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ARTIGO
Arnaldo Provasi Lanzara*
Este artigo destaca a importância de se repensar os vínculos entre trabalho e proteção social no atual contexto
de intensas transformações produtivas e de liberalização das economias políticas. Além de discutir os efeitos ad-
versos gerados pelas mudanças tecnológicas nas relações de trabalho, com o consequente crescimento global do
fenômeno da polarização do emprego e da renda, o objetivo deste artigo é apontar os limites e possibilidades das
atuais alternativas de proteção social que buscam responder a esse fenômeno. Em diálogo com a literatura sobre o
futuro do trabalho e do Estado de Bem-Estar numa era de incertezas e diversificação dos riscos sociais, conclui-se
que uma alternativa realista de política social para a era da economia digital seria proteger as transições ocupacio-
nais dos indivíduos, combinando políticas de educação, renda e emprego, com destaque para as políticas ativas
de treinamento vocacional, com as tradicionais medidas contributivas.
Palavras-chave: Mudanças tecnológicas. Economia digital. Reconfiguração das relações de emprego. Desigualda-
des. Alternativas de proteção social.
Nessas economias políticas, a proteção das ve revisão sobre o papel da vinculação entre
famílias era quase automática, bem como a pas- trabalho e seguro social na constituição do
sagem dos indivíduos da escola para o trabalho. Estado de Bem-Estar Social. A segunda seção
Como a maioria dos trabalhadores se encontrava destaca as recentes transformações nos mer-
em relações de emprego duráveis e o modelo da cados de trabalho, enfatizando os efeitos das
família era estável, todos os indivíduos estavam mudanças tecnológicas para o crescimento da
protegidos, tal era a dependência do bem-estar polarização do emprego e das desigualdades.
das famílias em relação ao trabalho. A terceira seção discute algumas alternativas
* Universidade Federal Fluminense UFF (Campus de Volta de proteção que despontam no atual cenário
Redonda). para fazer frente a essas mudanças. A última
Rua: Desembargador Ellis Hermydio Figueira, nº 783,
Aterrado. Cep: 27213-145. Volta Redonda – Rio de Janeiro seção conclui a discussão.
– Brasil. prolanzara@gmail.com.
http://orcid.org/0000-0002-7809-4719
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.36205 1
TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
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Carlos Vinícius Silva Pinheiro, Elias David Morales Martinez
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TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
renda do trabalho, tem aumentado exorbitan- dos seus filhos como estratégia para o fecha-
temente, significando que uma parte conside- mento de oportunidades (Milanovic, 2020). E
rável do produto dessas economias é retida pe- isso vem se revelando ser cada vez mais fre-
los mais ricos por meio de lucros e dividendos, quente, na medida em que o acesso aos recur-
cada vez mais isentos de tributação. Conforme sos proporcionados pelas novas tecnologias
destacado pela literatura, essa tendência de digitais se torna um requisito indispensável à
concentração da renda tem sido mais acentu- mobilidade social. Assim, a transmissão inter-
ada nos Estados Unidos, mas também é verifi- geracional da riqueza passa a ser o resultado
cada em diversos países, desde os tradicional- do acúmulo (nas mãos de poucos) das com-
mente muito desiguais, como Brasil e África petências que conferem acesso a um conjunto
do Sul, até os mais igualitários, como os países de profissões e carreiras mais valorizadas. E
escandinavos, embora nesses últimos haja mo- nisso reside o caráter perverso das tendências
deração em tal tendência (Piketty, 2020). de mudança nas relações de emprego, ora em
Branko Milanovic (2020) afirma que curso, intensificadas pela velocidade das ino-
uma das principais características do atual ca- vações tecnológicas.
