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Compro, Logo Existo?

Hoje, tive que fazer uma redação com o título desse texto como tema. Provavelmente
queriam que eu dissertasse sobre os impactos sociais e psicológicos do consumismo, já que os
textos motivadores iam mais por essa linha. Porém, mesmo assim, a proposta da redação em si
deixava margem para adentrar no assunto de forma diferente. Eu escolhi ir pelo caminho das
definições (que eu tive que tirar da minha cabeça na hora, pois não podia pesquisar) de
“existir”. Não vou transcrever a minha redação ipsis litteris aqui porque com tempo, com
acesso à internet e sem forma fixa para seguir, posso escrever uma versão muito melhor, com
mais reflexões e talvez mais divertida dela:

O conceito de existir é difícil de definir. Olhemos parte do que dicionários dizem – 1.


“ter existência real, ter presença viva, viver, ser, subsistir, estar ali, durar”, 2. “fazer parte da
realidade material ou imaterial”, 3. “ter influência sobre”.

Olhando para a primeira definição, ou conjunto de definições, podemos perceber que,


segundo ela, para algo existir, precisa ter lugar no espaço (note que eu disse “ter lugar no
espaço”, e não “ocupar espaço”, não negando a existência de objetos puntiformes). Para ter
lugar no espaço, algo também precisa ter lugar no tempo, e quando algo tem lugar no espaço
e no tempo, esse algo existe durante o mesmo período do tempo que o permite ter lugar no
espaço. Também podemos perceber que parte dessa definição afirma que para que algo
exista, esse algo precisa estar vivo. Não vou explorar essa definição que restringe a existência à
seres vivos neste texto, pois simplesmente não convém.

Agora dando enfoque para a segunda definição, já vemos uma diferença: nessa
definição, algo imaterial também pode existir, no campo das ideias. Aqui adicionamos ideias,
no período em que tem alguém pensando nelas, aos já estabelecidos objetos que tem lugar no
tempo e no espaço. Se ideias não pensadas existissem, qualquer coisa existiria (menos algo
definido como não existente, que não existiria mesmo tendo um conceito sobre ele que
existe). Um conceito tão inclusivo não me parece útil, por isso não considerei (embora esteja
escrevendo sobre) essa possibilidade – talvez eu seja um utilitarista.

É interessante observar que objetos que são junções arbitrárias de outros objetos
existem apenas no campo das ideias, já que, na verdade, o que existe materialmente são
apenas os simples (unidades indivisíveis de matéria) e o resto são formas específicas de
agrupá-los que, por algum motivo, vieram à mente de algum ser pensante. Um abajur, por
exemplo, não existe materialmente além de seus simples. A quantidade de coisas materiais
que existem é igual à quantidade de simples, não à quantidade de simples mais todas as suas
possíveis junções. Pensando dessa forma, a primeira definição, que fala apenas de objetos
materiais, não abarca abajures, enquanto a segunda abarca.

A terceira definição nos leva um pouco mais para perto do tema original. As outras
duas contam tudo que existe no nosso universo, enquanto essa conta apenas o que existe
dentro do universo observável, pois nenhuma informação e, portanto, nada que nos
influencia, vem de fora dele (a expansão do universo em relação a nós, à essas distâncias, é
mais rápida que a velocidade da luz, o que faz com que nada que sai de lá consiga chegar aqui).
Talvez uma partícula de fora do universo observável que esteja quanticamente entrelaçada
com uma partícula de dentro dele possa influenciá-la, mas não vamos entrar nessa
possibilidade pois nem os físicos entendem essa “bagaça” direito, imagine eu. Tudo dentro do
universo observável nos influencia de alguma forma, mesmo que seja totalmente irrelevante,
pois, no mínimo, as suas gravidades, por menor que seja, chega na Terra. Na prática, não muda
nada, mas acredito que ainda caiba na definição. O efeito borboleta, simplificadamente,
quando algo pequeno tem consequências grandes, mostra que mesmo coisas aparentemente
não relevantes podem acabar o sendo - falarei mais sobre isso no final do texto.

Aqui vamos para as minhas definições e considerações sobre elas:

“Existir” na sua forma mais geral – difícil, se não impossível, de definir para alguém que
realmente não sabe o que significa existir - que não está apenas traduzindo de outra língua,
procurando por sinônimos ou dando um nome para o que já sabe - sem se dobrar sobre
conceitos que apenas alguém que entende o que significa existir entenderia. Imagine-se
explicando o que é existir para alguém que não existe, ou para um ser que não tem consciência
da própria existência (eu sei que não faz muito sentido, mas imagine). Eu imaginei e acredito
que dizer “fazer parte da realidade material ou imaterial” não ajudaria, pois alguém que não
entende o conceito de existir não entenderia o conceito de realidade. Mesmo assim, essa é a
melhor definição que consigo pensar (ou roubar).

