a invenção de dispositivos
grupais que associar sujeitos edipianos para que se consolidem como tais... em grupo”.
Finalmente, ainda que conscientes de que o tema percorre todo este artigo,
atentemos uma vez mais para o ensino em migalhas, lamentavelmente hegemônico, no
que tange à grupalidade, no campo da formação psi. Se ele nos torna, no melhor dos
casos, míopes a qualquer contextualização, que dizer de seu efeito sobre nossa virtual
acuidade para fazer, do contexto, texto! Se os grupos de sensibilização lewinianos
emergem durante a guerra sob encomenda do governo americano; se a inseparabilidade
entre pesquisa e intervenção grupal está, para este judeu emigrado por força da ascensão
do nazismo na Alemanha, ligado ao sonho de mudar-se para o Estado de Israel e lá
modificar a tradicional educação judaica; se as práticas teatrais de Moreno começam, nos
anos 20, nas praças e ruas de Viena, com crianças, e também com prostitutas; se este cria
a sociometria nos EUA em resposta a uma encomenda governamental de intervenção em
19
- Ver, a este respeito, LACAN (1947) e FERNÁNDEZ (1992).
20
- Além de Bion, dentre os cerca de 250 psiquiatras ingleses envolvidos neste trabalho podem-se destacar os
nomes de Rickman e Foulkes.
21
- Costa desqualifica, por exemplo, as interpretações que se dirigem ao grupo (“o grupo isto”, “o grupo aquilo”...)
porque, a seu ver, consistem em afirmações irrefutáveis, às quais ninguém pode opor objeções (já que seu
destinatário – o grupo – não existe!). Aqui, o teoricismo levado às últimas conseqüências parece comprometer,
inclusive, qualquer mínimo bom-senso. Acreditará o autor que os grupos concretos obedeçam a tal ponto às
teorizações, certamente essencialistas, dos grupalistas? Acreditará ele, paralelamente, que quando um terapeuta se
dirige a seu paciente “individual” não esteja operando qualquer essencialização? Ou que este sempre abertamente se
defenda das violências institucionais que podem ser produzidas no confronto “terapêutico”?
9

um instituto para jovens ditos delinqüentes; se os grupos operativos de Pichon Rivière


começam em uma ação no Hospício de las Mercedes, o mais antigo manicômio de
Buenos Aires, sendo então coordenados, inclusive, pelo pessoal não-técnico e pelos
pacientes; se seu ensino e implementação, na Argentina, estão vinculados, principalmente
a partir dos anos 60, aos setores de esquerda críticos dos modelos asilares-manicomiais;
se a incorporação dos grupos operativos, no Brasil, seguiu (e prossegue seguindo)
caminhos bastante diferenciados, estendendo-se de ações minimamente progressistas a
intervenções pouco disfarçadamente disciplinarizadoras; se a Análise Institucional na
França jamais foi “técnica de grupo”, pois teve início, exatamente, ao pôr em cena a
dimensão institucional até então não analisada da psicossociologia, etc... etc... nada disso
parece ser tão importante, afinal, para a nossa formação enquanto grupalistas (menos
ainda, suponho, enquanto psicólogos!).
Por consideramos, ao contrário, que tudo isto, ou predominantemente isto, cobra a
maior importância, é que a seguir nos dedicaremos a analisar algumas agradáveis
exceções, em ruptura, ao menos parcial, com as características de especialismo acrítico e
teoricismo triunfante que até aqui vimos examinando.

3- Algumas agradáveis exceções


Caso o leitor se encontre, neste momento, decepcionado e prestes a concluir – não
inteiramente destituído de razão – que melhor seria deixar inteiramente de lado qualquer
bibliografia sobre grupos, esta seção aspira a fazê-lo relativizar tal movimento.
Conquanto reconheçamos que, apesar da imensa quantidade, pouca coisa ali existe de
apreciável qualidade22, agradáveis exceções à paisagem dominante – algumas esboçadas
na seção anterior – nos permitem conspirar23 com vistas a regimes de verdade distintos.
Rupturas com o especialismo acrítico24 são divisadas em uma série de trabalhos,
dentre os quais destacamos, à guisa de exemplificação para direções originais a
empreender na análise do grupalismo, Baremblitt (1982), Bauleo (1977) e Barros (1994).
No primeiro se evidencia, entre inúmeros outros traços elogiáveis, o cuidado na
explicitação dos pressupostos institucionais do que é na atualidade denominado
“dinâmica de grupo”: “Suporemos que se trata acentuadamente de uma tendência própria
às formações econômico-sociais capitalistas, tanto do modo industrial nascente quanto do
monopolista multinacional (...); seus agentes e usuários pertencem predominantemente às
camadas médias e altas da pequeno-burguesia urbana dos países ocidentais (...).
Considerando-se o campo da vida social onde se origina (...), dispõe de três áreas
principais de geração e ação (...): a medicina (...), a pedagogia (...) e a sociologia
(...)”(BAREMBLITT, 1982: 12). É certamente tal cuidado aquilo que faculta ao
panorama apresentado no artigo – condicionado, em sua elaboração, pelos pressupostos
especificistas-profissionalistas detalhadamente exibidos – a abertura de caminhos para
algumas visibilidades outras – a presença histórica de movimentos libertários e

22
- Por qualidade entendemos, evidentemente, alguma ruptura com o especialismo acrítico e o teoricismo
hipertrofiado. E para que não nos julguem estar assumindo a posição de “juízes acima de qualquer suspeita”,
reconhecemos alguma presença destas tendências em nossos trabalhos anteriores ( como SAIDÓN et allii, 1983)
23
- Para Guattari ( 1981: 59) , “conspirar” significa “respirar juntos” , ou melhor, criar um pouco de possível em
meio a uma atmosfera sufocante.
24
- Voltamos a frisar que não sendo independentes as características analisadas – a separação tem objetivos
pedagógicos e polêmicos –, é raríssimo que a exceção a uma delas não seja acompanhada de exceção à outra.
10

autogestionários, lutas pelos direitos dos presos, antipsiquiatria, contracultura,


movimentos de minorias, batalhas democratizantes na América Latina, etc. – ,
inevitavelmente obscurecidas em outros textos (os caracterizados pela naturalização-
glorificação, implícita e neutralizada, do especialismo).
Acompanhando esta linha de raciocínio – a de não mais considerar óbvias
presenças e ausências – , retomemos um antigo artigo, no qual se estabelecem nexos
entre Psicologia Social e grupos. Ali, Bauleo questiona a exclusão, quanto ao estudo de
tais temas, das contribuições de autores como Marx, Reich, Fidel Castro, Gramsci, Che
Guevara, Vera Schmidt, Trotsky, Sartre, Lenin, Rosa Luxemburgo, Lukács, Adorno,
Marcuse, Fanon, etc. Independentemente da seleção efetuada, com a qual se pode ou não
concordar inteiramente – principalmente nestes tempos, os nossos, tão pós-marxistas ( ou
anti-marxistas!) – , os argumentos de Bauleo fazem emergir novas figurações para a
verdade: “Através de uma recolocação histórica a partir da demanda e da oferta25,
observamos claramente as vicissitudes sofridas pela Psicologia Social e nos aparecem
duas linhas. Podemos hoje afirmar que há uma Psicologia Social oficial e
institucionalizada e outra que sofreu todos os destroçamentos impostos pela ideologia
através de sua desaparição, sua depredação, sua desvalorização ou simplesmente pela
acusação de ‘não-científica’.”. (BAULEO, 1977: 31) Apoiada neste trabalho, Fernández
(1992: 49) enfatiza o espaço ético-político ( em necessário acréscimo ao teórico-técnico)
que se descortina quando são incorporadas, à formação dos grupalistas, as reflexões de
que os grupos foram objeto a partir do plano político ( da “Psicologia Social não-oficial”,
no dizer de Bauleo): debates sobre a capacidade autogestiva, a eficácia comparada de
estímulos morais e materiais, os valores diferenciais da organização e do espontaneísmo,
o papel liberador ou subjugador das vanguardas e, de forma generalizada, acerca da
contraposição entre gestão/produção coletiva e manipulação/sugestão de coletivos.
Finalmente, vale ressaltar a relação estabelecida por Barros entre modo-grupo e
escritura. Afirma a autora que embora os grupos possam ser formas de resistência a
outros modos – individualizantes – , os quais recusam a processualidade e a
transformação, o mero ato de sobre eles escrever ou de os utilizar tecnicamente nada
garante no que toca à invenção de vias singulares de existência: o ato de tomá-los como
objetos-já-dados aos quais algo acontece, ou melhor, como entidades a-históricas
originárias que, elas mesmas, não acontecem26 – porque já estão postas desde o início –
redunda em idêntica recusa do devir. Sendo assim, ao escrever sobre os grupos, Barros
conclui pela impossibilidade de recorrer a uma entrada única: fazê-lo seria tomá-los
como objetos já constituídos sobre os quais meramente se aplicariam teorias. A este
respeito, comenta: “Em minhas andanças pelos grupos (...) havia um excesso que não se
encaixava nas postulações existentes. Também na escrita há muito mais do que a
comunicação de idéias, hipóteses e conclusões. (...) A escrita tem também várias entradas
(...) passa pelas forças, sempre em contato com outras forças (...) é pensar pela diferença,
(...) sempre múltipla.”(BARROS, 1994: 6) (grifos nossos)

25
- Utilizando-se dos conceitos de demanda e oferta, Bauleo politiza o tema da formação de psicólogos sociais ( e
grupalistas) , relacionando-o ao espaço da leitura: à demanda de formação responde-se dominantemente com uma
oferta bibliográfica circunscrita que a institucionaliza, excluindo outras virtualidades e transformando a demanda em
encomenda oficial e do oficial.
26
- Recordemos o esquema com o qual ilustramos o especialismo acrítico de alguns historiadores das práticas
grupais: ali, se chamarmos “x” a grupalidade colocada como origem, poderemos dizer que “algo acontece a x, mas o
próprio x não acontece”. Logo, x está colocado fora da história.
11

Neste sentido, tomando modo-grupo e escritura enquanto marcados pelo excesso,


a diferença e o múltiplo, constrói-se um texto desejavelmente descontínuo, com
heterogeneidade de entradas. Na primeira delas se elabora uma genealogia, de inspiração
nietzscheano-foucaultiana, relativa à proveniência/emergência de três modos de
subjetivação: modo-indivíduo ( séculos XVII-XVIII) , modo-sociedade (séculos XVIII-
XIX) e modo-grupo (séculos XIX-XX) – este último com a tarefa de apaziguar as
diferenças entre os anteriores e, mais ainda, de “delimitar territórios, incluindo o seu
próprio (ibidem: 10). Neste processo, o objeto grupo ganha as características de seus
antecessores – as formas do um e do todo (o “indivíduo” lhe garante a idéia de indiviso,
particular; a “sociedade” a de todo, universal27). Esta é uma das principais teses
apresentadas: a de que quando tal processo é naturalizado – tomando a forma “se assim é,
assim deve ser...”–, o objeto grupo passa a obedecer à mesma lógica totalizadora e
identitária dos antecedentes, permanecendo efeito do modo de produção de subjetividade
individualizante28.
O estudo de Barros realiza uma crítica em ato das histórias das práticas grupais
marcadas pelo especialismo acrítico, isto é, pelo desconhecimento (ativo) das condições
de existência de seu objeto – o grupo um-todo. Trazendo-as à cena, cria-se a
possibilidade de análise dos diversos saberes, técnicas e movimentos grupalistas
enquanto instituições, ou melhor, fixações, em formas, das forças instituintes29. Isto se
faz através de outra das entradas do texto, em que se especificam “linhas” e “diagramas”:
vão surgindo as mais variadas formas de teorização e intervenção – Lewin, Mayo,
Moreno, Bion, Anzieu, Kaës, Pichon Rivière, Análise Institucional, etc. –, apresentadas
sem pretensões de neutralidade ou assepsia, pois a dimensão ético-estético-política dos
modos de subjetivação por elas instaurados é critério imanente e onipresente de
apreciação.
Mesmo através de apresentações sintéticas, os escritos expostos nesta seção fazem
suspeitar que o escape às flechas envenenadas do especialismo acrítico quanto aos
históricos do grupalismo demanda um trabalho30 simultâneo...de ruptura com o
especialismo psi ( igualmente acrítico, decerto!). As presenças, nas exceções analisadas,
das abordagens históricas descontinuístas31 e de determinadas filosofias (enfáticas
quanto às positividades, a diferença, o múltiplo, as gêneses heteróclitas, os devires); em
síntese, de saberes transdisciplinares/transversalizantes32 , sugere que se nosso leitor não
deve, como se via tentado a princípio, abandonar toda a literatura psicossociológica,
tampouco deve, pois tal atitude teria efeitos provavelmente mais desastrosos, restringir-se
27
- Pode-se conhecer, em síntese, a tese que ora apresentamos, consultando BARROS, 1994a.
28
- Assim como COSTA (op.cit.), Barros insiste em frisar que não podemos apreender os grupos como antecedentes
às práticas que os constituem. Diferentemente daquele, no entanto, aplica o mesmo raciocínio a indivíduo e
sociedade, evitando naturalizações impensadas.
29
- Utilizamos aqui uma síntese da definição deleuziana de instituições: “...não são fontes ou essências, e não têm
essência ou interioridade. São práticas, mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as relações
e se contentam em fixá-las sob uma função reprodutora e não produtora”. (DELEUZE, 1988: 83)
30
- Por trabalho entendemos “aquilo que é suscetível de introduzir uma diferença significativa no campo do saber,
ao custo de um certo esforço para o autor e o leitor, e com a eventual recompensa de um certo prazer, quer dizer, de
um acesso a uma outra imagem da verdade “. (FOUCAULT, WAHL e VEYNE – apresentação da coleção Des
Travaux, Editora Seuil)
31
- Aquelas que buscam, no tempo, os cortes, as invenções, os começos, os acontecimentos que promovem inversões
de forças (presentes em alguns marxistas, na Nova História, na obra de Michel Foucault).
32
- Saberes que não se contentam com a obviedade dos campos instituídos e, na criação de singularidades quanto ao
conhecer/agir, efetuam simultaneamente a análise histórico-crítica das compartimentalizações existentes.
12