pitalismo é o fato de este radicalizar e ao mes- Tal perversidade advém do fato de uma
mo tempo revestir de cinismo os seus tradicio- pequena elite se apoderar do capital tecno-
nais ideais meritocráticos, buscando legitimar lógico que é produzido a partir de genuínos
desigualdades injustas. A face meritocrática e esforços coletivos e investimentos públicos
cínica desse novo capitalismo, conforme sa- (Mazzucato, 2013). Além disso, o vertiginoso
lienta o autor, é que os mais ricos, hoje, po- enriquecimento daqueles situados no topo da
dem reclamar que sua posição social deriva da pirâmide de rendimentos e o consequente fe-
“virtude do seu trabalho” – um trabalho cada chamento de oportunidades representam um
vez mais especializado e intensivo em conhe- poderoso fator de abalo nas crenças igualitá-
cimento – obscurecendo assim as vantagens rias que fundamentam as democracias. E o
que eles têm obtido de um sistema que torna problema mais imediato, particularmente para
a mobilidade econômica cada vez mais rara e os mais pobres, é que as oportunidades de as-
difícil (Milanovic, 2020, p. 14). censão relacionadas à integração no mercado
Nunca antes o “véu da ignorância” que de trabalho estão rapidamente se deteriorando
acoberta as diferenças sociais foi tão omisso em razão das mudanças tecnológicas.
a respeito do crescimento das desigualdades. O fato é que tais mudanças transfor-
Nos últimos quarenta anos, houve o cresci- maram radicalmente as relações de emprego,
mento de um topo isolado do restante da socie- criando profundas incertezas sobre o futuro
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dade em diversos países. Nos Estados Unidos, dos trabalhadores. Os rápidos avanços no cam-
os 10% mais ricos detêm mais de 90% dos ati- po da automação e da informática colocaram
vos financeiros. Esse topo é altamente educado o trabalho em uma nova era. Algumas evidên-
e sua renda do trabalho é bastante elevada se cias demonstram que a tecnologia se tornou
comparada aos ganhos médios do restante da uma das principais forças de ativação das mu-
população (Milanovic, 2020). danças na estrutura de emprego nas diversas
Vale lembrar que os grupos mais afluen- economias, superando inclusive a liberaliza-
tes auferem suas vantagens da realização de ção dos mercados como fator explicativo para
um tipo de trabalho que se torna cada vez mais o crescimento das desigualdades (Goos; Man-
escasso quanto mais se aumentam as compe- ning; Salomons, 2014; Autor, 2015). Nas cha-
tências para o domínio das novas tecnologias. madas economias digitais do início do século
O resultado disso é a atual tendência das famí- XXI, as relações de emprego vêm se tornando
lias mais ricas de “hiperinvestir” na educação cada vez menos rotineiras, mais desiguais e
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Carlos Vinícius Silva Pinheiro, Elias David Morales Martinez
provocando sua realocação nos setores pouco 41), essas empresas estão se transformando em
especializados e de baixos salários. A conse- verdadeiras “fábricas virtuais não regulamen-
quência disso, segundo os autores, é a inten- tadas”. Como consequência, um fenômeno que
sificação da polarização do emprego, com o vem se tornando cada vez mais frequente, em
crescimento do trabalho cognitivo altamente escala global, é a chamada “plataformização do
remunerado e de ocupações manuais de bai- trabalho” (Casilli; Posada, 2019). Várias empre-
sas de alta tecnologia, como Google e Amazon,
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Como demonstra Klaus Schwab (2016, p. 30), “em 1990,
as três maiores empresas de Detroit possuíam uma ca- estão faturando bilhões de dólares anualmente
pitalização de US$ 36 bilhões, faturamento de US$ 250
bilhões, e 1,2 milhão de empregados; em 2014, as três através do recrutamento de trabalhadores tele-
maiores empresas do Vale do Silício tinham uma capitali- migrantes ao redor do mundo, em sua maioria
zação consideravelmente mais elevada (US$ 1,09 trilhão),
haviam gerado aproximadamente as mesmas receitas (US$ mal remunerados e desprovidos de quaisquer
247 bilhões), mas com cerca de 10 vezes menos emprega-
dos (137 mil)”. direitos trabalhistas (Casilli; Posada, 2019).
