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1.

A filosofia
natural do
Renascimento
1.1 A renovação da
concepção da natureza
Ideia principal
Fusão progressiva da aceitação da causalidade
natural e da liberdade como autodeterminação
moral e teórica (p. 185). Processo de
transformação contínuo:
(1o) Determinação divina

(2o) Naturalização mágico-astrológica: teleologia


e poder causal do signo

(3o) Naturalização empírica


(4o) Liberdade teórica e moral do sujeito
Realidade
Mundo objetivo
espiritual

Humanismo Naturalismo

História Natureza

Cultura Natureza

Traço característico do Renascimento: entrelaçamento,


conciliação e convergência destas duas tendências.

Ampliar e aprofundar os interesses filológicos para servir às


metas filosóficas.

Uma nova imagem da natureza orgânica é construída


juntamente com uma nova consciência histórica
Giovanni Pico della Mirandola
(1463 - 1494)

Disputationes adversus
astrologiam divinatricem (1496)
Astrologia e concepção de natureza
(a) Idade Média:

O significado da natureza é definido por sua relação


com metas espirituais; “a natureza não é um campo
problemático separado e independente, erigido sobre
fundamentos próprios e regido por leis próprias” (p. 180)

A natureza pode ser um obstáculo ou um instrumento


para o acesso ao reino da graça.

Centralidade da divindade e de sua relação com o


homem.
(b) Nova concepção em elaboração:

A astrologia ajuda a conceber a natureza como


um todo que existe por si.

A natureza passa a governar o indivíduo.

A natureza adquire uma imagem na qual há uma


necessidade dos eventos sem interferência
externa.

Exemplo: proposta renascentista de um


fundamento natural para a religião, a trajetória
do espírito e a fé - Pomponazzi
De fato, libero arbitrio, de
prædestinatione et de providentia Dei
libri quinque (1523)

O florescimento e a decadência da
fé dependem da influência dos
astros.

A causalidade de tudo o que ocorre


é entendida num sentido
estritamente astrológico.

O mundo da história e o mundo


natural são vistos como um
resultado necessário da influência
dos corpos celestes.

Pietro Pomponazzi (1462 - 1525)


Necessidade, subjetividade e
natureza
A astrologia mantém relações com a
subjetividade, que se expressa de forma mais
naturalizada.

A necessidade natural não é a da lei causal,


mas a da finalidade.

Construção de uma imagem de natureza como


um organismo vivo: (a) cada parte tem o todo
como um fim; (b) cada parte “contém” o todo em
si mesma; (c) cada parte torna o todo inteligível.
Les Très Riches Heures
du duc de Berry
Manuscrito em Latim
Século XV
Neste cosmo orgânico, cada acontecimento
especial é um signo e uma representação da lei
universal.

Entre todas as partes do universo há uma


consonância harmônica.

Cada parte relaciona-se simbolicamente com


todas as demais. Na magia, em sua associação
com a astrologia, esta ideia torna-se mais clara.

Evita “seguir a intricada e confusa marcha das


causas intermediárias” (p. 181). Como este ponto se
relaciona com a ideia de uma filosofia preternatural?
Robert Fludd,
Utriusque Cosmi
Maioris scilicet et
Minoris Metaphysica,
Physica Atque
Technica Historia In
duo Volumina
secundum Cosmi
differentiam divisa....
Tomus Primus De
Macrocosmi Historia.
Oppennheim, 1617.
Magia
Os símbolos e as palavras são fontes de ação que governam as coisas.

A magia é a ciência dos nomes secretos: “Cada coisa, cada ser, tem,
além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não se pode
deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse
arquinome. Disso nasceram as intermináveis listas de nomes – diabólicos
ou angélicos – com as quais o necromante garante para si o domínio
sobre potências espirituais” (Agamben, G. Magia e felicidade, p. 25; In.
Profanações, 2007).

A palavra mágica permite conhecer e dominar a natureza.

Os números e as figuras geométricas relacionados às medidas e as


harmonias do universo estão dotados de forças interiores.

