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GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR.

JAIRO POSTAL

GÊNEROS DISCURSIVOS

CURSO DE LETRAS 1

PROF. DR. JAIRO POSTAL


GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

INTRODUÇÃO

Os termos texto e discurso são, muitas vezes, tomados como


sinônimos na vida acadêmica. Na vida cotidiana, entretanto, é
comum que se entenda texto como matéria escrita para fins
escolares ou informativos, e discurso como exposição oral feita em
público.

O objetivo principal deste livro é não apenas estabelecer as


diferenças que existem entre esses dois termos, mas também
destacar a ponte que os une: o gênero.

Quando se produz qualquer texto, seja ele oral ou escrito,


faz-se necessário organizar os enunciados que dele fazem parte.
Daí, a preocupação que o enunciador tem em concatenar as ideias a
fim de deixá-las claras e coerentes ao enunciatário. Além disso, há
variados modos de organizar esses enunciados, dependendo do tipo
de mensagem que se queira transmitir: descrição de algo ou de 2
alguém, narração de uma história verídica ou fictícia, exposição ou
argumentação de uma ideia ou instrução de um procedimento
qualquer.

Essa mensagem materializada pela língua ou por outro código


constitui o que se chama texto. Assim, uma notícia de jornal, um
poema, uma charge, um bate-papo, entre tantos outros, são textos.
O texto é o resultado de um processo organizacional.

O sentido da mensagem, entretanto, não fica engaiolado na


organização do texto. Os enunciados textuais transcendem os
limites do texto, além de estarem vinculados a outros enunciados já
ditos. Em outras palavras, há uma ligação entre o texto materializado
e a vida social. A essa conexão, dá-se o nome de discurso.

A charge seguinte, de Clóvis Cabalau, ilustra bem essa


distinção.
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Essa mensagem tem um título (De volta às aulas), a fala de


um pai (Boa aula, filhão!!) e a imagem de um garoto paramentado
com máscara e com um aparelho com cinco mãozinhas. Esses três
elementos constituem o texto. Se se levar em consideração apenas
o que está materializado, permite-se ao enunciatário decodificar que
uma criança está voltando às aulas com acessórios um tanto 3
estranhos.

O verdadeiro sentido da mensagem, entretanto, só será


decifrado se o enunciatário conectar essa materialização textual com
a vida social, com a História. O enunciador, na verdade, está
fazendo uma referência às normas de distanciamento social que as
crianças devem cumprir para retornar às aulas presenciais em plena
pandemia do novo coronavírus. Emerge-se aqui o discurso,
resultante desse processo interacional (texto — História).

Outro aspecto relevante dessa mensagem é a sátira que o


enunciador faz a um fato social da atualidade. Para isso, valeu-se de
uma imagem acompanhada de um texto irônico. Esse modo de
dizer, comum na esfera jornalística, pertence a um gênero chamado
charge.

Os gêneros são, grosso modo, maneiras sociais de dizer algo.


O homem realiza inúmeros atos de comunicação dentro das mais
variadas esferas de atividade social, e, para isso, vale-se de
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enunciados relativamente estáveis, que constituem os gêneros
discursivos.

O gênero é, assim, uma ponte entre o texto — já que é uma


peça organizada com determinadas características — e o discurso,
uma vez que é um elemento sociointerativo.

Esta obra está organizada em oito capítulos. Os seis


primeiros pretendem discutir com mais profundidade os conceitos de
texto, discurso e gênero, apontando as características que os
distinguem e as que os conectam. Os dois últimos são voltados a
aspectos do estilo do texto e do discurso: em um deles, serão
estudados os níveis de linguagem; no outro, valores estilísticos da
língua portuguesa.

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1 NOÇÕES DE TEXTO

1.1 Conceituação de texto

Quando se fala em texto, a primeira ideia que vem à mente é


uma comunicação organizada por meio de palavras e arquitetada
com frases e com parágrafos.

Para a Semiótica1, entretanto, o texto possui uma


abrangência maior: é um todo de sentido. Dessa maneira, um
desenho, uma pintura, um cartum, uma fotografia, um filme, entre
outros, são também textos. Observem-se estes exemplos:

1
Semiótica é a ciência que estuda os sistemas de signos, as linguagens.
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1.2 Classificação dos textos quanto ao código

De acordo com o código empregado, os textos podem ser


divididos em três grandes grupos:

1.2.1 Texto verbal

Aquele formado por palavras. A palavra texto (do latim textu,


tecido) origina-se do verbo tecer. Assim, um texto verbal ou 6
linguístico é, metaforicamente, um tecido de palavras e de frases.
Porém, deve-se deixar bem claro que não se trata de um
aglomerado de palavras ou de frases, mas de um entrelaçamento de
peças linguísticas com significados dependentes. Trata-se de um
processo organizacional. Observe-se o seguinte exemplo:

SABÃO EM PÓ, PILHAS, COTONETES, DETERGENTE, CAFÉ.

Essa sequência de palavras não constitui texto, pois não


existe entre elas uma dependência de significados. Porém, se for
anteposta a elas a expressão lista de compras, estabelece-se uma
interdependência, constituindo, assim, um texto:

LISTA DE COMPRAS: SABÃO EM PÓ, PILHAS, COTONETES, DETERGENTE, CAFÉ.

Situação semelhante ocorre quando se escreve uma


sequência de frases sem haver conexão entre elas. Tome-se o
exemplo abaixo:
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Não existe mãe solteira, pois mãe não é estado civil. O


dinheiro tem que servir, não governar. Faz mais barulho uma árvore
que cai do que uma floresta que cresce. É preciso perder o espírito
de resistência à mudança. A juventude é a janela pela qual o futuro
entra no mundo.

Embora seja possível entender o sentido de cada frase, o


parágrafo não forma um todo de sentido, condição essencial para
que pudesse ser classificado como texto. Observe-se agora como
uma única frase pode conectar as demais:

Não existe mãe solteira, pois mãe não é estado civil. O


dinheiro tem que servir, não governar. Faz mais barulho uma árvore
que cai do que uma floresta que cresce. É preciso perder o espírito
de resistência à mudança. A juventude é a janela pela qual o futuro
entra no mundo. Essas são algumas frases marcantes proferidas
pelo papa Francisco.

É importante ainda destacar que o texto não é definido como


tal por sua extensão, mas pela totalidade de sentido que transmite. 7
Assim, uma palavra pode ser texto. Observe-se esta placa colocada
em uma biblioteca, por exemplo:

1.2.2 Texto não verbal

Aquele que não é formado por palavras. Observe-se o


seguinte cartum do desenhista Arionauro:
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Trata-se, nesse caso específico, de um texto icônico, pois o
ilustrador — sem empregar palavra alguma — elabora sua
mensagem por meio de ícones (imagens): um cão está
abandonando o dono, que é viciado em redes sociais. Faz-se,
assim, uma crítica a um costume da época contemporânea: os
relacionamentos físicos estão sendo preteridos pelos
relacionamentos virtuais.

1.2.3 Texto sincrético ou multissemiótico

Quando se empregam simultaneamente a língua e outro(s)


código(s). Observe-se o seguinte cartum:

Folha de S.Paulo, 07.nov.2008


8

Só vai entender que a expressão conto de fadas está


ironizando a inclusão da moradia entre os direitos sociais inscritos
no artigo 6.º da Constituição2 o leitor que interpretar a parte icônica
do texto, apreendendo, assim, que o diálogo se dá entre moradores
de rua.
O mundo virtual trouxe à sociedade novas maneiras de
produzir e de receber textos. Esses textos são ancorados em
diferentes tipos de códigos: línguas (orais ou escritas), ícones e
símbolos (em fotos, em vídeos, em tabelas tridimensionais), sinais

2
Art. 6.º — São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
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sonoros (em bips, em canções, em vinhetas, em jingles) etc.
Disseminaram-se, assim, os textos multissemióticos, resultantes de
uma interação semântica entre fala, escrita, imagens e outros modos
veiculados por meio de outros sentidos, como tato e olfato.

É consenso que a multissemiose marca a sociedade


contemporânea. Quando se produz um texto em um whatsap, por
exemplo, mobiliza-se um conjunto de representações, tais como
palavras, gestos, entonações e imagens.

1.3 Competências necessárias para a compreensão do texto

Além da competência linguística — domínio da língua em


questão — o leitor deve mobilizar outras competências para
interpretar a mensagem dos mais variados tipos de texto. Sem a
intenção de aprofundar nesse assunto, serão aqui relacionadas
algumas competências básicas.

1.3.1 Conhecimento do contexto

Contexto é a situação comunicativa em que se dá a 9


manifestação da linguagem (verbal ou não verbal), isto é, o conjunto
dos elementos que atuam quando se elabora a mensagem, tais
como tempo, local, assunto e intenção. Observe-se o seguinte texto:

Um casal decide passar férias numa praia do Caribe. Por


problemas de trabalho, a mulher não pode viajar com o marido,
deixando para ir uns dias depois. Quando o homem chegou e foi ao
quarto do hotel, viu que havia um computador com acesso à internet.
Então, decidiu enviar um e-mail à esposa. Porém, sem se dar conta,
errou uma letra e o enviou a outro endereço.

O e-mail foi recebido por uma senhora que acabara de chegar


do enterro do marido. A viúva — ao conferir seus e-mails —
desmaiou instantaneamente. O filho, ao entrar em casa, encontrou a
mãe desmaiada perto do computador, em cuja tela era possível ler
isto:
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Querida esposa, cheguei bem. Provavelmente se surpreenda em


receber notícias minhas por e-mail, mas agora tem computador aqui e
podem-se enviar mensagens às pessoas queridas. Acabo de chegar e já
me certifiquei de que já está tudo preparado para você chegar na sexta
que vem. Tenho muita vontade de te ver e espero que sua viagem seja tão
tranquila quanto a minha. Ah! Não traga muita roupa, porque aqui faz um
calor infernal!

Esse texto humorístico — de autoria desconhecida, circulado


pela internet — é bom exemplo para a compreensão do que é
contexto. A viúva — desconhecendo que o e-mail lhe fora enviado
por engano — entendeu que o emissor do texto fosse seu marido
falecido. A partir desse equívoco, a mensagem recebeu uma
interpretação diferente daquela intencionada pelo verdadeiro
emissor. A mulher pensou tratar-se de uma mensagem vinda do
além, remetendo-se a um contexto totalmente diverso do original.

A linguista Elisa Guimarães3 frisa que não se pode descrever


uma mensagem sem levar em conta o contexto e os efeitos que se
pretende obter. Assim, o extravio do e-mail rompeu os efeitos de 10
sentido de romantismo que o marido intencionava produzir na
mensagem.

Observe-se agora a seguinte charge:

Esse texto apenas será compreendido por quem tiver


conhecimento do contexto social fluminense da época em que ele foi
elaborado: o Presidente Michel Temer — objetivando controlar a

3
GUIMARÃES, Elisa. Texto, discurso e ensino. São Paulo: Contexto, 2009, p.77
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violência — decretou, em 16 de fevereiro de 2018, intervenção
federal no Rio de Janeiro, nomeando como interventor o General do
Exército Walter Braga Netto.

1.3.2 Percepção da intertextualidade

A percepção das relações intertextuais — das referências de


um texto a outro — depende do repertório do leitor, do seu acervo de
conhecimentos literários e de outras manifestações culturais. Quanto
mais se lê, mais se amplia a competência para apreender o diálogo
que os textos travam entre si por meio de citações e de alusões. O
efeito humorístico da seguinte tira de Maurício de Sousa, por
exemplo, só será compreendido por quem conhecer o poema
Canção do exílio, de Gonçalves Dias.

11

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras, Em cismar – sozinho, à noite


Onde canta o Sabiá; Mais prazer encontro eu lá;
As aves que aqui gorjeiam, Minha terra tem palmeiras,
Não gorjeiam como lá. Onde canta o Sabiá.

Nosso céu tem mais estrelas, Não permita Deus que eu morra
Nossas várzeas têm mais flores, Sem que eu volte para lá;
Nossas flores têm mais vida, Sem que desfrute os primores
Nossa vida mais amores. Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Em cismar, sozinho, à noite, Onde canta o Sabiá.
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras, Gonçalves Dias
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores, (Coimbra, julho de 1843)
Que tais não encontro eu cá;
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Em 1909, Osório Duque Estrada venceu um concurso


instituído para a escolha da letra do Hino Nacional Brasileiro.
Compare a segunda estrofe da Canção do exílio com a seguinte
passagem do Hino Nacional: Teus risonhos, lindos /campos, têm
mais flores;/ Nossos bosques têm mais vida,/Nossa vida no teu
seio,/mais amores. Mais uma vez, está presente a intertextualidade.

Existem dois importantes processos para efetivar o diálogo


entre textos: a citação e a alusão.

1.3.2.1 Citação

A citação é o processo pelo qual o sentido do texto


incorporado é reproduzido ou transformado.

Tanto na tirinha do Bidu quanto na letra do Hino Nacional,


incorporaram-se versos do poema Canção do exílio. A diferença é
que, no hino, o sentido do texto original foi mantido; já nos
quadrinhos, com intenção de provocar humor, alterou-se a ideia do
texto-fonte. 12

Se as palavras forem modificadas, mas a ideia do texto


original for reproduzida pelo novo texto, tem-se a paráfrase;
entretanto, quando o sentido do texto é transformado com o objetivo
de satirizar ou de criticar uma realidade, tem-se a paródia.

Assim, enquanto os versos de Osório Duque Estrada são uma


paráfrase do poema de Gonçalves Dias, os versos declamados pelo
Bidu constituem uma paródia.

Textos bíblicos com linguagem simplificada para crianças,


textos da literatura clássica em quadrinhos, resumos de livros, entre
outros, são exemplos de paráfrase, já que o novo texto reproduz o
sentido do texto-fonte.

O seguinte trecho foi extraído da famosa Carta de Pero Vaz


de Caminha endereçada a D. Manuel I. Neste excerto, o escrivão da
frota de Pedro Álvares Cabral descreve ao rei de Portugal o aspecto
físico dos índios encontrados no litoral brasileiro:
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a feiçam deles he seerem pardos maneira dauerme lhados de boõs


Rostros e boos narizes bem feitos. am dam nuus sem nenhuüa cubertura
nem estimam ne nhuüa coussa cobrir nem mostrar suas vergonhas, e
estam açerqua disso com tamta jnocemçia como teem em mostrar o
Rostro.

Abaixo, lê-se o mesmo trecho adaptado à língua portuguesa


atual:

A feição deles é parda, um pouco avermelhada, com belos rostos e


narizes. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de
cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisto são tão inocentes como quando
mostram o rosto.

(TORRES, Adriana Sobreira; PEREIRA NETO, André de Faria. A carta de Pero Vaz de
Caminha. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1991.)

Os professores Adriana Torres e André Pereira reescreveram


a Carta de Caminha, selecionando as informações mais importantes 13
e adaptando-as à linguagem de hoje a fim de torná-las
compreensíveis aos alunos da educação básica. Embora os autores
tenham resumido as informações e alterado a linguagem e as
estruturas gramaticais, não modificaram a ideia básica do texto
original. Trata-se, então, de uma paráfrase da histórica carta.

Observem-se agora algumas relações intertextuais icônicas:


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Não perceberá que Maurício de Sousa pintou um quadro


paródia quem não conhecer a famosa obra Mona Lisa, de Leonardo
da Vinci.

A Criação de Adão, afresco pintado por Michelangelo no teto


da Capela Sistina, é também motivo de constantes paródias.

14

No texto seguinte, o chargista Myrris, ao delegar voz ao Cristo


Redentor, estabelece relação de intertextualidade com o Evangelho
de Mateus, transformando o sentido do texto proferido por Jesus
Cristo no Getsêmani (“Meu Pai, se possível, afasta de mim este
cálice!”). Trata-se de uma paródia, uma vez que o texto-base foi
alterado para fazer uma crítica social.
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Há processos intertextuais de citação em que partes do


texto-fonte são literalmente reproduzidas. Observe-se:

Caulos. Vida de passarinho. 2005.


15

1.3.2.2 Alusão

A alusão é um processo de relação intertextual mais sutil do


que a citação. Nesse mecanismo, faz-se uma menção explícita ou
implícita a algo ou a alguém, objetivando trazer à lembrança do
destinatário o texto-fonte. A título de exemplo, observe-se a tirinha
abaixo:
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Para compreender o sarcasmo do Garfield, é fundamental que


o destinatário conheça o texto biográfico do pintor holandês Vincent
Van Gogh, que, após discutir com o amigo Gauguin, cortou, em um
ataque de loucura, uma das orelhas em sinal de penitência.

Nos seguintes quadrinhos, a intertextualidade também é


implícita.

16

A fala do passarinho no primeiro e no terceiro quadrinhos


permite ao destinatário associar pedra no meio do caminho com
poema. É inevitável que venha à lembrança o seguinte poema de
Carlos Drummond de Andrade:
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No meio do caminho tinha uma pedra


Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

1.3.3 Competência enciclopédica

O linguista Dominique Maingueneau4 chama de competência


enciclopédica o número considerável de conhecimentos que se tem
sobre o mundo. Observe-se o seguinte provérbio: Netuno é deus do
mar, mas Baco tem afogado mais gente. Ora, se o leitor
desconhecer que, na mitologia romana, Baco é deus do vinho, não
interpretará o sentido do provérbio.
17
A leitura de uma charge também exige um conhecimento de
mundo, pois geralmente ela é veiculada pela imprensa e tem por
tema um acontecimento recente, comportando crítica e focalizando,
por meio de caricatura, uma ou mais personagens envolvidas.
Observe-se a seguinte charge:

4
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo:
Cortez, 2001.
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Em 2005, num pequeno jornal da Dinamarca, doze charges — dez delas


com caricaturas do profeta Maomé — colocaram o mundo islâmico em clima de
guerra santa. O homem ocidental só vai compreender essa reação muçulmana,
se tiver conhecimento da religião islâmica, cuja tradição, por exemplo, proíbe
que as feições de Maomé sejam desenhadas; além disso, o profeta foi
retratado como terrorista, o que é considerado blasfêmia segundo o Islã.

A compreensão de uma piada inteligente pode também exigir um


conhecimento de mundo. Observe-se:

Durante uma prova de Artes, a professora – percebendo que


Joãozinho não parava de roer as unhas – repreendeu-o:
— Mas que coisa feia, Joãozinho!
O garoto retrucou:
— Por que feio? Faço isso quando fico nervoso.
A professora tentou persuadi-lo:
— Um dia você me dará razão. A Vênus de Milo começou
assim.

Só entenderá a espirituosidade da professora aquele que conhecer a


imagem da Vênus de Milo: escultura de mármore – sem os braços –
encontrada na ilha grega de Milos em 1830.
18

1.3.4 Percepção da pluralidade de leitura de um texto

Leia-se o seguinte texto de Stanislaw Ponte Preta:

A velha contrabandista

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava
pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal
da alfândega — tudo malandro velho — começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega
mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

— Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí
atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que
ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

— É areia!
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Aí quem riu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha
saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e
dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela
montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com
areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando
ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez.

Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O
fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido, o fiscal interceptou a velhinha
e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

— Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo


essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é
contrabandista.
— Mas no saco só tem areia! — insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta,
quando o fiscal propôs:

— Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não
apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o
contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?

— O senhor promete que não "espaia"? — quis saber a velhinha.

— Juro - respondeu o fiscal. 19

— É a lambreta.

Podemos interpretá-lo tão somente como um texto humorístico, mas


pode-se também — fazendo uma análise textual mais profunda — verificar a
intenção do autor: criticar o relaxamento existente nas fiscalizações das
fronteiras brasileiras. O contrabando sempre existiu em maior ou menor grau. A
extensão das fronteiras brasileiras e a quantidade de países limítrofes facilitam
a entrada de pessoas e de mercadorias sem o devido controle das autoridades.
A falta de rigidez existente em alguns vizinhos brasileiros também serve como
um estímulo adicional a esse fenômeno.

Observe-se agora o texto A cigarra e a formiga, escrita no século XVII


pelo fabulista francês Jean de La Fontaine:
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A cigarra, sem pensar "Antes de agosto chegar,


em guardar, pode estar certa a senhora:
a cantar passou o verão. pago com juros, sem mora."
Eis que chega o inverno, e, então, Obsequiosa, certamente,
sem provisão na despensa, a formiga não seria.
como saída, ela pensa "Que fizeste até outro dia?"
em recorrer a uma amiga: perguntou à imprevidente.
sua vizinha, a formiga, "Eu cantava, sim, senhora,
pedindo a ela emprestado noite e dia, sem tristeza."
algum grão, qualquer bocado, "Tu cantavas? Que beleza!
até o bom tempo voltar. Muito bem: pois dança agora..."

