É muito mais difícil ocupar-se da saúde do que da doença.
Donald Winnicott
Donald Woods Winnicott nasceu em Plymouth, Inglaterra, em
1886, crescendo em uma propiredade rural, único menino, cercado por duas irmãs mais velhas. Masud Khan, seu analisando e colega, escreveu que “.ele foi uma criança amável, acomodada e um aluno brilhante. De repente, porém, resolveu virar tudo de cabeça para baixo; fez, então, uma enorme confusão nos cadernos e, durante um ano, suas provas foram péssimas... “.
Clare Winnicott, sua segunda esposa, conta uma passagem da
autobiografia de Donald Winnicott, não publicada e encontrada somente após sua morte, que revela uma passagem interessante da vida do “mais freudiano” dos analistas ingleses. Ele escreveu:
“... peguei meu taco de criquet (com um tamanho de 30
centímetros, pois eu não tinha mais de três anos ) e destruí o nariz da boneca de minhas irmãs. Aquela boneca havia se convertido para mim em uma fonte de irritação, pois meu pai não deixava de brincar comigo. Ela se chamava Rosie e ele, parodiando uma canção popular, me dizia ( com uma voz que me exasperava): Rosie disse a Donald Eu te amo Donald disse a Rosie Eu não creio Assim, pois, eu sabia que tinha de destroçar aquela boneca e grande parte de minha vida se baseou no fato de que eu realmente havia cometido este ato, sem me conformar em desejá- lo e arquitetá-lo apenas. Provavelmente me senti aliviado quando meu pai, acendendo vários fósforos seguidos, esquentou o nariz de cera para modelá-lo e o rosto voltou a ser um rosto. Aquela primeira demonstração do ato de restituição e reparação me impressionou e talvez me fez capaz de aceitar o fato de que eu, pequeno e querido ser inocente, me havia tornado violento, de maneira direta com a boneca e indireta com aquele pai que naquele justo momento acabava de entrar em minha vida consciente.”.
Depois de uma infância relativamente feliz, de poder “ brincar
com todas as experiências “, Donald Winnicott foi para a escola em Cambridge: corria, nadava, praticava ciclismo e rubgy, tinha amigos, cantava no coro, fazia parte dos escoteiros,e, lia, todas as noites uma história em voz alta para seus companheiros de quarto. Aos dezesseis anos ao fraturar a clavícula jogando, ele formulou seu desejo de ser médico: “...não poderia imaginar que toda a minha vida dependeria dos médicos...resolvi converter-me eu mesmo em um médico...”.
Donald Winnicott passou seu primeiro ano de medicina como
enfermeiro, em conseqüência da Primeira Guerra Mundial. Algum tempo depois, não desejando permanecer fora do front , enquento seus colegas e amigos partiam, ele solicitou ingresso e foi aceito na marinha de guerra. Terminado o conflito, ele prosseguiu seus estudos médicos em Londres. Neste tempo contraiu um abscesso pulmonar e ficou três meses hospitalizado; sobre este período ele escreveu em sua autobiografia que “...estou convencido de que pelo menos uma vez na vida é necessário que o médico tenha estado no hospital como paciente”. Como aconteceu com outros analistas ingleses, Donald Winnicott formulou algumas de suas idéias durante o período de guerra, a partir de suas observações sobre o funcionamento mental de pessoas envolvidas no conflito. Na Segunda Guerra Mundial ele foi consultor para uma região no interior da Inglaterra que recebia crianças e adolescentes evacuadas de Londres e que eram acolhidas em lares ou em instituições. Esta experiência lhe permitiu formular o conceito de tendência anti-social, ao estudar os efeitos das separações das crianças e adolescentes de suas famílias.
Embora tenha desejado ser clínico geral e trabalhar no campo, ele
tornou-se pediatra e, ao ler um trabalho de Freud, decidiu iniciar uma análise e tornar-se psicanalista. Buscando Ernest Jones, este o encaminhou para James Strachey, que traduziu as obras de Freud do alemão para o inglês, com quem se analisou por dez anos, tendo retomado sua análise depois com Joan Rivière. Sua formação psicanalítica iniciou em 1923, e no mesmo ano em que obteve dois postos como pediatra, um no Queen´s Hospital for Children e outro no Paddington Greeen Childrens Hospital, sendo que neste último trabalhou durante cerca de quarenta anos, organizando um serviço para onde ocorriam profissionais ingleses e do exterior e que ele, carinhosamente, chamava de “ meu snackbar psiquiátrico”.
