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PAUL

Feyerabend,

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M I L T O N V A R G A S

o anarquista
A
autobiografia de Feyerabend, sob o sugestivo títu- Na outra página,
o filósofo Paul
lo de Matando o Tempo, vem-nos trazer à presença Feyerabend
deste homem extraordinário, que introduziu na Fi-
losofia da Ciência o “anarquismo epistemológi-
co”, tão de acordo com sua exuberante personalidade. Sua
autobiografia, comoventemente interrompida, em fevereiro
de 1994, pela morte, por um tumor cerebral inoperável, foi
selada pelas últimas palavras que escreveu: “De certo modo,
MILTON VARGAS
é professor emérito
estou pronto para partir, malgrado todas as coisas que ainda da Escola Politécnica da
Universidade de São
Paulo.
gostaria de fazer; mas por outro lado, estou triste por ter de
deixar este mundo esplêndido, especialmente Grazia, a quem Matando o Tempo, de
Paul K. Feyerabend, São
Paulo, Editora da
eu gostaria de acompanhar por mais alguns anos”. Unesp, 1996.

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Foto favorita
de Feyerabend.
Roma, 1992

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Sua vida – desde a infância em Viena, Em 1951, Feyerabend obteve seu PhD
com seu pai, “uma boa pessoa” a quem em Viena e candidatou-se a uma bolsa do
Feyerabend confessa-se grato por seu amor, British Council, para estudar com
apesar de ter sido, para com ele, “um bas- Wittgenstein em Cambridge; mas
tardo, tão egoísta”; com sua mãe, distante Wittgenstein morreu, e ele, em 1952, par-
e infeliz suicida – vai-nos revelando sua tiu para Londres a fim de estudar com
ambígua maneira de ser. Sua ambigüidade Popper. As primeiras palavras que ouviu
já desponta em sua juventude, nos anos de de Popper o impressionaram: “Sou profes-
guerra, desde a chegada de Hitler à Áustria, sor de método científico, mas tenho um
através do seu confuso comportamento problema: não existe método científico.
heróico nas batalhas, até ter sido atingido Entretanto há algumas regras práticas que
por três balas que o deixaram parcialmente podem ser bastante úteis”. É possível que
paralítico, mas contente de não ter de vol- tenham sido essas palavras que induziram
tar ao fronte e poder dedicar-se ao canto às primeiras idéias de seu “anarquismo
lírico. epistemológico”. De fato, as poucas pági-
Depois da guerra, conseguiu matricu- nas de sua autobiografia sobre esse seu
lar-se na Universidade de Viena para estu- primeiro contato com Popper sugerem a
dar Física, Matemática e Astronomia, e, grande influência que exerceu sobre ele o
ainda, continuar o canto lírico. Logo, po- ataque popperiano ao indutivismo, isto é,
rém, dedicou-se à História. Esta o levou à negando que as teorias baseiam-se em fa-
arte renascentista italiana – mas confessa tos empíricos. O ponto de vista de Popper,
que sua excursão à História foi um desper- naquele momento interpretado por
dício, e voltou à Física. Em suas incursões Feyerabend, era de que as teorias têm que
ao teatro, encontrou-se com Brecht, que o ir além das evidências sensíveis. Isso po-
convidou para ser seu assistente em Berlim. deria levar a concluir que a ciência seria
Não aceitou. Essa diversificada atuação na uma espécie de metafísica, pois, como essa,
universidade e na vida cultural de Viena vai além dos fatos. Porém, não o era, por-
explica sua cultura tão ampla e abrangente, que as teorias científicas poderiam ser re-
tanto em ciências e filosofia como nas ar- futadas pela experiência, e as metafísicas,
tes. Nessas andanças culturais é que foi não. E assim Feyerabend confessa que, com
reconhecido por Karl Popper como um jo- maiores argumentos ouvidos de Popper,
vem “digno de participar de seus sublimes passou a aceitar a idéia popperiana de
debates”. Essa aproximação deu-se devido “falsabilidade” das teorias científicas. Po-
a um pronunciamento de Feyerabend, em rém, confessa que mais tarde deixou de
debate, sobre o trabalho de Ernesto Grassi aceitá-la, considerando-a um perigoso re-
e Thure von Uexküll, “que haviam discuti- sultado de um racionalismo crítico que le-
do a verdade de um modo que, para mim, vava a uma epistemologia ligada apenas a
soara como um delírio inconsistente”. Pro- “padrões de excelência científica” e não
vavelmente são idéias que Grassi e Von com a “prática da ciência”. Disso conclui
Uexküll reuniram em livro, publicado em que a “falsabilidade”, se praticada sem
Berna, no início dos anos 50 (1). Grassi subterfúgios, destruiria a ciência, tal como
procura mostrar que o sentido das ciências ela é conhecida. E Feyerabend conclui: “A
da cultura (do espírito) está na busca de ciência não é [...] ‘irracional’ – cada passo
uma melhor formação do homem, origina- seu pode ser explicado [...]. Contudo, os
da nas disputae artium, entre as faculdades passos tomados em conjunto apenas rara-
de medicina e de direito, no Renascimento, mente formam um padrão abrangente que
enquanto Von Uexhüll procura fundamen- concorde com os princípios universais; e
tar a realidade e a objetividade da natureza, os casos que apóiam estes princípios não
tanto orgânica como inorgânica, numa fi- são mais fundamentais do que o resto”. Aqui 1iiiiE. Grassi e Thure von Uexhüll,
losofia da biologia, em que a preocupação já anuncia seu ponto de vista que irá defen- Las Ciencias del Espiritu y de
la Naturaleza, Barcelona, Luis
humanística está presente. der entusiasticamente uma sua obra mes- Miracle Editor, 1952.