a ela. Textos de psis como Baremblitt, Bauleo e Barros convidam-nos a ler Marx, os
anarquistas e libertários, antropólogos e historiadores diversos ( nossos ou de outras
plagas), Nietzsche, Deleuze, os analistas institucionais, Guattari, Castoriadis e pensadores
políticos, na qualidade de ferramentas fundamentais para nossa formação (ou trans-
formação), caso estejamos empenhados em ser algo distinto de meros consumidores em
um mercado de bens (“grupais”, que sejam...) de salvação. Talvez Ewald (1991: 90) o
tenha formulado com a precisão que desejaríamos: “Você quer fazer psicologia? (...)
aprenda história (...), espolie a biblioteca do arqueólogo, do etnólogo, do economista,
empanturre-se de literatura e de arte, estão aí as disciplinas do desejo...”. Àqueles que
contestem alegando supostas “dificuldades” implicadas nestas leituras – campos alheios à
especialidade, conceitos desconhecidos, linguagem incomum, enfoques surpreendentes
ou perturbadores – sugerimos uma reflexão já utilizada neste artigo: estranhar presenças e
ausências ( de experiências do “fácil” ou “difícil”).
Para concluir esta seção, exploraremos exceções ao instituído quanto ao
teoricismo hipertrofiado. Para tanto, vale a pena citar Castel (1987) e Coimbra (1995).
No primeiro destes trabalhos, o sociólogo francês volta-se para as “novas
terapias”, agrupadas sob o rótulo “potencial humano”33 – bio-energia, gestalt-terapia,
análise transacional, grito primal, etc. –, invariavelmente grupalistas, com enorme
penetração no panorama francês dos anos 70 (e no nosso, na década seguinte34).
Escapando à tentação teoricista de Pontalis que, a partir da psicanálise, analisa práticas
análogas e as recusa em função de uma “menoridade epistemológica” – curandeirismo,
psicologismo, microssociologismo, familiarismo, artificialismo, biologismo,
funcionalismo, empirismo ingênuo, adaptacionismo, organicismo, etc. –, Castel as
apreende por um viés em que o contexto se faz texto, permitindo-lhe, inclusive, alcunhá-
las de “pós-psicanalíticas”: “... essas abordagens retomam, exploram e instrumentalizam
prosaicamente um aspecto fundamental da descoberta freudiana: a possibilidade de
trabalhar o próprio conceito de normalidade” (CASTEL, 1987: 143).
A pós-psicanálise não é, por conseguinte, nem o fim da psicanálise nem sua
“recuperação” por parte de setores epistemologicamente pouco nobres, mas “o fim do
controle pela psicanálise do processo de difusão da cultura psicológica na sociedade”
(ibidem: 133). A expressão “terapia para os normais” evidencia a inserção deste
movimento como uma das forças de constituição de uma sociedade que trabalha seu
capital humano: “[o indivíduo] pode ser o objeto-pessoa de um trabalho para desenvolver
seu potencial e intensificar suas capacidades relacionais (...). As “novas terapias” fazem
explodir – como a psicanálise, mas de uma maneira muito mais extensiva – de uma só
vez o conceito de patologia e o de saúde, mas conservando a exigência de intervenção por
intermédio de técnicas especializadas” (ibidem: 145). Logo, se para Pontalis, instalado
em uma espécie de “extraterritorialidade” epistemológica, o exame de DNA das práticas
grupais – simulacros de terapêuticas – não as confirma como proles psicanalíticas,
para Castel, pouco afetado de hipertrofia teoricista, elas são bastardas, porém sócio-
historicamente filhas. Caso nos aliemos à sua análise, nossa tarefa não será a de legitimar,
via corte epistemológico, a eventual boa teoria para qualquer terapêutica, mas a de nos

33
- Para uma exploração do Movimento do Potencial Humano no contexto norte-americano, ver CASTEL, CASTEL
e LOVELL (1980). Para uma exposição detalhada das diversas vertentes nele incluídas, ver SCHÜTZENBERGER e
SAURET (1986 ).
34
- O boom das terapias corporais – parte deste “complexo alternativo” – no Brasil é analisado por RUSSO (1991).
13

recusar, quem sabe, a viver em um “Estado Terapêutico” como gestores (grupais?) de


riscos.
Passando do texto de Castel ao de Coimbra, deslocamo-nos da França a nosso
país, ainda nos anos 70. As práticas psi do Brasil do “milagre”, sejam psicanalíticas,
psicodramáticas, gestálticas ou reichianas – campos principais analisados pela autora – ,
guardam tantas semelhanças, enquanto “guardiãs da ordem”, que o plano teórico preserva
autonomia muitíssimo relativa. Práticas entre outras práticas, as ações psi ajudam,
hegemonicamente, a compor o quadro de intimismo/privatismo/familiarismo então
indispensável à instauração-reprodução da “segurança nacional”. Esta, mais que doutrina,
é modo de produção de sujeitos nos quais a ordem se preserva, fazendo do subversivo e
do drogado figuras emblemáticas da temida ameaça ao “corpo orgânico” da nação.35
Neste percurso, grupos de variadas filiações teórico-técnicas se fazem e desfazem, em
ressonância com as estratégias que compõem o corpo – realmente nunca orgânico – do
socius. Nas hostes psicanalíticas, especialmente, a implementação do grupalismo cria
estranhas díades sujeito-objeto: como a demanda cresce ( e deve crescer), engendram-se o
analista benemérito e seus pobres; sendo a atmosfera silenciosa e silenciadora, o analista
progressista e seus rebeldes.36 E, na medida em que tantos querem, mas tão poucos
podem então, tornar-se psicanalistas – desempenhando as aspirações da categoria dos
psicólogos papel fundamental nesta conjuntura37 – , forjam-se o analista de grupo e seu
cliente ampliado – alvos tanto de beneplácito (apaziguador de tensões) quanto de
severa censura institucional por parte das sociedades oficiais de formação.
Na primeira metade da década, uma “primeira geração de argentinos” –
modernizadora, desenvolvimentista, sanitarista-preventivista, grupalista em compreensão
(kleiniana, bioniana, pichoniano-blegeriana) e em extensão (mães, gestantes, crianças,
adolescentes, pacientes orgânicos, professores, “instituições”38, etc.) – vem e volta,
respondendo às demandas formativas que ajuda a produzir. Na segunda metade, uma
“segunda geração de argentinos” – grupalista por igual, mas, paralelamente, freudo-
marxista, estruturalista, althusseriana, institucionalista, antipsiquiátrica, deleuze-
guattariana, em suma, “plataformista”39 – vem porque é obrigada a sair e .... não pode
voltar à terra natal.40 Enquanto a primeira geração era tolerada pelos hierarcas da
psicanálise, a segunda – suas práticas grupais em destaque – deles só merece
desqualificação e desprezo.41

35
- Recorde-se o lema “Brasil: ame-o ou deixe-o!”
36
- A este respeito, ver RANGEL (1996) e BARROS (1995 ).
37
- Para um detalhamento do nexo entre a difusão do movimento psicanalítico e as ações da categoria de psicólogos
no Rio de Janeiro, consultar FIGUEIREDO (1984 ).
38
- As aspas se devem à particular concepção de instituições manejada pela primeira geração: sinônimo de
organizações ou estabelecimentos. A segunda geração trabalha com um conceito distinto, influenciada que está pela
Análise Institucional na vertente francesa.
39
- Plataforma: nome do grupo de psicanalistas argentinos que, em 1971, rompe com a A.P.A. ( Associação
Psicanalítica Argentina), filial da I.P.A. ( International Psychoanalytical Association) , por motivos políticos. Além
desta referência histórica precisa, usamos o adjetivo “plataformista” para denotar a multiplicidade de referenciais
teórico-políticos, muitos deles epistemologicamente incompatíveis, característica da segunda geração de argentinos.
Aqui, uma vez mais, qualquer teoricismo hipertrofiado conduziria a uma apreensão restrita do movimento. Sobre
Plataforma, consultar BAULEO e LANGER (1973 e 1977)
40
- Em 1976, um golpe militar lança a Argentina em um duradouro processo ditatorial caracterizado por incríveis
violência, intolerância, repressão e tortura.
41
- É em parte porque a trajetória desta segunda geração se cruza com a da autora deste artigo, que nele tanto se
insiste na história, nas instituições, no transdisciplinar, na crítica e na ruptura.
14

É fácil perceber que Castel e Coimbra invariavelmente focalizam interpenetrações


de modos de pensar ( conceitos, teorias) com modos de agir e ser ( tipos de intervenção,
formas de relação a si e aos demais). Nesta direção, em favor da clareza, vale recordar
que existem duas possibilidades para a análise dos conhecimentos: (1) a epistemológica,
marcada pela presença do caráter normativo, isto é, de alguma distinção entre ciência e
pré-ciência, segundo critérios vários42; (2) a histórica ou sócio-histórica, prescindindo de
tal distinção normativa: ciência e pré-ciência (ou não-ciência) são absorvidas na categoria
de ideologias, ou de saberes, enquanto componentes da vida coletiva.
Os autores que ora abordamos convidam-nos a evitar tomar por base apriorística o
caminho epistemológico. Aliando-nos a tal perspectiva, afirmamos que qualquer
epistemologia, descontinuísta ou não, maneja a “espada do corte epistemológico”43,
instalando-se em uma espécie de tribunal internalista – legitimação ou deslegitimação –
que desconsidera os vínculos do conceitual com o histórico-social ou institucional; quer
dizer, com o que é (apenas aparentemente) externo ao texto ou ao discurso. Ignoram-se
assim ativamente os nexos entre os efeitos de jurisdição epistemológica, quanto ao o que
e ao como se deve saber – problemáticas, conceitos e métodos avalizados como
científicos –, e os "regimes de práticas"44 instauradores tanto de tais o que e tais como
quanto dos próprios poderes epistemológicos de legislar sobre isso. A função
invalidadora-acrítica45, portanto, é componente essencial dessa ordem de discurso.
Quando nos alinhamos com a vertente sócio-histórica, surgem novas nuances a
estabelecer. Ali é preciso diferenciar transcendentismos – ideologias, ou saberes,
pensados enquanto derivados de algum lugar social outro e mais fundamental – e
imanentismos – ausência de tal derivação, fazendo dos próprios saberes, ao lado de
práticas não-discursivas (ações e subjetivações), produtores de real social. Entre os
primeiros situa-se, por exemplo, a sociologia do conhecimento de cunho marxista. Em
um artigo famoso, Canguilhem (1972) lhe atribuiu a alcunha "marxismo mitigado",
acusando-a de adotar uma idéia linear e redutora em termos de causalidade – todo saber
seria ideológico, por refletir a infra-estrutura econômica da sociedade. Por nossa parte,
acrescentaríamos outra objeção: o desenvolvimento de uma análise histórico-política
exclusivamente de cunho macro – Estado e Economia seriam pensados como
realidades totalizadas e constituídas. Por esta razão poder-se-ia afirmar que, na sociologia
do conhecimento marxista, o social está "fora de suas práticas": algo sempre-já-dado
transcende as práticas a investigar – os domínios de saber –, restabelecendo , a um nível
abstratamente idealizado como mais básico, uma continuidade fornecida pela dialética
presumidamente inevitável de uma Filosofia da História. Quanto ao funcionamento desta
formação discursiva, ousamos caricaturar: um monótono desfilar de acusações de

42
- Aperfeiçoamento da observação empírica e da codificação lógico-matemática, no caso dos positivismos
continuístas; recorrência temporal a partir de cânones construídos por cada ciência, mediante os quais se examinam
os saberes para assinalar rupturas, no da epistemologia descontinuísta.
43
- Embora a categoria “corte” ou “ruptura epistemológica” seja própria à epistemologia descontinuísta, ao usar tal
expressão tomamos liberdades de sentido. Em função do internalismo normativo, todo enfoque epistemológico, por
mais histórico que ele próprio se afirme, porta uma espécie de arma de corte desenraizante.
44
- Por esta expressão aponta-se a regularidades próprias dos dizeres e fazeres de determinado momento que,
conquanto não instaladas em qualquer plenitude da Razão – sendo, ao contrário, casuais e bélicas –, instauram,
contingentemente, jurisdições e normatividades.
45
- Foucault (1979 : 172 ) aborda este problema de forma extremamente direta: "As questões a colocar são: que tipo
de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem "é uma ciência"? (...) Qual vanguarda
teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas circulantes e descontínuas formas de
saber?"
15

"mistificação", "engano" e "ideologização" do agente pelos saberes do capitalismo,


aguardando a vitória de uma vanguarda revolucionário-epistemológica capaz de
conduzir-nos, pobres iludidos, ao reino do fim da história e do estabelecimento definitivo
da verdade.
Os imanentistas escapam a esta espécie de profetismo auto-legitimante. Em suas
análises, os saberes remetem a saberes outros e práticas outras, bem como a seus
regimes. Nada determina o processo histórico a investigar a não ser suas transformações
próprias, externas umas às outras como cada pedaço de vidro de um caleidoscópio que,
em seus deslocamentos, cria os vazios a serem atualizados pelos demais46. Mas tudo isto
é do real social, pois não se lança mão de transcendências glorificadas como infra-
estrutura ou primeiro motor. Isso significa correr o risco de engendrar o rosto histórico de
qualquer domínio de saber como “prática em relação a outras práticas”, sem privilegiar a
priori nenhuma delas, assinalando eventuais continuidades e descontinuidades –
conceituais, de modo de intervenção e de produção de subjetividade – quanto a outros
rostos históricos distintos. Significa tentar ser historiador materialista, ao invés de
epistemólogo-juiz ou messias dos povos. É por este motivo que assim como Castel pode
assinalar continuidades entre psicanálise e “complexo alternativo”, Coimbra é capaz de
visualizar descontinuidades entre gerações de argentinos. Tais continuidades e
descontinuidades são bem pouco epistemológico-normativas; tampoco apelam para
seguros caminhos de revelação/revolução. Falam de conservações e/ou transformações
em regimes de verdade, prática, subjetivação e, por isso, do que fomos (ou ainda somos);
de nosso presente, ou de nós mesmos, enquanto campos atuais (e virtuais) de experiência
(ou transgressão) possível.