A fábula A cigarra e a formiga é um texto metafórico; portanto, em sua


integralidade, permite outra interpretação, além daquela que está na superfície
textual. O fabulista confere à cigarra e à formiga traços humanos: elas
conversam, tratam-se como pessoas (tu, senhora), realizam atos humanos
(cantar, pedir emprestado, negar ajuda etc.). Percebe-se, então, que a essa
narrativa se acrescenta um segundo plano de sentido: o humano. Se o
narrador tivesse usado personagens humanas, o texto não teria a mesma
expressividade. Quando se mostra que existem pessoas que exercem o papel
de formiga, e outras que exercem o papel de cigarra, aproveitam-se traços
próprios desses animais para projetá-los nas pessoas. A formiga significa,
nesse texto, o homem previdente, que trabalha e que poupa a fim de enfrentar
a época de crise. A cigarra significa o homem imprudente, aquele que, em 20
época de abundância, prefere divertir-se a trabalhar. A última fala da formiga —
Tu cantavas? Que beleza! Muito bem: pois dança agora... — representa a
negação da ajuda, uma vez que o verbo dançar no imperativo está no sentido
informal: dar-se mal, levar a pior.
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2 MODOS DE ORGANIZAÇÃO TEXTUAL

Os textos — de acordo com a maneira como são organizados — podem


ser descritivos, narrativos, dissertativos ou injuntivos, classificação esta que se
tornou consagrada no meio escolar.

É importante perceber a diferença entre eles.

2.1 TEXTO DESCRITIVO

Tipo de texto em que se descrevem as características de um objeto, de


uma pessoa, de um animal, de um ambiente ou de uma paisagem 5. Na
descrição, compõe-se um “retrato”, por meio de palavras, daquilo a que se quer
dar relevância.

O emissor do texto descritivo visa a produzir no receptor uma imagem


mental semelhante à imagem real ou fictícia do que está sendo retratado.
21
Observe-se a descrição da seguinte paisagem:

Manhã fria de inverno, sol tímido. Plantas com gotas de orvalho cintilantes.
Pessoas embrulhadas em blusa e em cachecol indiferentes a um mendigo seminu,
debaixo da ponte, abraçado ao seu cão. Nas ruas, motoristas e puxadores de carroça
parados no farol. Cidade grande, terra de contrastes.

Nota-se, no texto acima, total ausência de verbo, classe de palavra que


exprime a realidade dinamicamente. Esse recurso é bem-vindo em uma
descrição, uma vez que a redução de ações produz efeito de sentido de
estaticidade, característica do estilo fotográfico ou pictórico. A acentuada
adjetivação, por sua vez, encarrega-se de dar colorido às imagens evocadas
pelos substantivos (manhã fria, sol tímido, gotas de orvalho cintilantes,
pessoas indiferentes, mendigo seminu, motoristas e puxadores de carroça
parados, cidade grande, terra de contrastes).

Nem toda descrição, entretanto, é estática. A descrição animada


aproveita o momento em que os seres estão em movimento para descrevê-los.
Tome-se como exemplo o seguinte texto:

5
Costuma-se diferenciar ambiente de paisagem. O primeiro refere-se a um lugar fechado (uma
sala, um quarto, um escritório etc.); o segundo, a um lugar a céu aberto (um parque, uma praia,
um vale, uma rua etc.).
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A águia é a ave que possui a maior longevidade da espécie. Chega a viver 70


anos. Mas, para chegar a essa idade, a certa altura da vida, tem que tomar uma séria
e difícil decisão. Aos 40 anos, ela está com as unhas compridas e flexíveis, não
conseguindo mais agarrar as presas das quais se alimenta; o bico alongado e
pontiagudo se curva; apontando contra o peito, estão as asas, envelhecidas e pesadas
por causa da grossura das penas, o que torna o voo difícil. Então, a águia só tem duas
alternativas: morrer ou enfrentar um dolorido processo de renovação que durará 150
dias.

Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha e recolher-se em


um ninho próximo a um paredão onde ela não necessite voar. Então, após encontrar
esse lugar, a águia começa a bater com o bico em uma parede até conseguir
arrancá-lo. Depois disso, espera nascer um novo bico, com o qual vai depois arrancar
as unhas. Quando as novas unhas começam a nascer, ela passa a arrancar as velhas
penas. E, só após cinco meses, sai para o famoso voo de renovação a fim de viver,
então, mais 30 anos.

Alguns verbos desse texto permitem visualizar mentalmente certos


movimentos da águia: dificuldade de agarrar as presas (... unhas compridas e
flexíveis, não conseguindo mais agarrar as presas...), voo para o topo da
montanha (... voar para o alto de uma montanha...), batida do bico contra um
paredão (... começa a bater com o bico em uma parede até conseguir
arrancá-lo...), retirada das unhas (... vai depois arrancar as unhas...), retiradas
das penas (... passa a arrancar as velhas penas... ), voo de renovação ( ...sai
22
para o famoso voo de renovação... ).

A descrição de pessoas já não é tão simples como a de uma paisagem


ou a de um animal, uma vez que ela não se limita à aparência externa, como
altura, peso, cor da pele, idade, cabelos, traços do rosto, voz etc. É possível
descrever alguém, considerando os elementos que se associam ao seu
comportamento, como personalidade (se possui convicções ou se é
influenciado pelas opiniões alheias), temperamento (se é extrovertido ou
introvertido; se é otimista ou pessimista; se é calmo ou irascível), caráter (se é
ou não honesto, se é egocêntrico ou altruísta), gostos pessoais (tipos de
música, de esportes, de lazer) etc. Assim, a descrição de determinada pessoa
deve levar em conta não apenas as características físicas (descrição objetiva),
mas também as psicológicas (descrição subjetiva). Atente-se:

Dona Almerinda tem seus oitenta anos. Baixinha e magricela, possui uma
destreza ímpar na cozinha. Seus cabelos de neve ficam, na maior parte do tempo,
acomodados em uma touca de renda. O amor às crianças carentes a faz, todas as
tardes, preparar bolinhos de chuva, que ela mesma leva ao orfanato do bairro. A
alegria contagiante da velhinha é comentada em todo o bairro. À noite, senta-se na
poltrona que pertencera a seu pai, e, após limpar meticulosamente os óculos, lê seu
livro predileto, a Bíblia. Antes de dormir, roga a Deus que lhe dê sempre forças para
servir a seus netinhos adotivos.
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Pela leitura do texto acima, é possível criar a imagem mental de uma


mulher com as seguintes características físicas: idosa, baixa, magra, com
óculos e com cabelos brancos presos por uma touca. Tal descrição, chamada
de objetiva, é perceptível a olho nu, ou seja, os traços apresentados podem ser
conferidos por quem vê o objeto da descrição, uma vez que se limita a uma
visão “de fora”.

Deve-se, entretanto, levar em consideração que os comportamentos da


personagem são descritos sob a ótica do destinador, ou seja, são selecionados
traços psicológicos que interessam ao autor; daí, ser dito que a descrição
psicológica é subjetiva. Dona Almerinda é retratada como uma mulher altruísta
(ama as crianças carentes), alegre (possui alegria contagiante), religiosa (lê
diariamente a Bíblia, ora a Deus antes de dormir) e hábil (possui destreza na
cozinha). Essa é a maneira como o descritor sente a realidade, que pode não
ser a mesma de outro observador. Em outras palavras, o objeto descrito pode
apresentar-se transfigurado de acordo com a sensibilidade de quem o
descreve. O autor procura transmitir a impressão, a emoção que a realidade
lhe causa. Imagine-se o retrato de Dona Almerinda feito por outro descritor.

Dona Almerinda é uma viúva de oitenta anos. Baixa, magra, de cabelos


brancos e com óculos na ponta do nariz, a velha transpira hipocrisia. A amargura da
alma não lhe impede que sustente um constante sorriso nos lábios a fim de manter as
aparências. Quem conhece seu passado sabe o lobo que se esconde sob a pele de 23
carneiro. Quando jovem e rica, maltratava as filhas das criadas. Com a falência do
marido, tornou-se pobre. Prepara, por isso, todas as tardes, bolinhos de chuva para
um orfanato. Faz questão de levá-los pessoalmente a fim de receber diariamente o
dinheiro a que tanto é apegada. À noite, senta-se em uma poltrona e lê versículos da
Bíblia buscando aliviar a consciência pesada. Antes de dormir, roga a Deus que
fantasmas não venham atormentá-la.

Percebe-se que o segundo observador faz a mesma descrição física de


Dona Almerinda; entretanto, a apreensão que ele faz da realidade é outra, o
que o leva a fazer uma descrição subjetiva diversa do primeiro observador.
Agora, Dona Almerinda é apresentada como hipócrita (sorriso para manter as
aparências), perversa (maltratava as filhas das criadas), amarga (amargura da
alma), gananciosa (apegada ao dinheiro), atormentada (consciência pesada,
medo de fantasmas).

Observe-se agora a descrição de um objeto.

Tem o formato semelhante ao de uma torre de igreja. É constituído por um


único fio metálico que, dando duas voltas sobre si mesmo, assume a configuração de
dois desenhos (um dentro do outro), cada um deles apresentando uma forma
específica. Essa forma é composta por duas figuras geométricas: um retângulo cujo
lado maior apresenta aproximadamente três centímetros e um lado menor de cerca de
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um centímetro e meio; um dos seus lados menores é, ao mesmo tempo, a base de um


triângulo equilátero, o que acaba por torná-lo um objeto ligeiramente pontiagudo.

O material metálico de que é feito confere-lhe um peso insignificante. Por ser


niquelado, apresenta um brilho suave. Prendem-se as folhas de papel fazendo que
elas se encaixem no meio dele.

Está presente em todos os escritórios ou em locais onde seja necessário


separar folhas em blocos diferenciados. Embora aparentemente insignificante, dadas
as suas reduzidas dimensões, é muito útil na organização de papéis.

(GRANATIC, Branca. Técnicas básicas de redação. 3.ed. São Paulo: Scipione, 1996)

Esse texto descreve um prendedor de papéis, conhecido como clipe. Ao


descrever um objeto, é importante falar de seu formato, de suas dimensões
(largura, comprimento, altura, diâmetro etc.), do material de que é feito, do
peso, da cor e da textura. Esses detalhes vão permitir ao leitor formar na mente
uma imagem do objeto descrito.

Leia-se o texto humorístico Comunicação, de Luís Fernando Veríssimo.


Aqui o autor satiriza a dificuldade que um comprador tem de descrever um
objeto de cujo nome não se lembra.

24
É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comunicar o que
você quer. Imagine-se entrando numa loja para comprar um... um... como é mesmo o
nome?

— Posso ajudá-lo, cavalheiro?

— Pode. Eu quero um daqueles, daqueles...

— Pois não?

— Um... como é mesmo o nome?

— Sim?

— Pomba! Um... um... Que cabeça a minha. A palavra me escapou por


completo. É uma coisa simples, conhecidíssima.

— Sim senhor.

— O senhor vai dar risada quando souber.

— Sim senhor.

— Olha, é pontuda, certo.

— O quê, cavalheiro?
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— Isso que eu quero. Tem uma ponta assim, entende? Depois vem assim,
assim, faz uma volta, aí vem reto de novo, e na outra ponta tem uma espécie de
encaixe, entende? Na ponta tem outra volta, só que esta é mais fechada. E tem um,
um... Uma espécie de, como é que se diz? De sulco. Um sulco onde encaixa a outra
ponta, a pontuda, de sorte que o, a, o negócio, entende, fica fechado. É isso. Uma
coisa pontuda que fecha. Entende?

— Infelizmente, cavalheiro...

— Ora, você sabe do que eu estou falando.

— Estou me esforçando, mas...

— Escuta. Acho que não podia ser mais claro. Pontudo numa ponta, certo?

— Se o senhor diz, cavalheiro.

— Como, se eu digo? Isso já é má vontade. Eu sei que é pontudo numa ponta.


Posso não saber o nome da coisa, isso é um detalhe. Mas sei exatamente o que eu
quero.

— Sim senhor. Pontudo numa ponta.

— Isso. Eu sabia que você compreenderia. Tem?

— Bom, eu preciso saber mais sobre o, a, essa coisa. Tente descrevê-la outra
vez. Quem sabe o senhor desenha para nós? 25

— Não. Eu não sei desenhar nem casinha com fumaça saindo da chaminé.
Sou uma negação em desenho.

— Sinto muito.

— Não precisa sentir. Sou técnico em contabilidade, estou muito bem de vida.
Não sou um débil mental. Não sei desenhar, só isso. E hoje, por acaso, me esqueci do
nome desse raio. Mas fora isso, tudo bem. O desenho não me faz falta. Lido com
números. Tenho algum problema com os números mais complicados, claro. O oito, por
exemplo. Tenho que fazer um rascunho antes. Mas não sou um débil mental, como
você está pensando.

— Eu não estou pensando nada, cavalheiro.

— Chame o gerente.

— Não será preciso, cavalheiro. Tenho certeza de que chegaremos a um


acordo. Essa coisa que o senhor quer, é feito do quê?

— É de, sei lá. De metal.

— Muito bem. De metal. Ela se move?

— Bem... É mais ou menos assim. Presta atenção nas minhas mãos. É assim,
assim, dobra aqui e encaixa na ponta, assim.
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— Tem mais de uma peça? Já vem montado?

— É inteiriço. Tenho quase certeza de que é inteiriço.

— Francamente...

— Mas é simples! Uma coisa simples. Olha: assim, assim, uma volta aqui, vem
vindo, vem vindo, outra volta e clique, encaixa.

— Ah, tem clique. É elétrico.

— Não! Clique, que eu digo, é o barulho de encaixar.

— Já sei!

— Ótimo!

— O senhor quer uma antena externa de televisão.

— Não! Escuta aqui. Vamos tentar de novo...

— Tentemos por outro lado. Para o que serve?

— Serve assim para prender. Entende? Uma coisa pontuda que prende. Você
enfia a ponta pontuda por aqui, encaixa a ponta no sulco e prende as duas partes de
uma coisa.
26
— Certo. Esse instrumento que o senhor procura funciona mais ou menos
como um gigantesco alfinete de segurança e...

— Mas é isso! É isso! Um alfinete de segurança!

— Mas do jeito que o senhor descrevia parecia uma coisa enorme, cavalheiro!

— É que eu sou meio expansivo. Me vê aí um... um... Como é mesmo o nome?

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comunicação. In: Para gostar de ler, v.7. 3.ed. São Paulo: Ática, 1982. p. 35-37.)

É importante ressaltar que a descrição pode vir inserida em textos


narrativos ou dissertativos, como se verá mais adiante.
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2.2 TEXTO NARRATIVO

Tipo de texto em que se relata uma história ou um acontecimento, com


personagens reais ou fictícias. Na narração, compõe-se um “filme”, por meio de
palavras, da sequência de ações que se propõe a contar.

O verbo é de fundamental importância a esse tipo de texto, uma vez que


é o responsável por dar animação às personagens e progressão ao enredo.

A narrativa pode ser real ou fictícia.

A narrativa real é aquela que relata fatos. É encontrada, por exemplo,


em livros de História ou em jornais. A linguagem empregada reveste-se de
impessoalidade, já que visa tão somente a instruir ou a informar. Observe-se o
seguinte texto, do jornalista Laurentino Gomes:

O grito

Ao aproximar-se do riacho do Ipiranga, às 16h30min de 7 de setembro de


1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com dor
de barriga. A causa dos distúrbios intestinais é desconhecida. Acredita-se que tenha
sido algum alimento malconservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral
paulista, ou a água contaminada das bicas e dos chafarizes que abasteciam as tropas 27
de mula na serra do Mar. Testemunha dos acontecimentos, o coronel Manuel
Marcondes de Oliveira Melo, subcomandante da guarda de honra e futuro barão de
Pindamonhangaba, usou em suas memórias um eufemismo para descrever a situação
do príncipe. Segundo ele, a intervalos regulares D. Pedro se via obrigado a apear do
animal que o transportava para “prover-se” no denso matagal que cobria as margens
da estrada.

A montaria usada por D. Pedro nem de longe lembrava o fogoso alazão que,
meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro Independência ou
Morte, também chamado de O Grito do Ipiranga, a mais conhecida cena do
acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”.
Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma “bela besta
baia”. Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte e confiável.
Era esta a forma correta e segura de subir a serra do Mar naquela época de caminhos
íngremes, enlameados e esburacados.

Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e pela poeira do
caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo de seu tempo, que D. Pedro
proclamou a Independência do Brasil.

(GOMES, Laurentino. 1822: como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco ajudaram
D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.)
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A narrativa fictícia, ao contrário, é aquela que relata uma história que


imita os acontecimentos da vida, levando o destinatário a julgar afetiva ou
psicologicamente a realidade. Assim, as personagens da narrativa fictícia
devem corresponder a modelos do mundo real. A isso se dá o nome de
verossimilhança. Atente-se ao seguinte apólogo6, de autoria de Machado de
Assis:

Um apólogo

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir
que vale alguma cousa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem
cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se
com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa. 28


— Decerto que sou.

— Mas por quê?


— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que
os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os
cose sou eu, e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou
feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por
você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo
adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é
que prendo, ligo, ajunto...

6
O apólogo é uma narrativa protagonizada por objetos inanimados (plantas, pedras, rios,
relógios, moedas, estátuas etc.); já a fábula é protagonizada por animais irracionais.
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Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se


disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si,
para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha,
pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando
orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da
costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a
agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela,
unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo
enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir
palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e
foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o
plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o
dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e
ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-


se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E
enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava
daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha,
perguntou-lhe:
29
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo
parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas,
enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das
mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não
menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai
gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a
cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
(ASSIS, Machado de. Contos. 6.ed. São Paulo: Ática, 1977. p. 73-74.)

Percebe-se, pela leitura do texto, que agulha, linha e alfinete


representam tipos humanos que são encontrados no mundo real. A agulha
representa o homem que — trabalhando arduamente — abre caminhos para
outro prosperar; a linha, o homem que prospera graças às circunstâncias
criadas por outro, ou seja, aquele tipo que se favorece do trabalho alheio; já o
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alfinete é o ser acomodado, o que realiza a função cotidiana que lhe é


atribuída, sem prosperar nem ajudar os outros.

O texto narrativo apresenta, em geral, os seguintes elementos básicos:

a) Enredo – a totalidade das causas e dos efeitos que se organizam no


curso da história narrada. É a trama em si, que se compõe de
introdução, de desenvolvimento e de desfecho.

b) Personagens – seres animados ou inanimados que atuam na história. A


palavra personagem provém do termo latino persona, cujo significado é
pessoa. Assim, pela etimologia do vocábulo, os animais irracionais e os
seres inanimados não poderiam ser rigorosamente considerados
personagens. Entretanto, quando são instalados no universo ficcional,
tendem a ser projeções de tipos humanos, o que é comum nos apólogos
e nas fábulas.

c) Espaço – local em que se desenrolam os acontecimentos narrados.

d) Tempo – época ou período em que ocorrem os acontecimentos. 30

e) Foco narrativo – o ponto de vista por meio do qual a história é contada,


ou seja, primeira ou terceira pessoa. Quando se narra em primeira
pessoa, tem-se narrador-personagem, já que aquele que conta a história
participa da ação. Quando se narra em terceira pessoa, tem-se
narrador-observador, já que o contador da história não participa dela,
apenas a observa.

Do texto Inferno nacional, de Stanislaw Ponte Preta, serão destacados


os elementos básicos da narração. Observe-se:

Inferno nacional

A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi


contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais
puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida, o
falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador pelo PTB, foi
diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem
conversou, foi direto para o Inferno. Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e
perguntou:
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— Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos,


cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no
departamento administrado pelo seu país de origem. Podia ficar no departamento do
país que escolhesse. Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha
para escolher o seu departamento.

Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o departamento dos
Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe
caberia para toda a eternidade. Entrou no departamento dos Estados Unidos e
perguntou como era o regime ali.

— Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno
de duzentos graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de
zero até as três horas, e voltar ao forno de duzentos graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento


menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas tudo era igual:
a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo
lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de duzentos
graus durante o dia e geladeira de cem graus abaixo de zero pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um


departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a
dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: “Aqui tem peixe por debaixo 31
do angu”. Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por
que a fila era maior, e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que
não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção,
disse baixinho:

— Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a


geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de trinta e cinco graus por dia.

— E as quinhentas chibatadas? — perguntou o falecido.

— Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o


ponto e cai fora.