Sentindo a pressão que resultava de um número elevado número
de crianças e adolescentes que buscavam atendimento, Donald Winnicott dedicou-se a fundo a estudar os meios de utilizar o espaço terapêutico da forma mais produtiva. Ele desenvolveu, então, o “jogo dos rabiscos” e a “ consulta terapêutica”. Clare Winnicott escreveu:
“Ele se esforçava por tornar a consulta significativa para a
criança, dando-lhe alguma coisa para levar e que pudesse ser utilizada e/ou destruída. Donald se armava de papel e, na maioria das vezes, fazia um avião ou um leque com o qual brincava um pouco;após dava o brinquedo para a criança, despedindo-se dela. Jamais se soube de uma criança que tivesse rechaçado seu gesto.”
No campo da psicanálise, Donald Winnicott manteve sempre,
durante as controvérsias que envolveram a Sociedade Britânica de Psicanálise e nos anos que se seguiram, uma posição independente, não se envolvendo diretamente com nenhum dos dois grupos em contenda; nem com os partidários de Melanie Klein e, tampouco, nem com os seguidores de Anna Freud. Como outros analistas passou a ser “localizado” no “independent group” ou “middle group”, recusando-se sempre a liderar os colegas que se colocavam, como ele, nesta posição. Foi, entretanto, eleito por duas vezes presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise, associada da Associação Internacional de Psicanálise, instituição criada por S. Freud. Donald Winnicott manteve durante toda a sua vida uma “filiação” dentro da tradição freudiana, dos seus primeiros anos de formação até o final de sua vida. Suas idéias, sem dúvida criativas e inovadoras, foram desenvolvimentos do pensamento psicanalítico freudiano, na linha percorrida por S. Ferenczi,, M. Balint, Melanie Klein e W. Bion, dentre outros. A concepção de que o pensamento de Donald Winnicott representou uma ruptura com a criação freudiana, a psicanálise, antes de representar um reconhecimento teórico e clínico do autor, nos remete a conhecida e antiga resistência ao conhecimento psicanalítico. O próprio Donald Winnicott escreveu que “ninguém pode ser original senão baseado na tradição”.
Sérvulo Figueira, ao escrever o artigo “Algumas idéias sobre
Winnicott” ( 1990 ), para o primeiro dos dois números da Revista Brasileira de Psicanálise dedicados a Donald Winnicott, escreveu:
“No caso de Winnicott, ser um englishman significa que ele
encarna em sua vida os valores básicos da cultura inglesa na área de organização da subjetividade: o cultivo da diferenciação individual e do lado positivo da idiossincrasia, o cultivo da independência do pensamento e de julgamento, o respeito pela opinião, pela liberdade e pela autonomia do outro, a valorização da experiência e da observação, em suma o cultivo da diferenciação”.
A formação cultural e psicanalítica de Donald Winnicott
aconteceu próxima a um grupo intelectual inglês, conhecido como “Bloomsburry”. Deste grupo fizeram parte intelectuais importantes do período conhecido como “eduardiano” ( que se seguiu ao período “vitoriano”, caracterizado, entre outros elementos, por uma repressão moral e sexual das idéias e costumes ), identificado com uma visão liberal e aberta do pensamento e das atitudes e condutas sociais e no respeito as idiossincrasias pessoais. Do “Bloomsburry” fizeram parte pessoas, com um engajamento maior ou menor, como Virginia e Leonard Wolf, Lipton Strachey, R. Keines, T. S. Eliot, dentre outros destacados participantes, de diferentes setores do pensamento britânico da época. Virginia e Leonard Wolf, escritores e donos da Hogarth Press, editaram alguns livros de Donald Winnicott, da mesma forma que o fizeram com as obras de S. Freud em inglês. Lipton Strachey era o irmão mais velho de James Strachey, analista de Doanld Winnicott e tradutor das obras de Freud do alemão para o inglês. Donald Winnicott participou desta “atmosfera” de liberdade intelectual.
Donald e Clare Winnicott não tiveram filhos e, ao perceber que
sua situação clínica se tornava mais difícil, ele registrou que “...é muito difícil um homem morrer quando não teve um filho para matá-lo na fantasia e poder sobreviver a ele, proporcionando assim a única continuidade que os homens conhecem”.
Ao perceber a proximidade do fim de sua vida, em 1971, ele
escreveu em sua autobiografia, que chamou de Not less than everything, uma descrição imaginária de sua morte.
“Estive morto. Não era particularmente agradável e me pareceu
que levou um bom tempo ( porém apenas um momento na eternidade ). Chegado o tempo, eu sabia tudo sobre meu pulmão cheio de água. Meu coração não conseguia faze4r seu trabalho, pois o sangue já não podia circular livremente pelos alvéolos. Havia falta de oxigênio e asfixia. Não havia por que ficar revolvendo a terra, como dizia nosso velho jardineiro. Minha vida foi longa. Vejamos um pouco do que aconteceu quando eu morri? Meu pedido havia sido ouvido ( meu Deus, faz com que eu viva o momento de minha morte )”.