4- Da tipologia às cartografias
Dedicar-nos-emos, a partir de agora, à tarefa de estabelecer uma tipologia dos
panoramas e históricos mais difundidos. Adotando este procedimento, incorporamos uma
estratégia sugerida por Feyerabend (1977: 44): proceder como um “agente secreto” que
participa do jogo da Razão para solapar-lhe o jogo. Melhor dizendo, em nossa proposta
de classificação estará em cena menos uma necessidade representativa fundada em
ordem e medida do que um esforço de elucidação das conseqüências implicadas no ato de
partilhar cada um dos caminhos. Na impossibilidade – assumida, e inclusive desejada –
de realizar uma aproximação meramente descritiva, o leitor se verá permanentemente
instado a distinguir entre o que é próprio a cada enfoque abordado e o que advém da
análise do mesmo.
Tomando por objeto de investigação as linhagens argumentativas utilizadas,
podem-se discernir quatro tipos principais de históricos e/ou panoramas: (1) cronológicos
ou geográfico-cronológicos; (2) teórico-reconstrutivos; (3) modelístico-reconstrutivos;
(4) sócio-institucionais.
4.1- Cronológicos ou geográfico-cronológicos
Estamos, neste caso, diante da “história oficial” da psicossociologia: aquela que
nos brinda com nomes e datas encadeados, em uma espécie de jornalismo onisciente, a
noticiar “fatos” grupalistas de variada dimensão – de manchetes de primeira página a

46
- A comparação do processo histórico com os movimentos de um caleidoscópio se deve a VEYNE (1982 ).
16

quase inapreensíveis notas escondidas em anúncios classificados; de simplórios eventos


regionais a graves acontecimentos de repercussão mundial.
Um primeiro problema assedia este tipo de formação discursiva: onde, ou quando,
começar o relato? Seria em pleno séc. XIX, adotando o libertário utopista Fourier como
fundador de todo o imaginário da microssociologia; ao seu final, tendo por marco as
incursões de Le Bon na Psychologie des foules47; ou, recuando no tempo, nos espetáculos
oitocentistas de Mesmer em torno do magnetismo animal? Podemos também iniciar
nossa exposição de “precursores” adentrando o séc. XX. Porque não evidenciá-los em
1905, com as ações do antes obscuro Pratt; nas décadas de 30 e 40, com a criação de
sociedades de grupo e cunhagem da expressão “psicoterapia de grupo”; em meados dos
anos 20, quando as ações grupais são, nos EUA, incorporadas à gestão das empresas?...
Por mais que variem as soluções segundo a composição da caixa de ferramentas do
compilador, uma forma geral costuma ver-se afirmada: a do culto a espécies de heróis,
santos e/ou patriarcas. Neste sentido, é quase onipresente a divisão do percurso histórico
em dois períodos seqüenciados: o dos “pioneiros” ( até a década de 30) – começando a
desbravar sendas aparentemente inexploradas – e o dos “continuadores” – já apoiados em
uma institucionalização propiciadora de monopólios de legitimidade. Examinemos
circunstâncias e personagens desta aventura48.
No período dos pioneiros reluz, como inúmeras vezes assinalamos, o nome de
J.H.Pratt49. Médico de um dispensário para tuberculosos na cidade de Boston, introduz o
sistema apelidado de “classes coletivas”, a fim de acelerar a recuperação dos enfermos.
Estas classes ou sessões, freqüentadas por mais de 50 pacientes50, consistem em uma
breve conferência do terapeuta sobre higiene e cuidados a serem tomados no tratamento,
seguida de perguntas e debates. À medida que os encontros se sucedem, os doentes mais
interessados e/ou que melhor obedeçam ao regime de vida sugerido passam a ocupar as
primeiras fileiras da sala, aproximando-se do líder (médico, mas igualmente mestre e
mentor...). Os bons resultados relatados por Pratt quanto ao abreviamento do processo de
cura fizeram com que seu procedimento fosse adotado como modelo em algumas outras
ações de saúde pública. Segundo Grinberg, Langer e Rodrigué (1976: 31), “o mérito de
Pratt foi o de utilizar, de forma sistemática e deliberada, as emoções coletivas, em busca
de uma finalidade terapêutica (...). O método estimula a identificação do paciente com o
médico. O sistema de promoções, que recompensa o “bom paciente”, aproximando-o do
terapeuta, ilustra graficamente tal propósito”.
Luchins (1970: 30-31), por seu turno, inclui as estratégias de Pratt no conjunto de
“métodos orientados para a palestra” e, em seqüência, menciona os nomes de L.C.Marsch

47
- Quanto à relação entre os textos sobre a psicologia das multidões publicados na França ao final do século XIX e a
situação política da época (Comuna de Paris, em especial), ver COCHARD (1990). Para uma comparação entre as
abordagens de Le Bon, Tarde e Freud do fenômeno das massas, consultar MOSCOVICI (1993)
48
- Tomamos o termo em sua polissemia: aventura conota simultaneamente “o que advém” e “o que se inventa”.
49
- Confessamos desconhecer o motivo pelo qual a maior parte da bibliografia elege Pratt como “autor originário”.
Influência dos livros americanos? Prestígio médico? Situação epidemiológica da tuberculose no início do século? De
preciso, sabemos apenas que Pratt publicou imediatamente seus resultados, em artigos datados de 1906 ( John
Hopkins Hospital Bulletin) e 1907 (Journal of the American Medical Association).
50
- Aqui os números oscilam bastante, exibindo o caráter necessariamente ficcional dos históricos do grupalismo.
GRINBERG, LANGER e RODRIGUÉ (1976) – referencial que utilizamos – falam em mais de 50 pacientes;
LUCHINS (1970) reporta de 14 a 40; FERNÁNDEZ (1992) indica oscilações entre 30 e 100, segundo o autor
consultado. O único acordo é que se trata de grupos amplos, cujos participantes podem variar de um encontro para
outro.
17

e E.W. Lazell. Enquanto Pratt atuava com pacientes orgânicos, Marsch, no Kings Park
State Hospital de Nova York, tinha a seu cargo sujeitos rotulados como doentes mentais.
Seus procedimentos, datados do fim dos anos 20, compunham-se de aulas (sobre
psicopatologia, ajustamento à vida hospitalar, crescimento, problemas de religião e
filosofia, assuntos de interesse geral, etc.), canto conjunto, recitação, orações, discussão
em grupo, dança, etc...procurando envolver os pacientes tanto verticalmente (com o
terapeuta, a disciplina hospitalar, o Senhor...) como horizontalmente (com os demais
pacientes e outros membros da comunidade). Uma de suas frases, reproduzida por
Camara (1987: 23), sintetiza concepção e método: “Pelo grupo-multidão eles foram
adoecidos; pelo grupo-multidão devem ser curados”. Já Lazell, no St. Elizabeth’s
Hospital, proferia palestras semanais para pacientes diagnosticados como
esquizofrênicos. A princípio, durante os anos 20, versavam sobre psicopatologia e
desenvolvimento psicossexual segundo a perspectiva freudiana, sendo complementadas
por leituras de obras escolhidas. Mais tarde, ao início da década de 30, o ponto de vista
junguiano tomou o lugar de Freud nas preleções, que passaram a ter por acompanhantes
metodológicos, em adição às leituras, terapia ocupacional, vocacional e exercícios
físicos.
Na história oficial, são esses os desbravadores, conquistadores do Novo Mundo,
da Terra Prometida....Pouca coisa além de tal heroísmo costuma ser posta em destaque.
No entanto, talvez valesse a pena ressaltar certos aspectos singulares presentes em Pratt,
Marsch e Lazell: a disponibilidade para intervir em grupos amplos e de composição
mutante (circunstância que se verá imensamente problematizada após o acirramento do
processo de institucionalização); a produção e/ou reforçamento institucional da
idealização da figura do terapeuta (médico ou psiquiatra), que assume nítidos contornos
religiosos e/ou pedagógicos51; a presença de alguma liberalização nas relações com os
enfermos mentais, tanto em termos de ambiente terapêutico (inclusão de ex-pacientes,
familiares, membros da comunidade) como de recursos (palestras, aulas, dança, canto,
música, leitura, ginástica, etc.)52. Ao deixar de lado estas nuances, os históricos
cronológicos exibem seu caráter paradoxal: ao mesmo tempo em que legitimam o mais
moderno como desdobramento do mais antigo, obscurecem, quanto a este, tudo aquilo
que nos poderia levar a estranhar o moderno...
O “elo perdido” entre os pioneiros e os continuadores, neste curioso continuísmo,
é geralmente localizado na trajetória de J.L.Moreno. Esta controvertida figura, ainda
jovem, em Viena, envolvera-se com variados trabalhos sociais e comunitários: entre 1908
e 1913, reunindo em grupo as crianças nos jardins Augarten, fundara o “reino das
crianças”; de 1915 a 1917, ocupara-se de um campo de refugiados de guerra tiroleses;
aproximadamente na mesma época, ajudara as prostitutas do bairro de Spittelberg a
fundar um clube autogestionário para assistência mútua. Após a formatura em medicina,

51
- Pastor antes de se tornar psiquiatra, Marsch dizia: “O doente mental não deve ser considerado como um paciente,
mas sim como um estudante que fracassou no grande objetivo da civilização” (apud CAMARA, 1987: 23). Observe-
se a semelhança com o paradigma do tratamento moral dos primeiros alienistas, com ênfase análoga nos “males da
civilização”.
52
- As Ligas de Higiene Mental se desenvolveram nos EUA desde a primeira década deste século, denunciando o
papel iatrogênico do meio asilar e inspirando projetos de reorganização da assistência. Clifford Beers – um ex-
paciente psiquiátrico – e Adolf Meyer – diretor do Pathological Institute de Nova York – constituem, em 1909, o
Comitê Nacional de Higiene Mental, com a finalidade de promover a saúde mental com o auxílio dos modernos
saberes psi. Por conseguinte, por volta dos anos 20 já estão assentadas as bases para uma clínica psiquiátrico-
psicanalítica preocupada com uma abordagem dinâmica dos conflitos e questionadora do abismo absoluto entre
normal e patológico (embora sem jamais colocar a instituição psiquiatria em questão)
18

ocorrida em 1917, Moreno criou o teatro de improviso53, praticado sem texto prévio e
com a participação ativa dos espectadores. Conta a história (ou a lenda) que o acaso fez
deste teatro espontâneo um teatro terapêutico (ou Psicodrama): uma das atrizes,
chamada Barbara, “desempenhava com muita naturalidade o papel de ingênua, enquanto
na vida particular era uma megera. Moreno, que ouvira as confidências do noivo de
Barbara, perguntou à moça se não gostaria de substituir, em cena, seu papel habitual por
um oposto, totalmente vulgar e cínico; ela interpretou as situações num estilo
completamente novo com uma agressividade manifesta. E seu comportamento particular
mudou; as cenas que fazia com o noivo perderam a intensidade, seja porque as
interrompia, seja porque se punha a rir no momento em que ia dar início a elas: não sentia
mais estímulo para isso. Inversamente, a vida agia sobre o teatro (...) Barbara
desempenhava seu próprio eu; o noivo entrou no jogo e os dois começaram a dar ao
público o espetáculo de suas vidas, (...), operando assim uma curiosa troca entre o real e o
imaginário.” (PONTALIS, 1972:179).
A partir de 1925, Moreno instala-se nos EUA. Após algum trabalho com o teatro
de improviso no Carnegie Hall, inicia a passagem do pioneirismo à institucionalização:
no Congresso da Associação Americana de Psiquiatria (1932), formula o conceito de
psicoterapia de grupo; no mesmo ano, leva a termo uma investigação no Instituto
Hudson, estabelecimento destinado a jovens delinqüentes. Havendo observado, ainda em
Viena, que a adaptação de pessoas exiladas tornava-se mais fácil quando lhes era
facultado agrupar-se segundo as próprias escolhas, sistematiza-as através do teste
sociométrico, que permite construir o Sociograma – espécie de foto sociológica de um
grupo num momento determinado. Apoiado neste procedimento, Moreno reorganiza os
pavilhões do Instituto, buscando facilitar a inserção dos internos. Em 1936 constrói o
primeiro teatro terapêutico em Beacon: alguns atores ali se vêm tratar ou lhe pedem
formação especializada. No ano seguinte, já é professor das Universidades de Columbia e
de Nova York e, em 1941, o Hospital Geral St. Elizabeth está convertido em centro de
formação em psicodrama, técnica onipresente no tratamento dos pacientes. Em 1942
fundam-se o Sociometric and Psychodhramatic Institute e a American Society of Group
Therapy and Psychodhrama (primeira sociedade oficial de grupoterapia). Desde o pós-
guerra, as idéias morenianas passam a ter enorme penetração na Europa e América
Latina: congressos internacionais de psicodramas são realizados em diversos países,
criando-se, paralelamente, sociedades e institutos de formação.
O princípio básico da teorização de Moreno – a espontaneidade –, a ser
desenvolvido no mundo “como cena” em contraposição à conserva cultural , aparece
com clareza em suas confissões de Psicoterapia de grupo e psicodrama: “Aqui se
encontra um homem que apresenta todos os sinais da paranóia e da megalomania, do
exibicionismo e da inadaptação social e que, contudo, pode ser muito bem controlado e
normal, e inclusive mais claramente capaz de criação, exteriorizando completamente seus
sintomas em vez de esforçar-se para restringi-los e resolvê-los.” (apud
SCHÜTZENBERGER e SAURET, 1986: 48)
Em que pese tal percurso, que deveria sugerir a necessidade de ser cuidadoso com
as naturalizações do especialismo e os distanciamentos quanto às práticas sociais –