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TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
Existe uma íntima conexão entre a sanha uma série de empregos é inédita se comparada
inventiva das empresas de alta tecnologia e a aos períodos anteriores de destruição criativa
ânsia de Wall Street em reduzir os custos do (Cf. Schumpeter, [1943] 2017). Como ressalta
trabalho (conexão esta que passa despercebi- Martin Ford (2015), o desemprego sempre ca-
da nas análises que retratam essas empresas racterizou os períodos de transição das econo-
através da retórica heroica dos desbravadores mias capitalistas gerados pelas inovações pro-
e pioneiros). Um exemplo dessa conexão pode dutivas. E várias economias políticas presen-
ser dado pelo recente processo de automação ciaram, após esses períodos de transição, um
das empresas de fast food nos Estados Unidos. ciclo virtuoso entre aumento da produtividade
Imbuídas da informação de que os custo total e expansão dos empregos, salários e do con-
do trabalho na produção de hambúrgueres na sumo das famílias. Hoje a situação é bastante
economia americana se aproximava de USD 9 distinta: a produtividade cresceu puxada pe-
bilhões anuais, algumas empresas de alta tec- las inovações tecnológicas, mas o mesmo não
nologia, situadas no Vale do Silício, passaram pode ser dito dos salários e do consumo das
a projetar robôs para produzir hambúrgueres famílias (cada vez mais endividadas) e do pró-
gourmet em grande escala (até então produzi- prio emprego.
dos de forma manual). Essas empresas acredi- Não se pretende aqui apresentar uma vi-
tavam que a eliminação de empregos pela au- são distópica do futuro, mas pode uma econo-
tomação poderia gerar uma economia de recur- mia menos intensiva em trabalho prosperar se
sos sem precedentes para as grandes redes glo- o poder de compra gerado pelo trabalho é cada
bais que atuam no setor. No entanto, dentre os vez mais reduzido e desigual? Pode a prospe-
diversos fatores que justificaram a necessidade ridade ser encaminhada através de diminutos
de automação em um setor até então intensivo canais de conhecimento especializado se uma
em trabalho, embora reconhecidamente pre- massa de trabalhadores permanece alijada do
cário e de baixos salários, havia um bastante processo produtivo ou sujeita a empregos in-
significativo, qual seja: o surgimento de uma termitentes, mal remunerados e precários?
inédita onda de protestos por melhores salários Os governos ao redor do mundo pare-
e condições de trabalho que se espalhou pelas cem fazer vistas grossas a essas questões, do-
diversas redes de fast food nos Estados Unidos brando-se a um conjunto de pressões compe-
em 2013. No auge desses protestos, o Employ- titivas para desregulamentar seus mercados de
ment Policies Institute, um poderoso think trabalho no intuito de aumentar a “empregabi-
tank conservador que atua na indústria de ali- lidade” de suas economias. E a questão mais
mentação dos EUA, publicou uma matéria de grave é que sem programas públicos abrangen-
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primeira página no Wall Street Journal, a qual tes de treinamento profissional, a escassez de
advertia os empregados das redes de fast food trabalho qualificado pode se constituir num
a desistir dos protestos e a se resignar aos seus fator permanente de estagnação das economias
baixos salários, pois, caso contrário, “seriam ra- nacionais, limitando seus horizontes de inova-
pidamente substituídos por robôs baseados em ção e crescimento.