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tra: Contra o Método. período em que, de acordo com seu tempe-
O restante de sua estadia em Londres ramento buliçoso, aceita convites para cur-
foi dedicado à interpretação da teoria quân- sos e conferências nos Estados Unidos,
tica, de Von Neumann e de Bohn, e a Europa e Nova Zelândia, sem abandonar
Wittgenstein, sobre quem publicou uma sua paixão pelo canto lírico, teatro e cine-
resenha na Philosophical Review, em 1955. ma. Mas é também o período em que ad-
Mas não queria viver só de especulações quire fama entre os filósofos da ciência,
filosóficas e retomou o canto e a freqüência principalmente aqueles relacionados com
ao teatro. Terminada sua bolsa de estudos a Filosofia Analítica, como Herbert Feigl,
com Popper, voltou a Viena em 1953. Mas Carnap e Tarski. É dessa época, também,
considera que sua carreira só teve início em sua atuação junto aos estudantes revolta-
1958, quando foi convidado para prestar dos de Berkeley, naquele período contur-
concurso na Universidade de Bristol. É bado do final dos anos 60. Dessa atuação
então que se encontra com Philipp Frank, o quase resulta sua demissão de Berkeley.
qual afirmava que “as objeções aristotéli- Nas suas andanças, encontrou-se em
cas a Copérnico coincidiam com o empi- Londres com Imre Lakatos, a quem desig-
rismo, ao contrário da lei da inércia de na como “cruzado da razão e da ordem”.
Galileu”. Confessa então que essas idéias Por outro lado foi Lakatos um dos primei-
foram as que mais tarde lhe serviram de ros que o designaram como “anarquista”.
argumento nos capítulos sobre Galileu do Nas entrelinhas da “autobiografia” dá para
seu Contra o Método. se perceber a importância que teve para
Em 1958 Feyerabend decidiu aceitar um ambos esse encontro, como dois pólos da
convite para lecionar em Berkeley, metodologia da pesquisa científica atual.
Califórnia. Foi o começo de sua longa es- De um lado a razão e a ordem; do outro, o
tadia de 32 anos nos Estados Unidos, cen- “vale-tudo”. Pois, no dizer do próprio
trados na Universidade da Califórnia. Diz- Feyerabend, “o mundo, inclusive o mundo
se centrados mas não fixados, pois é um da ciência, é uma entidade complexa e dis-