53
- A eventual relação entre o curso de medicina e o teatro de improviso – acontecimentos narrados em seqüência na
bibliografia historiográfica – permanece totalmente obscura. Tratar-se-á simplesmente de uma tentativa de dar
credibilidade universitária às práticas de Moreno? Ou, o que nos parece uma hipótese plausível, embora brincalhona,
se estará propondo uma continuidade entre os rituais – tão teatrais! – do ensino médico e seu percurso?
19

Moreno começa nas ruas e praças, com habitantes da cidade, praticando o teatro da
espontaneidade –, raros são os autores que, ao apreciar seus trabalhos, estão atentos às
utopias sociais ativas que os animam. As histórias oficiais estão sobretudo preocupadas
em mostrar o papel de Moreno na institucionalização, quer dizer, na apropriação de um
tipo de objeto – a dramatização, em grupo, de relações e conflitos –, sobre o qual se
começa a poder reivindicar um monopólio de legitimidade54 – o dos “psicodramatistas”.
A partir de Moreno, as histórias são obrigadas a se fazerem igualmente geografias,
distinguindo minimamente os percursos estadunidense, europeu e latino-americano. No
contexto norte-americano costuma-se fazer referência aos nomes de P. Schilder, L.
Wender e S. P. Slavson, em acréscimo a uma nova figura-símbolo, Kurt Lewin.
Nos dois primeiros é possível apreciar a expansão das aplicações da psicanálise
aos grupos. Diferentemente da prática dos “pioneiros”, busca-se um enquadre mais
estrito, separarando coordenação e liderança. Conquanto tal distinção nem sempre seja
tranqüilamente afirmável, põe em cena o problema da interpretação e de seu destinatário,
ausente nas estratégias assumidamente sugestivas de Marsch e Lazell, por exemplo.
Slavson, enquanto grande institucionalizador – organiza, em 1943, a American Group
Psychotherapy –, tentou dar resposta a esta questão focalizando o ambiente em que se
realiza a intervenção grupal. Inicia assim a verdadeira “cruzada amostral-numerológica”
que cerca a psicoterapia psicanalítica dos grupos. Ao ver de Slavson, um “verdadeiro
grupo” não deve exceder 8 pacientes que, além do mais, devem possuir características
similares quanto a grau e/ou tipo de patologia, sexo, idade, nível sócio-econômico, etc., a
fim de que qualquer interpretação valha, por semelhança, para todos e cada um. Nesta
linha, o antigo recurso da palestra prévia é inclusive retomado, agora sob a roupagem de
tema disparador do encontro grupal, com vistas a garantir, na forma de uma espécie de
”variável independente”, a preparação homogeneizadora do ambiente.
A figura-símbolo do grupalismo americano no período de institucionalização, no
entanto, é indubitavelmente Kurt Lewin, psicólogo alemão emigrado para os Estados
Unidos quando da ascensão do hitlerismo. Ali, rapidamente transpôs as pesquisas que
desenvolvia em laboratórios universitários para situações do cotidiano. A expressão
dinâmica de grupo está associada a esta transposição: “a teoria e a prática estão
metodologicamente ligadas de uma maneira que (....) pode fornecer a resposta a
problemas teóricos e fortalecer, ao mesmo tempo, esta aproximação racional de nossos
problemas sociais práticos, que é uma das exigências fundamentais de sua solução"
(apud LAPASSADE, 1977:52). Exemplar neste sentido é o conhecido experimento
sobre os efeitos diferenciais de climas sociais - autocrático, laissez-faire e democrático -
sobre o comportamento dos grupos, onde o último obtém resultados privilegiados55. Esta
investigação, no entanto, ainda poderia sustentar a idéia errônea de que Lewin se tenha
mantido um cientista experimental de laboratório, atuando exclusivamente sob situações
de estrito controle. Por este motivo, deve-se dar destaque ao último período de sua
carreira , prematuramente interrompido pela morte, em 1947.

54
- Esta definição se inspira em GHILHON DE ALBUQUERQUE (1978) e nos ajuda a entender uma conceituação
em que se diferenciam estabelecimentos e instituições. Apelando à mesma se podem, por exemplo, definir como
instituições a medicina (monopólio das relações com o corpo), a escola (monopólio das relações educativas) e a
própria psicossociologia (monopólio das relações... grupais !).
55
Relembrando o contexto político em que tal experimento é realizado, não há que perder de vista sua relevância no
combate – discursivo e bélico – ao nazismo !
20

Em 1943 é chamado a intervir em uma situação de conflito social, num momento


em que o governo americano deseja promover mudanças nos hábitos alimentares das
donas de casa, incentivando o consumo de vísceras bovinas. Ainda através de um
experimento, conclui que as decisões tomadas em grupo são mais eficazes do que
conselhos diretivos recebidos individualmente. Mas prova principalmente que o
psicossociólogo desencadeia um processo de pesquisa-ação, acerca do qual observam
Hess e Savoye (1993:33): "Os atores não lêem trabalhos de laboratório. Para que uma
verdade prática possa sair da pesquisa, é preciso que trabalhem em sua elaboração tanto
os pesquisadores como os práticos." Na mesma linha de argumentação, R. Pagès (apud
ANZIEU e MARTIN, 1971:86) destaca algumas limitações fundamentais dos critérios
metodológicos experimentais clássicos, a começar pelo fato de não nos defrontarmos
com desafios da mesma natureza em grupos experimentais e grupos reais. Enquanto nos
primeiros não há efetivo engajamento quer do experimentador quer dos experimentandos
(meramente experimentados), nos últimos espera-se algo do grupo – a vitória de certas
idéias, determinada transformação da sociedade, etc... Esta expectativa não incorpora o
mesmo nível de observação e controle dos experimentos tradicionais, pois inclui uma
aposta no futuro, assunção de riscos que atenua o espírito científico (ou cientificista,
melhor dizendo...). Em suma, é pouco provável que se possam generalizar os resultados
obtidos em um grupo experimental para um grupo real. Nestas observações apreende-se
nitidamente o problema com que se defrontava o experimentalista Lewin ao vincular
dinâmica de grupo – objeto delimitável por procedimentos experimentais – e pesquisa-
ação – intervenção social que carreia a necessidade de análise ético-política.
Chegamos assim a outro ponto decisivo no percurso lewiniano: as atividades no
âmbito da formação. Na mesma época em que atende a encomendas governamentais, a
comunidade judaica o procura para discutir problemas pedagógicos e ele cogita mudar-
se para o Estado de Israel. Intrigam-no os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial,
que hipotetiza como massacre consentido e associa à educação judaica tradicional.
Sonha, em decorrência, modificá-la pela incorporação dos resultados e métodos
incrementados no campo da formação grupal. Neste âmbito, o acaso acabará por
desempenhar importante papel. Lewin já teorizava a influência do externo sobre o interno
através do que denominava Ecologia Psicológica. Utilizando como modelo os conceitos
topológicos de região e fronteira, postulava ser necessário investigar as relações entre
variáveis psicológicas e não psicológicas. Mas este não psicológico, este restante,
permanecia concebido como limitação ao trabalho do experimentalista: ao desenvolver
práticas de formação em grupo seguia mantendo, à maneira ortodoxa, uma rígida
separação entre formadores e formandos. No entanto, esta zona de fronteira
metodológico-política acabou por ser violada e as regiões, invadidas. Em certo
seminário56, os formandos penetraram no aposento onde os formadores discutiam a
dinâmica do grupo recém-coordenado, exigindo participar do processo de análise.
Aceitando coletivizar o processo, Lewin deu início ao que seus discípulos viriam a
chamar T-Group ou Grupo de Diagnóstico57, no qual o psicossociólogo ocupa posição
diferente do experimentador tradicional: não mais elabora, às expensas do saber do
grupo, um saber sobre o grupo; todo o saber é construído com a colaboração dos

56
-Trata-se de um seminário desenvolvido em New Britain (1946), com o objetivo de reforçar a ação local em favor
da legislação que promulgava a igualdade racial quanto ao emprego.
57
- Também chamado grupo de base, de evolução, de sensibilização e grupo centrado sobre o grupo.
21

participantes e mediante comunicação permanente, pelo coordenador, das hipóteses


testadas, sendo a validade, ou não, destas, estabelecida pela mesma via58.
Esta máquina grupal de investigação se fará prolongamento institucional e teórico
da obra de Lewin para seus discípulos americanos e, posteriormente, mundiais. Em
Bethel, a partir de 1947-1948, o T-Group se tornará dispositivo privilegiado no ensino da
abordagem lewiniana. Percebem-se facilmente as ressonâncias clínicas do novo
procedimento: visa a uma experiência de grupo transformável em conhecimento, o qual,
por sua vez, transforme a própria experiência. Preservando alguma fidelidade ao
paradigma experimental, contudo, define-se por um enquadre estável, assim especificado
por Lapassade (1977:186): "Um training group (..) é um pequeno grupo de cerca de dez
pessoas reunidas para formar-se com um monitor (....), que não dá conselhos nem ensina.
Ele (...) comunica ao grupo, quando julga necessário, a maneira pela qual "percebe" ou
analisa a situação. Progressivamente, os membros (...) aprendem a dispensar o monitor e
a analisar,(...) aqui e agora, o funcionamento desse grupo de que fazem parte.".
Passando, em nossa geografia grupal, dos EUA à Inglaterra, vemo-nos
convidados a conhecer as postulações de S.H. Foulkes e a reconsiderar as de W. Bion. O
primeiro é um novo e influente líder institucional, fundador, nos anos 50, da Group-
Analytic Society e promotor, no Mandsley Hospital de Londres, de um programa de
psicoterapia de grupo com bases psicanalíticas. Volta sua atenção para correspondências
e diferenças entre a psicanálise clássica e a grupal. Recorre aos conceitos da primeita
tópica freudiana – consciente, pré-consciente e inconsciente – em analogia com níveis de
funcionamento dos grupos, respectivamente a linguagem manifesta, o campo do que
poderia ser dito e o universo do não-dito (efeito de uma repressão grupal independente
da individual). Ao mesmo tempo, compara análise individual e grupal com relação ao
mecanismo da transferência e ao funcionamento da regra fundamental: enquanto na
primeira a transferência é vertical, referindo-se ao passado, na segunda é horizontal,
remetendo ao atual e multipessoal; enquanto a técnica individual apela à associação livre,
a grupal se vale da discussão flutuante livre, em que o analista é um observador
participante. As experiências de Foulkes tiveram freqüentemente como alvo os
veteranos de guerra, o que uma vez mais sugere a indispensabilidade de trazer à luz as
condições institucionais de gestação das formulações teóricas ( e técnicas) sobre os
grupos.
Nem Foukes nem Bion chegam a fazê-lo, embora cada um deles, exercendo
amplos poderes em campos de intervenção-investigação, tenha podido dispor dos
requisitos necessários a algo mais do que uma simples “aplicação” da “psicanálise
individual” aos grupos, característica que marcava algumas das práticas anteriormente
exploradas (cf. Schilder, Wender e Slavson). A situação de Bion é, neste caso,
emblemática. Suas primeiras experiências grupais datam da 2a G.M. Encarregado de um
hospital com cerca de 400 homens onde, segundo se relata, predominavam a disciplina e
a improdutividade, defronta-se com uma urgência: “A psiquiatria inglesa tinha de
encontrar um sistema (...) destinado a reabsorver eficazmente as angústias e
solidariedades de grupos, para a vida e para a morte, e que se assentassem em bases
diferentes do feitiço, aglutinador típico do exército nazista.” (Fernández, 1992:110).
58
Consciente das implicações ético-políticas da transformação introduzida no T-Group, Pagès (apud ANZIEU e
MARTIN, 1971: 87) o aparenta aos experimentos sociais dos socialistas utópicos franceses, especialmente Charles
Fourier: "... a pré-história fourierista da psicossociologia experimental oferece ao menos o modelo intencional de uma
auto-experimentação na qual os próprios sujeitos (...) contribuem para sua concepção, estão interessados nos
resultados e constituem, entre si, o aparelho de pesquisa"
22