algoritmos inteligentes” (Ford, 2015, p. 15). Deve-se ainda destacar que o fosso que
É claro que não se pode desprezar o pro- distancia o trabalho cognitivo altamente re-
gresso das inovações tecnológicas, mas os seus compensado das ocupações de baixa remu-
potenciais impactos positivos podem ser anu- neração, nas diversas economias nacionais,
lados, se o ritmo de criação de empregos nas também pode cavar um abismo entre os países
economias digitais for bem menor que a inten- ricos e pobres. As tendências apontadas acima
sidade dos empregos destruídos. Atualmente, são extremamente preocupantes para os países
a velocidade que imprime obsolescência a emergentes com baixa capacidade de inovação
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Carlos Vinícius Silva Pinheiro, Elias David Morales Martinez
globalização. No entanto, esses mesmos indi- ção (Kurer; Gallego, 2019). Em segundo lugar,
víduos também manifestam uma forte aversão a política social precisa se constituir como um
aos riscos e são mais propensos a expressar novo “contramovimento protetor” (Cf. Polanyi,
suas preferências políticas por medidas redis- [1944] 2000) capaz de gerar alternativas realis-
tributivas (Iversen; Soskice, 2001; Thewissem; tas a uma espiral de ilusões que alimentam as
Rueda, 2017).2 Em contraste, os “ganhadores” crenças no empreendedorismo e no esponta-
– indivíduos com alta qualificação e altos salá- neísmo das inovações.
rios – tendem a se portar como oponentes da As inovações tecnológicas são as molas
propulsoras que ativam as economias digitais.
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Os riscos são mais pronunciados para indivíduos que Mas são elas, também, que caracterizam a forte
durante o seu processo de formação profissional investi-
ram em habilidades específicas, perderam o emprego e, volatilidade dos novos processos produtivos e
por isso, encontram sérias dificuldades de se reinserir no
mercado de trabalho (Iversen; Soskice, 2001). situações de trabalho. Além disso, é necessá-
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TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
rio admitir que as inovações são passíveis de espécie de panaceia. Já que os beneficiários
falhas. A cada dia, novas empresas vincula- dessa renda estariam livres das suas necessi-
das à economia digital surgem e desaparecem dades mais prementes, não haveria razão para
sem deixar rastros. Poucas das tão celebradas que os serviços sociais de provisão pública se
startups conseguem se estabelecer de forma expandissem acima do mínimo universal fixa-
permanente. No atual cenário de grande vo- do para contemplar tais necessidades. Assim,
latilidade e incerteza, o fracasso desses novos estaria aberto o caminho para a expansão dos
empreendimentos é a regra e não a exceção. serviços sociais privados acima desse mínimo;
Deixados ao livre jogo do mercado, esses novos que deixaria de ser o piso a partir do qual se
empreendimentos correm o risco de sucumbir fixa o “valor” das necessidades dos indivíduos
diante de um ambiente competitivo predató- para se transformar num limite de proteção.
rio. O mesmo ocorre com os empreendedores, Há também algumas objeções de natu-
os quais podem alcançar grandes recompensas reza política. De acordo com Korpi e Palme
num curto espaço de tempo, até que a rapidez (1998), os direitos sociais relativos à contribui-
com a qual se produzem as inovações decre- ção (vinculados ao trabalho) são mais difíceis
te a obsolescência e inutilidade dos “modelos de serem modificados por reformas orientadas
de negócios”. A situação se torna ainda mais ao mercado do que os benefícios não contribu-
dramática quando se observa que na economia tivos. A razão disso é que os primeiros trazem
digital poucos afortunados conseguem de fato níveis de mobilização social de que os últimos
sustentar sua renda durante os sucessivos pe- carecem. Benefícios não contributivos, apesar
ríodos de desapontamento, pois os riscos do de serem altamente redistributivos e financia-
fracasso são desigualmente distribuídos (Co- dos via tributação, são distribuídos de forma
lin; Palier, 2015). anônima e a frio, pois independem do vínculo
Assim, a principal tarefa da proteção so- de pertencimento a uma categoria profissional
cial no século XXI é enfrentar esse ambiente – a uma coletividade reivindicante específica
de forte volatilidade e insegurança, garantindo – e, por isso, são muito menos prováveis de ge-
o acesso das famílias especialmente à renda rar ação coletiva e coalizões de interesse com
do trabalho. Várias alternativas de proteção implicações positivas no processo distributivo
despontam no atual cenário para fazer frente a (Korpi; Palme, 1998).3
esse ambiente de riscos. Uma delas é a provi- O fato é que não há política social ideal.