O enredo é a história em si. Na introdução, o autor apresenta um político


inominado que, por cometer falcatruas, vai para o inferno após a morte. No
desenvolvimento do texto, mostra-se o falecido à procura de um departamento
ideal para passar a eternidade. Antes, porém, Satanás lhe havia explicado que
cada departamento era administrado por um país da Terra. O condenado visita
o departamento dos Estados Unidos, da Rússia, do Japão e da França, mas a
rigidez administrativa desses países o desanima (quinhentas chibatadas, forno
de 200° C, geladeira com 100º C negativos). No desfecho, mostra-se uma
enorme fila à porta do Brasil. O morto descobre o motivo: no departamento
brasileiro, o forno está quebrado, a geladeira anda enguiçada e o algoz assina
o ponto e cai fora.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

A personagem principal é o falecido. Personagens secundárias


interagem com ele: Satanás, o responsável pelo departamento dos Estados
Unidos, e o camarada da frente.

O espaço é o inferno. O tempo é o início do período pós-morte do


falecido.

O foco narrativo é de terceira pessoa, pois o narrador não participa da


história, apenas a observa.

Em uma narração, outro elemento a ser observado é o registro da fala


das personagens. Observem-se os exemplos extraídos dos textos Um apólogo
e Inferno nacional, respectivamente:

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:


— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda
enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e perguntou:


— Qual é o lance aqui?

32
Na representação de diálogos, quando se reproduz textualmente a fala
das personagens, deixando-as falar, tem-se o discurso direto. Cria-se, assim,
efeito de sentido de que o narrador tem diante de si o que aconteceu no
passado. Para indicar a pessoa que está falando durante o diálogo, o narrador
usa os chamados verbos dicendi7 ou verbos de elocução: afirmar, declarar,
dizer, perguntar, indagar, interrogar, protestar, exclamar, responder, retrucar,
gritar, pedir, solicitar, mandar, aconselhar etc.

Antes do registro da fala da personagem, deve-se colocar travessão (—),


sinal que dará início ao parágrafo.
Quando o narrador quer informar qual personagem vai falar, pode-se
organizar o texto de três maneiras:

a) Explica-se primeiramente quem vai falar. Coloca-se o sinal chamado


dois-pontos (:). Abre-se um novo parágrafo para nele colocar o
travessão, seguido da fala da personagem. Ex.:

E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?

7
Dicendi, em latim, significa de dizer. Verbo dicendi significa literalmente verbo de dizer.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

b) Registra-se primeiramente a fala da personagem antecedida de


travessão. Na mesma linha, coloca-se outro travessão e, em seguida, a
frase pela qual o narrador explica quem está falando. Ex.:

— E as quinhentas chibatadas? — perguntou o falecido.

c) No interior da fala da personagem, antecedida de travessão, coloca-se,


entre vírgulas ou entre travessões, a frase pela qual o narrador explica
quem está falando. Ex.:

— Doutor, perguntou ansiosa a paciente, o meu caso é grave?

— Helena, eu exijo — disse o pai em tom áspero — que você me


conte a verdade.

Nem sempre os verbos dicendi aparecem expressos. É comum omiti-los


nas falas curtas entre dois interlocutores, bastando, para orientar o leitor, a
abertura de parágrafo precedido por travessão. Observe-se o seguinte diálogo
entre Macabéa e Olímpico, personagens de A hora da estrela, de Clarice
Lispector: 33

— Pois é.
— Pois é o quê?
— Eu só disse pois é.
— Mas pois é o quê.
— Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
— Entender o quê?
— Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
— Falar então de quê?
— Por exemplo, de você.
— Eu?

Há também o discurso indireto. Nele o narrador reproduz com suas


palavras a fala das personagens, transmitindo apenas a essência do
pensamento a elas atribuído. Ex.:

Em lá chegando, (o falecido) pediu audiência a Satanás e


perguntou-lhe qual era o lance ali.

Era uma vez uma agulha que perguntou à linha por que ela estava
com aquele ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que valia
alguma naquele mundo.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Na passagem do discurso direto para o indireto, ocorrem algumas


alterações regulares. Observe-se o quadro abaixo:

DISCURSO DIRETO DISCURSO INDIRETO


pronome pessoal de 1ª ou de 2ª pessoa pronome pessoal de 3ª pessoa
presente do indicativo pretérito imperfeito do indicativo
pretérito perfeito do indicativo pretérito mais-que-perfeito
futuro do presente do indicativo futuro do pretérito do indicativo
futuro do subjuntivo pretérito imperfeito do subjuntivo
imperativo pretérito imperfeito do subjuntivo
pronome este(a) ou esse(a) pronome aquele(a)
pronome isto ou isso pronome aquilo
pronome meu ou minha pronome seu (dele) ou sua (dela)
pronome teu ou tua pronome seu (dele) ou sua (dela)
pronome nosso ou nossa pronome seu (dele) ou sua (dela)
advérbio aqui ou cá advérbio lá
advérbio hoje locução adverbial naquele dia
advérbio agora locução adverbial naquele momento
advérbio amanhã locução adverbial no dia seguinte
advérbio ontem locução adverbial no dia anterior

Ex.:

DISCURSO DIRETO
34
Estou aqui, em casa, mas agora não posso recebê-lo, disse o presidente.

DISCURSO INDIRETO
O presidente disse que estava lá, em casa, mas, naquele momento, não
podia recebê-lo.

DISCURSO DIRETO
Ricardo disse à mãe:
– Viajarei neste final de semana.

DISCURSO INDIRETO
Ricardo disse à mãe que viajaria naquele final de semana.

DISCURSO DIRETO
– Tu me amas? – perguntou Cristo a Pedro.

DISCURSO INDIRETO
Cristo perguntou a Pedro se ele o amava.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

DISCURSO DIRETO
– Quebrei um vaso caríssimo – disse preocupado o garoto.

DISCURSO INDIRETO
O garoto disse preocupado que tinha quebrado um vaso caríssimo.

DISCURSO DIRETO
A mulher confessou ao marido:
– Estou preocupada com nosso filho.

DISCURSO INDIRETO
A mulher confessou ao marido que estava preocupada com o filho deles.

DISCURSO DIRETO
– Estude agora, ordenou a mãe ao filho.

DISCURSO INDIRETO
35
A mãe ordenou ao filho que estudasse naquele momento.

DISCURSO DIRETO
– Se ganhar o prêmio, comprarei um carro – disse o apostador.

DISCURSO INDIRETO
O apostador disse que, se ganhasse o prêmio, compraria um carro.

DISCURSO DIRETO
O pobre homem disse ao padre:
– Isto me perturba muito.

DISCURSO INDIRETO
O pobre homem disse ao padre que aquilo o perturbava muito.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

DISCURSO DIRETO
– Arruma teu quarto, ordenou a avó ao neto.

DISCURSO INDIRETO
A avó ordenou ao neto que arrumasse o quarto dele.

DISCURSO DIRETO
– Irei à casa de meus pais hoje – disse Raquel.

DISCURSO INDIRETO
Raquel disse que iria à casa de seus pais naquele dia.

DISCURSO DIRETO
– Viajarei a Santos amanhã – disse Fernando.

DISCURSO INDIRETO
Fernando disse que viajaria a Santos no dia seguinte.
36

DISCURSO DIRETO
– Fui ontem ao clube – disse Evaristo.

DISCURSO INDIRETO
Evaristo disse que tinha ido ao clube no dia anterior.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

2.3 TEXTO DISSERTATIVO

O texto dissertativo pode ser argumentativo ou expositivo.

2.3.1 Argumentativo

Tipo de texto em que se expõem ideias sobre determinado assunto,


seguidas de argumentos que as comprovem.

Assim, a partir de uma ideia central, o autor passa a apresentar uma


série de argumentos, visando a convencer o leitor dos pontos de vista
defendidos no texto.

A título de exemplo, observe-se a seguinte dissertação, de autoria de


Rachel de Queiroz:

Morrer com dignidade

A medicina moderna tem feito, em certos sentidos, progressos incríveis. Com


37
suas drogas miraculosas, com suas audácias de cirurgia antes nunca imaginadas. O
coração, que era dantes um músculo intocável, é hoje cortado, retalhado, emendado e
até transplantado. Mãos, pés, orelhas, narizes decepados são reimplantados com
êxito. No abdômen, já não existe ousadia que não se pratique. E até na área sagrada,
o cérebro, o cirurgião se atreve e vai operando os seus pequenos milagres.

As drogas já curam tifo, sífilis, septicemia, até lepra! E tornam possível uma
vida longa aos diabéticos e a outros portadores de males crônicos outrora
inexoráveis1.

Mas há uma hora em que as grandes drogas falham, a cirurgia nada pode e a
morte exige o seu defunto. Então, os doutores sabem-se vencidos, mas não se
entregam e iniciam a batalha que já não é a da cura, mas a de ganhar uma semana,
um dia, uma hora, um minuto. O doente, em cima da cama, já deixou de ser um ente
humano, é um simples objeto de vivissecção2. A garganta é cortada para que nela se
introduza aquele sinistro apitinho de traqueotomia3. Do nariz lhe saem cânulas4 por
onde são injetados os alimentos — quando as cânulas não são inseridas diretamente
no estômago, por corte, que vai das vizinhanças do esterno5 até lá dentro, conforme já
vi fazer. As veias já não têm onde se fure para enfiar agulha de soro, e então eles
dissecam uma — quer dizer, abrem a carne até uma veia escondida e ali fixam a
agulha, em definitivo. Chega um ponto em que não há orifício natural do corpo que
não receba uma sonda, salvo talvez os ouvidos. Às vezes o doente não tem mais
consciência de nada, ou pelo menos a gente assim o supõe; não fala, não se mexe,
nem sequer pisca. Dali para diante não há caminho de volta — disso já se tem
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

certeza. E, contudo, os doutores se obstinam6, e cortam, e costuram, e injetam, e


parafusam, e dão choque elétrico, e bombeiam sangue novo, que o sangue velho,
além de enfermo, a poder de tanta droga engolida ou injetada, já virou um caldo de
laboratório. A explicação para isso tudo é que é obrigação sagrada do médico
prolongar qualquer faísca de vida, enquanto a encontre. E a outra explicação, que eles
não dizem, é o aprendizado que representam para os doutores aquelas experiências
todas no corpo inerme7 de um zumbi humano.

Os americanos iniciam agora um movimento contra esses excessos, usando o


slogan MORRER COM DIGNIDADE; e isso muito me apraz8, porque morrer livre das
indignidades da última hora é reivindicação minha, já de muitos anos. Em escritos, em
conversas, em pedidos à família, venho rogando: não deixem que os médicos
atrapalhem a minha morte. Na hora que ficar desenganada — parem com tudo, pelo
amor de Deus. Salvo alguma morfina amiga contra as dores, se vierem fortes, ou outra
ajuda assim misericordiosa, para o conforto do trespasse9.

No mais, a vela na mão, o bendito da agonia, o lençol no rosto. E depois, o


repouso na terra velha da fazenda Califórnia, onde os meus já me esperam. Amém.

Vocabulário
1
inexorável: fatal.
2
vivissecção: qualquer operação feita em animal vivo com o objetivo de realizar estudo ou
experimentação.
3
traqueotomia: intervenção cirúrgica que consiste na abertura de um orifício na traqueia e na 38
colocação de uma cânula para a passagem de ar.
4
cânula: tubo usado após intervenções cirúrgicas.
5
esterno: osso situado na parte vertebral do tórax.
6
obstinar: agarrar-se com firmeza a uma ideia, a uma resolução.
7
inerme: fraco, debilitado.
8
aprazer: causar prazer, agradar.
9
trespasse: falecimento.

Em primeiro lugar, há de se fazer distinção entre título e tema. O título


do texto de Rachel de Queiroz é Morrer com dignidade. É, na verdade, uma
vaga referência ao assunto abordado no texto. O tema, por sua vez, é a ideia
defendida na dissertação. Nesse caso específico, a eutanásia. É, sem dúvida,
um tema polêmico, uma vez que a abreviação da vida está longe de ser
passivamente aceita pelas sociedades civilizadas. É um ato que fere não só
princípios religiosos – uma vez que contraria o mandamento divino de não
matar – mas também valores éticos e morais.

A autora inicia o texto apresentando os incríveis progressos da medicina


moderna (medicamentos miraculosos, transplantes e reimplantes outrora
inimagináveis, cirurgias extremamente ousadas); depois, ressalta os limites dos
recursos tecnológicos e científicos na área médica (Mas há uma hora em que
as grandes drogas falham, a cirurgia nada pode e a morte exige o seu defunto).
A partir desse contraponto (os avanços e os limites da medicina moderna), a
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

argumentadora passa a frisar o processo de degradação humana de um


paciente em estado terminal (o doente – entubado e inconsciente – torna-se
mero objeto de estudo da medicina) a fim de defender a ideia central do texto:
o direito à eutanásia, ou seja, o direito de morrer sem sofrimento.

É interessante observar que, na descrição e na narração, predominam


termos concretos, que se referem a pessoas ou a coisas do mundo real ou
fictício. Já na dissertação, predominam os termos abstratos, ou seja, a
referência ao mundo real se faz por meio de conceitos amplos, que servem
para analisar e interpretar dados da realidade. No texto de Rachel de Queiroz,
há uma linha condutora de assuntos abstratos: o progresso da medicina, o
poder limitado das drogas, a vida vegetativa do paciente terminal, a obstinação
dos médicos em prolongar a vida do doente e a inevitável morte.

Nos dois últimos parágrafos, Rachel de Queiroz emprega a primeira


pessoa como foco expositivo. Como grande escritora que é, arremata, com
maestria, seu pensamento, objetivando conquistar a afetividade do leitor. É
importante, entretanto, destacar que, nas dissertações, geralmente não
aparece o emissor, pois o que importa é o referente, ou seja, o assunto em
questão, e não quem fala dele. Essa objetividade dá ao texto efeito de sentido
de valor universal.

39
2.3.2 Expositivo

Tipo de texto em que se informa o leitor sobre determinado assunto. Não


se tenta, nessa modalidade, convencer o leitor, mas apenas expor
conhecimentos, ideias e pontos de vista. Esse tipo de texto é usado em livros
didáticos, enciclopédias, textos científicos, jornais etc.

Observe-se o seguinte texto:

Israel desenvolve dois medicamentos promissores contra a Covid-19

Israel, que já se destaca pelo sucesso e pela agilidade da vacinação contra a


Covid-19, voltou a chamar atenção no combate à doença após a descoberta de dois
medicamentos que apresentam bons resultados no tratamento de casos moderados a
graves da doença.

Um dos medicamentos, o EXO-CD-24, foi desenvolvido pelo Centro Médico de


Tel-Aviv e inicialmente testado para o tratamento contra o câncer. Até o momento,
trinta pacientes graves da Covid-19 participaram da pesquisa sobre o medicamento
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

experimental. Entre os participantes, 29 receberam alta após menos de uma semana


de tratamento.

O segundo medicamento anunciado é o Allcetra, que também passa por fase


de testes e foi desenvolvido no país. Nesse caso, 16 pacientes em estado grave ou
crítico receberam o medicamento e, após 28 dias, 14 receberam alta e nenhuma morte
foi registrada. O medicamento age na resposta inflamatória e evita as chamadas
"tempestades imunológicas" nos pacientes.

Agora, ambos os medicamentos devem seguir em fase de testes com um


número maior de voluntários, o que deve trazer dados precisos sobre eficácia e
possíveis efeitos colaterais relacionados à fórmula.

(Fonte: https://saude.ig.com.br/coronavirus/2021-02-14/israel-desenvolve-2-medicamentos-
promissores-contra-a-covid-19.html)

Seguem algumas recomendações para a elaboração de um texto


dissertativo de qualidade.

1. Manter a impessoalidade. O redator deve evitar incluir-se no texto.


Expressões como em minha opinião, em meu ponto de vista, eu penso
que etc. jamais devem ser usadas. Deve-se tão somente expressar o
ponto de vista de forma objetiva. Assim, em vez de escrever, por 40
exemplo, Eu penso que o uso excessivo da internet prejudica os
relacionamentos, deve-se escrever O uso excessivo da internet
prejudica os relacionamentos. A terceira pessoa produz efeito de que
não se trata uma opinião particular, mas de um pensamento partilhado
entre várias pessoas.

2. Não dirigir-se ao receptor do texto. Jamais se deve empregar o pronome


de tratamento você em uma dissertação. Isso cria efeito de sentido de
que o redator está dirigindo-se ao leitor. Dessa forma, não se deve
escrever, por exemplo, Você pode verificar que aumentou o número de
moradores de rua. O ideal é redigir Verifica-se que aumentou o número
de moradores de rua. Nesse caso, o pronome se substitui eficazmente o
pronome você.

3. Empregar o nível culto de linguagem. Em uma dissertação, não cabem


expressões informais nem gírias. Não é de bom tom, por exemplo,
escrever O governo tem que maneirar nos impostos. Deve-se preferir O
governo tem que reduzir os impostos. Não se devem usar também
reduções de palavras, como tão (em vez de estão), pra (em vez de para)
etc., já que são características da língua oral.
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4. Evitar repetições de palavras. Deve-se fazer uso de mecanismos de


coesão, como empregar pronomes, sinônimos ou hiperônimos no lugar
da palavra repetida. A repetição de palavras denota pobreza vocabular,
além de tornar o texto monótono.

5. Não utilizar provérbios ou frases feitas. Tem-se a falsa impressão de que


é criativo encerrar uma dissertação com provérbio (Em casa de ferreiro,
espeto de pau) ou com frase feita (Nada como um dia após o outro).
Pelo contrário, esse tipo de fechamento textual indica falta de
originalidade. Entende-se como original o texto que tem origem no
indivíduo que o produziu, aquele que resulta de uma elaboração
personalizada do destinador, e não de uma mera reprodução de
fórmulas pré-fabricadas.

6. Não empregar enunciados de caráter religioso. Como a religião é uma


questão de fé, deve ser evitada em um texto dissertativo. Na
dissertação, devem-se utilizar argumentos; a fé, por sua vez, independe
de provas ou de evidências constatáveis. Assim, frases como É
necessário que Deus dê sabedoria ao novo presidente ou É preciso que
os políticos tenham a unção do Espírito Santo, por exemplo, não devem
ser empregadas.
41

7. Não utilizar exemplos contando fatos ocorridos com terceiros, que não
sejam de domínio público. Não se pode, em hipótese alguma, introduzir
na dissertação fatos ocorridos com pessoas que pertencem apenas ao
rol de conhecimento do autor do texto. Ex.: A violência tornou-se crônica
no Brasil. A cada dia, centenas de pessoas são assassinadas. O doutor
Roberto, que tinha um consultório na Paulista, foi morto com dois tiros
após um assalto.
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2.4 TEXTO INJUNTIVO

Tipo de texto em que se instrui, se aconselha, se recomenda ou se


impõe algum procedimento. Ele está presente nos manuais de instrução, nas
receitas culinárias, nas bulas de remédio, nos livros de autoajuda, nos
horóscopos, nas regras preconizadas pelas gramáticas normativas, nas
instruções de editais de concursos públicos etc. O modo verbal mais frequente
nesse tipo de texto é o imperativo.

Tome-se como exemplo o seguinte cartaz:

42
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3 CRITÉRIOS DE TEXTUALIZAÇÃO

O texto é uma unidade de sentido. Para que esse todo significativo seja
construído, faz-se necessário que o enunciador mobilize alguns recursos, os
quais a Linguística Textual8 tem chamado de critérios de textualização.
Entende-se textualização como o conjunto de processos que fazem que um
texto seja uma unidade, e não apenas uma sequência de palavras ou de
frases. São sete: coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade,
situacionalidade, informatividade e intertextualidade.

3.1 Coesão

Em um texto bem-elaborado, os enunciados que o constituem são


interdependentes, formando, assim, um todo significativo. Desse modo, se o
texto linguístico é um tecido de palavras e de frases, a coesão é a costura
responsável pela amarração dessas palavras ou dessas frases. Só assim, é
possível perceber a conexão existente entre as várias partes textuais.
Observe-se o seguinte texto:

Cada língua retrata a realidade de uma maneira. Isso fica bem perceptível no 43
emprego de expressões idiomáticas, de gírias ou de provérbios. A título de exemplo,
pode-se citar a expressão chovem canivetes, que tem a forma correlata em inglês it’s
raining cats and dogs. Na língua portuguesa, a palavra canivetes é um intensificador
do verbo chover, ao passo que, na língua inglesa, o verbo to rain é hiperbolizado pela
expressão cats and dogs. Uma tradução malfeita do inglês para o português resultaria
na expressão estão chovendo gatos e cachorros, cujo sentido é Ø. As gírias exigem
também uma recontextualização no momento de traduzir um texto. A expressão
inglesa she is a peach não pode ser traduzida literalmente por ela é um pêssego por
não remeter, dentro do sistema linguístico português, a significado algum. Nesse caso,
a tradução pertinente é: ela é uma uva ou, numa versão mais moderna, ela é uma
gata.