Sendo assim, Bion propõe como objetivo forçar a coletividade de “inadaptados à guerra”
que afluem aos hospitais britânicos nos anos 40 a tomar consciência das próprias
dificuldades, constituindo um grupo propriamente dito e tornando-se capaz de auto-
organização. Para tanto, impõe um regulamento: os homens se reunirão diariamente pela
manhã, coordenados por terapeutas em atitude psicanalítica de “benevolente isenção”
(sem ordens ou sanções), para uma atividade diferente. Ou seja, ... agrupar-se! Após
vacilações e desconfianças iniciais – não seriam, estes médicos modernos, “generais de
branco”? –, os ensaios se multiplicam, formando-se, em etapas sucessivas, um “espírito
de corpo” – protestos contra as irresponsabilidades, elevação da auto-estima e rápida
recuperação – que se impõe, inclusive, aos récem-chegados e os incorpora ao mesmo
processo.
São estas as condições de produção da teoria dos supostos básicos, segundo a
qual, quando indivíduos são reunidos em grupo, coexistem dois modos de
funcionamento: o grupo de supostos básicos – ciculação fantasmática entre os
integrantes, caracterizada pela predominância de processos psíquicos primários – e o
grupo de trabalho – coooperação consciente e racional em torno de uma tarefa que o
grupo se atribui. Os supostos básicos, ao mesmo tempo em que são imprescindíveis para
a existência da ação co-operativa, podem, igualmente, paralisá-la ou dificultá-la.
Terminada a Guerra, Bion foi convidado a trabalhar na Clínica Tavistok,
formando grupos terapêuticos sob a égide de suas teorização e técnica. Embora a tradição
o tenha considerado o primeiro psicanalista a mais que meramente aplicar a teoria aos
grupos, descobrindo – melhor dizendo, inventando – organizadores grupais
fantasmáticos específicos à grupalidade, Bion não parecia tão confiante, conforme relata
em sua obra acerca da experiência de Tavistok: “Era desconcertante que o Comitê [da
Clínica] parecesse crer que os pacientes pudessem ser curados em tais grupos (...) sua
idéia acerca do que havia sucedido naqueles grupos [durante a Guerra] (...) era muito
diferente da minha.” (BION, 1963 :35). Limitando suas experiências anteriores à prática
de “persuadir grupos de pacientes de que a tarefa do grupo fosse o estudo de suas
tensões”59 (ibidem:ibidem), Bion relativiza os supostos da descendência grupalista,
tantas vezes tentada a fazer de dependência, ataque e fuga, e acasalamento, conteúdos
pré-estabelecidos para uso de cooordenadores oraculares que “sabem” o que se passa em
grupos artificializados-substancializados-totalizados.
Da Inglaterra à França se viaja, freqüentemente, em túneis continuístas que forjam
“escolas”. Por mais que os psicanalistas franceses interesssados em grupos se auto-
afirmem, qual Bion, investigadores, buscam-se – e quem procura, acha... – progressos
sancionáveis por estranhas epistemologias. Após o entusiamo dos anos 50 por Moreno e
Lewin, as críticas de Pontalis, originalmente formuladas em 1963, revelam que o
estruturalismo então triunfante não se contenta com utopias sociais de baixa extração
teórica. Grupos-como-totalidade, resistências à mudança, sociometrias, espontaneidades,
etc... se lhe afiguram soluções pouco convincentes para fundamentar a indispensável
expansão psicanalítica em direção aos grupos. Bion, ainda que pouco conhecido, é um
mal menor. Por mais que suas noções de cultura e mentalidade grupal assemelhem-se
perigosamente às figurações anteriores, o analista inglês porta uma prudência básica: a
seu ver, o grupo nada mais é do que um agregado de indivíduos onde cada um,

59
Parece que Bion, ao contrário do comitê de Tavistok, não crê que pratique estritamente psicanálise com seus
grupos. Valeria a pena investigar melhor os determinantes institucionais de sua postura, em especial as reprimendas
que lhe foram, à época, dirigidas por Melanie Klein – influência básica quanto aos supostos básicos, por sinal...
23

ameaçado da perda da sua particularidade, defende-se através de supostos fantasmáticos,


atribuindo “ao grupo” propriedades totalizantes de direção, proteção ou esperança,
comumente depositadas em imaginárias lideranças de tipo religioso, militar ou heróico.
Por volta de 1970, psicanalistas franceses, dentre os quais se destacam os nomes
de D. Anzieu e R. Kaës, fundam o CEFFRAP (Centro de Estudos Franceses para a
Formação e Investigação Ativa em Grupos). Pretendem estabelecer as bases para uma
leitura psicanalítica dos grupos, objetivo que pressupõe uma “assepsia metodológica”
em face dos impuros entusiasmos que cercam a microssociologia. A este respeito, afirma
Kaës (apud FERNÁNDEZ, 1992: 115): “a situação grupal se desenvolve a partir das
características do dispositivo: a enunciação da regra fundamental (...) é o ato que institui
o dispositivo, falar livre e abstinência entre os integrantes do grupo e o analista de toda
outra relação que não seja a exigida pela escuta e a palavra psicanalítica.”. Toda a
psicanálise... nada além da Psicanálise! Mais que grupalistas, os membros do CEFFRAP
são psicanalistas e, obviamente, formadores de analistas – característica que pouco
parecem levar em conta quando absolutizam algumas formulações. Se estas não podem
ser ditas carentes de interesse – principalmente, a nosso ver, por questionarem
afirmações fáceis sobre o grupo-abstração –, têm por vezes o efeito paradoxal de
introduzir, à guisa de novas naturalizações, aquilo que o conceito de dispositivo pretendia
problematizar, ao supor uma experiência sempre condicionada por uma situação.
Assim, agudas afirmações como a de Anzieu (“o grupo é um sonho”), Pontalis (“o
grupo é um objeto de investimentos pulsionais”) ou Kaës (“o grupo concreto é o
homólogo, ou o campo de ressonância, da organização interna do fantasma?”) acabam
por esvaziar-se de seu sentido inquietante quando, por exemplo, se adiciona o adjetivo
“individual(ais)” ao final de cada uma delas60. E, mais ainda – efeito comum entre irados
anti-grupalistas de todas as estirpes – , convertem-se em simples legitimações de
posturas profissionalizadas quando, ignorando as circunstâncias em que tais afirmações
são produzidas – um dispositivo em moldes psicanalíticos freqüentado por sujeitos em
formação para falar da experiência de grupo –, afirma-se que constituem um “progresso
histórico” no estudo dos (afinal inexistentes!) grupos, que nada mais seriam do que
experiências fantasmáticas (formações do inconsciente) a serem interpretadas por um...
psicanalista lucidamente individual!
Durante a década de 60, no entanto, o estudo dos grupos na França é objeto de
novas reviravoltas. O psicossociólogo G. Lapassade pratica um salto mortal, exibindo a
dimensão institucional dos grupos, quer dizer, “toda a política reprimida pela ideologia
das boas relações sociais” (LOURAU, 1977:1). Procurado pela direção da UNEF (União
Nacional dos Estudantes Franceses) para modernizar psicossociologicamente a entidade
estudantil, formula, em situação de intervenção, algumas perguntas perturbadoras
relativas ao tempo, ao dinheiro, ao saber e à formação – instituições dirigentes em jogo
nos processos supostamente não-diretivos. Desde este momento, a nascente Análise
Institucional socioanalítica estará apta a diferenciar campo de intervenção – no qual
grupos e coletivos são os principais “clientes” – e campo de análise – o institucional ou

60
- Afirmar o caráter grupal do fantasma evita transformar a priori o grupo em sujeito coletivo, comunidade ou
entidade com fantasias prtóprias. Contudo, como bem assinala Fernández (1992: 122), “a utilização da palavra
‘individual’ junto a ‘fantasma’ parece esvaziar-se de sentido. Se o indivíduo é o sujeito indiviso da consciência, o
termo ‘individual’ deixa de ser pertinente ao campo psicanalítico e, conseqüentemente, às abordagens psicanalíticas
do campo grupal”.
24

sócio-histórico, abrindo virtualidades à desnaturalização, inclusive, da instituição da


clientela61.
Simultaneamente, F. Guattari considera que, se deve haver análise, esta não se
confunde quer com a realizada pelo psicanalista – dispositivo clássico – quer com a
desenvolvida em um grupo de indivíduos – psicossociologia stricto-senso. Falando aos
estudantes universitários em 1964, afirma que a Análise Institucional não implica em
que psicanalistas ou psicossociólogos venham militar no movimento estudantil, trazendo
na algibeira técnicas para curar os doentes ou socializar os a-sociais; tampouco que os
militantes forneçam lições aos terapeutas, a fim de que estes optem por enfoques
libertários. Ela sugere que as organizações estudantis possam aproveitar ao máximo sua
própria capacidade de formação, amplamente superior à então existente nos meios
psiquiátricos e psicanalíticos, mediante a criação de organismos de todos os tipos, nos
quais a capacidade de promover interrelações sociais múltiplas e a dimensão analítica
estejam intimamente associadas. Logo, além de ressaltar a imprescindibilidade da
dimensão analítica, a expressão análise institucional tem uma função de cunho
estratégico: remeter a uma abertura no campo analítico, ainda restrito à ação dos
especialistas psi e à consideração de fatores psi. Segundo Guattari, toda análise é
institucional: o inconsciente ou desejo jamais se confundem com as leis objetivas que o
discurso da ordem – psicológico, sociológico, jurídico, político ou mesmo psicanalítico –
estabelece como definitórias de pretensos indivíduos, grupos ou organizações. Somente
um método de análise em situação permite trazer à luz o engendramento institucional do
desejo, invariavelmente marcado pela transversalidade. Assim, não mais existe o desejo,
mas singularidades desejantes decorrentes de uma multiplicidade de agenciamentos
coletivos de enunciação, que remetem a funcionamentos sociais, familiares, econômicos,
políticos, semióticos, culturais, urbanísticos, psiquiátricos, pedagógicos,etc.. Históricos
cronológicos dos grupos decerto descarrilhariam caso tentassem incorporar o acrobata
Lapassade e o contrabandista62 Guattari a seus trilhos contínuos e evolucionistas.
Na geopolítica das cronologias, nem sempre a América Latina está presente. Nas
raras vezes em que isto se dá, é comum que sua participação se reduza à importação de
uma série de influências, em que se degladiam “linhas”63 ou “escolas” – francesa e
inglesa em destaque – de psicanálise grupal. Apesar disso, não é tão difícil garimpar em
alguns trabalhos a importância – para o bem ou para o mal, como mais tarde veremos
– da tantas vezes apelidada “Escola Argentina” de psicoterapia de grupo sobre os
grupalistas do cone sul, bibliograficamente simbolizada pelo livro Psicoterapia de grupo
de L. Grinberg, M. Langer e E. Rodrigué, analistas didatas da APA, originalmente
publicado em 195764. Se, no que se refere ao Brasil, a princípio os interessados viajam a

61
- A respeito da diferença entre campo de intervenção e campo de análise e da crítica ao especialismo por ela
facultada, ver RODRIGUES e SOUZA (1992)
62
- Lourau atribui a um “salto mortal” de Lapassade a criação da Análise Institucional. O psiquiatra Jean Oury chama
Guattari de “passeur”, termo francês que significa barqueiro ou contrabandista, por seu desafio permanente à ordem
dos campos disciplinares (teóricos e de intervenção).
63
- Em uma crítica em ato à demanda por definições de “linhas” de trabalho, cujos determinantes parecem ser
preocupações mais financeiras que epistemológicas ou políticas, alguns companheiros optam, às vezes, por responder
mencionando entidades da Umbanda ( linha de Xangô, Oxossi, etc.) ou marcas de material de costura (linha
“Corrente”, “Círculo”, etc.)
64
- O primeiro Congresso Internacional de Psicoterapia de Grupo ocorreu em 1954, na cidade de Toronto. Emílio
Rodrigué, que estudara em Londres com Bion, retornava na época a B.Aires. Em 1955 funda, com outros membros
da A.P.A., a Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo. O livro de 1957 é o primeiro texto
argentino relativo ao boom inicial do grupalismo portenho.
25