são de uma renda básica universal a todos os O tamanho do orçamento para a redistribuição
cidadãos, independentemente de sua inscrição não pode ser rigidamente fixado e tampouco as
nas relações de trabalho. A ideia parece bas- necessidades dos cidadãos. O que deve existir,
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tante sedutora. Ela se fundamenta no princípio na verdade, é um sistema que explicite as ga-
de que a provisão de uma renda mínima uni- rantias de acesso à proteção social, mas este
versal ampliaria a “liberdade de escolha” dos sistema nunca deixará de ser mais ou menos
indivíduos ao mesmo tempo em que satisfaria estratificado, em razão das características dos
suas necessidades básicas (Van Parijs, 1995). mercados de trabalho, da composição das fa-
Entretanto, várias são as objeções em mílias e do caráter multidimensional das de-
torno dessa ideia. Além de se mostrar uma al- sigualdades.
ternativa dispendiosa, a renda básica universal 3
Modelos de bem-estar que combinam benefícios contri-
seria insuficiente em vista dos objetivos mais butivos com serviços sociais universais são mais efetivos
para reduzir desigualdades porque abrangem diversos seg-
relevantes para o bem-estar, que é o amplo mentos de renda da população na mesma estrutura ins-
acesso dos cidadãos aos serviços sociais (Gou- titucional de bem-estar. Além disso, benefícios públicos
contributivos, como aposentadorias e pensões, reduzem a
gh, 2019). Ademais, a provisão de uma renda demanda por serviços privados ao reter os grupos assala-
riados com maior capacidade de vocalização nos sistemas
básica universal poderia se transformar numa públicos (Korpi; Palme, 1998).
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TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
trumentos que elas utilizam e aos modos com É importante destacar, todavia, que a po-
que elas interagem com as políticas passivas, lítica social é um fator essencial ao desenvolvi-
especialmente com o seguro-desemprego e os mento econômico e ao crescimento do emprego;
benefícios previdenciários. A noção de ativa- e por isso, hoje, mais do que no passado, o seu
ção traz implícita uma variedade de princí- principal objetivo é proteger as transições ocupa-
pios que podem influenciar distintamente as cionais dos indivíduos. Proteger essas transições
políticas para o mercado de trabalho, seja na significa, por sua vez, reconsiderar a articulação
perspectiva da proteção social, do investimen- entre políticas de educação, treinamento voca-
to em capital humano ou da remercantilização cional e seguridade social para gerar um míni-
do trabalho (Bonoli, 2010). mo de estabilidade e segurança aos indivíduos,
Como as experiências de diversos países garantindo assim os seus prospectos de inserção
demonstram, algumas políticas ativas podem qualificada na economia do conhecimento.