Clare Winnicott comentou, a partir deste trecho, que se pode ter
uma idéia da capacidade de Donald Winnicott para compor, brincando, com a realidade de dentro e de fora, de modo a permitir ao indivíduo suportar a realidade, evitando a negação e podendo realizar tão plenamente como seja possível a experiência da vida, seja um bebê que nasce ou um velho que morre.
A OBRA
Sono Deixa penetrar a raiz no centro da tua alma. Aspira a seiva da fonte infinita de teu inconsciente e conserva teu verdor Poema de Donald Winnicott
Para conhecer a obra de Donald Winnicott é necessário brincar
com seu pensamento, ou seja, criar um espaço transicional ( ou potencial como ele escreveu ) que permita o brincar, locus do gesto espontâneo e da criatividade; depois, e só então, tratamos de compreender, a experiência que sua teoria e sua clínica possibilitam.
Quando estudamos os textos de Donald Winnicott, defrontamo-
nos com um estilo do qual podemos dizer, como ele próprio referira, Le style est l´homme même, e o estilo dele é extremamente pessoal e sofisticado e, ao mesmo tempo, simples e natural. Estilo paradoxal, mostrando a importância do paradoxo em sua obra. Ele buscava escrever de forma a ser compreendido pelo “homem comum”, como referiu, e se afastou da escrita estilo paper para uma redação mais “livre”. Praticamente não citava autores e dizia, brincando, que primeiro escrevia e depois tratava de saber de quem havia “roubado” determinada idéia . As referências bilbiográficas de seus trabalhos e livros eram organizadas por Clare Winnicott, Masud Khan e outros colaboradores.
Masud Khan, seu analisando e colaborador, registrou que Donald
Winnicott, ao longo dos mais de quarenta anos em que exerceu sua clínica atendeu cerca de sessenta mil pacientes; crianças, adolescentes e suas famílias e, também, pacientes adultos, como H. Guntrip, analista reconhecido, que com mais de setenta anos, o procurou para uma nova análise. Seu material clínico enfrentou dificuldades para ser divulgado, pois muitos de seus pacientes pertenciam ao círculo psicanalítico de Londres, como um dos filhos de Melanie Klein e Harry Karnac, editor, e analistas, como Margarete Little, Masud Khan, Harry Guntrip, dentro muitos outros.
André Green escreveu que o pensamento de Donald
Winnicott forma uma rede, um tecido de fios entrecruzados, distinguindo-se, como fios principais, os seguintes: 1. A Teoria da Situação Psicanalítica, cujo modelo é o setting. 2. A Teoria das Pulsões, que introduz novos conceitos sobre a agressividade ( com a noção de uma destrutividade sem cólera ) e sobre a sexualidade ( com a idéia de “elemento feminino puro” e “elemento masculino puro” ). 3. A Teoria do Objeto, enfocada pelas relações entre o Objeto Subjetivamente Concebido e o Objeto Objetivamente Percebido: seu corolário é o Objeto Transicional. 4. A Teoria do Self, com os conceitos de verdadeiro self e falso self. 5. A Teoria do Espaço, pela noção de área intermediária, espaço potencial e transicional, fonte da sublimação e da experiência cultural, criada através do brincar. 6. A Teoria da Comunicação e da Não-comunicação. 7. A Teoria do Desenvolvimento, que introduz a noção de ambiente facilitador (mãe suficientemente boa) e a evolução da dependência à independência. Masud Khan, ao escrever o extenso e precioso prefácio para o livro de Donald Winnicott, “Da Pediatria à Psicanálise” , enfoca os seguintes aspectos: - o conceito de realidade interna versus o fantasiar ; - do objeto transicional ao uso do objeto; - regressão, manejo e o brincar no setting psicanalítico; - a estruturação e a formação da pessoa total.
Numa tentativa de desenvolver e ampliar os esquemas
apresentados, Julio de Mello, introdutor, há cerca de quarenta anos passados, do pensamento de Donald Winnicott no Brasil, junto com Luis E. Prego-Silva, do Uruguai, resume o conjunto de contribuições desse autor, em seu livro “O ser e o Viver”.