Buenos Aires para formar-se em grupos65, desde o começo da década de 70 são os


portenhos que vêm, carregando, agora, a teoria e técnica dos grupos operativos de Pichon
Rivière e a psicologia institucional de J. Bleger66. As monstruosidades epistemológicas
de que são eventualmente portadoras não as impedem, no país de origem, de funcionar
como aglutinadoras das tendências mais renovadoras no campo da saúde mental, tanto
que permanecem sendo referências imprescritíveis no momento em que a “segunda
geração” aporta em nosso país e começa a introduzir, de forma sistemática, o paradigma
teórico-político do institucionalismo (ou grupalismo-institucionalismo).
Por vezes as diferenças aqui brevemente assinaladas são invisibilizadas nos
históricos cronológicos, sendo reabsorvidas na rubrica “escola argentina”. A este
respeito, cabe a indagação de Baremblitt (1987: 53): “Creio que cabe perguntar-nos , em
primeiro lugar, se alguma vez existiu ou existe algo como ‘um grupo de colegas que
chegaram da Argentina’, agrupáveis em torno de algo que poderiam fazer e não fizeram.
Em segundo lugar, nos caberia interrogar se existe ou existiu algo como uma ‘Escola
Argentina’ ou ‘os argentinos’ agrupáveis em redor de um pensamento uniformemente
marcado pelos enganos que não os teriam deixado desenvolver-se.” Respondendo à
primeira pergunta com uma enfática negativa acentuadora da heterogeneidade, e a
segunda com uma listagem de autores não levada em conta pelos que falam nas
características de uma “Escola Argentina”, Baremblitt, embora referindo-se apenas à
apreciação de seus compatriotas, talvez nos forneça uma pista para a crítica de todo e
qualquer histórico de tipo cronológico ou geográfico-cronológico: eximem-se de dar
atenção à diversidade (do que chamam escolas) e aos virtuais ausentes (no que chamam
autores e acontecimentos). A revisão que acabamos de empreender, por redundar,
também ela, em uma geo-cronologia, não se pretende a salvo das mesmas objeções.
4.2 - Teórico-reconstrutivos
Alguns históricos e panoramas, em face da quase ilimitada coleção de abordagens
grupalistas que acabamos de inventariar, fazem referência a “paisagens intrincadas”,
“influências múltiplas”, “confusão desnorteante”, etc. Instados a aproximar o leitor,
quiçá pela primeira vez, deste campo de multiplicidades paradoxalmente tão
desconhecido, esforçam-se por ordená-lo. Para tanto, é comum que se baseiem em
algum recurso julgado capaz de favorecer o estabelecimento de um quadro ou tábua de
trabalho67 no qual as práticas grupais possam ser, simultaneamente, aproximadas e
diferenciadas. Uma das ferramentas de que se costuma lançar mão com tal finalidade
são teorias que se supõe suficientemente institucionalizadas a ponto de facilitar uma
representação retrospectiva de conjunto. Como exemplo, observemos a reconstrução
proposta por Saidón et allii (1983):

65
- Sobre as relações Brasil-Argentina no que se refere à formação de grupalistas, ver MARTINS (1986), RANGEL
(1996) e BALÁN (1991)
66
- A respeito do modo de penetração, no campo educativo brasileiro, dos grupos operativos e da psicologia
institucional, ver COIMBRA (1980).
67
- Ver, a respeito da inquietação desencadeada por pensamentos que instauram a ausência desta possibilidade –
exemplificados por um conto de Borges –, FOUCAULT (1992: prefácio).
26

Enquanto se desconsideram as setas, o espaço dá a impressão de satisfatoriamente


ordenado. Um olhar mais atento, porém, tenderia a multiplicá-las, bem como a fazer
incidir, sobre as “teorias originais” da primeira coluna, os “desenvolvimentos e
revovações” da segunda e os “referênciais ideológicos e filosóficos” indicados pela
terceira. Assim o fazendo, T-Group, Psicanálise e Psicodrama perderiam rapidamente o
caráter de organizadores históricos de desenvolvimentos encadeados para se verem
constituídos, rizomaticamente, pelo que se supunha ser seu desdobramento
arborescente68.
Atento a este problema, que põe em confronto o credo na metafísica e a escuta
intempestiva da história efetiva, Foucault (1979a:17-18), operando com ferramentas
nietzscheanas, nos permite ver que “atrás das coisas há (...) não seu segredo essencial
(...), mas o segredo de que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída
peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas (...). O que se encontra no
começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a
discórdia entre as coisas, é o disparate” (grifos nossos). Alguns historiadores, afetados
por esta advertência, criam uma nova forma de atenção às objeções epistemológicas –
fundadas exatamente na rejeição do disparate! Sua estratégia consiste em fazer, dos
obstáculos, instrumentos para o pensamento e a ação. No momento em que autores
como Baremblitt (1994 e 1997), Fernández (1992), Barros (1994) e Percia (1989)
reconhecem a impureza histórico-teórica do grupalismo, não o fazem para glorificar
alguma eventual boa cópia de um mundo platônico de idéias transcendentes69 – com
68
- Sobre a comparação entre árvores e rizomas no pensamento e/ou ação, consultar DELEUZE e GUATTARI
(1995).
69
- Quanto à “reversão do platonismo” operada pela análise crítica da distinção entre boas cópias e simulacros, ver
Deleuze (1974: 259-272).
27

suas mui imanentes e bem conhecidas conseqüências profissionalistas e corporativas.


Segundo estes estudiosos, se não há intervenção grupal que não seja inevitavelmente
uma mistura70; se a lógica que as sustenta não redunda na delimitação de um “objeto
discreto”71; se parte de seus agentes não pode ser premiado com medalhas de
comportamento e “aplicação”72; se os grupos, desejavelmente plurais, quando se
erguem o fazem como simulacros, nada disto redunda, a seus olhos, em um reativo
reconhecimento de inferioridade frente a autoridades metafísico-morais, sendo, ao
contrário, a força ativa de sua afirmação ético-estético-política. História disparatada não
é história menor, mas apenas... história! Pois, como nos diz Althusser (1992:188), é
preciso “jamais ficar inventando histórias, e permanecer atento à novidade e à invenção
da história”.

4.3- Modelístico-reconstrutivos
Ainda na tentativa de dar sentido ao agitado caleidoscópio da história das práticas
grupais, certos autores procuram modelos, paradigmas ou formas gerais que,
subjacentes a variadas teorias, possam reconhecer misturas sem renunciar à
representação. Encontram-se aqui, provavelmente, algumas das mais frutíferas tentativas
de análise das práticas grupais. Os frutos, contudo, podem ser doces ou amargos...Por
este motivo, dedicar-nos-emos a uma exposição razoavelmente minuciosa de três delas
– Grinberg, Langer e Rodrigué (1976), Pagès (1974) e Baremblitt (1987a) –, bem como
de algumas de suas conseqüências.
A mais antiga deve-se ao famoso livro Psicoterapia de Grupo, original argentino
de 1957. Neste, Grinberg, Langer e Rodrigué dividem o grupalismo terapêutico em três
períodos que se relacionam, por sua vez, a três modelos: psicoterapia pelo grupo, no
grupo e de grupo. O primeiro consiste em estimular e utilizar-se deliberadamente das
emoções coletivas, sem se preocupar em fazer com que sejam compreendidas e/ou
analisadas pelos participantes. Corresponde às ações de Pratt, assim como à de certos
grupos de auto-ajuda (Alcoólatras Anônimos73, por exemplo). As terapias no grupo, por
sua parte, introduzem a interpretação em situações coletivas, aplicando técnicas de
orientação psicanalítica que procuram compreender e modificar dinamismos e estrutura.
O destinatário da interpretação, todavia, permanece o indivíduo, sendo os eventuais
efeitos grupais decorrentes de uma homogeneização prévia dos participantes (cf.
Slavson, por exemplo). Já as terapias de grupo, priorizadas por Grinberg, Langer e
Rodrigué, consideram o grupo como fenômeno central e ponto de partida para a
70
- Para uma atraente versão destas misturas, no trabalho grupal com psicóticos, consultar Lancetti (1994).
71
- Fernández (1992: 132-133) denuncia os reducionismos implicados na epistemologia das ciências positivas em
que ainda hoje, predominantemente, se fundamentam as ciências humanas. Esta epistemologia supõe um objeto
autônomo, reprodutível, não contraditório e unívoco, denominado, pela autora objeto discreto. Pensamos que o
adjetivo pode comportar, em acréscimo, o sentido de reservado, prudente, recatado, modesto... Nos grupalistas que
ora abordamos, os grupos são objetos nada discretos também neste segundo sentido. Fazem muito barulho, são
pouco obedientes, questionam os poderosos segredos implicados na separação público/privado e nem sempre são
indubitavelmente terapêuticos – o que poderia constituir sua glória, ao invés de sua perdição...
72
- Percia (1989: 66-68) diferencia duas correntes no grupalismo argentino: a de aplicação e a de ruptura ou
desvio. A primeira exerce o trabalho grupal na forma de psicanálise aplicada, em dois sentidos: saber psicanalítico
dirigido (aplicado) a outra coisa – os grupos – e saber psicanalítico bem comportado, boa psicanálise (“aplicada”,
como se diz de um aluno atento às reivindicações das autoridades).
73
- No caso dos A.A. e grupos homólogos, a idealização do terapeuta, característica dos trabalhos de Pratt, é
substituída por uma estimulação da fraternidade, minimizando-se a liderança ( terapias pelo grupo com estrutura
fraternal).
28

formulação de qualquer interpretação. Concebido como totalidade – realidade diferente


do somatório de individualidades – , ele exige formas específicas e originais de
intervenção.
O modelo histórico-paradigmático dos três psicanalistas argentinos conheceu
variados destinos. Elemento fundamental, quando de sua formulação, para diferenciar
modos de intervenção com grupos – levando a repensar temas como sugestão, liderança,
coordenação, transferência, dinâmica, estrutura, enquadre, interpretação, etc. – ,
rapidamente converteu-se, ao menos no contexto brasileiro, em uma espécie de receita
para separar “falsos” e “verdadeiros” grupalistas. Os primeiros estariam
equivocadamente presos aos “indivíduos”, enquanto os últimos, conhecedores desta
“neo-subjetividade” coletiva, estariam aptos a apreender uma nova....individualidade –
agora, grupal!
Anedotas provavelmente bastante verdadeiras denunciam esta situação. Conta-
se, por exemplo, que terapeutas atendendo um único paciente, por haverem faltado à
sessão os demais, interpretavam-no a partir da fórmula “o grupo....”. Relatam-se casos
em que , tendo um paciente trazido à baila a morte da mãe e desencadeado sentimentos
de solidariedade e/ou curiosidade entre os companheiros, os terapeutas se viram
compelidos a realizar interpretações relativas à “mãe do grupo”. Encontram-se escritos
quase inacreditáveis, nos quais a pouco refletida ambição à totalização tem por efeito
uma radical incompreensão de qualquer sentido de grupalidade, como se pode constatar
no seguinte fragmento: “...o homem é um animal de grupo, um animal gregário, de
horda. O que quer dizer que fenômenos mentais grupais são inerentes à mente humana
(...) Mesmo um ermitão isolado no deserto apresenta características de membro de um
grupo: faz parte do grupo de ermitãos.”(PY, 1986: 58)74
Encurralados entre uma noção pouco analisada de grupo-totalidade e idéias há
muito naturalizadas de sujeito individual, muitos terapeutas – não só brasileiros,
certamente – acabaram, a nosso ver, tendo de tristemente escolher entre “a mãe do
grupo” e “o grupo sem pai nem mãe”. Embora esta não fosse uma decorrência inevitável
da reconstrução de Grinberg, Langer e Rodrigué, acabou sendo, muitas vezes, seu
destino funesto...
Passando ao enfoque modelístico-reconstrutivo de Pagès, originalmente
elaborado em 1973, vemo-nos mergulhados nos tempos do boom, assim descritos pelo
autor: “....as práticas começaram a se espalhar (...) apareceram os grupos de encontro, de
terapia da Gestalt, bioenergética, de expressão corporal, de formação psicológica pela
dança, a massagem, a pintura, a música...grupos de autogestão pedagógica ou de análise
institucional, em situações de formação ou de análise propriamente dita, seminários com
estruturas flexíveis, seminários ‘analíticos` de formação. Do massagista ao dançarino,
do artista ao agitador político, não se sabe mais hoje em dia o que vem a ser o
psicossociólogo, e é grande a tentação de concluirmos pela desintegração de um campo
assim tão heterogêneo.”(PAGÈS, 1974: 84-85)
Resistindo à tentação e optando pela construção de um enfoque aspirante a
colocar ordem em tal diversidade, Pagès nos oferece a figura tridimensional reproduzida
a seguir, onde os planos são separados por coordenadas que definem orientações, às
vezes apelidadas “extremismos”.