(POSTAL, Jairo. Tradição e tradução. Integração: ensino, pesquisa, extensão. São Paulo: Centro de
Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu, ano 14, n.54, p.281, jul./ago./set. 2008)

Os enunciados desse texto estão perfeitamente interligados, pois há


elementos de coesão que os costuram. Na primeira linha, por exemplo, o
pronome demonstrativo isso refere-se a toda a frase anterior (Cada língua
retrata a realidade de uma maneira). Na terceira linha, o pronome relativo
que retoma o sintagma a expressão chovem canivetes. Na oitava linha, a
palavra também serve para incluir as gírias ao grupo de expressões que
precisam ser adaptadas ao contexto cultural da língua para a qual estão sendo
traduzidas.

8
Linguística Textual é a ciência que estuda as operações linguísticas e cognitivas reguladoras
e controladoras da produção, do funcionamento e da recepção de textos escritos ou orais.
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Há casos, entretanto, em que a coesão se estabelece de maneira


diferente do usual, sem elementos coesivos explicitados no corpo do texto 9.
Observe-se o seguinte texto:

Rotina

Alarme do celular
Mais um dia
Café da manhã
Esperança
Ida ao trabalho
Fadiga
Almoço com os colegas
Labuta
Retorno a casa
Engarrafamento
Jantar com a família
Fim do dia

(Postal, Jairo)

Pode-se dizer que, no poema acima, a coesão está fundamentada na


reiteração de itens do mesmo campo lexical10: a rotina de um trabalhador
(alarme do celular, café da manhã, trabalho, fadiga, almoço, engarrafamento,
jantar). Os versos estão conectados pela associação ao título: rotina. 44

A essa conexão interna entre os vários enunciados no texto, dá-se o


nome de coesão. É a microestrutura textual, resultante da articulação de
palavras e de frases.

A coesão implica a função que desempenha a sintaxe 11 no processo de


textualização. São vários os mecanismos de coesão. Para exemplificar alguns,
tome-se o seguinte enunciado:

Os professores das escolas estaduais estão em greve, pois esse foi o


único caminho que os professores encontraram para protestar contra os baixos
salários.

Percebe-se que a palavra professores aparece repetida na frase. Para


evitar tal repetição, a língua oferece ao falante da língua algumas estratégias
de retomada, tais como:

9
Alguns autores, por considerarem coesão apenas as relações estabelecidas por elementos
explicitados na linearidade do texto, dirão que o poema Rotina não é coeso.
10
O campo lexical é formado por palavras que pertencem a um mesmo tema, ou seja, palavras
que se reúnem em torno de uma ideia comum. Ex.: mar, areia, sol, conchinhas etc. formam o
campo lexical de praia.
11
Sintaxe (do grego syn, junto, e tassein, ordenar, arrumar) é a parte da Gramática que estuda
as relações existentes entre as palavras em uma frase ou entre as orações em um período.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

a) Sinonímia. Palavras sinônimas são aquelas que possuem significados


muito próximos, quase idênticos12. É a relação que existe, por exemplo,
entre professor e docente: Os professores das escolas estaduais estão
em greve, pois esse foi o único caminho que os docentes encontraram
para protestar contra os baixos salários.

b) Hiponímia e hiperonímia. Hipônimos são palavras usadas para


referenciar uma realidade mais específica. Hiperônimos são palavras
que apresentam um significado mais abrangente do que o do seu
hipônimo. É o que acontece, por exemplo, com educador e professor:
Os professores das escolas estaduais estão em greve, pois esse foi o
único caminho que os educadores encontraram para protestar contra os
baixos salários. Educador é hiperônimo, porque, em sua abrangência,
contém não apenas o significado de professor, mas também de uma
série de outras palavras como pai, mãe, avô, avó, coordenador
pedagógico, diretor etc. Vejam-se outros exemplos: ferramenta, fruta e
doença são hiperônimos; alicate, pera e caxumba são hipônimos.

c) Pronominalização. O mecanismo de pronominalização consiste em


empregar pronomes – ele, eles, ela, elas o, os, a, as lhe, lhes, aquele,
aqueles, aquela, aquelas, este, estes, esta, estas, esse, esses, essa,
essas, isto, aquilo etc. – em lugar de outros termos já expressos: Os
45
professores das escolas estaduais estão em greve, pois esse foi o único
caminho que eles encontraram para protestar contra os baixos salários.

d) Omissão. Consiste em ocultar o termo que se repetiria: Os professores


das escolas estaduais estão em greve, pois esse foi o único caminho
que encontraram para protestar contra os baixos salários. A procura do
termo elíptico leva o enunciatário a retomar um termo já citado.

3.2 Coerência

Um texto coerente é aquele que faz sentido, não apresentando nenhum


tipo de contradição. É uma unidade de texto, em que não há nada destoante
nem ilógico. Observe-se:

Alcides nunca teve intimidade com os números. No primeiro ano da faculdade,


ia mal nas provas de Matemática. Ele já estava com expectativa de que seria
reprovado nessa disciplina. No final do ano, ficou para exame final. Como previsto,
não obteve a média necessária, o que o deixou profundamente decepcionado.

12
Há um conceito generalizado de que palavras sinônimas são aquelas que têm sentido
idêntico. Do ponto de vista estilístico, entretanto, pode-se dizer que isso é praticamente
impossível, uma vez que palavras que designam uma mesma ideia possuem matizes
diferentes. A palavra docente, por exemplo, tem um matiz mais técnico do que professor.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

O desfecho desse texto apresenta uma incoerência: se Alcides já


esperava a reprovação, não poderia ter ficado decepcionado com ela. Houve
aqui uma inadequação vocabular. Veja-se a definição dada pelo Dicionário
Houaiss à palavra decepção:

decepção s.f. sentimento de tristeza, descontentamento ou frustração pela ocorrência


de um fato inesperado, que representa um mal; desilusão, desapontamento.

Ora, não foi pela ocorrência de um fato não esperado que Alcides se
frustrou; portanto, o adjetivo decepcionado torna o texto incoerente.

Leia-se mais este texto:

Eliminar a vida de um ser humano é crime perante as leis de Deus e dos


homens. Um feto já tem vida; por isso, em qualquer circunstância, é inadmissível que
lhe seja negado o direito de nascer. Ademais, a inviolabilidade do direito à vida é
assegurada pela Constituição Federal.
A gravidez indesejada deve ser pacientemente tolerada pelas mulheres, que
podem, após o parto, entregar a criança à adoção. Essa tolerância, entretanto, não é
admissível quando a mulher é vítima de estupro. Nesse caso, ela deve abortar o feto,
pois ninguém é obrigado a criar uma criança que seja fruto de violência.

46
Percebe-se que a coerência está comprometida, pois o enunciador afirma
categoricamente, no primeiro parágrafo, que, em qualquer circunstância, é
inadmissível que se negue ao feto o direito de nascer. A expressão em qualquer
circunstância não permite relativização alguma da ideia defendida; portanto, não
cabe, nesse contexto, aceitar o aborto em casos de gravidez por estupro.

Se a coesão está relacionada à sintaxe do texto, a coerência está


relacionada à unidade semântica do texto num determinado contexto. É a
macroestrutura textual, que se identifica como o significado global do objeto do
texto13. Dessa forma, a coerência é resultado de processos cognitivos operantes
entre usuários dos textos.

3.3 Intencionalidade

Nenhum texto é produzido em vão. Ele é sempre permeado por um


propósito – explícito ou implícito – que precisa ser identificado pelo destinatário.
Dentre as possíveis intenções do destinador, podem-se destacar as seguintes:

13
Não se deve confundir macroestrutura textual com superestrutura (ou hiperestrutura) textual.
A superestrutura é a categorização formal do texto de acordo com a maneira como ele é
organizado: narração, descrição e dissertação.
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a) compartilhar com o destinatário informações, opiniões, críticas ou


sentimentos;
b) modificar o comportamento do destinatário ou levá-lo a praticar
determinada ação;
c) proporcionar entretenimento ao destinatário;
d) manter contato com o destinatário.

Para isso, é necessário que se produzam textos coesos, coerentes e


adequados de acordo com o objetivo a ser atingido. Observem-se os exemplos
abaixo:

Texto1

Duzentos anos atrás, apenas 3% da população mundial vivia em cidades. Há


um século, na esteira da Revolução Industrial, a porcentagem tinha subido para 13% –
ainda uma minoria em um planeta essencialmente rural. Em algum momento deste ano,
de acordo com estimativas das Nações Unidas, pela primeira vez na história, o número
de pessoas que vivem em áreas urbanas ultrapassará o de moradores do campo.
Segundo o mesmo estudo, nas próximas décadas, praticamente todo o crescimento
populacional do planeta ocorrerá nas cidades, nas quais viverão sete em cada dez
pessoas em 2050. A população rural ainda deve aumentar nos próximos dez anos,
antes de entrar em declínio gradativo. A atual migração para as cidades é de tal ordem
que se pode compará-la, de forma alegórica, a um novo salto na evolução. O Homo
47
sapiens cedeu lugar a seu sucessor, o Homo urbanus.

(FAVARO, Thomaz. O planeta urbano. Veja. São Paulo: Abril, n.15, ano 41, p.111, 16.abr.2008)

Texto 2

(Santos, Arionauro da Silva. In arionaurocartuns.com.br. 01.jul.2020)


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Texto 3

Tenho internet de alta velocidade. Estou satisfeito. Mas nos últimos meses me
ligaram várias vezes para oferecer pacote de velocidade ainda maior. Sem precisar de
nada disso, acabei aceitando porque o velho ditado funciona muito bem comigo: água
mole em pedra dura... Sem falar nas associações beneficentes. Eu acho que é uma
obrigação ajudar o próximo. Faço o que posso. Mas me sinto realmente invadido
quando liga alguém de um lar ou casa de apoio que não conheço. Vem a conversa:
– É só uma pequena quantia para ajudar as crianças carentes e...
– Eu já ajudo uma instituição há muitos anos. – Se o senhor der uma
contribuição mensal... Aí sou obrigado a fazer o papel de bicho papão:
– Sinto muito, não quero ajudar as crianças carentes.
Dizer o quê, para me livrar do telefonema? Óbvio que me sinto um monstro ao
falar tal absurdo. Fazer o quê? Não adianta explicar que, puxa vida, quero ajudar uma
instituição que já conheça de perto. O marketing de caridade é assustador. Ainda mais
porque fiquei sabendo que com frequência os “consultores” são profissionais. Usam o
sentimento de solidariedade normal nas pessoas para ganhar comissão!

(CARRASCO, Walcyr. Invasão telefônica. Veja São Paulo. São Paulo: Abril, n.12, ano 41, p.170,
26.mar.2008)

Texto 4

48

Texto 5

Texto 6

A mulher está na festa com um belíssimo solitário de dois quilates no dedo.


A amiga chega e pergunta:
— É diamante?
Ao que ela responde:
— Não. Foi meu marido mesmo que me deu.

(TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Alfa. São Paulo, 2007)


GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Texto 7

O texto 1 está centrado na informação. O destinador não tece opiniões


acerca do que informa, mantendo, assim, efeito de sentido de imparcialidade. 49
Sua intenção é compartilhar com o destinatário dados sobre o vertiginoso
crescimento do êxodo rural ocorrido no mundo nos dois últimos séculos. É o que
Roman Jakobson14 chama de função referencial da linguagem.

No texto 2, o propósito do destinador é criticar o avassalador


desmatamento no Brasil. Embora não se faça uso de palavra alguma, os ícones
dos tocos de árvore e da onça pintada saudosa da floresta outrora verdejante
deixam clara a intenção do cartunista.

Já no texto 3, o cronista exterioriza sentimentos (Tenho internet de alta


velocidade. Estou satisfeito; Óbvio que me sinto um monstro ao falar tal
absurdo), opiniões (Eu acho que é uma obrigação ajudar o próximo) e
julgamentos (...os “consultores” são profissionais. Usam o sentimento de
solidariedade normal nas pessoas para ganhar comissão!). Todos esses
recursos produzem efeitos de subjetividade e de proximidade do destinador com
o destinatário, ou seja, é como se o cronista se desabafasse com o leitor.
Tem-se aqui a função emotiva.

No texto 4, a intenção do destinador é persuadir o destinatário a usar


máscara, tendo como contexto a pandemia do novo coronavírus. Empregou-se,
para isso, o verbo no imperativo (use) a fim de produzir efeito de sentido de

14
O linguista russo Roman Jakobson (1896–1982) destaca seis funções da linguagem:
referencial, emotiva, apelativa, estética, fática e metalinguística.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

interação com o enunciatário. Além disso, para reforçar o apelo, afirma-se que a
máscara salva a vida. Trata-se da função apelativa da linguagem.

Tanto no texto 5 quanto no 6, a intenção do destinador é proporcionar


entretenimento ao destinatário. Em ambos, explora-se o duplo sentido. Na
tirinha do Chico Bento, o significante passarinho desencadeia uma duplicidade
de sentido, já que pode referir-se a um pássaro pequeno ou à genitália
masculina. Na anedota das mulheres ricas, o humor é proveniente da
ambiguidade gerada pelo continuum de uma sequência fonética: diamante, na
língua oral, pode ser entendido tanto como diamante (a pedra preciosa), quanto
como de amante (pessoa com que se tem um relacionamento visto, em muitos
quadros sociais, como ilícito). Sem um conteúdo “dúbio”, dificilmente se constrói
um texto humorístico. Essa preocupação mais com a forma do que com o
conteúdo caracteriza a função estética.

No texto 7, diferentemente dos demais casos, o propósito do destinador


é tão somente manter contato com o destinatário. Quem envia mensagens de
bom dia, boa tarde, boa noite pelo Whatsapp quer, na verdade, apenas manter
interação cotidiana com o receptor. O uso dessas fórmulas sociais não visa a
expressar sentimento, mas manter o canal de comunicação aberto. É a
chamada função fática da linguagem.

50
3.4 Aceitabilidade

A aceitabilidade é a contraparte da intencionalidade, ou seja, o


destinador, ao produzir um texto, tem sempre intenções específicas de agir
sobre o destinatário, que, por sua vez, tem expectativa de receber um texto
coeso, coerente, útil e relevante. Leia-se a seguinte anedota:

De manhã, o pai bate na porta do quarto do filho:


—Acorda, meu filho. Acorda, que está na hora de você ir para o colégio.
Lá de dentro, estremunhado, o filho respondeu:
—Pai, eu hoje não vou ao colégio. E não vou por três razões: primeiro, porque
eu estou morto de sono; segundo, porque eu detesto aquele colégio; terceiro, porque
eu não aguento mais aqueles meninos.
E o pai respondeu lá de fora:
—Você tem que ir. E tem que ir, exatamente, por três razões: primeiro, porque
você tem um dever a cumprir; segundo, porque você já tem 45 anos; terceiro, porque
você é o diretor do colégio.

(Anedotinhas do Pasquim. Rio de Janeiro: Codecri, 1981)

Nesse texto, quando o pai aponta as duas últimas razões pelas quais o
filho deve ir ao colégio (por ter 45 anos e por ser diretor do colégio), rompe-se a
expectativa que o leitor tem de tratar-se de um diálogo entre adulto e criança.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Embora a fala do diretor seja destoante, o leitor é levado a aceitar o


texto como coerente, já que a função do gênero piada é provocar efeito de
humor, o que é constituído pelo não esperado. O destinatário deve sempre
procurar calcular o sentido do texto do destinador, partindo das pistas que ele
contém.

É importante ressaltar também que, ao construir um texto, o produtor


imprime suas convicções, experiências, propósitos e crenças, isto é, o seu
modo de ver o mundo, a sua ideologia. O interlocutor, por sua vez, interpreta o
texto de conformidade com seus propósitos, convicções e perspectivas.
Tome-se, como exemplo, um texto extraído do jornal eletrônico Metrópoles, de 8
de setembro de 2020.

Sagitário (22/11 - 21/12)

Ótima oportunidade de alavancar a carreira e aumentar os rendimentos. O dia


trará bons resultados de trabalho e maior estabilidade. Fique de olho também numa
promoção ou nova proposta. Convite atraente de uma amizade de fora cobrará
resposta rápida e acelerará decisões de vida. Bom momento para compra, venda ou
negociação de imóvel.

O destinador – a astróloga Rosa di Maulo – constrói um texto, tentando


influenciar o comportamento do destinatário, a partir do estudo da suposta
influência dos astros no destino, no caráter e no comportamento das pessoas.
Esse tipo de texto só será obviamente aceito por receptores que compartilhem 51
da mesma crença do emissor.

3.5 Situacionalidade

A situacionalidade é a adequação da manifestação linguística a uma


determinada situação comunicativa. Está intimamente ligada ao conceito de
registro, que é a variação da fala de um indivíduo em função do contexto social
em que ele se encontra.

O status da pessoa a quem o falante se dirige pode determinar o


emprego das formas que a língua oferece. Um funcionário não se dirige a um
colega de trabalho da mesma maneira como se dirige ao gerente da empresa.
Imagine-se, por exemplo, um funcionário pedindo a um colega R$ 200,00
emprestados da seguinte forma: Mano, me empresta duzentos pau até o dia 5?
Essa construção é perfeitamente adequada, levando-se em conta o grau de
intimidade que se tem com o interlocutor. Se ele fosse, porém, pedir tal
empréstimo ao seu chefe, diria provavelmente algo assim: O senhor poderia me
fazer um empréstimo de R$ 200,00 para ser descontado no meu pagamento?

Um médico, quando apresenta um diagnóstico a seu paciente, utiliza-se


de um tipo de linguagem diferente daquele que emprega, por exemplo, quando
está em um congresso com outros médicos. A tira seguinte satiriza a
transgressão à situacionalidade comunicativa:
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

O uso adequado das formas linguísticas pode ser comparado ao uso de


roupas. Assim como ninguém deve ir à praia de terno e gravata nem a uma
festa social, trajando bermuda e camiseta, ninguém deve utilizar um nível de
linguagem exageradamente formal numa situação descontraída nem uma
linguagem técnica com interlocutores leigos.

3.6 Informatividade

Todo texto é produzido com a intenção de ser compreendido pelo


receptor da comunicação. É importante, para isso, que o destinador saiba dosar 52
adequadamente as informações novas que transmite, pois o excesso de dados
pode desmotivar o destinatário por ele não conseguir armazená-los na
totalidade. Desse modo, para que haja sucesso na interação verbal, é preciso
que a informatividade do texto seja adequada ao interlocutor.

O texto deve, então, articular informação já conhecida (tema) com


informação nova (rema), de modo a permitir ao receptor a realização dos
processos cognitivos necessários à eficiente interiorização dos conceitos.
Tome-se, como exemplo, um texto bem simples, que mantém informados os
passageiros do metrô de São Paulo:

Próxima estação, Bresser-Mooca.

Para o destinatário, o segmento “próxima estação” é o tema, pois


trata-se de uma informação conhecida, visto que é óbvio que o trem irá parar
novamente em outra estação. Já o segmento “Bresser-Mooca” é o rema, pois é
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

a informação nova, é o comentário, a explicação que se faz sobre o tema (qual


será a próxima estação).

É importante ficar claro que as informações ditas “conhecidas” ou


“novas” devem ser consideradas virtualmente, ou seja, com possibilidade de
que assim sejam. Não são necessariamente reproduções da realidade. No
exemplo dado, há grande possibilidade de o receptor já saber que a próxima
estação é a Bresser-Mooca, mas, para quem não sabe, é um dado novo.

Assim, a estrutura informacional de um texto está ligada à dicotomia


tema (tópico) e rema (comentário). O primeiro aponta o assunto do discurso; o
segundo, aquilo que é dito sobre tal assunto. Desse modo, à informação
conhecida, sucede uma nova, que se torna conhecida, a que é acrescentada
mais uma nova, garantindo, assim, a progressão temática do texto.

Observe-se o seguinte parágrafo:

A religião romana comportava ritos e cerimônias oficiais. Os ritos consistiam


em preces, em oferendas e em sacrifícios. As cerimônias envolviam festejos agrícolas,
procissões, banquetes e jogos esportivos em homenagem a um deus.

(HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História da civilização. 7.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979)

A relação tema/rema pode ser assim esquematizada:


53

TEMA REMA
T1 – a religião romana R1 – comportava ritos e cerimônias
oficiais
T2 – os ritos R2 – consistiam em preces, em
oferendas e em sacrifícios
T3 – as cerimônias R3 – envolviam festejos agrícolas,
procissões, banquetes e jogos
esportivos em homenagem a um deus

Veja-se mais um texto:

As diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, pois,


enquanto o animal permanece mergulhado na natureza, o homem é capaz de
transformá-la, tornando possível a cultura. O mundo resultante da ação humana é um
mundo que não se pode chamar de natural, pois se encontra transformado pelo
homem.
A palavra cultura também tem vários significados, tais como o de cultura da
terra ou cultura de um homem letrado. Em antropologia, cultura significa tudo que o
homem produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os
valores materiais e espirituais.

(ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. 2.ed. São Paulo:
Moderna, 1991.)
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

TEMA REMA
T1 – as diferenças entre o homem e o R1 – não são apenas de grau
animal
T2 – o animal R2 – permanece mergulhado na
natureza
T3 – o homem R3 – é capaz de transformar a
natureza, tornando possível a cultura
T4 – o mundo resultante da ação R4 – é um mundo que não se pode
humana chamar de natural
T5 – (o mundo resultante da ação R5 – se encontra transformado pelo
humana) homem
T6 – a palavra cultura R6 – tem vários significados, tais como
o de cultura da terra ou cultura de um
homem letrado
T7 – cultura (em antropologia) R7 – significa tudo o que o homem
produz ao construir sua existência: as
práticas, as teorias, as instituições, os
valores materiais e espirituais.

3.7 Intertextualidade

54
A intertextualidade é a incorporação de um texto em outro. No primeiro
capítulo, já foram estudados os dois principais processos empregados pelo
destinador para efetivar esse diálogo entre textos: a citação e a alusão.

Para relembrar, considere-se a seguinte tirinha:

A compreensão desse texto exige que o leitor conheça o famoso trecho


bíblico do 3.º capítulo de Gênesis, que relata o momento em que a serpente
induz Eva a comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do
mal. O roteirista da tirinha modificou o sentido do texto-fonte com finalidade tão
somente burlesca, o que caracteriza a paródia.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Observe-se agora este cartum:

Nesse texto, de 29 de janeiro de 2015, o cartunista Ivan Cabral retrata o


esforço do homem de enfrentar – por meio de obras – o avanço do mar na
costa brasileira. Valeu-se imageticamente, para isso, de uma alusão ao texto
bíblico em que o pequeno Davi enfrenta o gigante Golias.

55
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

4 NOÇÕES DE DISCURSO

Quando se fala em discurso, a primeira ideia que vem à mente é uma


exposição oral feita em público por um orador. Daí, pensar-se em discursos
políticos, discursos de formatura, discursos em homenagem a alguém etc. Para
a Semiótica, entretanto, o termo discurso possui uma abrangência maior: é
uma atividade comunicativa em que texto, contexto e ideologia se imbricam.

Grosso modo, pode-se afirmar que, enquanto o texto é um processo


organizacional, o discurso é um processo interacional, uma vez que nele há
uma confluência da língua com a História15. Para entender melhor essa
diferença, tome-se, a título de exemplo, o seguinte cartum, de Ivan Cabral:

56

Em primeiro lugar, para compreender esse texto, faz-se necessário


decodificar as imagens nele presentes, o que é simples: um homem escondido
atrás de uma poltrona e um aparelho de televisão de onde saem armas, como
revólver, metralhadora, punhal, granada, bomba etc. A disposição das imagens
constitui a organização textual. Isso, entretanto, não é suficiente. É necessário
também interpretar o todo de sentido, entender o porquê de o cartunista ter
disposto as figuras dessa maneira. Ele quer, na verdade, transmitir a ideia de
que a televisão veicula muita violência em suas programações, desde os
desenhos animados até os programas que retratam o chamado mundo cão.

Percebe-se, assim, que, para obter uma comunicação eficiente, o


receptor não deve ler o texto passivamente. No caso específico dessa charge,
o leitor deve lançar mão de operações cognitivas a fim de relacionar o cartum
com o contexto em que ele foi produzido: a violência na mídia televisiva em
nível global. Em qualquer texto, estão presentes as ideias da sociedade e da
época em que ele foi criado; essa interação do texto com a História caracteriza
o discurso.
15
O discurso é, na verdade, um processo interacional de sujeitos situados social e
historicamente.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

É fundamental também levar em conta que, em todo discurso, há uma


ideologia, ou seja, um conjunto de ideias e uma forma particular de ver e de
pensar o mundo.

Observe-se esta fábula:

O sapo e o escorpião

Um escorpião aproximou-se de um sapo


que estava à beira de um rio e fez-lhe um pedido:
— Amigo sapo, você poderia carregar-me
até a outra margem deste rio tão largo?
O sapo respondeu: — Só se eu fosse louco!
Você vai me picar e eu vou ficar paralisado e
afundar.
Disse o escorpião: — Isso é ridículo! Se eu
o picasse, ambos afundaríamos e nos
afogaríamos.
Confiando na lógica do que disse o escorpião, o sapo concordou e levou o
escorpião nas costas, nadando para atravessar o rio.
Quando chegaram ao fim da travessia, o escorpião cravou seu ferrão no sapo e
saltou em terra firme.
Atingido pelo veneno, e já começando a afundar, o sapo voltou-se para o 57
escorpião e perguntou: — Por que você fez isso?
E o escorpião respondeu friamente: — Porque sou um escorpião e esta é a
minha natureza.
Jornal Gazeta de Pinheiros. 06.mar.2017.

É possível que o destinatário tão somente transite pelo nível superficial


do texto e realize uma leitura de cunho emocional, apiedando-se do sapo e
revoltando-se contra o escorpião.

Trata-se, entretanto, de um texto conotado, ou seja, há nele uma


mensagem que subjaz à outra. Esse texto parece ser uma história de animais,
mas, na verdade, é história de homens. Nas figuras do sapo e do escorpião, há
tipos humanos representados. O sapo representa o homem que cai facilmente
na lábia de pessoas não confiáveis, deixando-se manipular por sedução (o
escorpião o chama de “amigo”); já o escorpião representa o ser humano de
natureza duvidosa, não confiável, traidor. Eis a mensagem que a fábula
transmite: é necessário selecionar bem as pessoas em que realmente se deve
confiar; quem confia em alguém de natureza duvidosa pode ter perdas
irreparáveis na vida. Permeia, nessa fábula, o discurso da imutabilidade do
caráter humano, que encontra eco em outros discursos, como, por exemplo, o
provérbio Pau que nasce torto nunca se endireita. Daí, dizer-se que o discurso
é sempre dialógico, já que é atravessado por inúmeras outras vozes em
relações, não sendo criado a partir do vazio.
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Para entender o discurso, o leitor deve colocar-se dentro da produção


(enunciação), e não dentro do produto (enunciado). Em outras palavras, deve
inferir a mensagem que o escritor quis transmitir no momento em que compôs
o texto. Tal procedimento caracteriza o leitor perspicaz.

O escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, em O pequeno príncipe,


mostra que nem sempre a verdadeira mensagem está naquilo que os olhos
veem. Logo no início da narrativa, o autor declara que, após ter lido um livro em
que aparecia uma jiboia engolindo um animal, resolveu fazer o seguinte
desenho:

Ele mostrou sua obra-prima aos adultos e perguntou-lhes se aquele


desenho lhes causava medo. Todos responderam que não haveria motivo de
se ter medo de um chapéu.

O garoto frustrou-se, pois não se tratava de um chapéu, mas de uma


jiboia digerindo um elefante. Isso o obrigou a fazer outro desenho mostrando o
interior da jiboia. Era assim:
58

Metaforicamente, pode-se dizer que o formato de chapéu é o texto; o


elefante dentro da jiboia é o discurso.

Atente-se ao quadro abaixo. Nele são topicalizadas as principais


diferenças entre texto e discurso.
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TEXTO DISCURSO

 O texto é um processo  O discurso é um processo


organizacional. interacional.
 O texto privilegia o aspecto  O discurso privilegia a natureza
formal e estrutural da língua. funcional e interativa da língua.
 O discurso não é um produto
 O texto é uma produção formal
fechado e isolado; está
resultante de escolhas e de
associado a um contexto
articulações verbais e/ou não
sócio-histórico-cultural e
verbais.
atrelado a uma ideologia.
 O texto pertence ao plano de  O discurso pertence ao plano
expressão. de conteúdo.
 O texto é da ordem do  O discurso é do domínio do
sensível. inteligível.
 O texto percebe-se na  O discurso percebe-se nas
superfície. entrelinhas.
 O discurso é o subsolo da
 O texto é o solo da mensagem.
mensagem.
 O texto é o corpo da  O discurso é a alma da
59
mensagem. mensagem.
 O texto é individual.  O discurso é social.
 O texto situa-se na esfera do  O discurso situa-se na esfera
parecer. do ser.
 Ao texto, pertence a  Ao discurso, pertence a
compreensão. interpretação.
 O discurso exige um leitor
 O texto exige um leitor eficaz.
perspicaz.
 O discurso torna presentes as
 O texto pode fazer uso da
unidades linguísticas que estão
língua ou não.
ausentes.
 O texto conjuga coesão com  O discurso conjuga língua com
coerência. História.
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Observem-se os textos abaixo:

Texto 1

Charge do Duke. 19.abr.2019


Texto 2
O bicho
Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava: 60
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Texto 3
Moradores cercam caminhão de lixo para pegar restos de comida em
Pernambuco

Moradores do bairro de São Benedito, em Olinda, cercaram na noite de


terça-feira (11) um caminhão de lixo para pegar restos de alimento descartados por
um supermercado.
As pessoas se aproximaram do veículo no momento em que o caminhão parou
em frente ao estabelecimento. O grupo colocou a comida em sacos plásticos.
A empresa privada responsável pela coleta informou que o estabelecimento
não possui garagem e, por isso, o caminhão estava estacionado no meio da rua.
Comunicou também que os resíduos são prensados dentro do veículo, mas
que os funcionários recebem treinamento para não reagir quando são cercados por
moradores.
O flagrante foi feito pela radialista e estudante de jornalismo Suzanna Borba e
foi ao ar na edição desta terça-feira (11) do Jornal Nacional.

(Folha de S.Paulo, 12.jun.2019)


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Percebe-se que são três textos bem diferentes, pois são três mensagens
organizadas materialmente de formas distintas: o primeiro é uma charge; o
segundo, um poema; o terceiro, uma reportagem. Em todos eles, entretanto,
perpassa um mesmo tema: a zoomorfização do ser humano, concretizada no
ato de buscar no lixo a alimentação do dia. Embora cada um desses textos
apresente certas particularidades significativas, o sentido básico do discurso é
o mesmo em cada um deles: a fome subjuga a razão, e o instinto de
sobrevivência se faz valer. Nesse ponto, os três textos se enquadram no plano
social, pois denunciam as mazelas de um grupo que vive abaixo da linha de
pobreza.

A essa intersecção discursiva, dá-se o nome de interdiscursividade.

Observem-se agora mais estes textos:

Texto 4
A cigarra e a formiga

A cigarra passou o verão cantando, enquanto a formiga juntava seus grãos.


Quando chegou o inverno, a cigarra veio à casa da formiga para pedir que lhe
desse o que comer.
A formiga então perguntou a ela:
— E o que é que você fez durante todo o verão?
— Durante o verão eu cantei — disse a cigarra.
E a formiga respondeu: — Muito bem, pois agora dance! 61
Moral da história: Trabalhemos para nos livrarmos do suplício da cigarra, e não
aturarmos a zombaria das formigas.

Fábulas de Esopo. Tradução Ruth Rocha. São Paulo: Salamandra, 2010.

Texto 5
Exortação à prática de vários deveres cristãos

Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que vos
aparteis de todo irmão que ande desordenadamente, e não segundo a tradição que de
nós recebestes;
Pois vós mesmos estais cientes do modo por que vos convém imitar-nos, visto
que nunca nos portamos desordenadamente entre vós,
Nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo contrário, em labor e fadiga,
de noite e dia, trabalhamos, a fim de não sermos pesados a nenhum de vós;
Não porque não tivéssemos esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos
exemplo em nós mesmos, para nos imitardes.
Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer
trabalhar, também não coma.
Pois, de fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam
desordenadamente, não trabalhando; antes, se intrometem na vida alheia.

2ª. Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, capítulo 3, versículos 6 a 11.


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O texto 4 é uma tradução feita pela escritora Ruth Rocha de uma fábula
de Esopo, contador de histórias grego, que viveu no século VI a.C.; já o texto 5
é um excerto de uma carta escrita por Paulo de Tarso, por volta do ano 50 d.C.,
aos cristãos da cidade grega de Tessalônica.

Embora texto seja um todo de sentido, tomou-se aqui a liberdade de


destacar um fragmento do texto bíblico a fim de mostrar como um discurso
nunca é único e irrepetível. Tanto no texto do fabulista quanto no trecho da
epístola do apóstolo, perpassa um mesmo tema: a necessidade de trabalhar
para poder alimentar-se.

A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição


de um texto, mas a interdiscursividade é inerente à constituição do discurso.
Pode-se, então, dizer que o texto é individual; o discurso, ao contrário, social.
Como se pode observar, por meio desses exemplos, cada enunciador criou um
texto próprio; entretanto, a linha discursiva que os atravessa é a mesma. Isso
pressupõe que toda intertextualidade implica a existência de uma
interdiscursividade, mas nem toda interdiscursividade implica uma
intertextualidade, pois, quando um texto não mostra, no seu fio, o texto do
outro, não há intertextualidade, mas interdiscursividade.

Tomem-se, para finalizar, três poemas de autores distintos:

Texto 6
O ano passado 62
Carlos Drummond de Andrade

O ano passado não passou,


continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,


e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado


sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.


Não consigo evacuar
o ano passado.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Texto 7
Ano Novo
Fernando Pessoa

Ficção de que começa alguma coisa!


Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.

Texto 8
Ano Novo
Ferreira Gullar

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
63
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança


de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)

Trata-se de três textos ligados a um mesmo referente: a passagem do


ano. Eles são repositórios do mesmo discurso, ou seja, o continuum da vida,
apesar da virada cronológica do ano. Em outras palavras, o cotidiano mantém
sua mesmice, sua rotina, independentemente do marco numérico que se dá ao
ano.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Mikhail Bakhtin, filósofo e linguista russo, procurou desenvolver em toda


a sua obra o conceito de dialogismo. Segundo ele, as palavras de um falante
estão sempre perpassadas pelas palavras do outro, pois, para constituir seu
discurso, um enunciador necessariamente leva em conta o discurso alheio.
Para o autor, somente um Adão bíblico poderia esquivar-se a essa orientação
dialógica do discurso. Em todo discurso, há, pois, um já dito, o que atesta sua
natureza dialógica.

64
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5 NOÇÕES DE GÊNERO LITERÁRIO

5.1 Introdução

Um primeiro contato com a literatura permite a qualquer leitor perceber


que as obras diferem não apenas pelo autor e pelo conteúdo, mas também
pela forma como são apresentadas.

Observem-se os seguintes excertos literários:

Excerto 1

Entrava neste tempo o eterno lume


No animal Nemeio truculento;
E o Mundo, que com tempo se consume,
Na sexta idade andava, enfermo e lento.
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol catorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.
65

Luís Vaz de Camões

Excerto 2

Oh! Que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


De despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Casimiro de Abreu
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Excerto 3


(Olhando a igreja)
É essa.
Só pode ser essa.

(Rosa para também, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever
uma revolta que se avoluma).

ROSA
E agora? Está fechada.


É cedo ainda. Vamos esperar que abra.

ROSA
Esperar? Aqui?


Não tem outro jeito.

Rosa
(Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato).
Estou com cada bolha d’água no pé que dá medo. 66


Eu também.
(Contorce-se num ritus de dor. Despe uma das mangas do paletó).
Acho que os meus ombros estão em carne viva.

ROSA
Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.


(Convicto)
Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em almofadinhas.

ROSA
Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.


Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não usou
almofadinhas.

Dias Gomes
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Excerto 4

João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro
que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos
do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de
anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados
vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e
quinhentos em dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda
com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as
mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma
esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida
arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a
Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e
amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.

Aluísio Azevedo

O primeiro excerto foi extraído do canto V de Os lusíadas, obra de Luís


Vaz de Camões. Trata-se de uma epopeia, ou seja, extenso poema que exalta
os feitos de um herói, que aqui é todo o povo português, do qual Vasco da
Gama é digno representante. Nessa obra, de 8.816 versos, Camões narra a
viagem das frotas portuguesas às Índias. No trecho selecionado, Vasco da
Gama – valendo-se de um torneio verbal e de uma linguagem cifrada – conta
ao rei de Melinde que a armada por ele chefiada partiu de Portugal em direção
à Índia em julho de 1497.
67
Como era costume dar à epopeia um ar oficial, empregava-se nela uma
linguagem rebuscada, marcada pelo uso de hipérbatos. Para o leitor entender a
mensagem, faz-se necessário acionar o conhecimento enciclopédico. O eterno
lume, sem dúvida alguma, é o sol. O animal nemeio é o leão, cuja pele o
semideus Hércules deveria trazer da Nemeia a mandado de Euristeu a fim de
cumprir o primeiro de seus doze trabalhos. Então, quando se diz que o eterno
lume entrava no animal nemeio, está-se referindo à entrada do sol na
constelação de Leão, o que astronomicamente ocorre em julho. Quanto à
referência de o mundo andar enfermo e lento na sexta idade, deve-se
considerar a divisão que Santo Agostinho fez da história do mundo, conforme
alguns episódios bíblicos. A sexta e última idade começou com o nascimento
de Cristo e durará até o fim dos tempos, por isso Vasco da Gama diz que o
mundo se consome lento (há quase 1.500 anos!) e doente. Finalmente, afirma
o navegador português que o Sol havia realizado catorze vezes cento cursos
com mais noventa e sete, quando a armada se estendeu ao mar. Basta
calcular a equação matemática para descobrir o ano da partida: 14 x 100 + 97
= 1497.

O segundo excerto é a primeira estrofe de Meus oito anos, de Casimiro


de Abreu. Trata-se de um poema de cunho lírico, extraído do livro As
primaveras. O poeta utiliza essa representatividade da infância como forma de
escapismo, fugindo assim do momento presente, característica presente nos
poetas da segunda geração romântica.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

O terceiro excerto é o início da obra O pagador de promessas, de Dias


Gomes.

A história se passa na década de 60, na Bahia, e começa com uma


promessa. Zé do Burro pede que Santa Bárbara salve seu burro, que fora
ferido por um galho de árvore. Como na cidade não havia uma igreja dedicada
à santa, a promessa foi feita em um terreiro de candomblé, onde a santa ganha
o nome de Iansã.

Zé do Burro, portando uma cruz nos ombros, e sua mulher, Rosa,


caminham sete léguas do sertão baiano até Salvador com o intuito de pagar a
promessa. Chegam a Salvador de madrugada, alojando-se nas escadarias da
igreja dedicada à santa. São interpelados pelo sedutor Bonitão, que se
aproveita da ingenuidade de Zé do Burro para seduzir Rosa. A mulher resiste
no início, mas acaba por passar a noite com ele em um quarto de hotel.

Ao contar ao padre que a promessa fora feita em um terreiro de


candomblé a Iansã, Zé é impedido de entrar na igreja. Obstinado, ele insiste
em permanecer, ignorando os apelos da mulher para partirem. Zé do Burro
torna-se assunto na cidade e acaba alvo de um repórter sensacionalista, que
distorce os fatos e o retrata como um messias que apoia a reforma agrária.

Ao saber por Marli, uma prostituta apaixonada por Bonitão, que Rosa
passara a noite com o homem, Zé começa a dar vazão à sua revolta. Já
Bonitão, decidido a se livrar de Zé para poder se aproveitar de sua esposa,
convence o policial, Secreta, da credibilidade da versão do jornal. 68

Após muita insistência, o Monsenhor tenta persuadi-lo a refazer a


promessa para que possa entrar na igreja. Desacatando as considerações do
eclesiástico, Zé se enfurece e termina autuado pela polícia. Recusando-se a ir
detido, tenta desesperadamente entrar na igreja com a cruz para cumprir sua
promessa, quando é assassinado pelo Secreta. Os capoeiristas, por fim,
fazem entrar, sobre a cruz, seu corpo na igreja.

Essa obra foi escrita para ser representada; daí, aparecerem rubricas ou
didascálias, que são os enunciados colocados entre parênteses que objetivam
descrever o cenário, o figurino, o ambiente ou a expressão das personagens.
Percebe-se também a ausência de narrador, havendo apenas as falas das
personagens.

O quarto excerto, extraído do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, é


o início de uma longa narrativa que retrata o Brasil no fim do período
monárquico.