“Existir” materialista – “propriedade dos simples, que tem lugar no espaço e no


tempo”. Toda a discussão que eu fiz sobre como a definição acima não explica realmente o
que é “existir” vale para essa também. O motivo dessa dificuldade nas definições é que
"existir" é um conceito fundamental, que não se dobra sobre nenhum outro conceito e, para
explicá-lo, precisamos de sinônimos ou de conceitos que se dobram nele. A propriedade de
existir simplesmente acontece.

“Existir” por influência - “ter influência sobre”. Essa definição pode ser considerada
espacialmente relativista (e também temporalmente, como as outras), pois o nosso universo
observável é diferente do de outros locais no universo. Os objetos que existem por essa
definição não formam um subconjunto dos que existem na definição materialista, pois aqui
existem ideias, e lá não. Porém, eles formam um subconjunto da definição mais geral.

“Existir” por influência relevante - “ter uma probabilidade relevante de ter uma
influência relevante sobre”. Essa é a definição mais restrita que abordarei, e é mais relativista
ainda do que a anterior, pois considera o ponto de vista de alguém ou de alguma coisa em
específico. Pense no exemplo de um político. Por essa definição, alguém que ele não conhece
de sua vida pessoal só existe quando é politicamente relevante (por ser influente ou coisa
assim). Quanto aos eleitores individuais, um voto não tem uma probabilidade relevante de
fazer uma diferença relevante (embora possa acontecer, caso a eleição esteja muito próxima
do empate), logo, eleitores não existem individualmente. Eles existem como um ou mais
grandes grupos.

Transportando essa última definição para a visão de uma empresa (lembre-se que o
tema tem a ver com consumo), alguém que os membros relevantes dessa empresa não
conhecem de sua vida pessoal só existe quando adquire quantidades relevantes do produto ou
contrata quantidades relevantes do serviço que essa empresa realiza (ou tem alguma
relevância política ou cultural que pode influenciar os negócios dela).

Mas empresas isoladas não influenciam tanto a sociedade quanto o mercado em si.
Vivemos sobre uma tremenda influência do mercado, então a visão dele, que é propagada,
além de tudo, pela indústria cultural, é extremamente relevante. Como o mercado é muito
maior e mais geral do que empresas isoladas, os únicos indivíduos que existem são os
multibilionários (e os que tem grande influência). Países e grandes empresas existem, assim
como massas enormes de indivíduos que sozinhos seriam irrelevantes.

A resposta que tenho para a pergunta do título desse texto e do tema da minha
redação é: não, consumir não faz com que alguém exista para o mercado (mesmo que queiram
que achemos que faz, para nos engajarmos mais no consumismo) e sim que esse alguém faça
parte de um grupo que existe. Porém, como as pessoas são influenciadas a achar que consumir
te faz existir, consumir pode fazer alguém parecer existente para as pessoas em volta desse
alguém – e, portanto, existir para elas, já que, por parecer existente, esse alguém as influencia
- o que já tem consequências sociais relevantes. Isso tudo, seguindo a definição de influência
relevante, que me parece ser a que faz mais sentido quando se fala de existir socialmente.

É interessante notar algumas coisas: Essa definição final de “existir” ignora o efeito
borboleta, o que faz com que grandes diferenças possam ser feitas por coisas que não
existiam, pois não tinham uma probabilidade relevante de fazer uma diferença dessas; a
inexistência de pessoas individuais faz com que algo que existe (o conjunto dessas pessoas)
seja composto de coisas que não existem; voltando lá na definição 1. de existir dos dicionários,
eu disse (no quinto parágrafo) que, segundo ela, apenas simples existiriam. O problema é que
não temos nenhuma garantia de que simples sejam uma realidade. O nosso universo pode ser
um universo gunky (que não é formado por partículas indivisíveis, onde a matéria pode ser
dividida infinitamente). Nesse caso, segundo a definição 1. dos dicionários, nada existe; na
minha interpretação da definição 2. dos dicionários, a lua, por exemplo, só existiria quando
alguém estivesse pensando nela. Fora esse caso, apenas existiriam o monte de simples que a
compõe.

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