74
- Como antídoto contra esta confusão entre produção grupal de subjetividade e coleção definida por semelhança,
consultar o posfácio de Deleuze a TOURNIER (1985)
29

Sociopsicanálise

Mudança social dialética

Extremismo
Extremismo político-econômico-cultural
biopsicológico Movimentos
Antipsiquiatria
californianos Esquizoanálise
Pedagogia institucional
Análise institucional

O extremismo biopsicológico se caracterizaria por busca de liberação das pulsões


sexuais, uso intensivo e/ou exclusivo de técnicas não-verbais ou corporais,
encorajamento à ação desejante em situações interpessoais, redução ( ou interdição) da
análise, limitação do trabalho ao nível individual, com escamoteamento das dimensões
grupais, políticas, econômicas e culturais, além da presença, algumas vezes, de
tendências místicas, notadamente orientais. O extremismo político-econômico-cultural
se proporia, como fim exclusivo ou privilegiado, a mudança das estruturas sociais,
definindo-se assim pelo encorajamento à ação e redução, ou proibição, em parte, da
análise, favorecimento do trabalho em nível coletivo, principalmente de grandes
conjuntos institucionalizados, bem como da implicação política do agente de mudança.
Finalmente, a orientação sociopsicanalítica estaria marcada pela análise dos fantasmas e
sistemas de defesa individuais e coletivos, proibição ou não-encorajamento à ação no
enquadre analítico, predominância do controle racional, negando o papel liberador das
pulsões, manutenção de nítida demarcação analista/analisandos e de uma estrutura
estável de poder entre eles, assim como da não-implicação afetiva e política do analista.
Com base nestas coordenadas – espécies de tipos-ideais – , Pagès distribui pelos
planos os movimentos grupalistas reais, inclusive sua própria forma de atuação,
denominada mudança social dialética ou pluridimensional. Esta tentaria favorecer o
papel de um inconsciente simultaneamente sexual e político, ao mesmo tempo que
reconheceria a importância da análise das estruturas sócio-afetivas e repressivas,
admitindo, em conseqüência, a manutenção de certo constrangimento analítico sobre o
grupo.
Não nos prenderemos à propriedade ou impropriedade das localizações de Pagès,
tampouco ao fato de que distinga com excessiva facilidade “extremismos” e
“orientações”. O que nos interessa em sua reconstrução é a ênfase posta mais naquilo
que cada coordenada torna visível, dizível e factível nos grupos, do que nos que estes
seriam de forma presumidamente natural. As coordenadas de Pagès são como
30

cristalizações de forças – “contradições”, em sua linguagem dialética – presentes no


panorama grupalista francês dos anos 70, a saber: ação e/ou análise; necessidade de
segurança e/ou necessidade de mudança; pequeno grupo e/ou conjunto mais vasto;
formação de agentes e/ou intervenção em situações concretas – para citar apenas as
resenhadas pelo autor. Em lugar de tentar afirmar o que os grupos são, o que podem ou
o que devem fazer, o panorama histórico em pauta nos brinda com aquilo que certos
modos de apreensão os fazem ser, poder ou fazer.
Esta observação nos aproxima da terceira reconstrução paradigmática a explorar.
Dentre as numerosas formas existentes para definir o termo modelos, Baremblitt (1987a:
67) opta por considerá-los “nexos estabelecidos entre modos e atributos de ser e existir
que tentam representar (...) como um objeto é, como virá a ser (uma vez produzido),
como deveria ser (mesmo quando não exista com todas as características modelizadas)
ou como foi (dado que já não existe).” Apoiado nesta definição, distribui os modelos
grupais existentes em cinco grandes ítens, obedecendo ao setor dos saberes (e/ou
práticas) do qual provêm: (1) artísticos (pictórico, literário, mítico, teatral,
cinematográfico, psicodramático); (2) naturais (físico, químico, biológico, etológico);
(3) sócio-antropológico-históricos (de instituições, de organizações, de massas, familiar-
comunitário, histórico); (4) psicossêmicos (lingüístico, comunicacional, semiótico,
cibernético, intra e intersubjetivo); (5) formais (matemático, geométrico, estrutural,
sistêmico, lógico).
Remetendo o leitor ao texto original, não visamos a uma exposição detalhada
desta reconstrução que, conquanto não se pretenda exaustiva, é das mais completas que
conhecemos. Faz-se indispensável ressaltar, todavia, que o modelo (de modelos!)
proposto consiste em um dos poucos que, combatendo o especialismo acrítico,
incorpora extensamente saberes e práticas não-especificistas. Apenas à guisa de
exemplificação, eis algumas presenças: o vínculo entre a palavra grupo e a denominação
italiana gruppo, usada para indicar conjuntos humanos conforme representados em
quadros renascentistas, especialmente de temas religiosos; análise da perspectiva e da
posição designada ao espectador na pintura enquanto articuladas mais a diferentes
apreensões históricas da grupalidade do que a questões unicamente técnicas; romances,
filmes e peças ( ou escolas) de teatro manejados como paradigmas grupais; regimes e
acontecimentos políticos reivindicados como análogos à estrutura e/ou funcionamento
de coletivos; instituições qual igreja, exército, escola, fábrica, tribunal, etc., tomados
como maquetes para a compreensão de fenômenos grupais; versões antropológicas de
relações de parentesco (distanciadas da família nuclear ocidental típica) apropriados
como instrumentos para analisar o intra e o intersubjetivo, etc.
Apesar de tudo isso, Baremblitt se diz insatisfeito com a própria obra. Nas
conclusões, adverte que a adoção de qualquer um dos modelos apresentados – inclusive
seu modelo de modelos – conduzirá inexoravelmente a compreensões da grupalidade e
intervenções sobre a mesma submetidas às restrições determinadas pela partição do
mundo imposta por aquele modelo. Neste sentido, presume que “o sistema-modelo
funcionará inevitavelmente como um gradil que corta o fluido contorno do grupo
segundo seus parâmetros e, ao mesmo tempo em que aparentemente o desconecta de
outras determinações para supostamente dar conta das específicas, não faz senão
articulá-lo àquelas de uma maneira sui generis, negada ou postergada (...). Em outras
palavras, (...) “fabricam-se” grupos [parcializados, logocrática e tecnocraticamente
entendidos e manejados], em lugar de catalizar sua auto-invenção e
gestão”(BAREMBLITT, 1987a: 87).
31

Usando de tais advertências, o autor não aspira a que se abandonem as tentativas


de teorização, substituindo-as por vagas intuições sobre as “relações humanas”, e sim
que se substitua o conceito de modelo, com todas as suas conotações restritivo-
normativas, pela noção guattariana de cartografia. Dissemos anteriormente, sem usar o
termo, que Pagès cartografava, por mais que talvez não o soubesse. Cartografava porque
falava menos dos grupos enquanto tais que de recursos – dimensões, coordenadas,
extremismos – , finitos e não universalizáveis, através dos quais eles eram entendidos e
manejados. Já Baremblitt está ciente de que cartografa e de que se cartografa todo o
tempo, por mais que se o negue, absolutizando resultados. Sendo assim nos alerta,
recorrendo uma vez mais à terminologia de F.Guattari, da importância de “não sobre-
codificar nem axiomatizar as semióticas grupais nem os fluxos produtivo-desejantes
singulares de cada grupo subordinando-os a supostas estruturas universais e específicas.
Quando se procede desta última maneira, é sabido que a pregnância da “forma
encontrada” torna relativamente estéril o apelo a um “estilo” com o qual
presumidamente o interventor e o grupo “interpretariam” a coesão da “partitura formal”
que os determina” (ibidem: 87-88).
Em acordo com estas palavras, entendemos que a versão cartográfica, ao
contrário da modelística, pode apreender as diferentes práticas grupais como
agenciamentos, ou melhor, disposições de componentes heterogêneos – conceituais,
tecnológicos, semióticos, econômicos, políticos, culturais, estéticos, etc – , produtoras
de modos de subjetivação sempre singulares, e que o modelo utilizado para pensá-las é
simplesmente uma peça abstrata a mais do agenciamento, ao invés de seu ordenador
principal.
Entendidos na mesma ótica, os históricos modelístico-reconstrutivos teriam
dupla possibilidade de ação: de um lado são frutos amargos, quando se apresentam qual
quadros ordenados razoavelmente exaustivos de possibilidades para a escolha de formas
ideais para o trabalho grupal; de outro, são eles próprios cartografias imanentes ao
campo que examinam, capazes, neste caso, de promover uma desejável desordem, ou
indisciplina, em nossas maneiras instituídas de pensar/atuar, evitando que estas flutuem
em mundos ideais supostamente alheios ao campo de seus próprios efeitos. Desejamos
que nossa tipologia de históricos – também ela um modelo de modelos – funcione desta
segunda maneira.

4.4 - Sócio-institucionais
Primaríamos pela redundância se voltássemos a expor nesta seção aqueles
autores que têm estado presentes desde a primeira linha deste artigo, na qualidade de
ferramentas críticas. Os escritos de Bauleo, Baremblitt, Barros, Castel, Coimbra e
Fernández, para recordar apenas os referidos com maior freqüência, constituem valiosas
pistas para a elaboração de históricos que, trazendo à luz as condições institucionais de
existência das diferentes práticas grupais, iluminam os modos de pensar/agir/ser que
cada uma delas favorece, admite, tolera, repudia e/ou interdita. Dizemos modestamente
pistas porque os históricos sócio-institucionais são tarefas-descaminho a atualizar
permanentemente, ao invés de memória-tradição a conservar e respeitar. Consistem em
tentativas de elucidação do que pensamos/fazemos/somos enquanto presente,
facultando-nos pensar/fazer/ser diferentemente.
32

Se esta seção terminasse aqui, contudo, cometeríamos uma injustiça com o autor,
talvez, do primeiro histórico sócio-institucional com efeitos perceptíveis sobre os
grupalistas brasileiros. Refiro-me ao trabalho de Lapassade (1977), cuja publicação
francesa original data de 1966. O texto situa a emergência do “capitalismo de
organização” – trazendo, em seu bojo, os grupos e a psicossociologia – no conjunto do
movimento histórico. Adotando periodização sugerida por Touraine, configura três
etapas da sociedade capitalista: (1) a fase A, na qual, apesar do desenvolvimento do
trabalho parcelado, as organizações operárias ainda se fundam nos antigos ofícios e
predomina a ideologia anarco-sindicalista, com suas reivindicações de gestão direta,
coincide com a sociedade industrial do século XIX ; (2) a fase B, quando se
burocratizam75 tanto as empresas (trabalho mecanizado e aparecimento das teorias da
organização de Taylor e Fayol) como os sindicatos (aos quais se delega poder de
representação), equivale ao surgimento das grandes empresas industriais, a partir do
início do nosso século; (3) a fase C, na qual se modernizam as tecnologias (automação,
eletrônica, petroquímica, etc.) e as formas de gestão (perda da rigidez burocrática e
busca da participação operária, embora sempre controlada), inicia-se com os anos 50/60.
Na fase A, Lapassade enfatiza a emergência das primeiras grandes doutrinas
sociológicas e políticas da nova sociedade, examinando proposições de Fourier,
Proudhon, Saint-Simon, Comte e Marx. Considera o primeiro o “verdadeiro precursor
da psicossociologia (...) e mesmo das técnicas de grupo”, acentuando que o socialista
utópico, em consonância com seu tempo, formula um projeto de experiência sócio-
política – o falanstério76 – no nível em que ela se mostrava, então, possível – o dos
pequenos grupos e micro-organizações sociais. Na sociedade harmônica idealizada por
Fourier, em que pese sempre haver lugar para a satisfação das necessidades, nada é
deixado a cargo da improvisação: “Os grupos de base (...) são rigorosamente integrados
num sistema institucional que assegura sua coordenação e suas trocas (...). Já é a
ambição “sociocrática” (...) a Human engeneering, o psicossociólogo-rei.”
(LAPASSADE, 1977:42).
Passando brevemente por Proudhon, que coloca o problema da prioridade do
todo (corpo político) ou da parte (grupos de base), Lapassade chega às correntes
assumidamente tecnocráticas, representadas por Saint-Simon e, principalmente, August
Comte. Nelas identifica as fontes das modernas teorias das organizações, usando como
exemplo proposições do fundador do positivismo: os “sociocratas”, informados pela
sociologia nascente, deveriam educar o proletariado em seus pequenos grupos
espontâneos, de maneira a conduzi-los à participação hierarquizada, cooperação e
reorganização espiritual; com isso se destruiriam, simultaneamente, as perigosas utopias
sociais que “preferem recorrer aos meios políticos quando devem prevalecer os meios
morais” (apud LAPASSADE, 1977:45).
Concluindo a análise da fase A, o texto volta-se para Marx, dentro de cujo
projeto – derrubada da sociedade capitalista – os grupos ocupam lugar ambíguo: por um
lado, valoriza-se a discussão, a palavra pública, a formação da consciência social, a
crítica das ideologias; por outro, não há lugar para uma teoria positiva dos grupos e
75
- Por burocracia entende-se a propriedade privada dos meios de gestão e organização.
76
- Falanstério: lugar de vida e trabalho (geralmente agrícola) de comunidades compostas por 1620 pessoas, que se
associam livremente por similitudes e complementariedades de gostos, inscrevendo-se em séries de trabalhadores. O
número de integrantes decorre da teoria das paixões de Fourier: Combinadas de diferentes maneiras em cada homem
segundo suas intensidades, elas resultam em 810 espécies de pessoas matematicamente possíveis. O falanstério
deveria comportar um homem e uma mulher de cada uma dessas espécies.
33