Feyerabend com
a mulher Grazia
Borrini em
Berkeley, 1983

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persa, que não pode ser capturada por teo-
rias e regras simples”. Contudo não se pode
negar a necessária racionalidade dos resul-
tados da investigação científica. Um estu-
do aprofundado comparando os pontos de
vista, aparentemente opostos, de
Feyerabend e Lakatos – porém, aproxima-
dos por uma simpatia mútua – seria extre-
mamente interessante.
Foi então que Feyerabend preparou o
seu Contra o Método que, segundo ele pró-
prio, “não é um livro, é uma colagem”,
reunindo, sob um ponto de vista único, uma
série de publicações anteriores, inclusive
um ensaio, publicado em 1968, com o
mesmo título. Nesse livro extravasa seu
espírito polêmico e fundamenta seu “anar-
quismo epistemológico”, baseado princi-
palmente na contestação de opiniões de
outros filósofos da ciência, que viam nela
essencialmente a racionalidade. Comple-
mentando esta resenha da autobiografia de
Feyerabend, adiante tentar-se-á analisar o
próprio texto do livro em questão, com a
finalidade de esclarecer em que consiste o
seu anarquismo. Será de se notar a mais a
coincidência do significado da doutrina
epistemológica do “vale-tudo” com a per- livre-se de todos seus preconceitos indivi-
sonalidade agressiva e exuberante do seu duais e sociais (idola), e proceda a investi-
autor. gação pela indução das causas desses fenô-
menos, a partir da regra: presente o fenô-
• • • meno, presente a causa; ausente a causa,
ausente o fenômeno.
Antes porém de examinar o próprio texto Descartes aconselha só admitir algo
de Contra o Método, seria conveniente re- como verdadeiro quando esse se mostre
lembrar a origem metodológica da ciência evidente, acima de qualquer dúvida; re-
moderna, tal como ela surgiu no início do partir a questão em partes, ordenadas su-
século XVII. É geralmente aceito que essa cessivamente das mais simples às mais
origem é tripla. Está no Novum Organon complexas; resolvê-las sucessivamente, por
de Francis Bacon, o iniciador do empiris- dedução, a partir da mais simples; e, final-
mo inglês; encontra-se no Discours de la mente, não se descuidar de rever cuidado-
Methode de Descartes, com o racionalismo samente todos os passos da investigação.
francês; e, finalmente, aparece nos Discorsi Galileu parte da concepção, pela men-
Intorno a Due Nuove Scienzie de Galileu, te, de uma conjetura (algo que se pensa
no qual ele, no fim da vida, procura pôr como plausível mas não necessariamente
ordem em seus argumentos, os quais até verdadeiro); deduz, então, dessa conjetura,
então poderiam ser considerados algum preferivelmente por matemática, uma con-
tanto ad-hoc. clusão particular. Finalmente verifica essa
Bacon aconselha investigar a natureza conclusão, comparando-a com uma expe-
a partir da preparação de listas de fenôme- riência; mas o que pouca gente lembra é
nos observados, desde que o investigador que essa experiência, ou observação, deve