levar a um aumento das taxas de empregabi- A combinação dessas políticas não se
lidade sem necessariamente produzir quais- constitui em novidade. A apreciação das am-
quer melhorias nos mercados de trabalho. Elas plas implicações das políticas para o mercado
podem inclusive induzir a cortes nas políticas de trabalho, com vistas à garantia do empre-
passivas, desvinculando totalmente o trabalho go protegido, vai além das restritas definições
da proteção social. Políticas de ativação desse de “competência” e “capacitação”, tal como
tipo podem ser exemplificadas pelas políticas compreendidas pelo repertório meritocráti-
de workfare perseguidas por alguns países de co liberal. As experiências de políticas mais
forte tradição liberal, como os Estados Unidos abrangentes para o mercado de trabalho não
e a Grã-Bretanha, os quais desregulamenta- podem ser dissociadas de certas condições po-
ram seus mercados de trabalho, aumentando líticas que permitiram o advento de relações
os incentivos ao emprego por meio da impo- mais equilibradas entre o poder do capital e
sição de penalidades e sanções aos trabalha- do trabalho. Tais condições guardam profunda
dores (Dean, 2007). A flexibilidade irrestrita relação com as formas de gestão da conflituosi-
do emprego propugnada por esse modelo de dade social inauguradas pelos governos social
ativação levou esses países a experimentar um democratas já no período entreguerras, e que
forte crescimento das desigualdades e da pre- adquiriram primazia no pós-Segunda-Guerra,
carização do trabalho nas últimas décadas. A com o advento de vários experimentos de co-
lição a ser extraída do exemplo desses países é determinação dos salários, com destaque para
que as políticas de ativação podem se transfor- o modelo alemão de relações industriais, que
mar numa estratégia perversa de treinamento dava aos trabalhadores assento permanente
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para o trabalho intermitente e precário, espe- nos conselhos diretores das empresas e parida-
cialmente se as medidas de proteção social e de nas decisões relativas aos salários e à con-
de qualificação profissional forem esquecidas. tratação e demissão de pessoal (Thelen, 2004).
As políticas ativas devem se constituir Durante as décadas de 1950 e 1960, vá-
como partes integrantes de uma estratégia rios países da Europa nórdica e continental
mais ambiciosa de “investimento social”. E criaram ambiciosas políticas públicas para o
tal estratégia deve ser perseguida não em total mercado de trabalho, de grande abrangência
ruptura com as políticas “clássicas” de prote- e êxito para qualificar o trabalho e reduzir as
ção, sobretudo com as políticas passivas, mas desigualdades salariais, através de uma combi-
no intuito de modernizá-las, tornando-as mais nação virtuosa de medidas passivas e ativas de
adaptadas para enfrentar os riscos decorrentes proteção e promoção do emprego (Swenson,
das novas situações de trabalho (Morel; Palier; 2002; Thelen, 2004; Bonoli, 2010). No modelo
Palme, 2009). alemão, em particular, os empregadores foram
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convidados (ou persuadidos) a compartilhar rentes das novas situações de trabalho, pois os
com o Estado a tarefa de qualificar os traba- esquemas privados dificilmente contém qual-
lhadores por meio de abrangentes sistemas de quer componente redistributivo para compen-
treinamento vocacional. (Thelen, 2004). sar as frequentes interrupções de carreira que
Entretanto, pode-se objetar que as con- caracterizam hoje os mercados de trabalho, e
dições que propiciaram o advento desses expe- que afetam particularmente as mulheres.
rimentos deixaram de existir em diversos paí- Em suma, o teste atual de sobrevivência
ses, em razão das mudanças tecnológicas que da proteção social reside em sua capacidade de
afetaram os mercados de trabalho nas últimas sustentar o crescimento do emprego, reconci-
décadas. Mas o fato é que esses experimentos liando novamente trabalho e seguro social. Sem
também se deram em contextos de transição medidas de recuperação do emprego e da base
ocupacional, de rápidas inovações tecnológi- contributiva da seguridade social, as reformas
cas e escassez de trabalho qualificado (Bonoli, previdenciárias restritivas de benefícios correm
2010). Portanto, o problema não diz respeito o risco de “enxugar gelo” e de levar a um aumen-
tanto ao advento das novas tecnologias como to das taxas de pobreza na velhice. É preciso,
uma tendência irreversível de diminuição do portanto, repensar as políticas ativas como ins-
emprego, e sim a um crescente processo de trumentos de renovação das políticas passivas,
desregulamentação e precarização do trabalho. promovendo a ampliação da participação quali-
Também é de extrema importância ana- ficada no mercado de trabalho e a expansão do
lisar como os sistemas de seguro social intera- volume das contribuições sociais para a viabili-
gem com a atual reconfiguração dos mercados dade financeira dos sistemas previdenciários.