organizações, pois o reino da burguesia dissolve quaisquer relações supostamente


humanas, em todas as esferas77; paralelamente, é esse própria dissolução que prepara as
formas futuras – “na história, assim como na natureza, a decomposição é o laboratório
da vida.” (apud LAPASSADE, 1977:46).
Passando-se à fase B, a ênfase recai sobre a burocracia emergente: “a separação
[planejadores e executores, nas empresas; aparelho e base, nas organizações operárias]
está em toda a parte”(ibidem:47). Enquanto no movimento marxista o problema da
burocracia se torna central quanto à organização e ao poder, no interior das ciências
sociais tem início a crítica das burocrracias industriais: “O nascimento da sociologia
industrial pode definir-se (...) como um manifesto anti-burocrático. A mesma
observação é válida para descrever e explicar o nascimento da psicossociologia na
indústria.” (LAPASSADE, 1977:46).
O marco inicial deste processo é situado no trabalho de Elton Mayo, chamado a
intervir, em 1924, pela direção da Western Eletric Company, preocupada com quedas no
rendimento. Durante dois anos, um assistente deste sociólogo acompanha o cotidiano da
produção, a fim de identificar os fatores capazes de influenciá-la. As operárias são
retiradas da oficina e destinadas a um local especialmente escolhido, onde, lançando
mão de procedimentos experimentais, obtêm-se resultados não muito originais: fatores
como a melhoria da iluminação, o aumento salarial e mesmo a introdução de uma pausa
para o café são avaliados como benéficos. No entanto, quando do retorno às condições
iniciais, algo de surpreendente está presente nos resultados: o rendimento se mantém
superior ao vigente antes das modificações, sugerindo a presença de um fator até ali não
identificado, logo hipotetizado como sendo o próprio grupo; ou melhor, as boas
relações informais que persistem mesmo quando retirados os benefícios formais ou
oficiais.
Durante as ações de Mayo, análises mais detalhadas permitiram apontar, no
interior das relações informais, a relevância da constituição de sub-grupos diferenciados.
Remetiam à possibilidade de obter ajudas recíprocas entre operários e conseqüente
aumento na produção mediante simples mudanças nos postos de trabalho. No dizer de
Lapassade (ibidem: 48-49), havendo sido possível analisar a vida social da equipe –
jogos, comportamento na produção, conflitos, sistemas de papéis –, a experiência
coincide com o nascimento de uma psicossociologia industrial centrada na análise dos
grupos de trabalho. Estes são erigidos em objeto privilegiado do movimento das Human
Relations, que rapidamente irá confluir com a corrente sociométrica (Moreno) e as
pesquisas de dinâmica de grupo (Lewin).
Quanto às primeiras, Lapassade destaca a intervenção realizada no Instituto
Hudson, momento de invenção do sociograma, assinalando: "É preciso distingui-lo do
organograma, que é a representação gráfica de uma estrutura oficial: hierarquia das
pessoas e dos grupos numa fábrica, numa escola, num hospital. O exame sociométrico
revela outras hierarquias, outros sistemas de poder e dependência. É raro que coincidam
o sociograma e o organograma: uma tal coincidência, se fosse geral, significaria que o
sistema social é totalmente aceito, e que foi escolhido por todos os membros do grupo."
(ibidem:51). No que se refere à dinâmica de grupo, repudia as posturas que continuam a
ver nela exclusivamente uma ciência experimental dos pequenos grupos, já que o último
período da obra de Lewin incorpora as situações sociais reais e a pesquisa-ação.
77
- Para Marx, a cooperação, por exemplo, tão enfatizada na empresa moderna, nada mais é que um produto da
divisão capitalista do trabalho e da concentração dos operários nas indústrias.
34

Por mais que ao aproximar-se de Mayo, Moreno e Lewin, Lapassade se preocupe


em mostrar a profunda imbricação destes trabalhos com projetos de mudança e utopias
transformadoras, está ciente de que a demanda dirigida aos psicossociólogos pelas
organizações industriais se explica pelas dificuldades de comando e comunicação que,
na esteira de Max Weber, diversos sociólogos definiriam como burocratização. Em suas
análises, entretanto, procura distanciar-se das críticas lançadas pelos marxistas do
Partido Comunista francês contra as técnicas de grupo. Nestas, o psicossociólogo era
apresentado como espécie de policial moderno, encarregado de fazer falar os operários
para encaminhar em seguida, um relatório-denúncia à direção78. Ou melhor, como
especialista em fazer cessar a luta de classes dentro das empresas, estabelecendo em seu
lugar boas relações humanas, diálogo entre dirigentes e dirigidos, em suma, uma
aparente harmonia em que os conflitos seriam encarados como dificuldades de
relacionamento, freqüentemente atribuíveis a situações privadas e íntimas, a serem
resolvidas pelos especialistas psi – em primeira instância, sendo a segunda a demissão
pelo departamento de pessoal... Para Lapassade, tal diagnóstico ignora que o
psicossociólogo “era também aquele por cujo intermédio a luta informal e permanente
na empresa era revelada: pode-se sustentar que os psicossociólogos aprofundaram as
análises de Marx e levaram mais longe o conhecimento das relações de produção na
empresa79 ; são verdadeiros, ao mesmo tempo, o caráter “reformista” e o valor
revolucionário de suas descobertas” (ibidem: 55).
Passando-se à fase C, a burocracia reaparece modernizada. Havendo diminuído o
autoritarismo, nas organizações operárias, após um período em que floresceram os
grupos fracionários em oposição violenta aos dirigentes, os conflitos começam a situar-
se no interior do próprio aparelho (entre burocratas à antiga e modernizados), ao invés
de entre base e aparelho. Nas empresas, a nova burocracia gestionária perde a rigidez:
integra os desviantes, pratica a dinâmica de grupo, busca a participação. Apesar disso,
organograma e sociograma não chegam a coincidir, como desejariam os bem instalados
profetas do fim da história. Escrito em 1966, o texto de Lapassade chama a atenção para
os protestos estudantis – e nós, pós-68, acrescentaríamos os dos operários massificados,
reduzidos ao gesto repetido do trabalho em cadeia –, prevendo que “a revolta não se
transforma necessariamente em adaptação ativa” (ibidem: 56) e que se descortina o
momento de opor, enfim, ao princípio do dirigismo burocrático o da não-diretividade,
ligado ao projeto de autogestão social. São essas as condições de emergência e
penetração, no panorama francês, das idéias de Carl Rogers.
Em 1962 foi difundida na França uma conferência em que este declarava:
"Chego atualmente a acreditar que os únicos conhecimentos capazes de influenciar o
comportamento de um indivíduo são aqueles que ele próprio descobre e dos quais se
apropria" (apud LAPASSADE,1977:57). É fácil detectar a semelhança entre estas
formulações e as desenvolvidas por Lapassade em seu livro A Entrada na Vida, datado
de 1953: ambas expressam confiança no pensamento inacabado e, mesmo, no
pensamento do inacabamento, tão caro aos renovadores pedagógicos inspirados na
educação negativa de Rousseau. Para Lapassade, porém, a aceitação incondicional e a

78
- Para conhecer uma intervenção psicossociológica em que esta circunstância se coloca como elemento de análise,
ver RODRIGUES et allii, 1992.
79
- Ao contrário dos marxistas do PCF, as revistas de esquerda Arguments e Socialismo ou Barbárie estavam
atentas aos trabalhos da psicossociologia e sociologia americanas. Em uma análise talvez excessivamente simplista,
dizia igualmente Sartre (1980:141) na primeira parte de Crítica da razão dialética: “Se [a microssociologia] é uma
arma eficaz (...) e se ela está “nas mãos dos capitalistas”, mais uma razão para deles arrancá-la e voltá-la contra eles.”
35

compreensão empática reclamadas por Rogers põem em jogo bem mais as relações de
poder do que qualquer espécie de bondade natural associada à natureza humana.
Conforme pontua, "a não-diretividade é uma política antes de ser uma psicologia
genética, um método terapêutico ou uma nova concepção da pedagogia" (ibidem: 59).
Rogers, ao contrário, assim como a maioria de seus seguidores, refugia-se em
certo psicologismo, atitude avaliada por Lapassade como forma de “desengajamento”
do homem de ciência, portadora de uma opção política não declarada. Neste último
caso, a não-diretividade individual ou social exime-se de pôr em questão a diretividade
constituinte das sociedades burocráticas. Sendo assim, a autoformação não-diretiva
jamais admite a autogestão da própria formação, contradição somente solucionável com
a reunião do que fora separado: a educação e a política80.
Sem eliminar em princípio a presença do psicossociólogo ou coordenador,
Lapassade adverte que o realmente não diretivo provavelmente seja “aquele que dá a
possibilidade ao grupo de autoformação – e não mais do “grupo de formação”– de
estruturar ele próprio as condições da pedagogia” (ibidem: 61). A partir deste momento,
somos convidados a penetrar nas reflexões relativas à autogestão educativa, exigindo
que se revelem, nos grupos, as instituições – política reprimida por todas as ideologias
psicossociológicas das “relações humanas”. E mais ainda, pois sendo possível, na
perspectiva lapassadeana, a autogestão do conjunto social, “é o desaparecimento do
Estado e sua substituição por uma auto-regulação não burocrática das relações entre os
grupos que constituem uma sociedade” (ibidem: 62).
Muito tempo se passou depois da publicação deste histórico sócio-institucional.
Vieram as reivindicações autogestionárias de maio de 68, a profusão de revoluções
moleculares dos 70, os “anos de inverno” – os 80, na expressão de Guattari – e, ao final
dos mesmos, a queda do muro de Berlim e dos chamados “socialismos reais” – que o
mesmo Guattari há muito incorporara à definição de Capitalismo Mundial Integrado.
Nosso presente, anos 90, faz pensar em pós-fordismo, pós-welfare state, neo-liberalismo
hegemônico. Exigem-se, por conseguinte, sempre novas construções históricas que
situem as condições em que se produzem, hoje, os grupos e a psicossociologia.
Quanto a isso, o trabalho analítico-crítico com a noção de desafiliação, conforme
formulada por Castel, parece-nos uma ferramenta imprescindível, pois “tudo se passa
como se redescobríssemos com angústia uma realidade que, habituados ao crescimento
econômico, ao quase-pleno-emprego, aos progressos da integração e à generalização das
proteções sociais, acreditávamos conjuradas: a existência (...) de “inúteis para o
mundo”, de sujeitos e grupos tornados supra-numerários face ao aggiornamento das
competências econômicas e sociais em curso” (CASTEL,1995: 20).
Este mesmo – porque histórico – e novo problema – porque ligado a condições
institucionais singulares –, porém, já é matéria para escritos futuros81.

5 -Conclusões

80
- A influência de Rousseau sobre Lapassade o faz ressaltar como fundamental a última etapa da formação de
Emílio: a experiência política.
81
- Para uma exploração pioneira deste problema, trabalhando com as noções de poliverso psi e ecletismo superior,
ver BAREMBLITT, 1997.
36

As proposições que se seguem retomam, de forma sintética, os debates abertos


por este artigo, na intenção de contribuir para alguma ruptura com os modos instituídos
de formação psi (e psicossociológica). Constituem, neste sentido, convites à
experimentação docente, política e vital.
1 - Os históricos e panoramas através dos quais o grupalismo costuma ser
apresentado aos agentes psi caracterizam-se, em sua maioria, pelo especialismo acrítico
e o teoricismo hipertrofiado.
2 - Existem agradáveis exceções a esta paisagem dominante que, tornando
visíveis as condições institucionais de existência das diferentes modalidades de práticas
grupais, abrem campos originais para a análise destas experiências.
3 - Os tipos de históricos existentes (cronológicos, teórico-reconstrutivos,
modelístico-reconstrutivos e sócio-institucionais) condicionam diferentes modos de
apreensão da grupalidade e possuem, quando adotados, efeitos diversos sobre a
condução e o desenrolar dos processos grupais.
4 - As posturas estritamente epistemológicas freqüentemente redudam em
julgamentos valorativos a priori que, enquanto menorizam ou invalidam o grupalismo,
legitimam outras teorias e modos de ação, os quais permanecem, em conseqüência, fora
do campo sócio-político de análise.
5 - As práticas grupais podem ser pensadas como dispositivos – combinações
singulares de componentes heterogêneos – que abrem determinados campos de
visibilidade e dizibilidade, ao mesmo tempo em que obscurecem campos análogos. A
teoria (e/ou modelo) adotada pelo coordenador é simplesmente mais um componente
deste dispositivo.
6 - As apreensões de tipo sócio-institucional trazem à cena condições de
produção da grupalidade que podem, e devem, ser incorporadas à análise coletiva
efetivada pelos grupos concretos acerca de seus processos.
7 - Não existe o objeto grupo, mas múltiplas práticas de grupalização que
incluem, como uma de suas dimensões de produção, os modos de ação e teorização do
psicossociólogo.
8 - Ao não corresponder estritamente ao que a formação psi hegemônica define
como uma terapêutica, as ações grupais estão virtualmente aptas a pôr em análise esta
demanda naturalizada.
9 - Os históricos sócio-institucionais são tarefas sempre renováveis, de modo a
incorporar ao campo de análise coletivo os modos de subjetivação dominantes e a
avaliar/criar possibilidades de ruptura via instalação de novos dispositivos.
10 - O campo grupal de intervenção não limita a priori a multiplicidade de
níveis de análise a empreender. Sendo assim, a individualidade, o grupo-totalidade ou o
corpo orgânico do social não são destinos inevitáveis na análise dos grupos, a não ser
para aqueles que os queiram reconduzir a um instituído promotor de acumulação de
bens econômico-simbólicos.
11 - Aproximar-se das práticas grupais na qualidade de experimentação de novos
planos de consistência existencial é antídoto precioso contra os especialismos,
teoricismos e profissionalismos instituídos.
37

12 - Desta experimentação faz parte a criação coletiva de ferramentas conceituais


para a análise da grupalidade, entendidas como cartografias provisórias para modos
específicos de produção de experiência.
13 - As experimentações grupais e as tentativas de apreensão teórica das mesmas
são parte integrante de alguns dos movimentos mais inovadores nos campos da saúde
mental, educação, trabalho e luta política.
14 - O ativo desconhecimento de tais movimentos tem sido um dos recursos
mais utilizados pelos setores conservadores com vistas à desqualificação do grupalismo.
15 - Literatura não específica – filosófica, histórica, sociológica, antropológica,
política, etc... – pode constituir recurso importante para o pensamento crítico em
psicossociologia.
16 - A nova fase do capitalismo em que aparentemente nos encontramos – pós-
fordismo, crise do welfare state, neo-liberalismo planetário – implica na necessidade de
reconsiderar as práticas grupais existentes, com vistas a apreender as modalidades de
produção de subjetividade ali instauradas e, eventualmente, combatê-las pela criação de
dispositivos rupturais singulares.

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