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ser preparada de acordo com a teoria arma- tro do mundo moderno, e negá-los seria
da a partir da conjetura. negar as bases sobre as quais esse mundo
Mas a prática da investigação científica moderno estabeleceu-se, pois a metodolo-
não é tão simples como o esquema desses gia científica, como acima esquematizada,
métodos faz supor. O caminho da dúvida, é parte integrante dessas bases.
seu esclarecimento, apoiando-se o investi- Essa visão existencial da ciência pare-
gador em sua própria dúvida – que é a es- ce totalmente irreconciliável com a visão
sência desses métodos –, muitas vezes apre- analítica de um Popper sobre o caráter “fal-
senta-se tortuoso. Disso resulta a combina- sável” das teorias científicas. Mas, se a
ção de regras metódicas, o aparecimento “falsabilidade” popperiana for entendida
de novas regras e, conseqüentemente, a como “falseamento”: de teorias, anterior-
aparência anárquica da investigação cien- mente verificadas como verdadeiras, por
tífica, denunciada por Feyerabend. uma nova experiência, e, por outro lado,
Por outro lado, conviria analisar uma como a vê Jaspers, como auto-impositiva,
metodologia científica diferente da dos então essa irreconciliabilidade desapare-
luminares da filosofia das ciências, tais ce, numa síntese dialética. Isto é, a verda-
como Popper, Kuhn, Lakatos, Feigh e o de científica auto-impositiva e o seu cará-
próprio Feyerabend, demasiadamente com- ter de teoria falsável por uma nova cir-
prometidos com os aspectos internos da cunstância experimental poderiam ser sin-
investigação científica. Uma visão existen- tetizados na idéia de que a verdade ci-
cial da ciência é, por exemplo, a de Karl entífica, além de se impor como univer-
Jaspers, em seu pequeno ensaio “A Nature- sal, é relativa às circunstâncias experimen-
za e o Valor da Ciência” (2). Jaspers não é tais. Isso é compreensível quando se ob-
um filósofo da ciência, mas, como médico serva que a teoria da gravitação de Newton,
psiquiatra, tem uma compreensão prática embora falseada pela experiência de
do que é a atividade científica, o que lhe Michelson e Morley, não foi simplesmen-
permite uma visão externa da natureza e do te substituída pela teoria da relatividade,
valor da ciência, porém, não totalmente mas continua impondo-se como verdadeira
descomprometida de sua prática. em todas as circunstâncias em que os cor-
Jaspers inicia seu ensaio afirmando: “A pos movem-se com velocidades muito
ciência é um conhecimento metódico cujo inferiores à da luz – como é o caso da gran-
conteúdo impõe-se como irresistivelmente de maioria dos problemas tecnológicos.
certo e universalmente válido”. Isto é, a Contudo não se pode negar que as três po-
ciência conjuga método a conhecimento sições – a de Jaspers, a de Popper e a da
certo. É uma postura existencial completa- síntese dialética – decorrem de crenças
mente diferente da dos analistas acima ci- metafísicas diferentes, isto é, de diferentes
tados. A ciência é vista como um tipo de idéias do que seja a realidade.
conhecimento que domina a mentalidade Diante de tudo isso, como se poderia
dos homens de hoje. Impõe-se como ver- entender a frase introdutória ao livro de
dadeira de tal forma que é tida como indis- Feyerabend, Contra o Método, publicado,
pensável para manter a existência humana, pela primeira vez, no final dos anos 60, na
na forma ocidental que veio a impor-se Inglaterra? “A ciência é um empreendimen-
globalmente. Jaspers não trata dos proble- to essencialmente anárquico; o anarquis-
mas da investigação científica para atingir mo teorético é mais humanitário e mais
tal sistema de conhecimentos, mas sim da suscetível de estimular o progresso do que
universalidade e certeza dos conhecimen- suas alternativas representadas por ordem
tos adquiridos metodicamente, isto é, o mais e lei.” Logo em seguida Feyerabend diz
possível, independente das opiniões, pre- que chegou a essa conclusão por meio da
2iiiiKarl Jaspers, “La Natura e il conceitos e temperamentos individuais dos história da ciência e pela sua análise das
Valore delle Scienza”, in La investigadores. Contudo, sem dúvida, tais relações entre a idéia e a ação na pesquisa
Mia Filosofia, Roma,
Einaudi,1941. conhecimentos só são válidos e certos den- científica. Conclui, conseqüentemente, que