A obra narra a busca do português João Romão pelo enriquecimento e,


para tal, ele explora os empregados, sendo capaz de tudo para atingir seus
objetivos. Romão é dono do cortiço, da taverna e da pedreira. Bertoleza, sua
amante, o ajuda trabalhando sem descanso.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Opondo-se a João Romão, está Miranda, um comerciante


bem-sucedido, que disputa com o taverneiro um pedaço de terra para
aumentar seu quintal; entretanto, não havendo acordo, há o rompimento
provisório da relação entre eles.

João Romão motivado pela inveja que tem de Miranda, que possui uma
condição social superior, passa a trabalhar de forma árdua e a privar-se de
certas coisas para enriquecer mais que o outro português. Entretanto, quando
Miranda recebe o título de barão, João Romão entende que não basta ter
dinheiro, é necessário também ter uma posição social reconhecida e ostentar
certos luxos, como frequentar lugares requintados, teatros, usar roupas finas,
ler romances etc., isto é, inserir-se na efetiva vida burguesa.

Quando Miranda recebe o título de barão e passa a ter superioridade


afirmada sobre seu rival, João Romão opta por fazer várias mudanças no
cortiço, que agora ostenta ares aristocráticos, perdendo as características de
miséria e de desorganização, passando a se chamar Vila João Romão.

Há, em paralelo, os moradores do cortiço que têm menor ambição;


dentre eles, Rita Baiana e o capoeirista Firmo, Jerônimo e Piedade. O romance
busca mostrar a influência do meio sobre o homem. Um exemplo bem claro
disso é o português Jerônimo, que tem uma vida exemplar, porém passa de
trabalhador disciplinado para preguiçoso e displicente; para justificar a
mudança de comportamento, afirma que o calor dos trópicos lhe tirava as
forças do corpo.
69
Como estratégia de ascensão social, João Romão pede a mão da filha
de Miranda; porém, Bertoleza representa um empecilho, já que percebe as
manobras do dono do cortiço para livrar-se dela, e exige usufruir dos bens que
ajudou a acumular. Para se livrar da amante, Romão a denuncia como escrava
fugida e, em desespero, Bertoleza comete suicídio; assim, o caminho fica livre
para o matrimônio de João Romão com Zulmira.

Se os trechos aqui apresentados possuem visíveis diferenças em


relação à forma e ao conteúdo, não há como negar que cada um deles se
assemelha a inúmeros outros com estruturas parecidas. Assim, os textos
teatrais de Dias Gomes vão ter pontos em comum com os de Gil Vicente, por
exemplo. Os poemas de Casimiro apresentam semelhanças com os de Álvares
de Azevedo. E assim por diante.

Os textos literários, escritos em verso ou em prosa, podem ser


estudados a partir de um conjunto de traços característicos. Dessa forma,
pode-se dizer que os diversos textos literários se agrupam em categorias ou
gêneros. A palavra gênero, proveniente do latim generu, significa família, raça,
ou seja, agrupamento de indivíduos ou seres que têm características comuns.

Os gregos e os romanos por ele influenciados já enxergavam nos


gêneros literários (o poema épico, o poema lírico, a tragédia e a comédia)
perfeitas categorias artísticas, inconfundíveis entre si.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Para os teóricos gregos, a começar por Aristóteles, os gêneros deveriam


ser puros, jamais híbridos; assim, uma comédia deveria ser exclusivamente
cômica, e uma tragédia, trágica. Não se concebia, por exemplo, a tragicomédia,
peça teatral que inclui aspectos cômicos e trágicos.

Para os antigos greco-romanos, as obras literárias se enquadravam em


três gêneros:

 Épico – agrupa poemas narrativos longos, de fundo histórico, que


retratam os feitos heroicos e os grandes ideais de um povo. A
objetividade é característica marcante desse gênero; assim, os
poemas são construídos em terceira pessoa com verbos no
pretérito, já que os fatos narrados se situam no passado.

 Lírico – agrupa poemas de forte carga subjetiva que expressam


as emoções, as ideias e as impressões de um “eu”; assim, os
poemas são construídos em primeira pessoa com verbos no
presente. Não há narração nem configuração de personagens.

 Dramático – agrupa obras em que os atores, num espaço


especial, apresentam, por meio de diálogos e de gestos, um
acontecimento, que retrata fundamentalmente os conflitos das
relações humanas. Não apresenta mediador (eu-lírico ou
narrador), já que o mecanismo dramático move-se sozinho, ou
70
seja, cada cena é causa da próxima e efeito da anterior.

5.2 Gênero épico: a palavra narrada

O poema épico, também conhecido como epopeia (do grego épos,


recitação), é uma narrativa de longo fôlego em forma de versos de um fato
grandioso e maravilhoso que interessa a um povo. É uma poesia objetiva,
impessoal, cuja característica principal é a presença de um narrador falando do
passado. O tema é normalmente um episódio heroico da história de um povo.
Suas fontes são as lendas nacionais. Além disso, esse tipo de poema contém o
maravilhoso, isto é, a ação dos deuses necessária à grandeza e à majestade
do poema.

Na literatura de língua portuguesa, merecem destaque Os lusíadas, de


Camões; Caramuru, do Frei José de Santa Rita Durão; e O Uraguai, de Basílio
da Gama.

A partir da segunda metade do século XIX, entretanto, a poesia épica


começou a perder o interesse do público, e hoje é raro quem a cultive.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

5.3 Gênero lírico: a palavra cantada

A palavra lírico vem de lira, instrumento musical semelhante a uma


pequena harpa, usado para acompanhar os cantos gregos. Até o final da Idade
Média, os poemas eram cantados, como bem se percebe ao estudar as
cantigas trovadorescas. Ao separar-se o texto do acompanhamento musical, a
poesia lírica passou a designar toda espécie poética que tinha por conteúdo
sentimentos e emoções. Começaram, então, a ser mais valorizadas a métrica
(a medida de um verso, definida pelo número de sílabas poéticas), a divisão
em estrofes e a rima, elementos que imprimem certa musicalidade ao poema.

Com o tempo, entretanto, essa rigidez foi sendo deixada de lado. A


poesia do Modernismo, por exemplo, desprezou esses conceitos, valorizando o
verso livre (sem métrica) e o verso branco (sem rima).

5.4 Gênero dramático: a palavra representada

A palavra drama, em grego, significa ação. Ao gênero dramático


pertencem os textos, em verso16 ou em prosa, feitos para serem
representados. Isso significa que entre autor e público desempenha papel
fundamental todo o elenco que participa da encenação.

O gênero dramático compreende as seguintes modalidades:


71
5.4.1 Tragédia

Representação de um fato trágico que provoca compaixão e terror.

5.4.2 Comédia

Representação de um fato inspirado na vida e no sentimento comum, de


riso fácil, em geral criticando os costumes.

5.4.3 Tragicomédia

Representação em que se misturam elementos trágicos e cômicos. Essa


mistura de gêneros foi defendida tanto pelo Classicismo quanto pelo
Romantismo, contrariando, assim, a técnica dramática dos antigos.

16
Os teatros antigo, medieval e clássico eram feitos sempre em verso. Uma vez que o teatro
reproduzia a vida real, e nela a linguagem comum é a prosa, os românticos condenaram o
artificialismo da linguagem poética.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

5.5 Gêneros literários narrativos modernos

O gênero era considerado uma espécie de moldura em que as obras


literárias deveriam encaixar-se. A literatura, entretanto, modifica-se, uma vez
que se inspira em situações vividas pelas pessoas e em fatos da realidade
exterior; consequentemente, os gêneros tornam-se mais flexíveis.

No final da Idade Média, começaram a surgir alguns gêneros narrativos


em prosa, como o romance e a novela, que passaram a ganhar cada vez mais
prestígio com o declínio da epopeia, no final do século XVI. Pode-se dizer que
todos os gêneros narrativos modernos, como o romance, a novela, o conto, a
crônica, a fábula, o apólogo, a parábola etc., são da família do gênero épico,
pois, como ele, se prestam a contar uma história ficcional.

O romance – considerado a epopeia moderna – caracteriza-se por ser


um enredo longo, que abriga um número indefinido de personagens,
apresentando um núcleo narrativo central em torno do qual giram outros
secundários. O tempo e o espaço não são únicos.

A novela – embora tenha inúmeros pontos de contato com o romance –


se configura de modo diferente: os núcleos secundários não se apresentam
agrupados em torno de um núcleo central, mas se sucedem numa série de
episódios que estão ligados entre si. Esse gênero é menor, em extensão, do
que o romance, uma vez que condensa o que, no romance, aparece mais 72
desenvolvido. Assim, na novela, os diálogos são rápidos; as narrações,
condensadas e as descrições, impressionísticas. Vidas secas, de Graciliano
Ramos, é bom exemplo.

O conto, por sua vez, é a mais breve entre as espécies narrativas em


prosa. Dessa forma, tem limitado número de personagens, apresentadas
sempre com muita rapidez, não permitindo maior profundidade na
apresentação física ou psicológica delas. Além disso, explora a brevidade de
tempo, a máxima unidade de espaço e a linguagem objetiva.

Da mesma forma, os vários tipos de poema como sonetos, odes,


baladas, elegias etc. são da família do gênero lírico.

Hoje em dia, não são apenas as peças de teatro que pertencem ao


gênero dramático. Fazem parte também desse grupo as telenovelas, os filmes,
os circos-teatro etc.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6 GÊNEROS DO DISCURSO

6.1 Introdução

Estudou-se, no capítulo anterior, que os gregos antigos foram os


primeiros a agrupar os textos artísticos em três categorias inconfundíveis entre
si, fato que deu origem aos gêneros literários: o épico, o lírico e o dramático.
Verificou-se também que, à medida que a literatura foi evoluindo, esses
gêneros foram sendo modificados. A epopeia praticamente desapareceu,
dando origem ao romance, ao conto, à novela, dentre outros gêneros
narrativos. A poesia lírica tornou-se flexível, adquirindo variados formatos, o
que deu origem ao soneto, à ode, ao haicai, ao poema pílula etc. Ao gênero
dramático, incorporaram-se também os filmes e as telenovelas.

No século XX, com a evolução da Linguística, a ideia de gênero


extrapolou a esfera da literatura. Percebeu-se que todos os textos orais e
escritos produzidos pelo homem – literários ou não – poderiam ser agrupados
de acordo com as semelhanças que apresentavam. Foi-se mais além: 73
constatou-se que a comunicação só é possível ao homem por meio de
gêneros.

No dia a dia, os seres humanos realizam inúmeros atos de comunicação


dentro das mais variadas esferas de atividade, como as da escola, as da igreja,
as do quartel, as do hospital, as do trabalho, as da política, as da família, as
das relações de amizade e assim por diante. Para isso, eles fazem uso da
língua, que se concretiza em forma de enunciados17 orais ou escritos. Na
esfera de atividade jornalística, por exemplo, encontram-se variados tipos de
comunicação, como a notícia, a tirinha, a charge, a coluna esportiva, a coluna
de fofocas, a resenha de livros, os classificados e tantos outros. O quadrinho
abaixo retrata isso:

17
Grosso modo, pode-se dizer que enunciado é o produto da enunciação. A enunciação, por
sua vez, é o ato de produção do discurso.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Segundo Bakhtin, filósofo e linguista russo, “cada campo de utilização da


língua elabora seus tipos de enunciados relativamente estáveis”, ou seja, os
gêneros do discurso. O advérbio relativamente é de extrema importância nessa
definição, já que os gêneros discursivos não possuem estabilidade definitiva.
Uma vez atrelados às esferas de atividades humanas, eles estão sujeitos a
alterações. Alguns sofrem modificações ou até mesmo desaparecem. No
gênero carta comercial, aboliram-se velhas regras e modernizou-se a
linguagem a fim de facilitar tanto a vida de quem escreve quanto a de quem lê.
Com a adesão massificadora dos cartões de débito e de crédito pela
população, o gênero cheque está praticamente em extinção. A evolução dos
aplicativos e dos celulares fez que os gêneros cartão de aniversário e cartão de
Natal passassem a ser bem menos usados; por outro lado, outros gêneros
surgiram, como o whatsapp, por exemplo.

Desse modo, dependendo da atividade que executa, o homem vai


produzir certos tipos de enunciados que apresentam semelhanças temáticas,
organizacionais e estilísticas, o que permite estabelecer uma conexão da
linguagem com a vida social.

Sintetizando, pode-se afirmar que o tripé conteúdo temático,


organização composicional e estilo constrói o todo que constitui o enunciado,
que é marcado pela especificidade de uma esfera de ação. Para exemplificar
esses três aspectos, serão tomados os gêneros bula de remédio, receita
culinária, charge e prece.

O conteúdo temático não é o assunto específico de um texto, mas um 74


domínio de sentido de que se ocupa o gênero. Assim, as bulas de remédio
apresentam informações sobre a composição, a utilização, a posologia e as
contraindicações de um medicamento; as receitas culinárias falam sobre a
maneira de preparar um determinado alimento; as charges têm como conteúdo
temático a sátira a acontecimentos da atualidade por meio de desenhos de teor
humorístico; as preces são invocações dirigidas a Deus ou aos santos.

A construção composicional é o modo de organizar o texto, ou seja,


de estruturá-lo. As informações encontradas nas bulas de medicamento são
geralmente divididas e organizadas em três partes: a) identificação do
medicamento (nome, apresentação e composição do medicamento); b)
informações ao paciente; c) dizeres legais (farmacêutico e laboratório
responsáveis). As receitas, por sua vez, organizam as informações em duas
partes bem definidas: ingredientes e modo de preparo. As charges empregam
uma imagem acompanhada de crítica a fim de expressar ao público o
posicionamento editorial do veículo de comunicação (revista, jornal, televisão).
A prece, por sua vez, é estruturada em três partes: vocativo; pedido de que
algo se realize ou agradecimento por algo que já se realizou; e encerramento
(geralmente, pela palavra amém).

O estilo é uma seleção dos meios linguísticos, ou seja, a escolha de


palavras, de estruturas gramaticais e do nível de linguagem em função da
imagem do interlocutor e de como se presume sua compreensão do enunciado.
As bulas de remédio, desde 2009, por determinação da Anvisa (Agência
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Nacional de Vigilância Sanitária), têm sido redigidas de forma simples e


objetiva; antigamente, predominavam os jargões médicos, o que impossibilitava
o paciente de entender a mensagem. Assim, emprega-se uma linguagem
descritiva a fim de apresentar o produto, e organizam-se as informações na
forma de perguntas e de respostas, que seguem o seguinte roteiro: para que
este medicamento é indicado?; como este medicamento funciona?; quando
não devo usar este medicamento?; o que devo saber antes de usar este
medicamento?; onde, como e por quanto tempo posso guardar este
medicamento?; como devo usar este medicamento?; o que devo fazer quando
eu me esquecer de usar este medicamento?; quais os males que este
medicamento pode causar?; o que fazer se alguém usar uma quantidade maior
que a indicada deste medicamento?. Nas receitas, a primeira parte apenas
relaciona os ingredientes, estipulando as quantidades necessárias, indicadas
em gramas, em xícaras, em colheres, em pitadas etc.; na segunda, os verbos
estão geralmente no modo imperativo (prepare, coloque, misture etc.). Já a
crítica apresentada pelas charges é carregada de ironia. Daí, a origem da
palavra charge: do francês charger, que significa carga, exagero e ataque
violento. Nas preces, uma vez que o destinatário pertence ao plano espiritual,
emprega-se um estilo cerimonioso, que se vale de formas respeitosas (como o
pronome vós e a forma de tratamento Senhor ou Senhora) e de expressões
cristalizadas (Ó meu Deus!, Ó meu Pai!, fazei que, não permitais etc.).

Pode-se representar a teoria bakhtiniana sobre a constituição do gênero


discursivo por meio do seguinte esquema:
75

ESFERA
DE AÇÃO

GÊNERO

CONTEÚDO CONSTRUÇÃO
TEMÁTICO COMPOSICIONAL ESTILO

Para um enunciatário, dominar vários gêneros de discurso é um fator de


considerável economia cognitiva. Se, a cada atividade comunicativa, o homem
fosse obrigado a inventar um gênero, a troca verbal seria impossível.

Quando se dominam os gêneros do discurso, evitam-se os


mal-entendidos. Quem recebe, por exemplo, um cartão-postal não se choca
com o texto curto e com o fato de o enunciador falar apenas de si e de seus
passeios.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

A temporalidade de um gênero de discurso implica vários eixos:

a) uma periocidade  um curso, uma missa, um telejornal, por exemplo,


são periódicos; já um pronunciamento de chefe de Estado ou um
panfleto não obedecem a uma periodicidade;

b) uma continuidade  uma piada precisa ser contada de uma só vez; já


um romance pode ser lido com um número indeterminado de
interrupções;

c) uma duração de validade  uma revista jornalística é considerada


válida durante uma semana; o jornal, por um dia; já um livro religioso (a
Bíblia, o Alcorão, por exemplo), por um tempo indefinido.

A mudança de suporte material (canal) pode também caracterizar a


mudança de gênero discursivo. Um texto pode passar somente por ondas
sonoras (bate-papo), pode ter suas ondas tratadas e depois restituídas por um
decodificador (radiojornal, conversa telefônica), pode ser manuscrito (carta,
cartão-postal, bilhete), pode ser impresso (editorial, notícia), pode ser
transmitido pela internet (e-mail, chat, whatsapp) etc. Um debate político pela
televisão é um gênero de discurso totalmente diferente de um debate em uma
sala de aula para um público exclusivamente formado pelos ouvintes
presentes. Desse modo, o gênero debate político se diferencia do gênero
debate em sala de aula. 76

Bakhtin divide ainda os gêneros em primários e secundários.

Os primários são os gêneros da vida cotidiana. São predominantemente,


mas não exclusivamente, orais. Pertencem à comunicação verbal espontânea
e têm relação direta com o contexto mais imediato. Ex.: a piada, o bate-papo, a
conversa telefônica, o e-mail, o bilhete, a lista de compras, o chat, o whatsapp,
o telegrama, o cartão-postal etc.

Já os secundários pertencem à esfera da comunicação cultural mais


elaborada, a jornalística, a jurídica, a religiosa, a política, a filosófica, a
pedagógica, a artística, a científica. São preponderantemente, mas não
unicamente, escritos. Ex.: o sermão, o editorial, o romance, a poesia lírica, o
discurso parlamentar, o artigo científico, o ensaio filosófico, a biografia, a
notícia de jornal, a charge, a bula de remédio etc.

É importante destacar que os gêneros literários são gêneros discursivos.


São chamados de literários por pertencerem à esfera da literatura.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2 Constituição de alguns gêneros discursivos

A seguir, serão apresentadas as constituições de alguns gêneros


discursivos de acordo com a perspectiva bakhtiniana.

6.2.1 BULA DE REMÉDIO

Informações sobre a composição, a


CONTEÚDO TEMÁTICO utilização, a posologia e as
contraindicações de um medicamento.
Apresenta três partes: identificação do
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL medicamento, informações aos pacientes
e dizeres legais.
Linguagem simples e objetiva, com as
ESTILO informações sobre o medicamento
organizadas em forma de perguntas e
respostas.

Exemplo:

77

IDENTIFICAÇÃO
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

INFORMAÇÕES AO PACIENTE
78

DIZERES LEGAIS
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.2 RECEITA CULINÁRIA

Maneira de preparar um determinado


CONTEÚDO TEMÁTICO
alimento.

Apresenta duas partes bem definidas:


CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL
ingredientes e modo de preparo.
Na primeira parte (ingredientes), faz-se
ESTILO uso de um texto descritivo. Na segunda,
de um texto injuntivo, com verbos no
imperativo ou no infinitivo.

Exemplo:

BRIGADEIRO
79

INGREDIENTES

1 caixa de leite condensado;


1.ª PARTE

1 colher (sopa) de margarina sem sal;


7 colheres (sopa) de achocolatado ou 4 colheres (sopa) de chocolate em pó;
chocolate granulado.

MODO DE PREPARO

 Em uma panela funda, acrescente o leite condensado, a margarina e o


2.ª PARTE

chocolate em pó.
 Cozinhe em fogo médio e mexa até que o brigadeiro comece a
desgrudar da panela.
 Deixe esfriar e faça pequenas bolas com a mão passando a massa no
chocolate granulado.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.3 CHARGE

Sátira a fatos de cunho político e social


CONTEÚDO TEMÁTICO da atualidade.

Apresenta duas partes: uma imagem


CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL acompanhada de texto crítico.

ESTILO Linguagem jocosa e irônica.