de trabalho. Num contexto de envelhecimento Porém, recuperar o protagonismo da pro-
populacional e de retração do emprego, é fun- teção social no atual cenário requer uma radi-
damental repensar a sustentabilidade financei- cal ruptura com as perspectivas fatalistas, que
ra dos sistemas previdenciários. Os sistemas tendem a conceber as regulações do Estado, os
públicos de aposentadoria estão diminuindo sindicatos e as políticas redistributivas como
suas taxas médias de reposição de renda nas forças inibidoras das inovações e do progresso.
diversas economias, em razão do aumento do Como nos ensina Albert O. Hirschman
percentual de desempregados ou de trabalha- (1991), a “retórica da intransigência” é uma po-
dores com baixos salários e exígua capacidade derosa arma para desmobilizar as reações políti-
contributiva (Hinrichs; Jessoula, 2012). cas e coletivas aos efeitos nocivos das políticas de
No entanto, abordagens de reformas que liberalização. E se os objetivos da política social
propõem medidas restritivas ou privatizantes hoje são reduzir o desemprego e promover o cres-
como solução aos problemas atuais dos siste- cimento do emprego qualificado, torna-se impera- Caderno CRH, Salvador, v. 36, p. 1-15, e023001, 2023
mas previdenciários tendem a desconsiderar a tivo romper com essa retórica e considerar seria-
vinculação do seguro social com o mercado de mente a necessidade de investir no aprendizado
trabalho. Governos que apostam nessas medi- das pessoas e proteger o seu ciclo de vida.
das, ao invés de atacarem os problemas rela-
cionados ao crescimento do emprego atípico,
buscam incentivar os trabalhadores com maior CONSIDERAÇÕES FINAIS
capacidade contributiva a se transferir dos sis-
temas públicos para os privados (Hinrichs; Como se pode depreender dos argu-
Jessoula, 2012). Além de provocar um esvazia- mentos ressaltados neste artigo, os empregos
mento do pilar público solidário dos sistemas estáveis de longa duração estão se tornando
previdenciários, tais medidas são totalmente cada vez mais raros em razão das mudanças
insuficientes para enfrentar os riscos decor- tecnológicas; ao contrário do desemprego e do
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TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL NA ERA DA ECONOMIA DIGITAL
subemprego que deixam de denotar situações conhecimentos, são medidas imperiosas que
excepcionais. Assim, novas formas de trabalho os governos ao redor do mundo deveriam ado-
atípicas tendem a se expandir, ganhando vulto tar como parte de uma estratégia integral e re-
as formas de trabalho intermitente. Estas pode- novada de desenvolvimento social.
rão prevalecer nas diversas economias políti- É importante salientar que os investimen-
cas, com um único indivíduo assumindo múl- tos privados não darão conta, sozinhos, de suprir
tiplos papéis durante o seu ciclo de vida, seja a crescente demanda por trabalho qualificado
como desempregado ou trabalhador precário. requerida por economias cada vez mais centra-
Nesse aspecto, o principal desafio que se das em inovações e em novos empreendimentos
coloca para os mercados de trabalho em perma- sociais, sobretudo para incrementar os Estados
nente transição é enfrentar o problema do em- de Bem-Estar nacionais e para cumprir os ob-
prego intermitente de massa gerado por uma jetivos e metas de um desenvolvimento que se
crescente mobilidade desregulamentada da força quer inclusivo e ambientalmente sustentável. As
de trabalho. Mesmo admitindo que as condições estratégias fundamentais para ir ao encontro de
atuais sejam menos alentadoras no sentido de tais objetivos são mais políticas do que tecno-
produzir relações estáveis de emprego, em razão cráticas e requerem amplas capacidades de co-
da forte volatilidade das situações de trabalho, ordenação por parte dos atores governamentais
não se pode negar que o atual cenário requer e dos interesses organizados. Tal como salienta
uma revisão das estratégias de proteção social. Peter Evans (2014), o principal desafio para as
Este artigo procurou demonstrar que economias políticas, no atual cenário de mudan-
tais estratégias existem, apesar de desconexas, ças tecnológicas, é construir capacidades organi-
localizadas e ainda pouco difundidas como pa- zacionais e redes de implementação de políticas
radigmas de proteção. Não é preciso reinventar que promovam um novo embeddedness centra-
a roda. Políticas ativas de qualificação, aliadas do na estruturação de coalizões pró-trabalho, e
às “tradicionais” políticas passivas, foram os que sejam, portanto, capazes de sustentar políti-
elementos condutivos do desenvolvimento cas redistributivas em longo prazo.
