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FGV\EBAPE

Mestrado Profissional em Administração Pública


Disciplina: Teorias da Administração Pública
Data: 05-01-2023
Mestrando: Cristiano de Sousa Demboski

Fordismo, Cyberfordismo e as relações de Trabalho na Receita Federal: uma drástica


transformação catalisada por uma pandemia.

1. Introdução
As relações de trabalho na Receita Federal há muito vêm passando por
transformações profundas levadas a cabo pelos avanços tecnológicos, especialmente no
que se refere ao trabalho remoto e a aferição de produtividade. Neste artigo
abordaremos a temática sob o enfoque do objetivo 1.2 da presente disciplina,
destacando os aspectos conceituais e prescritivos que orientam a prática nas
organizações públicas. Dessa forma o item de ementa relacionado ao tema abordado é o
de “Teorias organizacionais e administração pública”.

2. Desenvolvimento
Durante muitos anos o tema do trabalho remoto foi considerado um verdadeiro
tabu no âmbito da Receita Federal. As vozes contrárias ao instituto em geral alegam
razões de presença institucional, ligação entre o servidor e base geográfica em que está
lotado, integração entre a equipe e gestão do conhecimento e inovação, considerando,
em todos os casos, estarmos diante de uma tecnologia mais prejudicial do que benéfica.
Essa forma de trabalho ficou então confinada a pouquíssimas hipóteses, representando
um verdadeiro privilégio aos ungidos que eram autorizados a utilizá-la.
Nos último 5 anos diversas tentativas foram feitas para expandir essa
modalidade de trabalho sendo a principal e mais emblemática o Relatório de Atividades
Aduaneiras – RAA. O objetivo do RAA era basicamente estimar um tempo de execução
para todas as atividades de fiscalização aduaneira na Receita Federal, chegando a
minúcias de atividades contabilizadas em minutos (apor lacre em caminhões – 2
minutos).
Clarke (1990) afirmava sobre o fordismo que “a luta pelo controle é uma
característica permanente que nunca pode ser resolvida de maneira definitiva”. Com
efeito o RAA jamais cumpriu seu objetivo: imposto de cima a partir de 2019, foi foco
de intensas disputas e discussões sobre o modelo arcaico de controle de “tempos e
movimentos”, em oposição à característica eminentemente intelectual do trabalho de
fiscalização. Tudo caminhava para um impasse: servidores ressentidos recusando-se a
preencher os relatórios e de outro lado uma administração insulada em suas próprias
conclusões. Mas chegou então 2020 e o advento da pandemia de COVID-19.
Acossados pela premente necessidade de se liberar os servidores para o trabalho
em casa, todas as restrições foram relaxadas e as portarias de pré-requisitos e rígido
controle de metrificação da produtividade foram suspensas. A instituição passou a
utilizar o Microsoft Teams como forma de comunicação principal e todo o atendimento
ficou a cargo de funcionários terceirizados que movimentavam as solicitações de forma
exclusivamente digital aos servidores responsáveis.
Neste cenário foi necessária a utilização de um novo paradigma de trabalho:
confiança e o fim do controle de assiduidade e produtividade “fordista”. A cultura de
planejamento operacional, gestão de projetos e controle de resultados de produtos (não
dos meios) passou a ser o mote da organização. Os controles tornaram-se
completamente digitais e, baseados numa relação de confiança, o servidor indicava seus
resultados, semanalmente, em formulário bastante simples. Esta é uma fase
emblemática para a instituição pois em nenhum momento houve paralisia da máquina
estatal, muito pelo contrário, mutirões de regularização de CPF e organização de
atendimento por Email, WhatsApp e outros foram organizados em tempo recorde,
mantendo o apoio à população carente que naquele momento se dirigia as unidades para
poderem receber o auxílio emergencial. O trabalho com base em confiança trouxe
satisfação para os servidores, sendo a semente da tensão que apareceria no momento
seguinte.
Com o fim da pandemia a administração passou a pressionar pelo retorno dos
servidores ao trabalho presencial. O controle foi retomado com força como preconizado
por Clarke, porém em sua roupagem “Cyber” como identificado por Paula (2020): uso
massivo de análise de dados (logins, acessos, tempo disponível etc.), robôs autônomos
reduzindo a necessidade de pessoal, produtos em nuvem etc. A automação chegou com
intensidade suficiente para eliminar diversas atividades: por um lado para alocar a cara
força de trabalho do órgão em atividades mais complexas, por outro para fazer frente
aos quase 8 anos sem concurso e perda de praticamente 40% da força de trabalho no
período.
Os relatórios simples se tornaram complexos formulários eletrônicos com
detalhados controles de produtividade baseados em... tempos e movimentos! Foi
retomado o controle de horas de forma obrigatória a todos os que quisessem permanecer
no trabalho remoto. Ainda assim grande parte dos servidores optou por permanecer no
conforto dos lares, criando um problema para a administração: que fim dar aos grandes
prédios vazios das unidades locais.
Diante do relato acima e fazendo menção às transformações ocorridas Clarke
(1990) reafirmaria que “não há nada de pós-fordista nessa reestruturação”. De um lado
os trabalhadores da Receita Federal continuam e continuarão buscando melhorias em
suas condições de trabalho, enquanto a administração fará seu papel de extrair o
máximo de resultado com o mínimo de recursos, numa eterna gangorra promovida pelo
capitalismo e suas crises.

3. Considerações finais
Ainda que a conclusão do texto seja um tanto pessimista, fechando com uma
volta completa ao status quo inicial, tal percepção não é de todo correta. Primeiro é
preciso admitir que o cabo de guerra entre trabalhadores e capitalistas jamais cessará,
mas a cada “volta” é possível perceber pequenas melhorias que caminhem para uma
relação de trabalho mais benéfica ao corpo funcional.
Em primeiro lugar a cultura do trabalho remoto foi finalmente disseminada.
Ainda que as vozes dissonantes sejam cada vez mais audíveis e influentes, a simples
possibilidade do teletrabalho de forma generalizada já beneficia grande parte do corpo
funcional da RFB. Em segundo lugar a conexão proporcionada pelos sistemas da
informação quebrou barreiras e paradigmas que farão uma revolução no que concerne à
gestão de conhecimento: possibilitou a criação de equipes regionais e até nacionais, com
colegas trabalhando de todo Brasil.
O cyberfordismo, com sua comunicação máquina-máquina (Paula, 2020) está
cada vez mais presente em dispositivos como o novo módulo API Recintos, uma
funcionalidade que transforma elementos físicos (entrada de um caminhão por exemplo)
em dados que podem ser tratados pelos cientistas de dados da Receita Federal em busca
de irregularidades. Observe-se que tal inovação reduz a necessidade de PESSOAL
trabalhando em vigilância, logo, pode ser o próximo ponto de atrito da instituição,
conquanto seja inevitável.

4. Referências
PAULA, Ana Paula Paes de Paula.Fordismo, pós-fordismo e cyberfordismo: os
(des)caminhos da indústria 4.0 do capitalismo ultraneoliberal. In: XLIV ENCONTRO
DA ANPAD –EnANPAD–evento on-line –14 –16 de outubro de 2020.

CLARKE, Simon. “Crise do fordismo ou crise da social-democracia.” In: Lua Nova São
Paulo: CEDEC, set./1991, pp. 117 –150.

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