O uso de tais símbolos, palavras, medidas e figuras permitem submeter


os objetos naturais à nossa vontade.
Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535)
Mago, astrólogo e alquimista alemão
De occulta philosophia libri tres.
(Livro 1, Paris, 1531; Livros 1 a 3, Colônia, 1533)
Filosofía oculta: magia natural. Madrid: Alianza, 1992

Capítulo XXXIII
Signos e caracteres das coisas naturais

Todas as estrelas têm sua natureza, propriedade e condições


particulares. Com seus raios transmitem seus signos e caracteres às
coisas terrenas, seja aos elementos, às pedras, às plantas, aos animais
ou aos seus membros. Assim, cada coisas obtém de sua própria
disposição harmônica e da estrela que a domina um signo especial ou
caráter distintivo, que reflete a estrela ou a harmonia particular e a virtude
que esta lhe confere [...] Pois cada coisa tem seu caráter próprio para um
efeito determinado, que lhe é dado por sua estrela [...] Os antigos sábios,
que investigaram a fundo as propriedades ocultas das coisas,
observaram as imagens das estrelas, suas figuras, imagens, signos e
caracteres que a natureza, por meio dos raios das estrelas, refletem nas
coisas terrenas, seja nas pedras, nas plantas, nas junturas e nós dos
ramos e nos distintos membros dos animais.
Capítulo XXXIV
Como atrair as influências e as virtudes dos corpos celestes
por meio das coisas naturais

Se desejas atrair a virtude de uma parte do universo ou de


alguma estrela, deves aplicar tudo o que está relacionado
com essa estrela; deste modo obterás sua influência. Por
exemplo, se à lenha aplicamos enxofre, pez e óleo ela
produz chama. E se a uma espécie ou indivíduo aplicarmos
devidamente distintas coisas de acordo com uma ideia e
uma estrela determinada, obterás o benefício desejado que
a ideia, em virtude da alma do mundo, te proporciona
através da matéria oportunamente preparada.
Capítulo LXX
O poder que os nomes possuem

Nas operações da magia são necessários o nome das


coisas. Isto é devido ao fato de que a força natural que nelas
existe passa primeiro do objeto aos sentidos, dos sentidos à
imaginação, da imaginação à mente, onde se forma o
conceito que logo se expressa por meio da palavra. Dizem
os platônicos que a palavra, esse nome articulado cada qual
de forma distinta, oculta sob seu significado uma força
particular que lhe dá vida, adquirida primeiro pela mente
através – digamos assim – das sementes das coisas, emitida
mediante as palavras e, por último, conservada na escritura.
Os magos sustentam que nos nomes particulares das
coisas estão sempre presentes os raios que mantêm viva
sua força [...] assim como Deus criou as distintas espécies e
tudo quanto existe a partir dos elementos e influxos
celestes, os nomes que impôs a cada coisa resultam das
propriedades dos influxos que recebeu de cada uma delas.
Influxos celeste como
elementos originários
utilizados por Deus na criação
de todas as coisas.

Cada espécie recebeu de Deus


um nome em função dos
influxos recebidos particulares
que resulta do influxo.
A doutrina das assinaturas

Na segunda metade do século XVII químicos proeminentes aceitaram a doutrina


do macro-microcosmo. Estes autores também deram nova ênfase à antiga doutrina
das assinaturas.

A doutrina das assinaturas afirma que Deus marcou todas as criaturas com um
signo ou uma assinatura – sua forma, cor, textura etc. Esta assinatura indicaria o
propósito da criação dos seres, frequentemente relacionado com o uso terapêutico
de plantas, minerais e animais. As criaturas foram devidamente marcadas e
assinadas através da sua forma, cor, textura etc. para que o homem reconhecesse
sua utilidade.

Um bom exemplo de como a doutrina é utilizada está na associação do formato


das folhas da planta Hepatica acutiloba, formada por três lobos (folíolos) que se
assemelharia a um fígado. Ela seria utilizada para tratar de problemas hepáticos.
Um fruto com a forma de um coração teria a assinatura da sua utilidade para
doenças cardíacas.
Porta, G. della, Phytognomonica (1588)
A fusão entre as causas e os símbolos: fundamento
e crítica
Os astros somente podem prever aquilo que criam.
(Cassirer, p. 182). – sobre os cometas.
Signo e designado estão relacionados por possuirem
uma causa comum.
Há uma exigência de compreender as consequências
empíricas dos acontecimentos relativamente a algo de
unívoco e constante.
“Os corpos celestes não possuem nenhuma classe de
‘qualidades misteriosas’ que lhes permitam provocar
efeitos misteriosos no mundo terrestre” (p. 183) – sobre
a preternaturalidade dos meteoros e dos astros em geral.
As influênciais astrais são apresentadas como naturais e
imanentes aos corpos – luz e calor.
Conceitos matemáticos como meios e métodos necessários para
medir distâncias são abusivamente convertidos em predições do
future: astrologia, distâncias “reais” no espaço versus a
ocupação de lugares no céu – casas e signos zodiacais como
espaços fisiológicos em um “círculo de animais ou seres vivos”.