1. Teoria do Desenvolvimento, com um estudo pormenorizado
da relação mãe-filho e das influências da família e do ambiente, postulando a interação de processos inatos de maturação com a presença de um ambiente facilitador, desde uma fase de dependência absoluta à independência humana. 2. Teoria dos Impulsos, em que reestuda os papéis da sexualidade ( elemento feminino e elemento masculino) e da agressividade, relacionando-as em seus primórdios ao desenvolvimento motor e questionando a existência de um instinto de morte. Aqui também é importante a noção de agressividade sem cólera, através da qual o bebê se desliga da mãe num abandono de catexis, sem uma intencionalidade, em si, destrutiva. 3. Teoria do Objeto, que postula a existência de um objeto subjetivo ( inicial ) e de um objeto objetivo ( posterior ), como, também, de um objeto transicional, formulando o conceito de fenômenos transicionais em psicanálise. 4. Teoria do Espaço, em que formula e existência de um espaço potencial, de uma zona intermediária entre a realidade interna e a realidade externa, onde se realizam o jogo e o brincar, origem de todas as atividades sócio- criativo-culturais. 5. Teoria do Self, da polarização entre um verdadeiro self, espontâneo e criativo, fonte da alegria e da saúde mental, em oposição ao falso self, artificialmente constituído por submissão e excessiva adaptação ao meio. 6. Teoria da Comunincação, na qual estuda as formas de comunicação e os seus contrários, e o problema da incomunicabilidade humana e da esquizoidia, e onde afirma que o núcleo do verdadeiro self é um santuário inviolável, que nunca se comunica com o exterior. 7. Teoria da Regressão, na qual estuda o problema da regressão no setting analítico a etapas primitivas de dependência absoluta, possibilitando descongelar situações iniciais de fracasso ambiental e retomar o desenvolvimento com um novo sentido de viver. 8. Teoria do Setting, na qual estuda a estruturação, significação e função e seu manejo pelo analista, incluindo a possibilidade de sua ruptura parcial ou transgressão. 9. Teoria da Contratransferência, na qual afirma que ao lado da contratransferência comum e habitual existe uma outra “verdadeira e objetiva”, representada pelo amor e pelo ódio do analista, que se justificam na situação clínica. O autor também estuda o problema das falhas do analista e da possibilidade de seu uso pelo paciente. 10.Teoria Psicossomática, baseada na existência inicial de um psique-soma instintivo-fisiológico, do qual se desenvolve, mais tade, a mente, com suas complexas funções. A doença psicossomática, caracterizada por múltiplas cisões, encerraria, contudo, uma tentativa de retorno ( aspecto positivo ) à situação de integração inicial. 11.Teoria da tendência Anti-social, conseqüente de uma deprivação inicial e representada pelo roubo e pela destrutividade, condutas de desafio ao meio que contêm, paradoxalmente, um sinal de esperança de que o indivíduo ainda confia que o ambiente possa corrigir aquelas falhas que possibilitaram o surgimento desta tendência.
Julio de Mello conclui, escrevendo o seguinte:
“ Finalmente, embora se diga que tudo que Winnicott escreveu, em função de seu espírito ele deixou em elaboração, em transicionalidade, algumas destas teorias se mostram muito mais acabadas, completas, como a teorias do desenvolvimento, do setting e do objeto. Outras estão, ainda, em esboços, como a teoria psicossomática, a ser posteriormente desenvolvida. Neste sentido, podemos dizer que ele também esboçou uma teoria dos limites, dos limites do setting, dos limites da analisibilidade, dos limites pessoais ou contratransferenciais do analista”.
Acredito, que uma forma complementar a dos autores referidos
antes, de pensar e sistematizar o pensamento e a clínica de Donald Winnicott, pode ser feita como se segue.
1. Em primeiro lugar, o caminho da dependência à
independência, com este percurso possuindo três etapas: a) dependência absoluta ( correspondendo ao conceito de narcisismo primário de Sigmund Freud e relacionada a mãe-ambiente/objeto subjetivamente concebido, momento de “ser”, experiência possibilitada pelo “elemento feminino puro” ), b) dependência relativa ( emergência do campo fusional com a mãe, surgimento da mãe objeto/objeto objetivamente percebido, mãe-outro, ou como, brincava Winnicott, a m/other, momento do “fazer”, possibilitado pelo “elemento masculino puro”) , e c) caminhando em direção à independência, enfatizando que esta nunca é absoluta. O indivíduo sadio nunca se torna isolado, mas se relaciona ao ambiente de tal modo que se pode dizer que o indivíduo e o ambiente se tornam interdependentes. O conceito de caminhando em direção à independência pode ser melhor compreendido se utilizarmos uma metáfora criada por W. Bion: “ Quando um navegante se orienta por uma estrela, ele sabe que não irá alcançá-la, mas tomará seu rumo na direção da estrela...”. 2. Em segundo lugar, o conceito de não-integração e integração. Estes conceitos se referem, em princípio, a saúde, enquanto a desintegração se refere à doença, como reação, por exemplo, a uma experiência traumática. Donald Winnicott (1968), escreveu:
3. Em terceiro lugar, o conceito de personalização.
Donald Winnicott no novo milénio: Estratégias, princípios e modelos operacionais subjacentes ao pensamento de Donald Winnicott e às suas teorias do desenvolvimento humano
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)