econômico e social de diversos países. Tais po- Proteção e promoção são os principais
líticas surgiram, num primeiro momento, para objetivos da política social. Daí sua importân-
corrigir as consequências adversas da compe- cia como fundação das economias políticas
tição capitalista, transformando-se, posterior- civilizadas. Contudo, se os governos ao redor
mente, nos fatores produtivos que permitiram do mundo passam a confiar cegamente na for-
diversas nações darem importantes saltos ça da inércia, isto é, na força espontânea do
competitivos através da expansão do trabalho livre mercado, a intensa competição pode se
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Carlos Vinícius Silva Pinheiro, Elias David Morales Martinez
This article highlights the importance of rethinking Cet article souligne l’importance de repenser les liens
the links between work and social protection entre travail et protection sociale dans le contexte
in the current context of intense productive actuel de transformations productives intenses
transformations and liberalization of political et de libéralisation des économies politiques. En
economies. In addition to discussing the adverse plus de discuter des effets néfastes générés par les
effects generated by technological changes in labor changements technologiques dans les relations de
relations, with the consequent global growth of the travail, avec la croissance mondiale conséquente
phenomenon of job and income polarization, the du phénomène de polarisation des emplois et des
objective of this article is to point out the limits and revenus, l’objectif de cet article est de souligner les
possibilities of current social protection alternatives limites et les possibilités des alternatives actuelles
that seek to respond to this phenomenon. In de protection sociale qui cherchent à répondre à
dialogue with the literature on the future of work ce phénomène. En dialogue avec la littérature sur
and the Welfare State in an era of uncertainty and l’avenir du travail et l’État-providence à l’ère de
diversification of social risks, it is concluded that l’incertitude et de la diversification des risques
a realistic alternative of social policy for the era sociaux, il est conclu qu’une alternative réaliste de
of the digital economy would be to protect the politique sociale à l’ère de l’économie numérique
occupational transitions of individuals, combining serait de protéger les transitions professionnelles des
education, income and employment policies, with individus , combinant des politiques d’éducation,
emphasis on active vocational training policies, de revenu et d’emploi, en mettant l’accent sur des
with traditional contributory measures. politiques actives de formation professionnelle,
avec des mesures contributives traditionnelles.
Arnaldo Provasi Lanzara – Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), professor da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e pesquisador vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas,
Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED) e ao Grupo Futuros da Proteção Social do Centro de Estudos
Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE/Fiocruz). Atua principalmente nos seguintes temas: Estado,
políticas públicas, trabalho e seguridade social. Publicações recentes: LANZARA, A. P. O seguro social e
a construção da proteção do trabalho no Brasil. Revista de Ciências Sociais, v. 61, n. 2, 2018; LANZARA,
A. P.; BICHIR, R. M. Not only financialization: recent trends in brazilian social policies. Development
and Change, v. 50, n. 3, 2019; LANZARA, A. P.; COSTA, T. F. O Brasil e a democracia no início do século
XXI: entre a soberania popular e a austeridade. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 123, 2021.
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