O problema do conhecimento moderno e a unidade entre a


posição do homem no cosmo e “a fenomenologia do sensível
espontaneamente praticada por nós” (Mariconda, p. 26)

Tais conceitos matemáticos são tratados como se fossem


objetos da natureza dotados de forças reais – novas formas da
do problema do conhecimento como reprodução do real.

Na crítica de Pico à astrologia podem ser encontrados alguns


dos primórdios da separação entre representação e causalidade
que se encontram caracteristicamente unidas na forma simbólica
do mito.
A crítica à astrologia e a posição do
homem na natureza
Pico e a oposição do conceito de livre-arbítrio à
astrologia.

Proposta de uma relação entre a determinação


empírica e por leis da natureza e a determinação
gerada pela liberdade humana contra a
predestinação ultraterrena do homem.

Uma concepção rigorosa da causalidade natural


desenvolve-se junto da concepção moderna de
liberdade como autodeterminação.
Discurso sobre a dignidade do homem. Giovanni Pico della Mirandola
(Lisboa: Edições 70, 1989. p. 51 e 53)

Introdução sintética do tema: Nada há de mais admirável do que o


homem. “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem”.
“Já o Sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de
arcana sabedoria este lugar do mundo como nós o vemos,
augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona super-
celeste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas
eternas, povoado com uma multidão de animais de toda a espécie as
partes vis e fermentantes do mundo inferior. Mas, consumada a obra,
o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a
razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a
sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e
Timeu atestam, pensou por último criar o homem. Dos arquétipos,
contudo, não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova criatura,
nem dos tesouros tinha algum para oferecer em herança ao novo
filho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se
sentasse este contemplador do universo. Tudo estava já ocupado,
tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimos
graus.
Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar,
como se fosse inábil, na sua última obra, não era próprio da sua
sapiência permanecer incerta numa obra necessária, por falta de
decisão, nem seria digno do seu benéfico amor que quem estava
destinado a louvar nos outros a liberalidade divina, fosse
constrangido a lamentá-Ia em si mesmo. Estabeleceu, portanto, o
óptimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente
próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado
parcelarmente aos outros. Assim, tomou O HOMEM COMO OBRA
DE NATUREZA INDEFINIDA e, colocando-o no meio do mundo,
falou-lhe deste modo:

‘Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um


aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim
de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela
tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer
e a tua decisão.
A natureza bem definida dos outros seres é refreada por
leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não
constrangido por nenhuma limitação, DETERMINÁ-LA-ÁS
PARA TI, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te
entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí
possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te
fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a
fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te
PLASMASSES E INFORMARSSES, na forma que tivesses
seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres
que são as bestas, poderás regenerar-te até às
realidades superiores que são divinas, por decisão do
teu ânimo’.
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade
do homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo
que quer. As bestas, no momento em que nascem, trazem
consigo do ventre materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que
depois terão. Os espíritos superiores ou desde o princípio, ou
pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem
nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes
de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar
assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais,
tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais,
elevar-se-á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de
Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se
recolher no centro da sua unidade, tornado espírito uno com
Deus, na solitária caligem do Pai, aquele que foi posto sobre
todas as coisas estará sobre todas as coisas”
Conclusão: como apresentamos na
abertura de nossa exposição, a
primeira marca geral do problema do
conhecimento em seus primórdios
renascentistas é a elevação de “uma
concepção rigorosa de causalidade
natural [que] vai amadurecendo
paralelamente [a uma] concepção
moderna de liberdade como
autodeterminação teórica e moral”
(p. 185).

Nossa próxima exposição começará


tratando dos conceitos de evolução e
cadeia do ser. Como esta última
pode ser epistemohistoricamente
aplicada para aprofundar nosso
entendimento da conclusão anterior?

Didacus Valades, Rhetorica


Christiana (1579)

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