Exemplo:

CRÍTICA:
Charge do Duke. 28.jna.2021

O fato de o governo federal ter 80


gastado, em 2020, mais de R$
15 milhões com a compra de
leite condensado para todos
os órgãos do Poder Executivo
(Ministérios da Defesa, da
Educação, da Justiça e da
Saúde).
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.4 CARTUM

Sátira a comportamentos humanos ou a


CONTEÚDO TEMÁTICO questões sociais atemporais e universais.

Apresenta duas partes: uma imagem


CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL acompanhada de texto crítico ou
reflexivo.

ESTILO Linguagem jocosa e irônica.

Exemplo:

CRÍTICA:

Redução de contato
com livros físicos em
razão de hábitos
digitais. 81

Obs.:
Deve-se estabelecer diferença entre charge e cartum. A charge é
originária de uma notícia jornalística do momento, criticando as ações de uma
personalidade (geralmente política) ou um acontecimento específico; é, assim,
um gênero de curta validade, de rápida desatualização.

O cartum, por sua vez, não retrata uma pessoa específica ou um fato
isolado, mas as ações de uma coletividade; trata-se, portanto, de gênero
atemporal, ou seja, com validade indeterminada.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.5 PRECE

Invocações dirigidas a Deus, a santos, a


CONTEÚDO TEMÁTICO
anjos ou a outras divindades.
Apresenta três partes: vocativo; pedido
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL de que algo se realize ou agradecimento
por algo que já se realizou; e
encerramento (geralmente, pela palavra
amém).
Linguagem cerimoniosa, que se vale de
ESTILO pronomes e de verbos no imperativo na
2.ª pessoa do plural.

Exemplo:

82

Amado Jesus, VOCATIVO


Agradeço-lhe o dia de hoje.
Guarde-me sempre de todo mal. AGRADECIMENTO E PEDIDO
Amém! ENCERRAMENTO
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.6 FÁBULA

Narrativa, de natureza simbólica, de uma


CONTEÚDO TEMÁTICO situação vivida por animais, que alude a
uma situação humana, tendo por objetivo
transmitir uma moralidade.
Apresenta duas partes: um enredo breve
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL e uma lição moral (epitímio), que é o
cerne da transmissão dos valores
ideológicos sociais.
Linguagem com grande carga metafórica
(texto conotativo), com presença de
ESTILO personagens-símbolo. Ex.: leão, símbolo
da força, da majestade e do poder;
raposa, símbolo da astúcia; lobo, do
poder tirânico; tartaruga, da tenacidade;
etc. Na narrativa, empregam-se os
discursos direto e indireto.

Exemplo:

83
A tartaruga e o coelho

Certo dia um coelho zombou das pernas curtas e do passo lento da tartaruga,
que respondeu, sorrindo:
— Embora você seja rápido como o vento, vencerei você numa corrida.
O coelho, acreditando ser simplesmente impossível a declaração da tartaruga,
aceitou o desafio; concordaram que a raposa deveria escolher o roteiro e determinar
onde seria a chegada.
No dia da corrida, os dois começaram juntos.
A tartaruga nem por um momento parou; antes, prosseguiu num passo lento,
mas constante até o final da pista.
O coelho deitou-se à beira do caminho e adormeceu depressa.
Tendo finalmente acordado, moveu-se tão depressa quanto pôde, e viu
a tartaruga que, tendo atravessado a linha de chegada, estava confortavelmente
cochilando depois de sua fatigante corrida.

Lições morais (epitímios):

Excesso de autoconfiança pode ser um obstáculo para alcançar os objetivos.


Mais vale um trabalho persistente do que os dotes naturais mal aproveitados.
Jamais subestime o adversário.
Devagar se vai ao longe.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.7 APÓLOGO

Narrativa, de natureza simbólica, de uma


CONTEÚDO TEMÁTICO situação vivida por seres inanimados, que
alude a uma situação humana, tendo por
objetivo transmitir uma moralidade.
Apresenta duas partes: um enredo curto
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL e uma lição moral (epitímio), que é o
cerne da transmissão dos valores
ideológicos sociais.
Linguagem com grande carga metafórica
ESTILO (texto conotativo), com presença de
personagens-símbolo. Na narrativa,
empregam-se os discursos direto e
indireto.

Exemplo:

O sol e o vento

O sol e o vento discutiam sobre qual dos dois era mais forte. 84
O vento disse:
— Provarei que sou o mais forte. Vê aquela mulher que vem lá embaixo com
um lenço azul no pescoço? Aposto como posso fazer com que ela tire
o lenço mais depressa do que você.
O sol aceitou a aposta e recolheu-se atrás de uma nuvem.
O vento começou a soprar até quase se tornar um furacão, mas, quanto
mais ele soprava, mais a mulher segurava o lenço junto a si.
Finalmente, o vento acalmou-se e desistiu de soprar.
Logo após, o sol saiu de trás da nuvem e sorriu bondosamente para a mulher.
Imediatamente ela esfregou o rosto e tirou o lenço do pescoço.
O sol disse, então, ao vento:
— Lembre-se disto:
A gentileza e a amizade são sempre mais fortes que a fúria e a força.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.8 Parábola

Narrativa alegórica, de assunto variado,


CONTEÚDO TEMÁTICO protagonizada por seres humanos, a fim
de apresentar exemplos ou antiexemplos
de conduta.
Apresenta duas partes: um enredo curto
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL
e uma lição moral explícita ou implícita.

Linguagem figurada, alegórica. Na


ESTILO narrativa, empregam-se os discursos
direto e indireto.

Exemplo:

A parábola da ovelha perdida

85
Todos os publicanos e pecadores estavam se reunindo para ouvir Jesus. Mas
os fariseus e os mestres da lei o criticavam: Este homem recebe pecadores e come
com eles.

Então, Jesus lhes contou esta parábola: Qual de vocês que, possuindo cem
ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da
ovelha perdida, até encontrá-la? E quando a encontra, coloca-a alegremente nos
ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus amigos e vizinhos e diz: Alegrem-se
comigo, pois encontrei minha ovelha perdida. Eu lhes digo que, da mesma forma,
haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e
nove justos que não precisam arrepender-se.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.9 HISTÓRIA EM QUADRINHOS INFANTIL

Narrativa relativamente extensa de


CONTEÚDO TEMÁTICO assuntos diversos cujo principal objetivo
é o entretenimento.
Apresenta sequência de quadrinhos, que
explora simultaneamente a linguagem
não verbal e a verbal. Em alguns casos,
há apenas a linguagem não verbal. A fala
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL e o pensamento das personagens
aparecem em balões.
Linguagem coloquial, com presença
intensa de onomatopeias (palavras que
ESTILO tentam reproduzir sons) e de letras de
tipos diferentes buscando interação com
o leitor. Essas histórias possuem os
fundamentos básicos do texto narrativo:
enredo, personagens, tempo, espaço e
desfecho.

Tipos de balão
86
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Exemplos:

BALÃO MUSICAL

BALÃO DE COCHICHO

87
BALÃO DE PENSAMENTO

BALÃO DE FALA EM VOZ ALTA


GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.10 TIRINHA

Narrativa sintética cujo principal objetivo


CONTEÚDO TEMÁTICO é o entretenimento e, muitas vezes, uma
crítica a valores sociais.
Sequência de três ou quatro quadrinhos,
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL em que se exploram simultaneamente a
linguagem não verbal e a verbal. Em
alguns casos, há apenas a linguagem
não verbal. A fala ou pensamento das
personagens aparecem em balões.
Linguagem informal, com possível
ESTILO presença de onomatopeias (palavras que
tentam reproduzir sons) e de letras de
tipos diferentes buscando interação com
o leitor.

Exemplos:

88
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.11 CARTÃO-POSTAL

CONTEÚDO TEMÁTICO Apreciação de determinada viagem.

Duas partes: imagem de um ponto


turístico em um dos lados; do outro,
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL espaço para texto (com data, vocativo,
mensagem e assinatura) e endereço do
destinatário.
Texto curto redigido em linguagem
ESTILO coloquial.

Exemplo:

89
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.12 DIÁRIO

Registro de relatos pessoais e dos


CONTEÚDO TEMÁTICO acontecimentos do dia a dia, tendo o
escritor como próprio destinatário.

CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL Data, vocativo "Querido diário" e relatos


relevantes do dia (corpo do texto).

Linguagem informal, ou até vulgar, em 1.a


ESTILO
pessoa.

Exemplo:

90
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.13 CARDÁPIO

Relação de alimentos e de bebidas de


CONTEÚDO TEMÁTICO um estabelecimento com os respectivos
valores.
Geralmente há divisão de quatro grandes
seções: entradas, pratos principais,
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL bebidas e sobremesas. Os produtos
ficam relacionados à esquerda com os
respectivos preços à direita.
Linguagem objetiva. Emprego de
substantivos ou de substantivos e
ESTILO adjetivos para nomear os produtos.
Dependendo do estabelecimento, pode
haver descrição pormenorizada do
produto.

Exemplo:

91
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.14 CAMPANHA COMUNITÁRIA

Esclarecimentos e orientações à
CONTEÚDO TEMÁTICO população sobre uma determinada ação
social.
Título atrativo, imagem acompanhada de
texto com informações sobre a
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL campanha. Identificação dos realizadores
da ação social.
Linguagem formal, mas simples; texto
injuntivo (verbos no imperativo)
ESTILO objetivando a persuasão, ou seja, levar o
destinatário à ação.

Exemplo:

92
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.15 NOTÍCIA DE JORNAL

CONTEÚDO TEMÁTICO Relato de fatos relevantes do cotidiano.

Apresenta quatro partes básicas:


manchete (título), subtítulo, lide (1.º
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL parágrafo do texto: introdução que
aborda ou resume os principais temas da
matéria jornalística) e corpo da notícia
(fato, personagens envolvidas, tempo,
local).
As notícias são escritas na 3.ª pessoa,
com uma linguagem direta, fluida e
ESTILO impessoal. O nível de formalidade pode
ser maior ou menor dependendo da
editoria a que pertencem, porém, o
padrão é seguir o nível culto da língua.
Por se tratar de um texto jornalístico, a
linguagem deve ser clara e objetiva, e a
apresentação das informações deve ser
completa, a fim de evitar ambiguidades. 93

Exemplo:

G1 MUNDO
MANCHETE

Com hospitais pressionados por Covid-19,


Portugal prorroga lockdown
SUBTÍTULO

Estado de emergência tem duração de duas semanas, mas


pode ser prorrogado indefinidamente.

Por Catarina Demony e Sergio Gonçalves, Reuters — Lisboa 11/02/2021

Portugal prorrogou nesta quinta-feira (11) um lockdown no país até pelo menos
LIDE

1.º de março para combater seu pior surto de infecções por Covid-19 desde o
início da pandemia, mas o primeiro-ministro António Costa advertiu que as
regras rígidas devem permanecer por mais tempo.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

"A situação ainda é extremamente grave e exige que essas medidas sejam
estendidas não apenas até o final de fevereiro, mas provavelmente até o final
de março", disse Costa em entrevista coletiva. "Não é hora de discutir o fim do
lockdown."

De acordo com a legislação portuguesa, o chamado estado de emergência


está limitado a 15 dias, mas pode ser prorrogado indefinidamente.

O país de pouco mais de 10 milhões de habitantes se saiu melhor do que


outras nações da Europa na primeira onda da pandemia, mas 2021 trouxe um
aumento devastador de infecções e mortes, em parte atribuído à rápida
CORPO DA NOTÍCIA

disseminação da variante britânica do vírus e à flexibilização das regras para o


Natal.

Na quarta (10), Portugal também confirmou o primeiro caso da mutação


brasileira do vírus.

Quase 14,9 mil pessoas morreram de Covid-19, com o total de casos chegando
a 778.369.

Embora o número de infecções e mortes diárias tenha diminuído este mês, o


sistema de saúde tem dificuldades para tratar os cerca de 6,4 mil pacientes
com Covid-19 em hospitais e terapia intensiva. 94

“A verdade é que a capacidade hospitalar do país continua sendo posta à


prova... por isso não há alternativa senão reduzir os casos”, escreveu o
presidente Marcelo Rebelo de Sousa em seu site oficial antes de o Parlamento
aprovar a sua proposta de prorrogação do lockdown por mais duas semanas.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.16 WHATSAPP

CONTEÚDO TEMÁTICO Assuntos cotidianos, informais.

Texto (oral ou escrito), podendo vir


CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL acompanhado de emojis e/ou vídeos.
Mensagem preferencialmente breve com
ESTILO linguagem coloquial; o texto, quando
escrito, pode apresentar palavras
abreviadas e sem acentuação.

Exemplo:

95
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.17 E-MAIL

Comunicação eletrônica de caráter


CONTEÚDO TEMÁTICO pessoal ou profissional, com assunto
variado.
Endereço eletrônico do destinatário,
assunto da mensagem, arquivo anexo (se
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL houver), vocativo, texto informativo,
despedida e nome do destinador
(assinatura).
Texto breve com nível de linguagem
ESTILO variado.

Exemplo:

96
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.18 PROVÉRBIO

Enunciado que expressa suposta


CONTEÚDO TEMÁTICO sabedoria popular.

Frase geralmente estruturada de maneira


CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL binária, ou seja, apresentando duas
partes.

ESTILO Frase curta com linguagem metafórica.

Exemplos:

Não há mal que sempre dure nem bem que não se acabe.
Tal pai, tal filho.
Quem tudo quer tudo perde.
Um dia da caça, outro do caçador.
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Papagaio come milho, periquito leva a fama. 97
Falar é prata, calar é ouro.
Em casa de ferreiro, espeto de pau.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.19 MANUAL DE INSTRUÇÕES

Informações com função de ensinar ao


consumidor o modo de montagem e/ou
CONTEÚDO TEMÁTICO manuseio de um produto, de um
equipamento ou de um software
adquirido.
Apresenta geralmente cinco partes:
índice; parâmetros legais; instruções de
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL montagem e/ou uso; cuidados e
precauções; assistência técnica. Contém
imagens auxiliares à compreensão.
Linguagem descritiva com verbos no
imperativo. Emprego de advérbios de
ESTILO modo (cuidadosamente, levemente,
atentamente etc.), indicando como as
ações devem ser feitas.

Exemplo:

98
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.20 RESENHA CRÍTICA DE FILME

Texto argumentativo crítico (opinativo)


CONTEÚDO TEMÁTICO sobre determinado filme com síntese da
trama sem, entretanto, denunciar ao
espectador o desfecho.
Título (título da resenha acompanhado ou
não do título do filme), imagem
relacionada ao filme, ficha técnica (título
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL original, ano e local de lançamento,
classificação etária, tempo de duração,
nome do diretor, nome do roteirista,
atores principais), resumo do filme
(rápida apresentação e descrições
relevantes) e análise crítica (apreciação
do filme).
Linguagem formal ou coloquial,
ESTILO impressões positivas ou negativas por
meio de adjetivos.

Exemplo:

99
Extraordinário | Crítica
Mesmo infantil demais, filme acerta ao tratar o bullying de forma delicada.

CAMILA SOUSA
06.12.2017

TÍTULO ORIGINAL: Wonder


ANO: 2017
PAÍS: EUA
CLASSIFICAÇÃO: 10 anos
DURAÇÃO: 113 min
DIREÇÃO: Stephen Chbosky
ROTEIRO: Steve Conrad
ELENCO: Julia Roberts, Jacob Tremblay, Owen
Wilson
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

É curioso como alguns adultos afirmam que, em suas épocas de escola,


não existia o “bullying”. Isso é algo da nova geração e está deixando as
crianças “fracas”, dizem. A verdade é que o bullying sempre existiu, mas não
era tratado com a seriedade necessária. Felizmente, os tempos mudaram e
hoje é comum tocar nesse assunto, como faz o livro Extraordinário, lançado
por R.J. Palacio em 2012.
Essa é a história do garoto Auggie, que tem uma deformidade facial e
está prestes a começar na escola pela primeira vez. Com 10 anos, ele era
ensinado em casa pela mãe, mas ela resolve que é hora de o menino
frequentar uma escola regular. É uma trajetória delicada, que cita inclusive as
várias cirurgias pelas quais Auggie passou, mas o grande diferencial é a
linguagem simples. Tanto no livro como no filme, quase tudo é narrado pelo
ponto de vista de Auggie.
O resultado é um filme delicado, mas que se torna infantil demais. É um
caminho seguro para não se aprofundar em algumas discussões pertinentes. O
bullying, por exemplo, é abordado no ambiente escolar, inclusive mostrando
que a criança que faz esses atos também costuma ter problemas emocionais.
Mas tudo é extremamente leve, de um modo que funciona no livro, mas
precisava de mais peso ao ser mostrado nos cinemas. Com temas tão
interessantes e atuais, o filme poderia ir mais fundo na questão do preconceito,
provocando os que assistem ao longa a um questionamento interno. Ao
escolher o caminho simples, o filme se torna agradável de assistir, mas perde a
oportunidade de ser mais do que isso.
Elogiado por seu papel em O Quarto de Jack, Jacob Tremblay usa
maquiagem e próteses para fazer o menino e coloca muito bem os sentimentos
de Auggie na tela. Apesar da pouca idade, ele sabe quando é tratado com 100
preconceito, mesmo quando isso não é feito de forma direta. As interações
entre Tremblay e Julia Roberts, que faz a mãe do garoto, são as mais
emocionantes de toda a produção. O carismático pai de Auggie, interpretado
por Owen Wilson, acaba ofuscado nessa relação. Para os curiosos sobre a
participação de Sônia Braga, a brasileira não aparece tanto, mas domina a tela
quando surge como a avó materna do protagonista.
Além da narração de Auggie, a adaptação de Extraordinário também é
fiel aos outros pontos de vistas apresentados no livro. Embora a escolha seja
interessante para apresentar melhor como a condição do garoto afeta as
pessoas ao redor – como a irmã e o melhor amigo –, também é uma decisão
que deixa o filme um pouco lento em seu segundo ato. Muitas vezes uma
história é totalmente interrompida para contar outra, que também demora para
se desenvolver. Faltou ao roteiro, escrito pelo também diretor Stephen
Chbosky, por Steve Conrad e por Jack Thorne, ser um pouco mais dinâmico
para a linguagem dos cinemas.
Extraordinário cresce quando trata do ponto principal de sua história:
amadurecimento. Tanto de pessoas, quanto da sociedade. Auggie cresce após
seu convívio inicial difícil com as crianças da escola. Elas também aprendem a
lidar com as diferenças de forma melhor, percebendo que ele é um garoto
como qualquer outro. Até sua família, tão acostumada a protegê-lo o tempo
todo, entende que o garoto precisa seguir sozinho em alguns momentos, para
seu próprio bem. São aprendizados difíceis, que não acontecem do dia para a
noite, mas fazem toda a diferença.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.21 PROPAGANDA

Mensagem de divulgação de ideias


CONTEÚDO TEMÁTICO políticas, religiosas, econômicas ou
sociais que objetiva levar o destinatário a
realizar uma ação ou a crer em algo.
Estrutura composta geralmente por uma
imagem e por um texto linguístico com
título (que chama a atenção sobre a ideia
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL divulgada), texto (em que se defende a
ideia) e destinador (divulgador da ideia).
Linguagem persuasiva, direta e clara,
ESTILO com nível linguístico de acordo com o
público que se pretende atingir,
geralmente o coloquial. Faz-se muitas
vezes uso de trocadilhos e empregam-se
geralmente verbos no imperativo.

Exemplo:

101
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.2.22 PUBLICIDADE

Mensagem de divulgação de um produto,


CONTEÚDO TEMÁTICO
um serviço ou uma marca.

Estrutura composta geralmente por uma


imagem e por um texto linguístico com
título (que chama a atenção sobre a ideia
CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL divulgada), texto (em que se defende a
ideia) e destinador (divulgador da ideia).
Linguagem persuasiva, direta e clara,
ESTILO com nível linguístico de acordo com o
público que se pretende atingir,
geralmente o coloquial. Emprgam-se
geralmente verbos no imperativo.

Exemplo:

102
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

6.3 Hibridização dos gêneros discursivos

Os gêneros podem também hibridizar-se, ou seja, podem cruzar-se. Um


gênero pode imitar outro em sua estrutura composicional, em sua temática e
em seu estilo.

No poema concreto abaixo, mantém-se a estrutura composicional e o


estilo do gênero receita, mas muda-se a temática. Fala-se não de receita
culinária, mas de uma receita de amor.

103
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

O romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, foi reescrito em forma de


quadrinhos. Nesse caso, mudou-se a estrutura composicional. A sequência
narrativa em capítulos foi substituída por sequência de quadrinhos, explorando
simultaneamente a linguagem verbal e a não verbal.