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“o único princípio que não inibe o progres- mente Galileu, depois de ter-se retratado
so é: vale-tudo”. perante o Santo Ofício.
É uma tese que Feyerabend irá tentar Feyerabend vê na defesa de Galileu de
provar em seu livro, mas de início adverte que a Terra se move um verdadeiro “vale-
que não se trata do anarquismo político, tudo” para fazer progredir a ciência. Con-
mas sim de um anarquismo epistemológi- tudo é possível interpretar-se esse “vale-
co, o qual será defendido com base em casos tudo” não como uma violência contra o
históricos. Parte da análise do procedimen- método científico, porém, como uma radi-
to de Galileu, na defesa que faz do helio- cal transformação da visão global do mun-
centrismo de Copérnico, mostrando como do, pela qual surge não só uma nova ciên-
suas conjeturas ferem o que se admitia, até cia como também um novo método. Isso,
então, como evidente. Com efeito, seus porém, não difere do ponto de vista de
argumentos, baseados em suas observações Feyerabend pois são suas as seguintes pa-
telescópicas, sobre os satélites de Júpiter, lavras: “O primeiro passo dado por
as fases de Vênus e as manchas da Lua, não Galileu, ao examinar, em conjunto, a
destroem a “evidência” de que a Terra está doutrina copernicana e a interpretação
parada e o Sol levanta-se de manhã, per- natural comum, mas não explícita, con-
corre o céu, e deita-se à tarde. Aliás, o sis- siste portanto em substituir essa última
tema de Ticho Brahe explicaria satisfatoria- por outra interpretação. Dito de maneira
mente as observações telescópicas de diferente, ele introduz uma nova lingua-
Galileu, sem deixar de manter a Terra pa- gem de observação”.
rada no centro do sistema. Dessa forma Galileu inventa uma nova
Havia o assim chamado “argumento da espécie de experiência. Não é mais a da
torre”, pelo qual os aristotélicos procura- visão direta dos fenômenos, mas uma ex-
vam mostrar que a Terra estaria parada, uma periência organizada de acordo com o que
vez que, deixando cair um corpo pesado do primeiro ele concebeu com a mente. É o
alto de uma torre, ele tombaria na vertical, chamado “experimento” científico. Assim,
em vez de se destacar centenas de metros nos Discorsi Intorno a Due Nuove Scienzie,
para leste, arrastado pelo movimento da a comprovação da idéia inicial de que os
Terra em torno do Sol. Assim, a teoria corpos caem com velocidade uniformemen-
heliocêntrica era desmentida por um fato te acelerada tem que ser feita com um “ex-
inegável. O próprio Galileu não pôde negar perimento” em que o atrito e a resistência
que os corpos pesados tombam de uma torre do ar são praticamente eliminados.
na vertical. Porém esse, como qualquer fato, Feyerabend resume conclusivamente
depende de pressupostos ideológicos ou a atuação de Galileu, com as seguintes
concepções antigas. Interpretá-los, no con- palavras: “O que se faz necessariamente,
texto de novas concepções da realidade, para submeter a teoria de Copérnico a
exigiria não só uma violência com aquilo teste, é uma concepção do mundo intei-
que é percebido sensivelmente, como tam- ramente nova, onde se registra uma nova
bém uma reforma radical da visão do mun- concepção do homem e de sua capacida-
do. Foi o que Galileu fez ao introduzir o de de conhecer”.
princípio de que todo movimento é relati- Em conclusão: o anarquismo epistemo-
vo; não existe o movimento absoluto, quer lógico de Feyerabend, apesar de sua pesso-
retilíneo quer circular. Para comprovar isso al descrença na segurança, certeza e
ele é obrigado a recorrer não a uma experi- indubitalidade da ciência, não é nem uma
ência sensível, mas à experiência ideal de oposição à ordem estabelecida, como é o
um barco que navega em mar calmo de caso do anarquismo político, nem um ceti-
Veneza e Alexandria, no qual, se alguém cismo que desiste de valorizá-la. Consiste
deixar tombar uma pedra do alto do mas- essencialmente em defender qualquer enun-
tro, ela cairá justamente em seu pé. Apesar ciado que encerre uma conjetura plausível,
de tudo “a Terra se move”, afirma enfatica- por mais absurda que pareça, desde que

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prometa um progresso dos conhecimentos. guns dos seus ouvintes, decepcionava a
Tal posição, na opinião de Feyerabend, é outros, mas encantava a todos, alunos e
semelhante à dos dadaístas, que propunham colegas, pelo brilho de seus argumentos e
a arte como antiarte. O anarquista episte- entusiasmo com que os pronunciava. Le-
mológico, como o dadaísta, diante de uma vou ao seu clímax a desconstrução de con-
conjetura inovadora, tanto pode recorrer à ceitos gerais arraigados na mentalidade
razão, “descobrindo razões fortes para fun- moderna européia. Foi nessa época que
damentar doutrinas desarrazoadas”, como conheceu sua última esposa, Grazia
recorrer à emoção e à propaganda para Borrini Feyerabend, com quem se casou
defendê-la. Desobriga-se, assim, como em 1989. Em suas próprias palavras: “[sem
Galileu o fez, da aceitação de regras meto- ela] eu nunca viria a saber o que significa
dológicas anteriores. Mas não se obriga a amar verdadeiramente uma pessoa”. Con-
sempre romper com as regras; tanto pode tudo, para bem entender o significado
opor-se a princípios científicos vigentes dessas palavras na boca de Feyerabend, é
como defender a pureza científica, em prol preciso entender que, para ele, esse tipo
do progresso científico. de amor “não está sujeito nem ao intelecto
Os dez anos antes de sua aposentado- nem à vontade; ele é o resultado de uma
ria foram aqueles em que Feyerabend atin- constelação afortunada de circunstâncias.
giu pleno sucesso em sua carreira, minis- É um dom, não uma conquista”. Pois é
trando aulas e orientando seminários, um essa “constelação afortunada de circuns-
semestre em Berkeley e outro no E. T. H. tâncias” que é descrita magnificamente na
de Zurique. Seu anarquismo enfurecia al- autobiografia de Feyerabend.

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