104
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Observe-se ainda este exemplo:

105

Nesse caso, mantém-se o conteúdo temático da charge (trata-se de uma


sátira a um fato de cunho social da atualidade: o descaso da população
brasileira às medidas de prevenção contra o novo coronavírus), e mescla-se o
estilo da charge (linguagem jocosa e irônica) com o da entrevista (oralidade
resultante da interação entrevistador-entrevistado). A construção composicional
aparece também misturada: faz-se uso das estruturas do gênero entrevista
(título, apresentação do entrevistado, perguntas e respostas) e do gênero
história em quadrinhos (sequência de quadrinhos, que explora
simultaneamente a linguagem não verbal e a verbal).
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

7 NÍVEIS DE LINGUAGEM

Pelos vários exemplos de gêneros discursivos analisados até agora, foi


possível perceber que eles apresentam níveis de linguagem diferenciados, o
que é um dos elementos que contribui para caracterizar o estilo de cada um
deles. Assim, em uma história em quadrinhos, o roteirista vale-se de um nível
coloquial de linguagem, diferentemente de uma notícia de jornal, em que o
jornalista preza pelo nível culto. Em uma propaganda – dependendo do
público-alvo – pode-se fazer uso de gírias; já em uma sentença judicial, serão
empregados jargões.

Embora o código seja o mesmo em todos esses casos – considerando a


língua portuguesa – há formas diferenciadas de uso. Metaforicamente, pode-se
afirmar que qualquer língua – assim como qualquer cor – apresenta nuances.

Observe atentamente os seguintes matizes:

106

Qualquer pessoa que olhar uma dessas gradações isoladamente irá


dar-lhe o nome de verde. Uma comparação com outros tons, entretanto, deixa
perceptível que existem outras nuances de verde.

Ocorre o mesmo processo de comparação com o uso da língua. O


idioma português, por exemplo, apresenta diversos matizes, que são
consequentes das mais variadas situações em que o processo de comunicação
é realizado. A língua usada por um médico não é a mesma usada por seu
cliente. Um professor não se expressa em sala de aula da mesma forma com
que se expressa em casa, com seus familiares. Um semianalfabeto não tem o
mesmo repertório linguístico de uma pessoa com boa escolaridade. Pode-se,
então, afirmar que a língua – tal qual a cor – possui diversos níveis, que
constituem a chamada norma linguística.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Segundo o linguista Eugenio Coseriu, a norma é um conjunto de


realizações linguísticas constantes e repetidas, de caráter sociocultural. É, em
outras palavras, tudo o que espontânea e prontamente se diz numa
comunidade linguística. Assim, pertencem à norma da língua portuguesa os
seguintes níveis de linguagem:

7.1 Língua culta

É aquela que obedece às regras ditadas pela gramática normativa; é


empregada em situações formais pelas elites da sociedade, que têm acesso a
uma boa escolarização. Ex.:

O presidente interveio na discussão entre os ministros.


Entre mim e você, não há amizade.

7.2 Língua popular ou coloquial

É a usada no cotidiano, não obedecendo ao padrão culto da linguagem.


É utilizada pela maioria das pessoas no dia a dia, principalmente nas situações
informais. Ex.:

107

Em sua fala, o Bolinha contrariou as regras da língua culta. Deveria ter


dito ao Carequinha: Pronto! Isto é o que se chama uma árvore de Natal para
gatos! Quando houver bastantes gatos seguindo-nos, vamos até a casa da
Luluzinha e tocamos a campainha.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

7.3 Língua vulgar

É aquela que se distancia extremamente da língua culta. É usada por


pessoas de nenhuma ou de pouca escolaridade. Ex.:

7.4 Gíria no sentido lato

No sentido lato, a gíria é uma linguagem informal com vocabulário rico


em expressões jocosas (que provocam riso), com intenção de chiste (graça,
brincadeira, gozação). Ex.: zoar, tudo em riba, maneiro, trolar, vaza daqui,
tchutchuca etc.

Embora essa maneira de falar seja recriminada pelos gramáticos, é 108


perfeitamente adequado o uso da linguagem giriática em textos direcionados
ao público mais jovem, principalmente quando se pretende persuadi-lo.
Observe-se o seguinte exemplo:

VIAGEM DE FORMATURA À DISNEY


Venha curtir com sua galera momentos inesquecíveis na terra do Mickey.
Passagem aérea + 6 noites de hotel + 6 diárias de carro com seguro e
motorista adicional. Embarque até dezembro por apenas R$ 1.969,00 a vista.
Não perca a oportunidade de marcar de forma diferente o encerramento dessa
importante etapa de sua vida. Vai ser um barato! Oferta firmeza como essa só
na Teen Tours.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

O redator, visando a atingir o público que está concluindo o Ensino


Médio, emprega uma linguagem típica dessa faixa etária. A comunicação, sem
dúvida alguma, torna-se mais eficiente, pois os termos curtir, galera, barato e
firmeza falam à alma do adolescente, tornando o texto dinâmico e cheio de
vivacidade, bem próximo da linguagem falada.

7.5 Gíria no sentido estrito

No sentido estrito, gíria é um signo de grupo, a princípio secreto. É a


linguagem típica de um determinado grupo para enviar mensagens
decodificáveis apenas pelo próprio grupo.

Observe-se o texto seguinte. Trata-se de uma fala de um presidiário. A


linguagem por ele usada só pode ser decifrada por quem pertence ao
submundo do crime.

Pois eu, meu chaporeba, sou da marijuana. Faturo horrores ali no lixão.
Numa só pavuna, eu marreto vários pacaus, e cada fininho vale dez paus. Os
tiras estão sempre de holofotes, mas o vivaldino aqui tem vagólio na campana.
Até hoje, só puxei uma, na casa do cão. Foi quando a Excelência me
tacou três anos de galera e dois de medida.
Mas agora estou na libertina e o negócio é levantar uma nota traficando 109
a xibaba e, se os cherloques meterem uma escama em cima, tá na cara: um
vai amanhecer com a boca cheia de formiga.
Morou?
Ziriguidim pra você.

Em linguagem corrente, foi dito o seguinte:

Pois eu, meu amigo, sou da maconha. Faturo muito ali no lixão. Numa
só noite, vendo vários maços de maconha, e cada cigarro vale dez reais. Os
policiais estão sempre de olhos abertos, mas o malandro aqui tem (olheiro)
vagabundo vigiando as imediações.
Até hoje, só fiquei preso uma vez, na penitenciária. Foi quando o juiz me
sentenciou a três anos de cadeia e dois de medida de segurança.
Mas agora estou em liberdade e o meu “trabalho” é conseguir muito
dinheiro traficando maconha, e, se os detetives dificultarem, é óbvio: um deles
vai amanhecer morto.
Entendeu?
Adeus a você.

Assim, ao contrário da gíria no sentido lato, que não passa de uma


forma exagerada de linguagem familiar, a gíria no sentido estrito tem caráter
mais reservado, sendo empregada por grupos sociais específicos, como o dos
presidiários, o dos skatistas, o dos surfistas, o dos funkeiros, o dos marinheiros
etc.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

Observem-se, a título de curiosidade, algumas gírias em sentido estrito:

7.5.1 dos skatistas

baba-egg: pessoa muito bajuladora, puxa-saco.


chupar uma manguita: dar-se mal, cair.
é novas: todo mundo já sabe.
gralha: skatista ruim.
madonna: manobra radical.
morcegar: andar de skate à noite.
pleiba: rico que anda de skate.
tá na hands: está tudo certo.

7.5.2 dos surfistas

bacalhau ou fubanga: mulher feia.


clean: mar agitado, sem vento.
crowd: lugar muito cheio.
merreca: onda pequena.
morra: onda grande.
morte horrível: cair da prancha e ser embrulhado pela onda.
paneleiro: surfista ruim.
storm: mar mexido, com vento.

(DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.448)
110
7.5.3 dos presidiários

arreglo: ajuste entre malandros e policiais mediante dinheiro.


arribite: bala.
bagana: cigarro de maconha.
berro: revólver.
boca de siri: sigilo absoluto.
cachanga: mulher.
cachorrinho: indivíduo que auxilia os policiais,
delatando os comparsas.
cavalo cego: automóvel.
dança de rato: conflito.
dar a pindorama: fugir.
estar limpo: não estar com liberdade vigiada;
não estar respondendo a inquérito.
fechar o tempo: acontecer um conflito.
fumeta: maconheiro
homem: agente de polícia.
mancoso: sem palavra.
migué: bobo, otário.
moleza: serviço fácil e rendoso.
morar na minha: prestar atenção.
papa de bom: comida de rico.
papo firme: boa conversa.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

papo furado: conversa fiada.


pipoca: soco.
presunto: defunto.
puxar o carro: fugir.
puxar um mofo: ficar preso durante muitos anos.
se mancar: entender que está incurso em algum erro.
telha: cabeça.
tira: investigador de polícia.
tomar na marra: roubar, assaltar.
vagomestre: vadio.
vestir o camisolão: morrer.
xepa: comida

(SILVA, Felisberto da. Dicionário de gíria. São Paulo: Prelúdio, s/d)

7.5.4 dos funkeiros

alemão: pessoa de caráter duvidoso, inimigo, rival.


bonde: grupo de funkeiros
caô: mentira, calote
MC: mestre-de-cerimônias dos bailes funk
pisante: tênis

111

7.5.5 dos marinheiros

bizu: conselho, dica.


boca preta: aquele que questiona a ordem do superior.
cochado: protegido, favorecido.
dona Maria: esposa de militar.
estar de pau: estar de serviço.
estar na onça: estar desesperado, estar afobado.
fazer guerra: debochar de alguém.
jacuba: refresco.
safo: ok, tudo certo.
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

7.6 Jargão

É um termo próprio de uma determinada profissão. Um advogado, ao


conversar com um colega, usa palavras próprias da profissão, habituais ao
outro, mas ininteligíveis para os leigos. Dessa forma, pode-se perceber uma
linguagem típica dos médicos, dos engenheiros, dos jornalistas, dos psicólogos
etc. Observe-se o seguinte exemplo:

A fala desse juiz é composta por expressões que são exclusivas do


Direito. Assim, um receptor que não tenha conhecimento dessa área
encontrará não compreenderá o significado da mensagem.

Transpondo os jargões da situação comunicativa acima para a 112


linguagem corrente, depreende-se a seguinte mensagem:

O ESTUPRO ACONTECEU
SOB VIOLÊNCIA FÍSICA
OU SOB AMEAÇA GRAVE?

Os jargões apenas são estilisticamente adequados em textos técnicos,


destinados a determinados grupos profissionais. Se um médico, ao dar o
diagnóstico ao paciente, empregar jargões, atingirá um nível de comunicação
próximo ao grau zero. Observe-se a tira seguinte:
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

7.7 Regionalismo

Dentro das fronteiras de um país, notadamente os de grande extensão


territorial, como o Brasil, percebe-se o uso regional da língua no emprego de
certas palavras ou expressões, ou mesmo de certas construções gramaticais,
que são típicas de uma determinada região.

Os termos regionais dão colorido especial à fala do homem de 113


determinada região. Quem escreve é levado a pôr na boca das personagens a
linguagem que lhes é própria. Essa escolha, entretanto, deverá ser feita
sempre com bom senso a fim de que os regionalismos não dificultem
gravemente a compreensão do texto.

Observem-se dois enunciados extraídos da literatura regionalista


brasileira:

Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com


um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé. Porto Alegre: L&PM, 1982.)

Fabiano levava um frasco de creolina no aió.

(RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 56.ed. São Paulo: Record, 1986.)

Na primeira construção, retrata-se um homem do Sul; na segunda, um


homem do Nordeste. A diferença cultural existente entre essas duas regiões do
Brasil vai, sem dúvida alguma, refletir no uso da língua. O vocábulo pelego é
empregado para nomear o tapete feito com pele de carneiro; vem daí a
hiperbólica expressão gaúcha frio de arrepiar o pelego. O termo bombacha
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

refere-se a uma peça de roupa: são calças típicas, abotoadas no tornozelo,


usadas pelos gaúchos. O nome foi adotado do termo espanhol bombacho, que
significa calças largas. A palavra aió, por sua vez, vai designar uma bolsa de
caça feita de fibras de uma planta chamada caroá, nativa do Nordeste.

Mais alguns regionalismos brasileiros:

aipim, macaxeira (Nordeste): mandioca.


avexado (Nordeste): apressado.
bergamota (Sul): tangerina.
birita (Rio de Janeiro e São Paulo): cachaça.
bombeiro (Rio de Janeiro): encanador.
borboleta (Goiás e Bahia): catraca.
cacetinho (Sul e Bahia): pãozinho.
cacunda (interior de São Paulo e de Minas Gerais): costas.
cafundó (Bahia): lugar afastado, de difícil acesso.
enrolar o poncho (Rio Grande do Sul): preparar-se para viajar.
fifó (Bahia e Minas Gerais): pequeno lampião.
jerimum (Nordeste): abóbora.
oigalê (Sul): interjeição de espanto, de admiração ou de alegria.
pousada (Nordeste): motel.
ri-ri (Maranhão): zíper.
trem (Minas Gerais, Goiás e Tocantins): coisa.
xexo (Alagoas e Rio Grande do Norte): calote.
zuruó (Alagoas): amalucado, adoidado. 114
GÊNEROS DISCURSIVOS — PROF. DR. JAIRO POSTAL

8 NOÇÕES DE ESTILÍSTICA

8.1 Conceito de Estilística

Estilística é a disciplina que estuda o sistema afetivo-expressivo da


língua, tendo como objeto o estilo. Dessa forma, o que o estudioso dessa área
investiga não é apenas o que se diz, mas principalmente a maneira como se
diz.

Uma conhecida anedota árabe diz que, certa vez, um sultão sonhou que
havia perdido todos os dentes. Ele acordou assustado e mandou chamar um
sábio para que interpretasse o sonho.

— Que desgraça, senhor! — exclamou o sábio. Cada dente caído


representa a perda de um parente de Vossa Majestade!

— Mas que insolente! — gritou o sultão.

— Como se atreve a dizer tal coisa?!

O sultão chamou os guardas e mandou que lhe dessem cem chicotadas.


115
Ordenou, em seguida, que chamassem outro sábio para interpretar o mesmo
sonho. O outro sábio disse:

— Senhor, uma grande felicidade lhe está reservada! O sonho indica


que irá viver mais que todos os seus parentes!

A fisionomia do sultão iluminou-se e ele


deu cem moedas ao sábio. Quando este saía
do palácio, um cortesão perguntou:

— Como é possível?! A interpretação


que você fez foi a mesma do seu colega, e, no entanto, ele levou chicotadas e
você cem moedas de ouro!

— Lembre-se sempre, amigo — respondeu o sábio — de que tudo


depende da maneira de dizer as coisas. E esse é um dos grandes desafios da
humanidade! É daí que vem a felicidade ou a desgraça; a paz ou a guerra. A
verdade sempre deve ser dita — não resta a menor dúvida — mas a forma
como ela é dita é que faz toda a diferença.
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8.2 Conceito de estilo

A palavra estilo, em sentido lato, é empregada para se referir a várias


particularidades cotidianas, desde as mais banais até as mais altas criações
artísticas: estilo de vida, estilo de vestuário, estilo de cabelo, estilo de música,
estilo de dança, estilo de arquitetura, estilo de escrita, estilo de governo etc.

O termo estilo, entretanto, provém do latim stilus, objeto em forma de


haste pontiaguda para escrever sobre tabuinhas
enceradas. De instrumento empregado para
escrever, passou a significar — por um processo
metonímico — a própria escrita e, depois, a
linguagem em relação ao que ela tem de peculiar.

Dessa forma, estilo, no sentido estrito, é o


efeito expressivo que se consegue obter dentro das possibilidades da língua, o
que exige obviamente conhecimento, gosto, requinte, senso de proporção e de
adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa e constante
reinvenção.

116
8.3 Função utilitária do texto: ênfase no plano de conteúdo

Nos textos que têm função utilitária — aqueles cujo objetivo é tão
somente informar, convencer, explicar ou documentar — o plano de expressão
tem importância menor. O que realmente importa é o conteúdo. Observe-se o
seguinte texto:

94% dos acidentes mortais no trânsito são causados por falha humana, como
imprudência e distração.
Então,
Se beber, não dirija.
Se o celular tocar, não atenda.
Se houver faixa contínua, não ultrapasse.

Quando se ouve ou se lê esse texto, não se dá importância à maneira de


expressão, mas tão somente ao conteúdo. Diz-se, portanto, que o elemento
textual possui grau zero de expressividade. Entenda-se expressividade aqui
como novidade, esteticidade, artisticidade.
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8.4 Função estética do texto: ênfase no plano de expressão

Há, porém, textos cuja relevância está no plano de expressão, pois o


escritor não se preocupa apenas com o conteúdo, mas principalmente com a
maneira como a mensagem é transmitida. São os textos com função estética
cuja compreensão exige que se entenda não somente o conteúdo, mas
também o significado dos elementos da expressão. Observe-se a seguinte
propaganda:

117

Nesse caso, porém, dá-se carga enfática à maneira de expressar. O signo


foca, na língua portuguesa, é polissêmico: pode designar o animal mamífero da
família dos pinípedes (substantivo) ou pode referir-se ao ato de focar (verbo).
O destinatário, para compreender a mensagem, vai ter que perceber o jogo
lúdico entre o ícone e a língua. Há, assim, um desvio em relação à norma-zero
de expressividade. Tem-se, portanto, o estilo.

8.5 Relações da Estilística com a Gramática e com a Linguística

A gramática tradicional determina regras que, uma vez seguidas,


asseguram sempre a chamada “correção” da linguagem. Os profissionais que
fazem uso de uma linguagem técnica ou científica, por exemplo, encontram, na
gramática normativa, possibilidades seguras de não infringirem convenções do
meio social em que vivem ou da camada linguística a que pertencem.

A língua, entretanto, só é bem-comportada nos compêndios


gramaticais. No dia a dia, nem sempre os fatos linguísticos ocorrem com o aval
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dessa gramática, que não sabe ver senão os aspectos lógicos e intelectuais da
linguagem.

Tomem-se, como exemplo, as seguintes prescrições da gramática


normativa: a) O verbo ter não deve ser empregado como sinônimo de existir. O
verbo que pode substituir o existir é o haver; b) o verbo precisar, no sentido de
necessitar, exige a preposição de. Observe-se agora o seguinte slogan de um
supermercado: Aqui tem tudo que você precisa. Está claro que esse slogan
apresenta desvio em relação ao padrão normativo. Se o texto seguisse a
recomendação gramatical, seria Aqui há tudo de que você precisa. O anúncio
perderia, entretanto, a fluidez, ou seja, não falaria à alma do povo, que é o
público-alvo dessa publicidade.

Pode-se dizer que, se o gramatical se restringe ao uso objetivo da


língua, o estilístico constitui a utilização subjetiva dessa mesma língua. A
Estilística não se contenta apenas em sistematizar fatos linguísticos, quer
estudar as funções ou os valores expressivos e impressivos, ligados a esta ou
àquela forma, a esta ou àquela combinação, a este ou àquele sintagma, a esta
ou àquela sequência sonora, a este ou àquele ritmo.

A Estilística, dessa forma, é uma disciplina paralela à Gramática. Ela é,


na verdade, um ramo da Linguística, uma vez que se ocupa dos textos — orais
ou escritos — que têm função estética, ou seja, aqueles em que a expressão
118
ganha relevância.

8.6 Objeto de estudo da estilística linguística

A estilística linguística preocupa-se com

a) o conteúdo afetivo da linguagem, ou seja, os recursos expressivos da


língua dos quais o destinador lança mão para expressar sentimentos ou
para atuar sobre o destinatário;

b) a descrição do complexo sistema expressivo da língua que nem a


gramática nem a literatura são capazes de demonstrar.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Cultrix,


1977.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4.ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRAIT, Beth; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecilia. Texto ou Discurso? São Paulo:


Contexto, 2012

FIORIN, José L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. 2.ed. São Paulo:


Contexto, 2016.

GUIMARÃES, Elisa. Texto, Discurso e Ensino. São Paulo: Contexto, 2009.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 10.ed.


São Paulo: Contexto, 2011.
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A coesão textual. 22.ed. São Paulo:
Contexto, 2010.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A interação pela linguagem. 11.ed. São


Paulo: Contexto, 2010.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A coerência textual. 16.ed. São Paulo:


Contexto, 2004.

POSTAL, Jairo; POSTAL, Márcia Rita Lazzarini. Linguagem, língua e


comunicação. 7.ed. São Paulo: Catálise, 2017.

POSTAL, Jairo; Postal. POSTAL, Márcia Rita Lazzarini. Noções elementares


de linguística. São Paulo: Catálise, 2010.

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